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Dez anos da LDB e a educação profissional

Ten years of the LDB and professional education

DEBATEDORES

Dez anos da LDB e a educação profissional

Ten years of the LDB and professional education

Iracy Silva Picanço1 1 Professora titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Brasil. Mestre em Educação pela UFBA. < iracy@ufba.br>

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Condomínio Jardim Piatã, Quadra 06, Lote,19, Piatã Salvador, Bahia, Brasil, CEP 41650-200.

RESUMO

O que domina esta contribuição situa-se em alguns dos elementos principais contidos no texto comentado. O primeiro destes elementos revela-se na consideração da possível insuficiência da noção inclusão/exclusão para ser tomada como base na interpretação dos desafios como da política para a educação profissional na sociedade brasileira, esta sob o predomínio do regime de acumulação flexível numa ordem mundializada como na atualidade. O segundo elemento considerado como de grande significado encontra-se no lugar que a autora coloca para a tensão em torno da educação básica no debate sobre a educação para o trabalho em condições como as vivenciadas de reestruturação produtiva e reorganização de processos produtivos como de acelerado desenvolvimento científico-tecnológico que incidem em todas as esferas da vida do homem. Finalmente, para maior aprofundamento do tema, faz sugestões. A primeira seria pela via do caráter dos reais interesses em confronto entre aqueles do capital e os dos que vivem do trabalho, e a segunda, pela via do movimento social concreto desses atores enquanto ações para além da sua formalização legal e de programas levados a efeito, mas sobretudo pelo que representam em termos de contradições, demandas conflitantes, enfrentamentos e cooptações.

Palavras-chave: LDB e educação profissional; educação profissional; trabalho e educação.

ABSTRACT

The main purpose of this contribution is with regard to a few of the main elements contained in the commented text. The first derives from the possible insufficiency of the notion of inclusion/exclusion to be considered as the base to interpret challenges such as of the policy for professional education in the Brazilian society, which is predominantly under the flexible accumulation system in a globalized order such as the current one. The second element, considered as of great meaning, is in the place the author puts for tension surrounding basic education in the debate on education for work in conditions such as those that were experienced in productive restructuring and productive process reorganization as the accelerated scientific and technological development that is occurring in all spheres of human life. Finally, to go deeper into the theme, it makes suggestions. The first would be through the character of the actual conflict of interests between those that live off of capital and those who live off of work, while the second via the concrete social movement of these actors as actions that extend beyond their legal formalization and of programs put in place, but, above all, what they represent in terms of contradictions, conflicting demands, confrontations, and co-options.

Keywords: LDB/88 and professional education; professional education; work and education.

Dez anos da LDB e a educação profissional

O instigante texto de Acácia Kuenzer enfrenta de modo explícito o desafio que envolve o tema da educação profissional nesta etapa da 'produção flexível' que atravessa a sociedade humana em geral e, muito particularmente, a sociedade brasileira. Pretendeu a autora estimular a discussão sobre os rumos que as políticas e as propostas para esta modalidade de formação para o trabalho vêm tomando em sua articulação com o regime de 'acumulação flexível' e, o que mais instiga o leitor, sobre os "os espaços possíveis de construção de alternativas que atendam ao projeto dos que vivem do trabalho".

O que aponta como pressuposto que considera fundamentar a discussão que empreende sobre o tema situa-se no processo de inclusão/exclusão que se encontraria na raiz das práticas desenvolvidas na sociedade contemporânea, com vistas à formação daqueles que vivem do trabalho. Nesta perspectiva, admite que do conjunto daqueles sujeitos que se apresentariam no chamado mercado, visando venda de sua força de trabalho para o provimento de sua subsistência, apenas uma parcela desfrutaria de uma dada inclusão. e isto ocorrendo sob a acumulação flexível na condição de um trabalhador, ou de um trabalho, também flexível. a outra parcela daquele conjunto tornar-se-ia excluída e restando-lhe, para sua sobrevivência, o trabalho precarizado ou conseqüente de demandas, quiçá, ocasionais e/ou na periferia daquele próprio mercado. essas demandas últimas admitidas, por alguns, como do chamado 'trabalho sujo' necessário ou, ainda, resquício da velha ordem taylorista/fordista em superação ou, quem sabe, resquícios de modos de produção anteriores porventura persistentes.

Uma inquietação surge em relação à assunção da exclusividade desse pressuposto como fundamento explicativo para a análise e explicação da natureza e caráter da educação profissional a que se assiste como dominante nas recentes políticas e práticas de educação profissional entre nós, pois não parece ser suficientemente abrangente como fundamento das mesmas. Isto porque a noção de exclusão/inclusão, em seu sentido mais visível, apontaria para a compreensão de que, na ordem dessa acumulação flexível, parte se integra à condição dominante e uma outra viveria à margem desta. A indagação que aflora estaria, neste caso, na admissão de que alguns sobreviveriam sem que fosse o trabalho o que expressaria a identidade do homem. Por outro lado, também, não seria parte constitutiva da sociedade, superadas suas formas de sobrevivência primitivas, a desigualdade a partir da qual os grupos se situariam diferencialmente na chamada estrutura social em suas diferentes formas? Além disso, a noção de reserva da força de trabalho, como elemento necessário à regulação das relações entre capital e trabalho, estaria abolida nesta etapa do modo de produção capitalista, admitida por alguns como superior?

Finalmente, a realidade da existência do trabalho regulamentado e do precarizado, mas sempre trabalho, tendo a produção industrial (esta mesmo compreendida em sua complexidade atual) como centralidade e o trabalho flexível dela decorrente, não estaria simplificando aquilo que nos legou Marx na sua Introdução à crítica da Economia Política? Nela, ele insistiu que a produção, numa compreensão de totalidade ou numa perspectiva orgânica, não se esgota na produção propriamente dita de bens (materiais ou imateriais). Isto porque, enquanto tal totalidade, ela é simultaneamente produção, distribuição, troca e consumo. O que iria significar que, em dado momento histórico, estamos todos imersos sob estas diferentes condições, ou seja, incluídos, ainda que de modo diferente e desigualmente, mas incluídos.

Sem dúvida que, sob esta ótica, torna-se por demais complexo o tratamento a ser dado à educação profissional neste tempo da acumulação flexível, fazendo com que aspectos outros devam vir a se incorporar na formação daqueles que vivem do trabalho. E é a partir deste pressuposto que alguns dados da atual condição da produção podem ser significativos, como também necessários, no debate sobre o tema da educação profissional entre nós. Entre estes situo o caráter acentuadamente global ou mundializado da produção capitalista e o que se revela no fato de que, pela ótica do circuito ou da rede, bens são produzidos, por exemplo, na China, e seu consumo vai ocorrer em pontos os mais diversos do planeta. Nesta realidade, ao lado dos efeitos ou conseqüências da revolução científico-tecnológica, com o enxugamento de postos de trabalho na esfera da produção de bens e da realidade do inchaço nos setores de comércio e serviços, estes nexos com suas múltiplas faces, sem dúvida, estão a se constituir em fatores que vêm afetando, também, as políticas, modalidades e práticas da educação profissional.

Incluir estas condições referidas anteriormente, com certeza, torna mais complexas as análises, contudo poderão seguramente possibilitar uma compreensão mais ampla e profunda numa perspectiva de totalidade, sob a lógica das relações entre capital e trabalho, que venham a tornar explícitos os interesses passíveis de se encontrarem em confronto sobre a educação profissional. E, muito especialmente, tornar possível a clareza do alcance das políticas e práticas conduzidas pelo Estado, este último como instância de mediação sobredeterminada pela hegemonia nas disputas no terreno concreto da realidade social e que definem alinhamentos e, em diversas situações, até mesmo cooptações.

É certo que, desde um plano teórico ou dos pressupostos, as contribuições apresentadas para este debate, encontram-se à mercê de desdobramentos para aprofundar-se, avançando no que já foi trazido pelo texto de Kuenzer.

Vale salientar neste domínio que, como adverte a autora, mais do que a formação ou educação profissional stricto sensu, tal como concebida na etapa taylorista/fordista, o estágio societário atual aponta a educação geral, na forma de uma educação básica, como aquela capaz de dar conta das demandas do capital na atualidade. A confirmação ou não disto poderá ser buscada em investigações que visem apreender a natureza e o caráter das reformulações nos sistemas de ensino que vêm sendo implementadas hoje em diferentes espaços societais e, muito especialmente, no Brasil.

Uma outra contribuição chave para a discussão a ser travada sobre o lugar da educação profissional, nesta etapa em que se encontra a sociedade, está exposta pela autora em dois momentos de seu trabalho. Ou seja, ao referir-se, de um lado, à realidade de redução de postos de trabalhos, que se acentua em setores nos quais a introdução de alta tecnologia ocorre celeremente e, quase sempre, acompanhada de reorganização dos processos de trabalho. E, de outro lado, a convivência desta realidade com o inchaço de postos de trabalho precarizados, além da efetiva ausência de possibilidades de ocupação para significativas frações de jovens que chegam à idade ativa ou para aqueles que vão compor as estatísticas de desempregados ou desocupados.

Uma outra contribuição fica expressa na referência à exigência que estaria sendo feita para aqueles que compõem o conjunto dos que buscam se inserir ou se manter neste mercado de trabalho, o qual, mais que desenvolver uma prática de exclusão/inclusão, mantém uma dupla face. Para uma parte, a exigência do "ser flexível" com alta dose de "adaptabilidade", enquanto para a outra parte não haveria "demandas relativas ao desenvolvimento da competência de trabalhar intelectualmente em atividades de natureza científico-tecnológica, em virtude do que não se justifica formação avançada".

É neste cenário que se debate o campo da educação profissional, isto é, entre o quanto e a qualidade requerida pelo capital na condição atual, no que respeita à educação básica e à educação específica para aqueles que vivem do trabalho, o que seguramente vai se refletir em termos de oportunidades, modelos e características das políticas educacionais levadas a efeito em diferentes espaços societários. Isto vindo a demonstrar, como bem afirma Kuenzer, que, neste quadro, para a discussão sobre as perspectivas para educação profissional "o foco não é a qualificação", mas, sim, o que é demandado pelo capital para diferentes segmentos da força de trabalho, a partir das diferentes formas de inserção desta no amplo e diversificado mercado de trabalho e, em particular, em dadas cadeias produtivas. E, nesta condição do "trabalho flexível", à qualificação se sobreporia a "adaptabilidade".

Em conseqüência, há que ser lembrado, como faz a autora, o caráter do qual se reveste a educação básica, neste caso talvez menos pela exigência ou não do trabalho flexível sob a base da inclusão/exclusão, mas sobretudo pela natureza do movimento que se impõe à força de trabalho, via seus segmentos ou frações, ora sob o trabalho regulamentado, ora sob o trabalho precarizado ou a simples desocupação e ainda num dado momento inserida na indústria e num outro no setor serviço. Ou mais ainda, ora empregado com garantias plenas e adiante como "empreeendedor", estando nesta última condição muitas vezes como única alternativa para prover sua sobrevivência e daqueles que se encontram sob sua dependência.

E tudo isto sem contar que, na hierarquia das funções ou tarefas possíveis de serem realizadas, ganha nova forma ou roupagem a clássica separação entre trabalho intelectual e sua oposição, o trabalho manual, que mantêm hoje feições como as referidas por Kuenzer. Isto quando chama atenção para o que justifica as condições de que se reveste a educação na forma da educação básica que é distribuída para aqueles a ela submetidos em termos de quantidade e qualidade diferenciadas. É o que vai ocorrer segundo as necessidades que se diversificam em função das exigências, como já referido, fazendo com que se acentuem as desigualdades do que efetivamente ocorre no interior dos sistemas de ensino. Estes últimos, muitas vezes, primando pela trivialização que parece dominar seus resultados e práticas que se desenvolvem em seu interior, para alguns admitidos como desqualificação.

A autora evidencia, a partir de pesquisas realizadas em setores de ponta e de suas próprias constatações e indagações, contradições que parecem exigir maiores investigações que possam vir a dar explicações sobre o processo de trivialização mencionado. À guisa de hipótese explicativa, poder-se-ia exemplificar com o caso brasileiro no que concerne s estratégias de que se utiliza o capital para dar conta das demandas que efetivamente decorrem das transformações que lhe possibilitam a manutenção e/ou desenvolvimento da acumulação necessária à sua sobrevivência. Seria para isto suficiente que se aprofunde, por exemplo, a trajetória da ação empreendida pelo chamado Sistema S desde a sua criação até os dias atuais. Além disso, não se pode deixar de levar em conta, também, o volume das iniciativas que ocupam hoje as empresas em empreendimentos de formação. Dentre estas, torna-se emblemático o surgimento no interior das próprias unidades produtivas ou empresas das chamadas universidades corporativas, hoje em franca expansão no país como em outros espaços societários.

A segunda parte do texto em questão conduz a discussão do tema sob uma dimensão que tem como suporte algumas outras categorias, creio que no sentido de enfrentá-lo mais concretamente no que se refere à sociedade brasileira. Assim, vai percorrê-lo a partir do debate sobre as políticas públicas para a educação profissional levadas a efeito pelo Estado brasileiro nos últimos 12 anos, nos governos FHC e Lula, isto buscando não perder de vista os nexos daquelas com os elementos contidos como chave para a discussão levantada anteriormente.

Ocorre que, para o tratamento desta questão, duas lacunas emergem para o leitor. De um lado aponta-se a necessidade de que fosse exposta a concepção assumida pela autora, ainda que de modo sintético, sobre a noção de Estado, quando menos acerca de sua natureza na sociedade capitalista e das contradições que o envolve. Esta exigência torna-se necessária como base ou suporte para a discussão que empreende sobre a práxis das políticas públicas, com vistas aos reais interesses de grupos ou classes que se fazem hegemônicos frente aos interesses e lutas que se expressam na sociedade. Torna-se, nesta perspectiva, importante que se evoque, por exemplo, o que significou o processo de elaboração da LDB promulgada em 1996. Vale recordar que a introdução do capítulo da Educação Profissional nesta lei não se deu sem confrontos e disputas que se moviam entre aqueles que historicamente mantiveram o domínio sobre esta modalidade de educação e aqueles outros segmentos que, pelos seus porta-vozes, se colocavam na defesa de que a formação profissional significava, como a educação geral, um espaço de disputas de interesses, os quais, a rigor, se opunham numa sociedade de classes. Naquele momento privilegiado, sem dúvida, uma concepção de Estado, como instância de mediação dessas disputas, parecia claramente assumida.

O que veio a desdobrar-se em seqüência ao que foi considerado como uma conquista para os que admitiam que expressavam os interesses dos que viviam do trabalho encontra-se evidenciado, para o período 1995-2007, no texto objeto deste comentário. As referências acentuadamente feitas, em torno da questão da precarização das ofertas educativas, da opção pela privatização das ações realizadas, através da execução de planos, programas e projetos governamentais, inclusive através da via de parcerias público-privado, bem como das evidências de mau uso de recursos, somente vão encontrar explicações para além daquelas que correm o risco de limitar-se a uma visão simplista. Nesta perspectiva, a discussão aprofundada do tema exige a apreensão das múltiplas faces com as quais o mesmo se reveste. A direção apontada é a retomada de algumas questões e categorias já levantadas na primeira parte do texto de Kuenzer, além de incluídas outras mencionadas neste comentário, de modo explícito ou implícito, ou outras que ainda venham a ser tomadas.

No curso da leitura, e pelo envolvimento com o tema, não poderia deixar de mencionar algumas inquietações que o tratamento do mesmo faz surgir. Estas seguem expostas em termos de questionamentos e assim serão revelados. O primeiro situa-se no fato de que, em muito do que se discute e investiga sobre a matéria objeto do texto em foco, tem sido quase sempre explicitada a assunção de uma orientação analítica que admite encontrar-se na base da história da sociedade de classes, as disputas entre estas últimas. E, em razão disto, é que se questiona o porquê de, dominantemente nos mencionados debates e estudos, o que tem sido assumido ou privilegiado como centralidade restringir-se apenas ao que empreende o capital, mesmo admitindo-se este enquanto termo hegemônico nesse movimento de disputas de interesses. Quanto ao segundo questionamento, este situa-se no modo a partir do qual poder-se-á tratar o tema (a despeito de algumas tentativas já terem sido feitas), buscando-se pôr em evidência as demandas e experiências historicamente oriundas do outro termo, ou seja, o campo do trabalho. Provavelmente se assumida a direção para os debates e investigações a partir dessa orientação se tornasse possível a explicitação das contradições nas quais se vê imerso o mundo do trabalho, de suas reais demandas, de suas conquistas, bem como das cooptações que sofreu no processo histórico percorrido, mas com ênfase na contemporaneidade. Não seria, talvez, o enfrentamento por esta via, sem abandono daquela admitida como dominante, a única capaz de possibilitar a retomada conseqüente da questão da politecnia como a autora interroga no título do trabalho?

Sem dúvida que as hipóteses enunciadas por Kuenzer ao final de seu texto significam o produto de toda a sua inserção laboriosa e profunda competência que resulta de seu empenho em desvelar os limites e possibilidades da educação profissional numa sociedade na qual as disputas, assim como os processos de cooptação e de hegemonia demandam maior explicitação. Ademais disso, o texto da autora vem significar, também, um chamado com traços de provocação para a continuidade do debate como das investigações sobre o tema já levados a efeito por aqueles que têm se debruçado, como a autora, sobre a educação profissional. Hoje, sob o manto dos dez anos da LDB e das normas que a regulamentam, esta esfera ou campo educativo vem se configurando por permanecer numa transição ainda não concluída.

E, neste sentido, as perspectivas para um maior esforço investigativo estão postas, cabendo queles que se debruçam sobre o tema, dando continuidade e reforçando o empenho de Kuenzer, por todos reconhecido, avançar neste debate.

Notas

  • 1
    Professora titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Brasil. Mestre em Educação pela UFBA. <
  • Endereço para correspondência:
    Condomínio Jardim Piatã, Quadra 06, Lote,19, Piatã
    Salvador, Bahia, Brasil, CEP 41650-200.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Nov 2007
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