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Riqueza e miséria do trabalho no Brasil

RESENHAS

Vivian Aranha Sabóia

Universidade Estadual do Maranhão (Uema), São Luís, Maranhão, Brasil, e Centre National de la Recherche Scientifique, Paris, França. <viviansaboia@hotmail.com>

Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. Ricardo Antunes (Org.). São Paulo: Boitempo, 2006, 527 p.

Riqueza e miséria do trabalho no Brasil reuniu uma vasta e competente equipe de pesquisadores nacionais e internacionais sob a coordenação do renomado sociólogo brasileiro Ricardo Antunes.

A obra oferece um quadro geral das novas formas de trabalho e realiza uma ampla análise da atualidade brasileira neste campo através de estudos empíricos em diversos setores econômicos, ressaltando, particularmente, as principais características da reestruturação produtiva e seus impactos sobre a força de trabalho e sobre o sindicalismo. Tece, igualmente, um panorama geral do desemprego e da precariedade das condições de exercício do trabalho - inclusive integrando dimensões como a de gênero, de qualificação etc. - , reafirmando a determinação estratégica destes processos para a acumulação capitalista.

No Brasil, a década de 1990 foi particularmente interessante devido s transformações inerentes ao capitalismo mundial, ou melhor, devido à crise estrutural que afetou e tem afetado o mundo do trabalho através de um conjunto de modalidades de reorganização sociotécnica da produção, que colaboram, inclusive, na manutenção da divisão internacional e sexual do trabalho. Visando contextualizar o capitalismo brasileiro, Ricardo Antunes realizou um breve resgate da história econômica do Brasil no século XX, em que ressalta a introdução do processo de reestruturação produtiva a partir dos anos 1980 e seu aprofundamento nos anos 1990. Este processo seria caracterizado pela retração dos custos da produção e da força de trabalho e intensificado através da descentralização produtiva.

Duas questões da atualidade nacional e mundial, o desemprego e a precarização, foram analisadas por István Mészáros, ressaltando como afetam os países capitalistas mais desenvolvidos. O autor mostra como alguns países europeus têm respondido a estes problemas (via redução do tempo de trabalho) e s dificuldades que este tipo de medida implica. Uma das maiores críticas é a sua associação à flexibilização que, conforme ressalta o autor, não passaria de uma forma de contrapor à tendência de queda da taxa de lucro capitalista.

Luciano Vasapollo apresentou o processo de precarização, via flexibilização e desregulamentação, como uma das marcas da 'nova organização capitalista do trabalho'. O autor evidenciou como este processo avançou na Itália e no governo Berlusconi por meio da introdução de novas formas de contratação flexíveis, instáveis, temporárias, enfim, atípicas, se comparadas ao modelo que prevalece durante o período fordista.

Através de uma análise das causas da grave crise do emprego no Brasil, Márcio Pochmann explicitou a manifestação e diferenciação do desemprego em função da escolaridade, da raça, do gênero e do nível de renda. O autor abordou as causas do desemprego como estruturais e responsáveis por um processo de 'desassalariamento' e de desenvolvimento sem precedentes do trabalho precário, autônomo, independente, realizado por meio de cooperativas. Conforme ele observou, o desemprego em massa vivenciado no Brasil está (também) vinculado às baixas taxas de crescimento. Para explicar o agravamento do desemprego no Brasil, o autor incorporou ainda fatores como alterações na composição da demanda agregada, natureza da reinserção externa da economia nacional, processo de reestruturação empresarial e padrão de ajuste do setor público brasileiro. Dessa forma, evidencia-se como o atual modelo capitalista de desenvolvimento não integraria a totalidade dos desempregados no processo de geração de riqueza e valorização inclusive nos períodos de crescimento econômico.

A segunda parte da obra confirma a tendência brasileira ao desemprego, precarização/ flexibilização através de estudos empíricos variados.

De grande importância para compreender como, na prática, se traduz o processo de reestruturação produtiva, estudo realizado por Geraldo Augusto Pinto mostrou a evolução da indústria automotiva no Brasil e sua subordinação ao mercado externo como resposta à crise da demanda nacional e à concorrência internacional. O resultado fora a adoção de práticas organizacionais toyotistas com suas respectivas conseqüências dramáticas sobre o conjunto dos trabalhadores deste setor, além da maior dificuldade de mobilização sindical.

Paula Regina Pereira Marcelino traçou de maneira detalhada o perfil da Honda no Brasil, ressaltando o papel do Estado brasileiro como propulsor deste tipo de investimento via subvenções que variam de incentivos fiscais à realização de propagandas visando a incentivar o mercado consumidor nacional. A autora evidenciou que o incentivo estatal e a exploração da força de trabalho brasileira (flexibilidade, quase inexistência de estoques, otimização do tempo de deslocamentos internos, redução de despesas auxiliares) foram determinantes para evoluir a produção e investir na montagem/produção de carros no país. Concretamente, isso se traduziu na terceirização de uma parte importante dos serviços e também do processo produtivo com o respectivo impacto salarial e sindical, bem como sobre uma série de direitos trabalhistas.

A implantação do toyotismo também foi objeto de estudo de Eurenice Lima através de uma análise da unidade de produção da Toyota em Indaiatuba. A autora ressaltou as estratégias de controle e disciplina que "visam quebrar as resistências dos trabalhadores, impondo como modelo o trabalhador colaborador e a empresa como ambiente onde pode aflorar o consenso social" (p. 113). Assim como o estudo sobre a Honda, a autora evidenciou a importância do just-in-time (estoque zero) na organização produtiva da unidade analisada. Para tanto, a flexibilidade foi o caminho mais fácil via contratação de trabalhadores temporários além da intensificação do trabalho em equipe, da polivalência e da inovação tecnológica. A autora analisou ainda o toyotismo sob o ponto de vista dos trabalhadores da unidade de Indaiatuba (processo seletivo, integração, vivência), as suas implicações sobre as relações de trabalho e o combate repressivo à organização sindical.

Outro estudo relativo ao setor automotivo foi o apresentado por Fabiane Santana Previtalli. A partir do exemplo da Mercedes Benz (unidades produtivas de São Bernardo do Campo e de Campinas), a autora evidenciou o intenso processo de reestruturação e o desenvolvimento de novas estratégias competitivas implementadas pela empresa. Tais estratégias são basicamente implementadas através da flexibilização organizacional (gestão participativa, kaisen, controle de qualidade, remunerações variáveis, trabalho e grupo etc.). Na unidade de São Bernardo do Campo, a autora ressaltou a forte presença de um sindicalismo propositivo, diferentemente do sindicalismo combativo presente na unidade de Campinas. Foi por esta razão que esta última vivenciou, nos anos 1980, uma reestruturação setorial, isto é, mais forte em determinadas seções, processo este que se intensificou nos anos 1990 quando atingiu o conjunto dos recursos humanos, aumentando as demissões e acarretando, em seguida, o fechamento da unidade.

Por fim, a reestruturação também foi analisada por Luci Praun, que tomou como exemplo a Volkswagen de São Bernardo do Campo (unidade Anchieta). A autora ressaltou a reestruturação produtiva e o combate à sindicalização como respostas à crise da demanda e à concorrência crescente. A redução salarial foi fruto de negociações entre empresa, sindicato e comissão de fábrica, o que permitiu à autora falar de maneira crítica em reestruturação 'negociada'.

A partir do estudo da organização de uma fábrica de metais, Ada Ávila Assunção observou a precarização através da intensificação do trabalho. Para além de riscos musculoesqueléticos, intensificados pelo sistema de cotas de produção, o estudo revelou riscos químicos (setor de eletrólise) responsáveis por uma série de problemas de saúde que incluem perfuração do septo nasal.

A reestruturação produtiva no setor bancário foi o objeto dos estudos de Nise Jinkings e de Jair Batista da Silva. Com esse setor inserido num ambiente de liberalização econômica, desregulamentação e mundialização do capital, a autora utilizou uma bibliografia bastante especializada para tratar da reorganização operacional dos bancos através de um conjunto de reformas que reestruturaram a organização do trabalho, inclusive nos bancos públicos, aproximando-os, conforme afirmam os autores, da racionalidade do mercado e do capital. Este mesmo resultado aparece no estudo feito por Jair Batista com base no principal banco público brasileiro, o Banco do Brasil. O autor ressaltou, especialmente, as práticas flexíveis de gestão (qualidade total, terceirização, plano de demissão voluntária).

As novas formas de gestão também aparecem no mundo das telecomunicações paralelamente à informatização do processo de trabalho. Conforme o estudo feito por Simone Wolff e Sávio Cavalcante na empresa Sercomtel, estas mudanças colaboraram para a introdução de uma perspectiva mercantil diferentemente da perspectiva de qualidade, que prevalecia antes da privatização deste serviço.

No telemarketing, o estudo feito por Claudia Mazzei Nogueira, no seio da Atento-Brasil, observou o aumento da exploração via terceirização e intensificação do trabalho de um contingente majoritariamente feminino.

O mundo artístico também foi atingido pelas transformações do trabalho e reorganização da produção com vistas à redução de custos. Isso foi o que mostraram as pesquisas feitas por Juliana Coli e Liliana Segnini. No primeiro caso, a autora analisa o lugar ocupado pela materialidade no interior do trabalho imaterial a partir do exemplo do canto lírico. São ressaltadas a instabilidade presente no teatro lírico brasileiro e as diversas configurações que ela pode assumir (autônomo, assalariado), visando a racionalizar a organização produtiva do espetáculo e mercantilizá-lo. Esses resultados aparecem também no estudo feito por Segnini que, ademais, privilegia uma análise sexuada de duas orquestras de referência na França e no Brasil. O recorte feito permitiu atentar para a divisão sexual e internacional do trabalho e revelou a presença de uma organização do trabalho que privilegia a contratação temporária, renovada semestralmente (Brasil), o contrato de trabalho por tempo indeterminado regido pelo direito privado (França), onde as mulheres permanecem, na grande maioria, excluídas das melhores posições.

Partindo de uma ampla contextualização da crise econômica que atingiu o setor têxtil ao longo da década de 1990 - em grande parte, devido à abertura comercial, desregulamentação e privatizações - , Isabella Jinkings e Elaine Regina Aguiar Amorin mostram claramente o desmonte dessa indústria nacional e sua repercussão sobre o emprego. Em especial, as autoras analisaram a indústria têxtil de Santa Catarina e ressaltaram não somente as estratégias mercadológicas do setor, mas também os resultados do processo de reestruturação produtiva sobre os trabalhadores (terceirização). Elas priorizaram igualmente avaliar o impacto sobre a indústria de confecção, destacando o desenvolvimento do trabalho domiciliar e das cooperativas de trabalho.

Estes foram resultados que também caracterizaram a indústria de calçados brasileira, conforme podemos observar através da pesquisa feita por Vera Navarro. A autora parte de uma descrição bem-realizada da situação atual da indústria de calçados, detalhando, em seguida, a experiência do pólo calçadista de Franca. Este iniciou o seu declínio em 1987/1988, após os sucessivos planos econômicos, a abertura comercial e a valorização forçada da moeda nacional. Somando-se com a concorrência dos países asiáticos, este conjunto de fatores colaborou para o aumento do trabalho infantil e para que a terceirização e a intensificação do trabalho se tornassem quase uma regra no setor calçadista.

Neste quadro de aumento crescente da terceirização como forma de externalizar a produção e, sobretudo, reduzir seu custo, o problema da informalidade se agravou. Certos discursos tendem a inserir esta noção dentro de uma lógica distinta daquela de precarização que prevaleceu nos anos 1960-1980, substituindo-a por uma lógica de empreendedorismo que responsabiliza o trabalhador pela sua situação de desemprego. É nesse sentido que Maria Aparecida Alves e Maria Augusta Tavares analisaram a dupla face da informalidade. Para tanto, traçaram um histórico bastante rico sobre as origens do conceito de informalidade, das formas tradicionais e modernas que tem assumido, bem como da forma como se insere no discurso em prol da abolição do regime de assalariamento.

A terceira e última parte da obra foi consagrada a importantes questões relativas ao sindicalismo nacional e internacional. Uma análise da atual crise do sindicalismo mundial foi feita por Ariovaldo de Oliveira Santos, que salientou a evolução de um sindicalismo contestador e ofensivo na direção de um sindicalismo defensivo. Para além de uma redução das taxas de sindicalização, a crise atual do sindicalismo (ou as crises, tendo em vista que mantêm especificidades de um país para outro) se expressaria através de uma redução do militantismo e do "abandono progressivo da perspectiva de construção de um projeto hegemônico de transformação radical da sociedade" (p. 451).

Relativamente ao sindicalismo brasileiro, a crítica de Giovanni Alves vai neste mesmo sentido. De cunho pragmático/propositivo e neocorporativo, o perfil político-ideológico do sindicalismo brasileiro constitui um dos sintomas da sua crise estrutural. No Brasil, o sindicalismo defensivo "tendeu a se articular com as novas disposições do toyotismo [...] como o just-in-time, kanban e 'trabalho em equipe'" (p. 468). O autor ressaltou igualmente a importância das novas estratégias de gestão das corporações monopolistas como fator de limitação dos espaços de luta sindical. Para remediar este problema, o sindicalismo teria que adotar estratégias globais. Oliveira Santos lembrou ainda que a crise do sindicalismo brasileiro não impediu a disseminação de novos movimentos sociais de resistência, tal como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).

A obra finaliza com dois textos relativos s origens da construção e desconstrução da legislação trabalhista brasileira (da era Vargas à atualidade), feito por Ricardo Antunes, e aos descaminhos que caracterizam as políticas de formação profissional brasileira, tendo os sindicatos como principais parceiros. Foi assim que José dos Santos Souza conduziu seu estudo sobre a reforma da educação profissional brasileira a partir dos anos 1990, quando o Estado passou a utilizar mecanismos a fim de obter o consentimento dos trabalhadores (e dos sindicatos) para adoção de políticas de trabalho e de renda desvinculadas de um verdadeiro projeto unificado entre educação e trabalho "construído na luta dos trabalhadores contra o capital" (p. 487).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2008
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