Acessibilidade / Reportar erro

A educação em tempos de neoliberalismo

RESENHAS

Carlos Roberto Alexandre1 1 Doutorando em Educação, Universidade Federal Fluminense < cralex@uol.com.br>

A educação em tempos de neoliberalismo. Jurgo Torres Santomé. Tradução de Claudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 2003, 263 pp.

Jurgo Torres Santomé é catedrático em Educação da Universidade de La Coruña, Espanha, e sua produção intelectual focaliza, principalmente, o currículo, sem a este se limitar. Embora seus trabalhos circulem por diversos países, as suas ações e pensamentos aparentam estar impregnados dos efeitos e das mudanças ocorridas no governo espanhol.

Em 1996, o conservador Partido Popular (PP) derrota o Partido Socialista Espanhol (PSOE) nas eleições nacionais e José Maria Aznar torna-se primeiro ministro. O PSOE até então havia procurado desenvolver um governo de formato social-democrata, centrando seus esforços nas áreas de Saúde, Educação e Seguridade Social.

Em 2000, o PP, ao vencer as eleições, desta vez com folgada vantagem de votos, manteve na Presidência Aznar, que deu continuidade às políticas conservadoras e neoliberais já implementadas no seu primeiro governo.

É bastante plausível que este movimento ocorrido na Espanha - da social democracia ao liberalismo - tenha interferido no pensamento e nas propostas de Santomé. Nos seus comentários são reiterativas as comparações entre a diminuição das conquistas sociais causadas pela globalização neoliberal e pelas idéias conservadoras e os ganhos sociais durante a vigência do Estado do Bem-Estar Social na Espanha. É constante o deslocamento pendular entre o modelo neoliberal e o social democrata; contrapõem-se rumos que "o neoliberalismo e as ideologias conservadoras" delineiam para os sistemas educacionais e os projetos sociais democratas que deveriam substituí-los.

Estas transformações, como declara o autor, motivaram a produção desta obra, na qual ele se propõe a apresentar e analisar certas perguntas que muitas pessoas se fazem, mas as quais "os círculos oficiais do poder tentam desviar de nossos olhares, pois são consideradas interrogações inapropriadas ou problematizações incorretas" (p. 12).

Santomé destaca, na introdução, que o ideário neoliberal produz profundas modificações na sociedade civil, tais como: reduz o social ao econômico anti-histórico, gerando descrença, pessimismo, repúdio às transformações e apego às tradições; centra os valores sociais no aumento do consumo, fomentando a competição e o egoísmo, desvanecendo-se assim ideais de justiça social, solidariedade e democracia; estimula a fragmentação social, que se contrapõe à estruturação social, tida como um dos objetivos primordiais da implantação da escolaridade obrigatória.

Em contraposição, o autor sugere que se impregnem de historicidade os estudos vinculados ao campo do social, o que poderá fazer ampliar ou fortalecer a utopia nos horizontes humanos. Utopias que já prevalecem em certos movimentos, como os feministas, pacifistas e antiglobalização.

Após tratar de aspectos inerentes à sociedade civil, Santomé destaca que o neoliberalismo e as ideologias conservadoras procuram agenciar um cerco ao Estado, a fim de que este deixe de se preocupar com aspectos do social que anteriormente eram o centro de suas atenções, minimizando direitos e ampliando os deveres dos cidadãos. Uma das conseqüências deste reposicionamento do Estado é que as iniciativas privadas passam a se ocupar da "educação da cidadania", o que representa "a destruição de algo que custou muito esforço: o Estado do Bem-Estar Social" (p. 11).

Nesta introdução e no primeiro capítulo, são apresentados os elementos fundamentais para a compreensão deste livro, tanto no que diz respeito às metodologias nele sustentadas quanto ao que se refere às questões que serão continuamente reiteradas.

No capítulo 1, intitulado "Um mundo em crise e em processo de reestruturação", Santomé parte da premissa de que as análises dos sistemas escolares e a vida dentro da sala de aula exigem a abertura de diversificadas perspectivas. Acrescenta que há uma profusão de análises sustentadas em concepções e categorias conhecidas, que parecem ser renovadas com a simples introdução do prefixo 'pós'. Ainda segundo o autor, há também de se ficar atento ao retorno de antigas posições que privilegiavam o econômico. Neste sentido, é importante entender as modificações que ocorrem na economia para a compreensão do que acontece na educação, porém sem desprezar as mutações sofridas pelos Estados nacionais para originá-las ou sustentá-las.

Assim, a obra desenvolve dois tópicos: um dedicado às mudanças no campo econômico e outro às transformações na política estatal, cujas trajetórias devem ser compreendidas em suas interações. O autor procura mostrar em que medida os organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC) interferem não só nas definições políticas dos Estados nacionais, mas também elaboram e propagam ideologias que contribuem para sua aceitação e para o apassivamento de muitas sociedades.

A seguir, esclarece sobre dois modelos de personalidade: a do homo sociologicus e a do homo economicus. Ambos são conservadores e individualistas, alienados e de práticas fragmentadas, mas o que difere o homo economicus do homo sociologicus é que este último parece estar sempre a cumprir passivamente papéis, ao passo que o outro é calculista e aparenta estar a fazer escolhas que lhe tragam maiores proveitos. A sociedade neoliberal é o espaço do homo economicus.

Da mesma forma, o autor alerta que nestas sociedades, onde os aspectos "públicos e políticos" assumem papéis secundários, outro modelo de personalidade - a do homo politicus - é visto como defasado, pernicioso e desencadeador de anomalias sociais.

A conclusão de que as sociedades regidas por modelos econômicos neoliberais estimulam o crescente distanciamento entre os privilegiados e os espoliados leva o autor a abordar, no primeiro subitem deste capítulo, "As desigualdades econômicas, a liberdade, e o desenvolvimento econômico", e a concluir que o desenvolvimento econômico deveria ser aferido a partir da verificação das possibilidades de exercício da liberdade e não a simples variações de índices econômicos, como os do PIB, dos salários e lucros ou dos avanços tecnológicos.

A fim de esclarecer o que compreende por liberdade, caracteriza cinco delas, que interligadas devem se constituir em fins e elementos de sustentação do desenvolvimento: "as liberdades políticas", "os serviços econômicos", "as oportunidades sociais", "as garantias de transparência" e a "segurança protetora". Essas são, a um só tempo, "as finalidades do desenvolvimento" e os "meios" capazes de torná-lo possível, por considerar que "se pode demonstrar facilmente que os excessos de mercado só podem ser regulados e superados mediante ideologias democráticas" (p. 25). Porém as liberdades são insuficientes, caso não haja condições para que os homens possam "desenvolver suas capacidades" (p. 26) para tomar decisões.

Ainda no capítulo 1, denominado "A educação em um mundo em crise", o autor realça que, com a reestruturação do capital, a educação escolar foi posta em uma posição de destaque, naturalizando-se a existência de uma ligação direta entre sistemas educacionais e produtividade dos mercados. Assim, nesse mundo em crise, os sistemas escolares e os professores passam a ser centrais para justificar as crises ou os fracassos econômicos e sociais.

Ao responsabilizar a queda dos níveis educacionais pelo desemprego e pelos males sociais, criando pânico na sociedade, os governos e seus funcionários constroem as condições para um amplo e autoritário intervencionismo na educação escolar, penalizando os professores e implantando projetos conservadores, que terão anuência da maioria da população, por encontrarem neles maior segurança do que em projetos alternativos. Ao mesmo tempo, arranjam álibis para suas ações, dentre as quais a diminuição de verbas para a escola pública.

Deste modo, está criado um campo fértil para "O novo conservadorismo e o pânico moral". Nessa parte da obra, Santomé retoma questões já apresentadas para explicar algumas ocorrências na sociedade capitalista reestruturada a partir de necessidades econômicas. Ao fazer alusão ao pessoal, "as análises e intervenções sobre a realidade" tomam como prioritários o utilitarismo e os benefícios econômicos, fragilizando os aspectos "sociais e morais" (p. 30). Daí o destaque assumido pela educação profissional mesmo nos níveis mais elementares dos sistemas de ensino.

Prosseguindo, Santomé se dedica a fazer comentários sobre o desvelamento de interesses ocultos nas propagandas feitas pelos atuais grupos hegemônicos; a utilização dos meios de comunicação para suas divulgações; a cooptação de instâncias chave do Estado; as tentativas dos setores econômicos mais ricos de anular situações de risco e de falsear a realidade; a necessidade de ações que criem uma mentalidade consumista nos indivíduos, para que passem a se considerar mais um comprador de serviços e mercadorias do que um cidadão de direitos, a quem devem ser ofertados serviços públicos. Aí também faz o autor antigas e novas alusões ao escolar, tais como: a freqüente hostilização dos professores e das escolas; a perversidade com que são tratados os professores e as escolas; a inserção de conteúdos tradicionais nos currículos escolares; a crescente certificação ou titulação acadêmica com o concomitante "declínio intelectual das novas gerações"; a transferência do poder de decisões da sociedade para conselhos vinculados aos governos; as reformulações dos sistemas escolares a fim de ajustá-los às necessidades econômicas; o importante papel ideológico das escolas para a organização da sociedade; a transformação das escolas em "apêndices de empresas"; a reformulação das escolas para que retornem às condições anteriores idealizadas e romantizadas.

O autor finda seu primeiro capítulo apontando para a necessidade de a escola "oferecer conhecimentos e habilidades" (sic) e "gerar capacidades" para que se instale um contexto democrático que possibilite a análise do funcionamento da sociedade e a intervenção no sentido de sua transformação.

No capítulo 2, Santomé dedica-se ao que parece entender como uma das mais perversas construções do neoliberalismo: "A mercantilização do sistema educacional". A esta construção, ele vai dedicar mais três outros capítulos, destacando as mudanças por ela ocasionadas e os atos necessários para sua implantação. O autor apresenta quatro linhas de ação que a favorecem: a descentralização, a privatização, o favorecimento do credenciamento e da excelência competitiva e a naturalização do individual ou inatismo. Enquanto o segundo capítulo é dedicado à primeira destas linhas, as demais serão comentadas nos capítulos 3, 4 e 5, respectivamente.

Talvez se pudesse concluir destes quatro capítulos que a mercantilização da educação age, simultaneamente, como catalisadora e pólo de irradiação de ações substantivas do neoliberalismo que merecem ser combatidas. Durante sua exposição, Santomé apresenta sempre uma comparação entre o que deveria ser e o que existe, sendo o existente geralmente considerado inadequado e causador de malefícios, tanto no campo econômico quanto no político e no educacional, e de modificações nada saudáveis nos indivíduos e suas subjetividades.

O capítulo 6 apresenta "Os efeitos do neoliberalismo no currículo". Ao comentar um dos seus temas prediletos, Santomé apresenta como questão básica: em uma sociedade em que se superestima o consumo, o currículo sofrerá profundas transformações para adaptar-se a ela. Neste novo modelo, as dimensões estéticas, econômicas e técnicas predominam sobre as éticas.

Já no capítulo 7, descreve "A inadequação das metáforas do mercado na educação", no que se refere às impossibilidades de que exigências dos mercados possam ser aplicadas à educação. Dando continuidade a muito do que já foi assinalado nos capítulos anteriores, mostra como essa transposição do vocabulário corrente na economia se sustenta nas modificações ocorridas na percepção que o Estado passou a ter dos novos papéis da educação.

Finalizando, no capítulo 8, intitulado "Professores e professoras como ativistas sociais", Santomé aborda a necessidade de se relativizarem os estudos das duas últimas décadas, que tratam do professorado como agentes de transformação, como ativistas sociais.

De modo geral, pode-se afirmar que esta é uma obra possivelmente relevante para os que desejarem ter acesso a uma visão ampla e particularizada de questões pertinentes à educação. Ao apresentar em geral uma visão panorâmica e exaustivamente detalhada em alguns aspectos da educação em uma sociedade regida pelo neoliberalismo e por ideologias conservadoras, o autor produziu uma obra de caráter mais descritivo do que analítico.

Além disto, no que diz respeito à metodologia por ele utilizada, há de se ter cuidado com duas de suas formas de apresentação de aspectos da realidade: o uso de tipologias e de comparação de modelos. A tipificação pode induzir o leitor a crer que a rebelde realidade se dá a conhecer por meio da listagem de alguns de seus aspectos; já a utilização de modelos é capaz de levar à crença de que as transformações sociais ocorrem por simples deslocamentos, ou saltos, de um tipo particular de sociedade para outra. Embora algumas vezes Santomé procure ressaltar conflitos e contradições, na maioria das vezes prevalecem articulações lógicas, descrevendo com excessiva agilidade relações imediatas de causa e efeito, nas quais as mediações são esmaecidas e as tensões, minimizadas.

Nota

  • 1
    Doutorando em Educação, Universidade Federal Fluminense <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2005
    Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio Avenida Brasil, 4.365, 21040-360 Rio de Janeiro, RJ Brasil, Tel.: (55 21) 3865-9850/9853, Fax: (55 21) 2560-8279 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: revtes@fiocruz.br