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A educação para além do capital

RESENHAS REVIEWS

Júlio César França Lima

Fundação Oswaldo Cruz <jlima@fiocruz.br>

A educação para além do capital. István Mészáros. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2005, 80 pp.

A aprendizagem é a nossa própria vida, nos educamos desde que nascemos, até a morte. Entretanto, existem restrições que impedem o pleno desenvolvimento de nossa liberdade espiritual, enraizadas nos antagonismos estruturais de nossa sociedade. É a partir dessa idéia que Mészáros pergunta: para alcançar uma transformação social qualitativa é preciso uma radical mudança estrutural ou basta uma reforma educacional? Essa é a discussão central desse pequeno grande texto, que retoma e amplia o último capítulo de seu livro Marx: a teoria da alienação, publicado no Brasil em 1981, pela Zahar. Em forma de ensaio, o texto foi escrito para a conferência de abertura do Fórum Mundial de Educação, realizado em Porto Alegre, em julho de 2004. Em um primeiro momento, polemiza com as utopias educacionais formuladas por Adam Smith e Robert Owen, no rastro da tradição iluminista liberal, para em seguida discutir a internalização dos valores capitalistas historicamente prevalecentes, fortemente consolidados a favor do capital pelo próprio sistema educacional formal. Enfatizando ao longo do ensaio uma concepção de educação abrangente, a partir do diálogo que trava com Paracelso, José Martí, Marx e Gramsci, o autor finaliza discutindo a importância dessa concepção para uma radical mudança estrutural da sociedade.

Logo de início, afirma que, se não houver um acordo sobre o fato de que para uma reformulação significativa da educação é fundamental uma transformação do quadro social mais amplo, serão admitidas apenas mudanças pontuais que corrigem algum problema da ordem estabelecida, mas que de forma alguma alteram as determinações estruturais da sociedade como um todo. Essa limitação das propostas reformistas, inclusive as educacionais, faz parte da própria lógica do sistema de reprodução da sociedade capitalista, na medida em que este admite ajustar as formas pelas quais os diversos interesses particulares conflitantes devem se 'conformar' com a regra geral da reprodução social, desde que não se altere a própria regra geral. Essa lógica exclui a possibilidade de legitimar o conflito entre as forças hegemônicas fundamentais, inclusive como alternativas viáveis entre si, quer no campo da produção material, quer no âmbito cultural/educacional, enfatizando, ao contrário, a negociação e o consenso entre as partes.

Essa conformação é ao mesmo tempo compatível com a lógica do capital, benéfica para a sobrevivência do sistema, e razão do fracasso das utopias educacionais formuladas com a intenção de instituir grandes mudanças na sociedade por meio de reformas educacionais. Deste último ponto de vista, o fracasso consistiu e consiste exatamente no fato de as determinações fundamentais do sistema do capital serem 'irreformáveis', porque, pela sua própria natureza, como totalidade reguladora sistêmica, elas são totalmente incorrigíveis. Portanto, para Mészáros,

"...é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente" (p. 27, grifo do autor).

Para o autor, a construção de uma estratégia educacional socialista não deve ser confundida com nenhum utopismo educacional, tal qual formulado por Adam Smith e Robert Owen, no rastro da tradição iluminista liberal. O primeiro identifica, corretamente, que o principal problema do 'espírito comercial' é a divisão do trabalho, que, levada à perfeição, torna a mente dos homens limitada e incapaz de elevação. Conseqüentemente, a educação é desprezada, ou pelo menos negligenciada, e o espírito heróico é quase totalmente extinto, o que leva os homens a se entregarem à embriaguez e à intemperança. A questão é que a solução de Smith, e não poderia ser diferente, não se dirige às causas, permanecendo prisioneiro aos limites da lógica do capital, na medida em que a remete à educação moral dos trabalhadores, de forma a evitar as bebedeiras e arruaças, e, na prática, responsabilizando o trabalhador por sua situação social. Como Adam Smith não pode questionar a estrutura econômica do capitalismo, cujo ponto de vista ele representa, deve procurar os remédios para os efeitos negativos do espírito comercial fora da esfera econômica, isto é, a partir de uma defesa moral de um antídoto educacional utópico.

Robert Owen, por outro lado, também identifica o problema - a busca do lucro, o poder do dinheiro, o trabalhador visto como mero instrumento de ganho - , mas remete a solução para a 'força da razão' e para o 'esclarecimento' que a educação pode dar aos homens, o que pode evitar o erro e a ignorância. Como esses problemas são abrangentes e associados aos requisitos de dominação e de subordinação ao capital, a contradição entre o caráter global desses fenômenos sociais e a parcialidade e o gradualismo dos remédios propostos tem que ser substituída pela generalidade abarcante de algum 'deve ser' utópico, isto é, pela razão, pela educação formal. Assim, um fenômeno social específico - o impacto desumanizador do espírito comercial - perde o seu caráter social e torna-se fruto da ignorância. Mas o raciocínio de Owen e as soluções propostas por ele não têm nada a ver, segundo Mézáros, com erro lógico do pensamento. São

"...descarrilamentos práticos e necessários, devidos não a uma deficiência na lógica formal do autor, mas sim à incorrigibilidade da lógica perversa do capital. (...) A circularidade no seu raciocínio é a conseqüência necessária da aceitação de um 'resultado': a 'razão' triunfante (...) que prescreve o 'erro e a ignorância' como o problema adequadamente retificado, para o qual se supõe estar a razão eminentemente adequada a resolver" (p. 34, grifos do autor).

Essa incorrigível lógica do capital teve nos últimos 150 anos um impacto importante sobre a educação, que, na busca para manter o desenvolvimento do sistema, apenas alterou as modalidades de imposição dos imperativos estruturais em acordo com as circunstâncias históricas. Nesse período, a educação escolar serviu

"(...) ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alternativa à gestão da sociedade" (p. 35, grifo do autor).

As instituições escolares foram adaptadas no decorrer do tempo às determinações reprodutivas do sistema do capital e não podem funcionar adequadamente se não estiverem em sintonia com as 'determinações educacionais gerais da sociedade' como um todo. Isto é, a escola é apenas uma parte do sistema global de 'internalização' dos valores, que secundariza, sem abandonar, suas formas iniciais brutas e violentas, mas que, da mesma forma, procura assegurar que cada indivíduo assuma como suas as metas de reprodução do sistema.

"Em outras palavras, no sentido verdadeiramente amplo do termo educação, trata-se de uma questão de 'internalização' pelos indivíduos (...) da legitimidade da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social, juntamente com suas expectativas 'adequadas' e as formas de conduta 'certas'" (p. 44, grifos do autor).

Nesse sentido, a educação formal ou escolar não é a força ideologicamente primária que consolida o sistema do capital, nem ela é capaz de, por si só, fornecer uma alternativa emancipadora radical, pois uma das suas principais funções é produzir a conformidade ou o consenso, através dos seus próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados. Essa alternativa só pode ser encontrada no terreno das ações coletivas, o que pressupõe que as soluções educacionais não podem ser formais, mas essenciais, caso se queira confrontar e alterar o sistema de internalização, com todas as suas dimensões, visíveis e ocultas.

Para Mészáros, somente tornando consciente que "a aprendizagem é a nossa própria vida", como dizia Paracelso, é possível perseguir o objetivo de uma mudança radical nas próprias instituições educacionais. Somente essa concepção ampla de educação pode proporcionar os instrumentos de pressão que rompam com a lógica mistificadora e alienante do capital. Com Gramsci, Mészáros vai defender também que todo ser humano contribui, de uma forma ou de outra, para a formação de uma concepção de mundo predominante, que pode ser na linha da manutenção e/ou da mudança. Qual das duas vai predominar? Isso dependerá da forma como as forças sociais conflitantes se confrontam e defendem seus interesses alternativos. Trata-se de uma disputa social de concepções de mundo em que está envolvida uma multiplicidade de seres humanos no processo histórico real, que pode atrasar ou apressar mudanças sociais significativas. Por isso, um processo coletivo inevitável não pode ser expropriado definitivamente, nem o domínio da educação formal e estreita pode reinar para sempre em favor do capital. Para Mészáros,

"(...) por maior que seja, nenhuma manipulação vinda de cima pode transformar o imensamente complexo processo de modelagem da visão geral do mundo de nossos tempos (...) num dispositivo homogêneo e uniforme, que funcione como um promotor permanente da lógica do capital" (p. 51, grifos do autor).

Nessa linha de raciocínio, podemos considerar que a escola, apesar de "agir como um cão-de-guarda ex-officio e autoritário para induzir um conformismo generalizado em determinados modos de internalização" (p. 55, grifos do autor), não apenas atua na linha da manutenção, mas também na da mudança, pois no seu interior também há disputas de concepções de mundo. De fato, ao ler o ensaio do autor, há um grande risco de se considerar que a educação escolar se reduz ao seu caráter reprodutivista, ou que somente educa os homens a se conformarem à ordem estabelecida. Entretanto, além da argumentação acima, em outras passagens do texto ele indica que a educação formal não tem êxito na criação de uma conformidade universal, apesar de estar orientada para esse fim; que essas "formidáveis prisões", conforme José Martí, não têm como predominar uniformemente; e que os educadores têm uma grande responsabilidade no desenvolvimento da cultura, na medida em que esta é inseparável do objetivo da emancipação dos homens. De todo modo, não são as instituições escolares que determinam a mudança no modo de internalização historicamente prevalecente - isto é, no modo de sustentação da 'manutenção' ativa da racionalidade do sistema ou da sua concepção de mundo - , de forma que a própria racionalidade seja produzida pelas classes de indivíduos dominados em determinado momento histórico, como também seja constantemente reproduzida por eles.

Para construir novos valores é necessário desenvolver uma atividade de 'contra-internalização', ou uma intervenção consciente no processo histórico, orientada no sentido de superar a alienação do trabalho por meio de um novo metabolismo reprodutivo social dos 'produtores livremente associados', que não se esgote na negação do capitalismo. Isto porque, na visão de Marx, todas as formas de negação permanecem condicionadas pelo objeto da sua negação. Além do mais, a própria inércia condicionadora do objeto negado tende a agregar poder com o passar do tempo, impondo, num primeiro momento, a busca de uma linha de menor resistência e, depois, o regresso às práticas anteriores, que sobrevivem nas dimensões não reestruturadas da ordem anterior.

É aqui que a educação no seu sentido abrangente desempenha, segundo Mészáros, um papel fundamental para romper com a internalização predominante. Essa contra-internalização exige a antecipação de uma visão geral, concreta e abrangente, de uma forma radicalmente diferente de gerir as funções globais de decisão da sociedade, antes mesmo da conquista do poder. Isso envolve simultaneamente a mudança qualitativa das condições objetivas de reprodução da sociedade e a transformação progressiva da consciência. Ou seja, o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução como para a 'automudança' consciente dos indivíduos, chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente.

Este é o sentido de uma "educação para além do capital", pois, para Mészáros, não pode haver uma solução efetiva para a auto-alienação do trabalho sem que se promova, simultaneamente, a universalização do trabalho e da educação, o que pressupõe necessariamente a igualdade substancial de todos os seres humanos. Esta é a reflexão que o autor nos convida a fazer.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Out 2012
  • Data do Fascículo
    Mar 2006
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