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Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS

RESENHAS REVIEWS

Lilian Koifman

Universidade Federal Fluminense. <lilian@vm.uff.br>

Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Nísia Trindade Lima et al. (orgs.). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005, 502 pp.

Muito tem sido dito e publicado a respeito do sistema de saúde brasileiro: o Sistema Único de Saúde (SUS). Em todos os cursos de formação na área de saúde do país são dedicados um, dois ou mais semestres a esse complexo e original sistema. E o desafio dos professores é sempre o mesmo: como motivar os alunos ao estudo das políticas de saúde e à compreensão da organização do SUS e, principalmente, da importância que esse conhecimento exercerá em sua prática profissional?

Não são raros os momentos em que, para discutir com alunos uma situação de saúde vivida nas unidades de saúde, nos cenários diversificados ou em um hospital universitário, é necessário compreender em maior profundidade as origens da Reforma Sanitária, o financiamento do SUS, as relações de trabalho na saúde, o modelo de atenção, a participação popular na elaboração de políticas de saúde e tantos outros temas que perpassam as salas de aula dos cursos de saúde brasileiros, sejam técnicos ou universitários, de graduação ou pós-graduação.

A coletânea Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS é um importante instrumento de apoio ao desafio cotidiano dos professores na labuta da formação permanente em saúde. Escrita por 25 autores, todos pesquisadores e professores com vasta experiência nos temas desenvolvidos, foi organizada por Nísia Trindade Lima, Flavio Coelho Edler (ambos da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz), Silvia Gerschman (da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz) e Julio Manuel Suárez (coordenador da área de Desenvolvimento de Sistemas e Serviços de Saúde da Representação Opas/OMS no Brasil).

Os organizadores desta coletânea convidaram pesquisadores atuantes no país para produzirem um amplo painel do passado e do presente da construção do sistema de saúde brasileiro. Em resultado, o leitor é presenteado com uma rica coleção de análises que enfoca os aspectos mais importantes, tanto os históricos quanto os relativos às principais questões a serem enfrentadas hoje, como é o caso do mais recente (década de 1990) Programa de Saúde da Família.

Para a elaboração do livro, foram realizadas várias reuniões e um seminário, em outubro de 2004, com a participação dos autores, sobre o tema "História e perspectivas do SUS". Definiu-se que os objetivos da publicação deveriam ir além do simples registro das motivações e ações do movimento sanitário recente, considerando a reforma da saúde à luz de uma perspectiva histórica mais ampla. Do mesmo modo, considerou-se fundamental analisar, com base nos princípios norteadores do SUS, as condições e o processo de implementação dessa reforma, seus avanços, dificuldades e desafios. Mesmo considerando o SUS como patrimônio da sociedade brasileira, não se optou pela realização de um texto enaltecendo sua criação, onde as dificuldades, tensões, contradições e, ao mesmo tempo, os caminhos alternativos fossem deixados de lado. Todos os autores trabalham de algum modo o processo histórico de construção do setor saúde.

Vários temas de grande relevância para o sistema de saúde brasileiro são abordados neste livro, a saber: a situação da saúde, o financiamento do SUS, ciência e tecnologia em saúde, trabalhadores da saúde no Brasil, descentralização, conceitos de saúde, universalização versus focalização, o público e o privado, o modelo de atenção à saúde e a estratégia da saúde da família.

A abordagem histórica da coletânea nos permite constantemente situar e valorizar a originalidade e, ao mesmo tempo, localizar, dentro dos contextos históricos específicos, a construção do SUS. A Reforma Sanitária tem origens profundamente marcadas pelo processo de redemocratização do país, por sua construção política e acadêmica e pelo extraordinário processo das Conferências de Saúde. O SUS nasce no seio da crise do modelo vigente e na intensa mobilização popular em torno da 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, que determinou o debate sobre a Constituinte e a elaboração da Constituição Federal de 1988.

A importância da coletânea encontra-se, sobretudo, no fato de os artigos que a compõem enfatizarem facetas cruciais da história da construção do Sistema Único de Saúde brasileiro em um ambiente orquestrado por um complexo processo modernizador, privatista e com claras propostas de organização do 'Estado mínimo' para toda a América Latina.

Diversos autores se referem à criação do SUS como a mais bem-sucedida reforma da área social empreendida sob um regime democrático. Em sua criação, pode-se identificar a organização do movimento sanitário da década de 1970, em um contexto fortemente marcado pela resistência social e política ao regime militar autoritário. A Reforma Sanitária brasileira carrega uma história que lhe dá, no âmbito legal, uma conquista, o SUS, e, no âmbito político, um plano de lutas, a implementação da Reforma Sanitária (Ceccim, 2005).

Na primeira parte, "O Sistema Único de Saúde em perspectiva histórica", os quatro artigos nos esclarecem que aquela não foi a primeira vez na história da sociedade brasileira em que ocorreu uma significativa politização do debate sobre as condições de saúde. Nesses textos, relata-se como, na Primeira República (décadas de 1950 e 1960), a saúde e o desenvolvimento estiveram no centro do debate político e eram percebidos como determinantes um do outro. E, levando em conta a continuidade de temas do passado, ressaltamos a originalidade e importância do movimento sanitário recente que se constitui na afirmação do binômio saúde e democracia.

Nesse contexto, a luta pela conquista social do direito à saúde precisa se dar em um duplo movimento. De um lado, é necessário resgatar a luta pelas políticas públicas que, para além do setor saúde, se voltem para a melhoria das condições de vida da população. De outro, é fundamental aprofundar a luta pela conquista do direito ao acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, pautado pela perspectiva da participação popular e da integralidade das ações (Mattos, 2005).

Nas outras duas partes, "Temas centrais para o desenvolvimento do SUS" e "Princípio, implantação e desafios do SUS", reconhecemos as raízes dos debates travados durante o contexto em que se fortaleceu o movimento democrático, em oposição ao regime militar, e a relação entre saúde e democracia no centro do debate político.

Na nova Constituição, afirmou-se a importância de promover a saúde como direito fundamental da cidadania, cabendo ao Estado a obrigação de provê-la a todos os cidadãos: "saúde, direito de todos e dever do Estado".

Sob este preceito constitucional, defendeu-se a assistência médico-sanitária integral e de caráter universal, com acesso igualitário dos usuários aos serviços, sendo estes hierarquizados e sua gestão descentralizada. Com isso se estabelecia algo fundamental: que as ações de saúde deveriam estar submetidas ao Executivo com representação paritária entre usuários e demais representantes (do governo, nas suas diversas instâncias, dos profissionais da saúde e do setor privado), além de se determinarem os princípios norteadores do SUS — universalidade, integralidade, participação e descentralização.

Alguns autores analisam a criação do SUS como resultado de um movimento brasileiro que se apresentou na contracorrente das reformas de saúde de cunho neoliberal na América Latina, baseadas no conceito de ajuste estrutural defendido pelo Banco Mundial na década de 1980. Em 1987, esse organismo divulgou um documento no qual criticava duramente os governos que viam a saúde como um direito e tentavam assegurar gratuitamente o acesso universal a todos os serviços. A mesma tendência se fez sentir na década de 1990.

"Ao longo dos anos noventa, as agências internacionais enfatizaram a oferta de idéias sobre quais seriam as políticas mais adequadas para os países em desenvolvimento. O Banco Mundial conquistou lugar proeminente nessa oferta de idéias, ao lograr apresentar um conjunto de sugestões sobre as reformas dos sistemas de saúde e das próprias atribuições dos governos no setor" (Mattos, 2001, p. 380).

Anos mais tarde, o Banco Mundial passou a defender que caberia aos governos, muito mais que assumir a prestação dos serviços, incentivar a competição entre os provedores, inclusive entre provedores públicos e privados, com ou sem fins lucrativos, além de defender a oferta de um pacote de serviços e a atuação reguladora dos governos sobre o mercado de serviços médicos.

A caminho dos vinte anos da realização da 8a Conferência Nacional de Saúde, este livro oferece uma grande contribuição: um convite à reflexão. Em um esforço coletivo, valoriza a pluralidade de perspectivas e o olhar crítico sobre as idéias e práticas que vêm acompanhando a implementação do SUS, trazendo um desafio para futuras pesquisas. É de se esperar e desejar que, a partir de sua leitura, possa surgir o aprofundamento de questões para o desenvolvimento de políticas de saúde coerentes com os princípios que norteiam o SUS.

"A construção do SUS vem acumulando experiências e proposições. Novas e velhas 'ferramentas' aumentaram a possibilidade de nos mantermos na direção de uma política de saúde fundada no cuidado e na integralidade. Mas não devemos nos contentar com isto, apenas ganhamos fôlego para continuar construindo..." (Silva Jr., Alves, C. e Alves, M., 2005, p. 86).

O livro, além de muito abrangente, é um profundo e qualificado exercício analítico sobre o SUS, e certamente dará imensa contribuição ao seu aperfeiçoamento.

É desejável, portanto, que subsidie propostas transformadoras e criadoras de espaços interinstitucionais de negociação pedagógica e do cuidado, entre gestores das escolas e dos serviços, envolvendo docentes, discentes e usuários do sistema de saúde, através das instâncias formais de representação propiciados pelo Sistema Único de Saúde — sejam eles os Conselhos de Saúde ou quaisquer outros que a inventividade humana possa vir a criar (Oliveira, Koifman e Marins, 2004).

  • CECCIM, Ricardo B. 2005. Onde se lê: "Recursos Humanos em Saúde", leia-se "Coletivos Organizados de Produção em Saúde": desafios para a educação. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben A. de (orgs.). Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe e espaços públicos. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, p. 161-180.
  • MATTOS, Ruben A. de. 2001. As agências internacionais e as políticas de saúde nos anos 90: um panorama geral da oferta de idéias. Ciências e Saúde Coletiva, v. 6, n. 2, p. 377-389.
  • ____. 2005. Direito, necessidades de saúde e integralidade. In: PINHEIRO, Roseni; ____. (orgs.). Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe e espaços públicos. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, p. 33-46.
  • OLIVEIRA, Gilson S.; KOIFMAN, Lilian; MARINS, João José N. 2004. A busca da integralidade nas práticas de saúde e a diversificação dos cenários de aprendizagem: o direcionamento do Curso de Medicina da UFF. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben A. (orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec, p. 307-319.
  • SILVA JR, Aluísio G. da; ALVES, Carla A.; ALVES, Marcia G. M. 2005. Entre tramas e redes: cuidado e integralidade. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben A. (orgs.). Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe e espaços públicos. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, p. 77-90.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2012
  • Data do Fascículo
    Set 2006
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