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De ferro e flexíveis: marcas do Estado empresário e da privatização na subjetividade operária

RESENHAS REVIEWS

Valdemar Ferreira da Silva1 1 Mestrando em Ensino de Biociências e Saúde, Fundação Oswaldo Cruz < valdemar@ioc.fiocruz.br> ; Giovane Saionara Ramos2 2 Mestranda em Ensino de Biociências e Saúde, Fundação Oswaldo Cruz < giovane.ramos@gmail.com>

De ferro e flexíveis: marcas do Estado empresário e da privatização na subjetividade operária. Maria Cecília de Souza Minayo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, 458 pp.

Em tempos de neoliberalismo e reestruturação produtiva, torna-se cada vez mais urgente entendermos o processo pelo qual os indivíduos vão sendo cooptados, por vezes de forma sutil, pela ideologia capitalista.

Encontramos, no desenvolvimento do processo de trabalho hoje adotado, um modelo que retorna aos primórdios do modo de produção capitalista, quando o individualismo e a racionalidade econômica eram condições indispensáveis para que a produtividade do trabalhador deslanchasse e alcançasse a expectativa de excelência na produção das indústrias rumo ao lucro. Ao homo economicus contrapõe-se, entretanto, um apelo ao resgate da subjetividade do trabalhador apropriada pela perversidade do sistema, que pretende moldar o caráter da classe trabalhadora às condições objetivas do trabalho. Esse momento merece profunda análise, haja vista que, sob a égide do capitalismo, uma mascarada desestruturação das relações sociais e uma precarização da igualdade vão aos poucos delineando a expansão geográfica de uma ideologia globalizada e globalizante que, de modo consentido pelo Estado, determina os rumos da sociedade.

De modo sensível e coerente, o livro De ferro e flexíveis: marcas do Estado empresário e da privatização na subjetividade operária, de Maria Cecília de Souza Minayo, pesquisadora da área de Ciências Sociais e Saúde do Centro Latino-americano de Estudos de Violência e Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz, evidencia as condições de vida da classe trabalhadora no Brasil, analisando a Companhia Vale do Rio Doce, no período de 1942 a 1997, por ocasião da sua privatização. Ao longo da obra, a autora busca mostrar o modo como a cidade de Itabira, em Minas Gerais, a partir da década de 1930, começa a se transformar com a implantação da Vale de tal forma, que 'forja', assim como o processo de extração do minério de ferro, a vida de seus trabalhadores, que chega a confundir-se com a própria história da empresa, voltada para a exportação - empregados de uma estatal que sofreram a transição para uma empresa calcada na reestruturação produtiva e privatizada, acreditando, sempre, que "seu suor e sua vida possuíam um sentido especial de serviço à pátria" (p. 13). Com a chegada do progresso impõe-se um modo de organização do trabalho penoso e insalubre. Aos poucos o leitor ávido por desvendar as artimanhas desse capitalismo que se traveste de uma figura assistencialista poderá desenvolver a reflexão que se pretende crítico-transformadora e desejável por parte de qualquer educador.

A autora expõe de maneira precisa a formação do sentido de classe operária no mesmo momento em que a intensificação industrial adere à reestruturação produtiva de ordem mundial e mostra de que maneira a Vale utiliza como máscara a face paternalista do Estado e 'promove' a cidade de Itabira a um ponto esquecido nas estatísticas da empresa.

Alerta, ainda, que não pretende tratar da história da instituição Vale, contudo, é a partir dela que se confundem a formação dos operários e seus olhares como participantes na construção da empresa, numa perspectiva histórica e cultural, quando eles "passaram a perceber com mais nitidez a dominação da empresa sobre a sua vida privada e sobre a sua vida social" (p. 43). Evidencia-se a simbiose entre a Vale, marco de progresso, e Itabira, cidade pobre que perde o poder para a elite, apesar de toda a resistência cultural à chegada da empresa, na década de 1940, num momento de definição da política nacional.

Ao identificar como estruturantes os conceitos de processo de trabalho e condições gerais de produção, Maria Cecília Minayo apresenta como os trabalhadores assimilam os valores típicos de uma sociedade industrial, como o consumo, na expectativa de mobilidade social e aumento de bem-estar, num momento em que ter uma ficha de operário da Vale era sinônimo de melhoria de vida e prestígio. A constituição dos 'homens de ferro' evidencia-se mais como uma demonstração de orgulho vinda daqueles que se entregaram à construção da maior empresa de mineração a céu aberto do mundo. A sua resistência às intempéries, durante a jornada de trabalho, literalmente consolida a crença nas oportunidades possíveis de melhoria de condições de vida a partir da chegada da Vale a Itabira. O 'homem de Taylor' passa a ser prenúncio de um estado de coisas exploratório e perverso. O modo como os trabalhadores da Vale transitam entre o reino da necessidade e o da liberdade contrasta fortemente com a imagem progressista e de boa-aventurança da Vale. O processo de formação dos operários é 'operado' sob condições adversas: o ritmo da produção é acionado pela força humana, moldada por uma resistência peculiar, num ambiente competitivo e sob vigilância. Uma vigilância que extrapola os muros da Vale, chega à família e toma conta da cidade de Itabira, num processo de apropriação sob a ideologia do Estado-empresário.

Numa narrativa clara e concisa, a autora convida o leitor a refletir sobre a predefinida função do Estado na organização sindical dos trabalhadores, a partir da criação do Ministério do Trabalho para "defender os interesses econômicos, jurídicos, higiênicos e culturais dos trabalhadores", desde que esses não desagradassem aos ideais nacional-desenvolvimentistas que emolduravam a perda do controle dos trabalhadores na consolidação da dinâmica expansionista da Vale que eles mesmos ajudaram a construir. Eles participam efetivamente da construção da empresa, embora sejam 'pedras' no caminho, necessárias à manutenção do sistema e facilmente removíveis. Nos anos 40, num momento político interno em que se evidencia a força do nacional-desenvolvimentismo, o sentimento de colaboração com o desenvolvimento do país é estimulado e os trabalhadores aderem vibrantemente. E assim começa a inculcação ideológica da classe trabalhadora, sob a perspectiva da classe dominante, na forma corporativa e num viés colaboracionista, a partir da extração do minério de ferro, forjando aos poucos o trabalhador perfeito para aquela organização.

"(...) sua identidade é forjada no ferro de emoções, de conflitos e de orgulho pela pertença à família da Vale-Mãe, essa criatura-criadora de uma cultura institucional urdida na ética, na disciplina do trabalho e do empreendedorismo obediente, assim como no autoritarismo, no clientelismo e no corporativismo, marcas indeléveis da cultura política nacional-desenvolvimentista" (p. 81).

Aos poucos, entretanto, esses homens começam a conscientizar-se da perda do controle da dimensão da empresa que eles próprios fizeram nascer. Na contramão do sucesso da Vale, vêem suas possibilidades de ascensão profissional estagnarem-se ou serem anuladas. A perversa lógica capitalista, apoiada num sistema de recrutamento 'a olho nu', na busca do homem ideal para a tarefa ideal, num processo de "afrontamento da natureza e dos limites da força humana" (p. 81), consolida o surgimento desse novo segmento operário e, daí, a cultura de classe. A mecanização do processo de trabalho, acirrando ainda mais a divisão do trabalho e a valorização do ambiente competitivo, provoca um movimento de insatisfação entre os trabalhadores.

Nessa política expansionista, a insatisfação surge dentro dessa esfera de produção e culmina na greve dos mineiros de Itabira, em 1945, propiciando contraditoriamente a formação do sindicato da categoria por determinação da própria Vale, culminado assim na política trabalhista criada por Getúlio Vargas, o que viria a constituir-se num poderoso instrumento de controle da classe operária. Segundo Minayo: "A legislação trabalhista, organizada a partir dos anos 30, e que se consolida em 1943, quando regula a existência dos sindicatos, tem a finalidade de reorientar as relações entre capital e trabalho que, desde o início da industrialização, se manifestam em conflitos explícitos com tendências de autonomia dos trabalhadores" (p. 124-125).

Fica claro que o Estado-empresário, regulador oficial das relações de produção e representado na figura da Vale, gera uma divisão social e técnica do trabalho, detendo o controle da concepção do trabalho e ao mesmo tempo assumindo uma figura paternalista, através da qual consegue fazer com que o operário, pelo menos, acredite ser possível tirar proveito da própria ideologia dominante. É interessante observar que mesmo dentro dessa ideologia dominante, donde o Estado dita a concepção de mundo, ameaça surgir uma nova concepção que inconscientemente se insurge contra a objetivação do trabalho.

As novas tecnologias, necessárias à potencialização da produção e conseqüente redução do quadro de empregados, vão ao encontro à dependência da cidade de Itabira, que não pôde suportar uma vida com um sem-número de desempregados fruto do progresso que ela mesma ajudou a construir. Minayo nos diz: "O momento da mecanização é extremamente importante para o operariado, pois realiza a passagem da atividade manual para o domínio das máquinas" (p. 129). E acrescenta: "Paradoxalmente, esses 'moto-perpétuos' têm de ser acionados pelos operários e mantidos por eles, ao mesmo tempo que os submetem" (p. 128).

O desconhecimento das relações sociais que determinam a produção faz com que os operários vejam, trabalhem, porém não entendam o que está por trás desse processo. Eles se sentem comprometidos e dominados sob o discurso capitalista da centralidade no sujeito sugerido pela psicanálise, num sentido a-histórico. "Acabam-se as obras e fica o desemprego (...) 'o progresso é mesmo assim', diz o trabalhador que vai aprendendo a grande lição dos novos tempos: de que o progresso capitalista não é sinônimo de bem-estar para todos" (p. 152).

Aos iniciados no discurso contra-hegemônico fica a constatação da perversidade do capitalismo; aos leigos, numa exposição sensível, o livro esclarece sem 'ismos' a pseudo-realidade na qual está imersa a sociedade contemporânea.

Notas

  • 1
    Mestrando em Ensino de Biociências e Saúde, Fundação Oswaldo Cruz <
  • 2
    Mestranda em Ensino de Biociências e Saúde, Fundação Oswaldo Cruz <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2005
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