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O arcaico e o moderno no Brasil: variações em torno de uma educação interrompida

Archaic and modern in Brazil: variations on an interrupted education

Resumos

Este artigo analisa alguns aspectos e problemas da modernização conservadora do capitalismo no Brasil, tendo como foco o período do pós-guerra e a ditadura militar que começa em 1964 e se radicaliza em 1968. As relações entre cultura, educação e política são analisadas tendo como referência o ensaio "Cultura e política, 1964-69", de Roberto Schwarz.

Brasil; capitalismo; política; educação; cultura


This article analyzes a few aspects and problems of the conservative modernization of capitalism in Brazil, focusing on the post-war and military dictatorship period in Brazil, which started in 1964 and became more radical in 1968. The relationship between culture, education, and politics are analyzed using Roberto Schwarz's "Cultura e política, 1964-69" (Culture and politics, 1964-69) essay as a reference.

Brazil; capitalism; politics; education; culture


ARTICLES

O arcaico e o moderno no Brasil: variações em torno de uma educação interrompida

Archaic and modern in Brazil: variations on an interrupted education

André Bueno1 1 Professor Associado I da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-doutor em Letras Modernas pela Universidade de São Paulo (USP). < bueno_andre@ig.com.br>

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Oliveira Rocha, 19, apto. 102 Jardim Botânico, Rio de Janeiro, CEP 22.461-070.

RESUMO

Este artigo analisa alguns aspectos e problemas da modernização conservadora do capitalismo no Brasil, tendo como foco o período do pós-guerra e a ditadura militar que começa em 1964 e se radicaliza em 1968. As relações entre cultura, educação e política são analisadas tendo como referência o ensaio "Cultura e política, 1964-69", de Roberto Schwarz.

Palavras-chave: Brasil; capitalismo; política; educação; cultura.

ABSTRACT

This article analyzes a few aspects and problems of the conservative modernization of capitalism in Brazil, focusing on the post-war and military dictatorship period in Brazil, which started in 1964 and became more radical in 1968. The relationship between culture, education, and politics are analyzed using Roberto Schwarz's "Cultura e política, 1964-69" (Culture and politics, 1964-69) essay as a reference.

Keywords Brazil; capitalism; politics; education; culture.

Ao longo do século XX, a modernização do capitalismo no Brasil promove uma rápida passagem das populações do campo para a cidade, do interior para as capitais, das áreas rurais para zonas urbanas, cada vez mais ocupadas e conflituosas. No espaço de menos de um século, o Brasil como que mudou para as cidades. De fato, em menos de um século, a população se torna fortemente urbana, com mais ou menos 80% dos brasileiros vivendo em metrópoles, ou grandes e médias cidades. Vale lembrar que, ainda no começo da Primeira República, lá pelos primeiros anos do século passado, a composição era bem o inverso: quase 80% da população vivia no mundo rural ou dele próxima, no interior, em vilas e vilarejos, e a predominância política e econômica dos donos da terra fazia das cidades uma espécie de extensão efetiva de seu poder econômico e político.

Pode-se dizer que o eixo principal da formação do Brasil moderno é a passagem da sociedade escravista e da herança colonial, com todo seu peso negativo, justo para uma sociedade urbana de classes. Para usar aqui uma expressão de Octavio Ianni, são as 'metamorfoses do escravo', muito bem resumidas, ao modo dialético, naquele samba de enredo da escola de samba Mangueira, em que o negro está "livre do açoite na senzala", mas "preso na miséria da favela", ou seja, não houve uma efetiva superação do atraso e do peso da herança colonial e escravista, apenas uma combinação diferente na relação entre arcaico e moderno no Brasil. Combinação complexa e contraditória, difícil de pensar, mas que está bem resumida na formulação de Roberto Schwarz: "a reprodução moderna do atraso". Mais que isso, modernização que se dá através do atraso, o reproduz e o repõe em novas constelações críticas, que precisam ser pensadas, caso não se queira tão-somente aderir aos mitos da modernização e do progresso. Como não poderia deixar de ser, o resultado do processo é violento e desigual, colocando em xeque, justamente, os principais mitos do Brasil moderno, à frente do progresso, muitas vezes endossado e assumido sem crítica, de maneira conformista e aderente, como se a superação do atraso pudesse ser apenas uma passagem, pragmática, positiva e funcional, da herança colonial e escravista para uma inserção tranqüila e vantajosa, na civilização burguesa contemporânea.

Mitologia que não resiste a qualquer análise crítica da sociedade brasileira, com suas brutais diferenças e desigualdades entre as classes, os grupos étnicos, e as regiões do país, todas resultantes de um processo desigual e combinado, que atende pelo nome de modernização conservadora de um país periférico e dependente, sempre situado em posição subalterna na ordem mundial que o capitalismo define, no passado e no presente. Mitologia que não resiste a uma análise crítica, até bem simples e direta, mas que tem peso e permanência na esfera das representações e interesses disfarçados que colonizam e moldam o imaginário coletivo, ou seja, ideologia como força prática e efetiva, como trabalho continuado e ativo no exercício de uma hegemonia das elites e grupos dirigentes. Vale dizer, ideologia como força prática que 'educa' de acordo com os interesses dos grupos dominantes e das classes dirigentes. Mitologia como exercício de uma hegemonia eficaz que pode ser medida, também, pela força de cooptação que representa, tomando-se, por exemplo, a recente integração aos partidos da ordem daquele que se apresentava como um partido de trabalhadores, criado, justamente, para confrontar os interesses dominantes, seus interesses exclusivos e anti-sociais, assim como suas representações ideológicas mais comuns. À frente, como era de se esperar, o mito do progresso, como tempo linear, homogêneo e vazio, um vetor que aponta sempre para o futuro, como promessas de felicidade e de fartura que não se cumprem, nem poderiam mesmo se cumprir. Parafraseando aqui Theodor Adorno, de modo livre, o capitalismo não mente pelo que promete - a saber, fartura e felicidade - mas pelo que não pode cumprir. Já que se trata de um sistema estruturado para explorar o trabalho humano, apropriar-se da maior parte da riqueza social que resulta do trabalho, prometendo muito e dando pouco de volta. Talvez se acredite, seguindo a pista ilusória da mitologia moderna do progresso, que mais adiante tudo se resolverá: as injustiças e desigualdades serão superadas, e existirá, enfim, uma sociedade civilizada. É o velho otimismo burguês do progresso, já criticado várias vezes, por exemplo por Georg Lukács, ainda no começo do século XX, mostrando como a social-democracia européia estava aderindo a essa mitologia, que pode ser bem entendida como uma espécie de política a conta-gotas, muito pragmática e extremamente responsável, zelando sempre pela boa ordem que garanta o funcionamento tranqüilo dos negócios, mas que, mais adiante, passo a passo, resolveria as contradições mais fundas, postas pelo capitalismo. Na verdade ocorre o contrário, as contradições se agravam, os conflitos se acentuam, e a miragem do progresso continua sendo apenas miragem.

Também cabe, nesse contexto crítico, a herança do pensamento de Walter Benjamin (1985, p. 222), em suas Teses sobre o conceito de História, indo, agudamente, ao ponto, justo na contramão do otimismo burguês do progresso, à direita, mas também à esquerda. Diante do 'estado de exceção permanente', que se abate sempre sobre os mais fracos, os pobres e os oprimidos, os que são vencidos e deixados à margem do cortejo triunfal dos que não cessam de vencer, a tarefa seria a de 'organizar o pessimismo', tirando de cena as visões idílicas e ilusórias, e pondo, em seu lugar, a iminência da catástrofe. Que veio em seguida, naquela época, na forma da barbárie, devastando a, supostamente civilizada, Europa, e pondo em crise toda a facilidade do otimismo sem fundamento, que deixa de lado todos os ângulos mais difíceis e negativos da realidade histórica e social, mesmo quando esses saltam aos olhos.

Nas páginas seguintes, o que se lê é um resumo crítico, a partir do presente - o ano de 2008 - , dos impasses da modernização conservadora do Brasil, voltado, sobretudo, para o período anterior, que vai do imediato final da II Guerra Mundial até o golpe militar de 1964, e sua radicalização, no ano de 1968. Portanto, tem como referência, e limite, justo o ano de 1968, quarenta anos passados, mas sem o clima festivo que às vezes envolve esse tipo de evento. Trata-se, como se verá, da "análise crítica dos termos de uma derrota". A referência para encaminhar e delimitar a análise é um estudo de Roberto Schwarz (1978, p. 61), "Cultura e política, 1964-69", publicado na revista Tempos Modernos, dirigida por Sartre, no começo da década de 1970, quando o autor estava exilado em Paris. São esquemas críticos muito úteis para se entender a distância que nos separa daquela ponta do processo, brasileiro e mundial, distante apenas umas poucas décadas, embora tenda a aparecer, volta e meia, como passado remoto. Completa, a análise inclui um segundo estudo de Schwarz (1999, p. 46), publicado no livro Seqüências brasileiras. Trata-se de "Os sete fôlegos de um livro", em cujas páginas finais o autor apresenta para o debate um conjunto de problemas e de perguntas muito relevantes para se pensar a ponta mais próxima do processo, que representa, de fato, um programa de trabalho. Como a análise ficaria muito extensa, indo além dos limites desta publicação, apresento a seguir sua primeira parte, de modo completo.

Tomo como pontos de apoio para encaminhar o que se lê nas páginas seguintes posições críticas importantes, que interessam muito pelo ângulo da crítica marxista. Ao centro, a própria formação econômica, política e cultural do Brasil moderno. Nesse âmbito formativo, o contraste crítico se dá entre as projeções, à esquerda, mas também à direita, de um futuro promissor, tendo sempre como meta a superação do atraso e a integração do país na esfera dos países avançados, e as décadas recentes da modernização efetiva do capitalismo no Brasil e no mundo. Formação que entra em crise e parece girar em falso, tornando obsoletas, anacrônicas, ou, na melhor das hipóteses, insuficientes, as projeções otimistas das gerações anteriores. De certo modo, pode-se afirmar que o futuro já chegou, o país se urbanizou e se modernizou, e as projeções do passado, mesmo recente, parecem 'memórias do futuro' muito pelo avesso, de um modo que desautoriza as visões fáceis e idealistas do processo.

Como não se trata de repetir os mitos do país cordial e ameno, sensual e alegre, misturado e feliz, malandro e ágil, expressão continuada de um imaginário que passa ao largo da violência efetiva do processo social e histórico, é preciso buscar as pontas mais difíceis da formação do Brasil moderno, tendo sempre como referência os impasses do presente e o avesso das facilidades imaginárias, que amenizam os conflitos e resultam, sempre, numa abstração confortável e inexistente. Por extensão evidente, toda a ideologia do caráter nacional brasileiro, nas suas muitas variações, as mais grosseiras e as mais sutis, não poderia ter mais nenhuma vigência. No entanto, está em andamento uma espécie de reciclagem dessa mesma 'ideologia do caráter nacional brasileiro', combinando o apoio do poder central e dos meios de massa, como propaganda otimista de um Brasil que progride, habitado por gente criativa e ordeira, que sabe e aceita seu lugar, mesmo quando esse lugar significa, na prática, apenas aproveitar os restos do consumo que o sistema deixa à margem. Seriam os pobres criativos, que, ao invés de se dedicarem à violência, exercem seu talento inesgotável, reciclam garrafas de plástico e delas fazem brinquedos, e até mesmo móveis. Por certo que essa propaganda, ao mesmo tempo pública e privada, otimista do progresso burguês até a raiz, apara todas as arestas e resolve no imaginário de massas os conflitos e as contradições entre as classes, os grupos étnicos e culturais, e as desigualdades regionais do país.

Feita a operação de propaganda, pode-se novamente apresentar o Brasil e os brasileiros, todos abstrata e ilusoriamente irmanados, de braços dados na construção de um país que não existe, nem poderia existir, na vida de todo dia. Pode-se acrescentar, sem forçar a mão, que se trata de uma operação cujo objetivo é 'domesticar os bárbaros', as 'classes perigosas', os trabalhadores pobres ou remediados que vivem em favelas, periferias urbanas ou nas regiões mais pobres do interior do país. Também se nota, sem muito esforço crítico, que essa idealização do Brasil e dos brasileiros se apresenta de modo simétrico e complementar ao peso da violência que se abate sobre a vida cotidiana das nossas cidades, dando farto material para os meios de massa, assim como para um grande número de livros e de filmes, todos voltados para a exploração sistemática do material. No vértice do problema, 'estetizando a violência e fazendo da miséria mercadoria de massa e espetáculo'. O que pode incluir, e na verdade inclui mesmo, tornar a pobreza urbana mercadoria, incorporada à esfera do turismo. Fiquem como exemplo, no Rio de Janeiro, as excursões turísticas à favelas, em que estrangeiros vermelhos, muito queimados pelo sol, a bordo de jeeps, que parecem saídos de um safári, passeando pelas favelas. Não escapa ao leitor o que há de perverso nessas operações que estetizam e vendem, justamente, as formas presentes da 'reprodução moderna do atraso' e seus resultados mais difíceis.

Assim sendo, a própria formulação resumida ao modo dialético como 'reprodução moderna do atraso' interessa bastante a um pensamento crítico sobre a crise brasileira e mundial. De saída, porque não aceita o canto da sereia do otimismo burguês do progresso, engrossando o coro dos contentes do capitalismo. Mais além, porque abre espaço para se pensar constelações críticas mais complexas, efetivamente mais capazes de dar conta do processo em curso. De quebra, sem deixar espaço para qualquer idealização da nação, do povo e do caráter nacional brasileiro. Por aí é possível entender o alcance crítico do trabalho de Schwarz (1981a; 1990) que, ao analisar Machado de Assis, ponto alto da literatura brasileira, traz à tona justo a combinação perversa, de arcaico e moderno, de escravismo e liberalismo, carregada de mando e desmando, de arbítrio, de favor e de dependência. Por extensão, crítica que ajuda muito a entender o Brasil e nosso lugar no sistema mundial formado pelo capitalismo, no passado, mas também no presente. Na boa tradição da teoria crítica materialista e dialética, as análises de Roberto Schwarz caminham sempre na contramão do otimismo fácil, das compensações imaginárias, das soluções falsas para problemas efetivos, dos conflitos de classe amenizados e resolvidos, muitas vezes de modo simpático, na esfera das representações artísticas e culturais.

No ponto de chegada da 'reprodução moderna do atraso no Brasil', pela via dominante da modernização conservadora e avançada do capitalismo em nossa época, encontra-se outra formulação importante, também de Schwarz (1999, p. 46), que se lê ao final do estudo "Os sete fôlegos de um livro": a de "sistema nacional em desagregação". Formulação difícil, que traz para o debate ângulos muito agudos do problema, centrada que está nos impasses da modernização conservadora, seus resultados negativos, e os problemas que representa em termos da questão nacional, de se pensar e interpretar criticamente o Brasil.

As páginas seguintes retomam e continuam a análise de Schwarz em "Cultura e política, 1964-69", publicada no calor da hora, e escrita de um modo muito ágil, vivo, crítico e sem concessões. A referência histórica da análise, tendo ao fundo o contexto forte da Guerra Fria, é o período de redemocratização que se segue ao final da II Guerra Mundial, e que vai de 1945 até 1964, quando a ditadura militar rompe pela violência o quadro institucional brasileiro, tendo como limite o ano de 1968, época em que a repressão recrudesce e desmonta de vez os projetos então em curso no país. No lugar de uma espécie de 'educação coletiva em processo', de 'acumulação crítica e formativa', que aproximava de modo inédito as classes sociais, os centros e as periferias urbanas, as regiões mais avançadas e as mais pobres, um processo violento de reintegração do Brasil na esfera do capitalismo norte-americano entra em cena. Pode-se dizer, também sem forçar a mão, que é o período que vai, mais ou menos, de 1970 até o começo de século XXI, o que inclui o final da ditadura militar e os governos a seguir eleitos, pela via formal e democrática, todos afinados no tom da modernização capitalista responsável, pragmática, conformista e integrativa, apesar das contradições e conflitos, sempre existentes. O certo é que a nota dissonante, a do período anterior, sai mesmo de cena. Não há mais espaço para formulações radicais, para reformas profundas, nem remotamente para um horizonte revolucionário de superação do capitalismo pela via revolucionária.

É um recuo forte, que acontece, primeiro na Europa, depois aqui, na América Latina, desmontando partidos e sindicatos de oposição, trazidos em sua maioria para a esfera da cooptação e do conformismo, quando não da franca corrupção. Por certo que tudo traduzido em muita retórica ufanista, acompanhada, de perto, por decisões econômicas e políticas as mais pragmáticas, quase que apenas gerência nacional e regional dos interesses mais fortes da própria dinâmica da hegemonia capitalista, na sua forma próxima e mundializada. Não é pequena a derrota, nem simples o recuo. No entanto, a comparação entre os dois momentos históricos precisa evitar, de saída, dois riscos simétricos e complementares: o de pensar muito a seco o presente, esvaziando por inteiro a força contraditória do processo, apesar da evidente derrota, e o de idealizar o período anterior, perdendo de vista seus aspectos problemáticos, com isso levando a análise para uma espécie fácil de nostalgia de esquerda, agravada pelo contraste com a dureza do presente. Mas é certo que o ponto de chegada, que é a crise do presente, diz muito sobre a distância que nos separa do passado recente de umas poucas décadas, mas que, dada à força da aceleração do processo histórico, parece um tempo remoto. De certa maneira, é como se o passado fosse mesmo um país estrangeiro, um conjunto de quinquilharias quase absurdas, com algo de irreal e fantasmagórico, que os olhos desencantados, pragmáticos e aderentes de agora sabem muito bem como neutralizar, tornando ameno e desfrutável o que era áspero e intratável.

No calor da hora

Os esquemas que compõem o estudo "Cultura e política, 1964-69" foram escritos no final da década de 1960, e publicados em 1970, em Paris, na revista Tempos Modernos. Como Schwarz adverte o leitor brasileiro, quando da publicação em livro, em 19782 2 Nota do Autor, que abre a publicação brasileira do ensaio "Cultura e política, 1964-69", no livro O pai de família e outros estudos, de Roberto Schwarz. , no principal, o prognóstico da análise estava errado. A saber, que haveria uma "maré fantástica de insatisfação popular", pronta a se manifestar, cada vez que o regime afrouxava um pouco, e que o país estaria onde Goulart o deixara, 'tão agitável como nunca'. Não foi assim, como se sabe, e a 'ideologia do consumo', que parecia à época um escárnio, tem vencido em escala, então, e agora. No mais, o autor considera que alguma coisa se salva de sua tentativa de explicação, ao modo literário, entre pessoal e de geração, da atualidade de um momento histórico. O que se nota logo no texto, mesmo que escrito no calor da hora, é o teor crítico, e uma argumentação forte a partir e por dentro do processo social, com muitos exemplos e análises marcantes - das alianças políticas e seus equívocos, das lutas sociais, das manifestações culturais e artísticas da época.

No plano político, a crítica se dirige à alianças equivocadas, por conta do Partido Comunista, "muito mais antiimperialista que anticapitalista" (Schwarz, 1978, p. 65), que distinguia nas classes dominantes um setor agrário retrógrado, a favor dos norte-americanos, e um setor industrial, entendido como nacional e progressista, com o qual seria preciso se aliar. Por essa via equivocada, o Partido Comunista acreditava na aliança com a burguesia nacional avançada, mas é claro que a burguesia não acreditava nos comunistas. Como nota Schwarz (1978, p. 65), essas alianças podiam ser entendidas como "um engano bem fundado nas aparências". O que daí resultou é assim resumido pelo autor:

O aliado principal do imperialismo, e portanto o inimigo principal da esquerda, seriam os aspectos arcaicos da sociedade brasileira, basicamente o latifúndio, contra o qual deveria erguer-se o povo, composto por todos aqueles interessados no progresso do país. Resultou no plano econômico-político uma problemática explosiva mas burguesa de modernização e democratização; mais precisamente, tratava-se da ampliação do mercado interno através da reforma agrária, nos quadros de uma política externa independente (Schwarz, 1978, p. 65).

Era uma contraditória composição de forças, marcada pela oposição entre arcaico e moderno, nos termos burgueses da modernização, que pôs no centro do palco um povo idealizado e apologético, abarcando forças muito diferentes e tirando do centro a própria luta de classes. Para Schwarz, o símbolo dessa salada ideológica, que se revelaria indigesta, é Terra em transe, de Glauber Rocha,

onde fraternizavam as mulheres do grande capital, o samba, o grande capital ele mesmo, a diplomacia dos países socialistas, os militares progressistas, católicos e padres de esquerda, intelectuais do Partido, poetas torrenciais, patriotas em geral, uns em traje de rigor, outros em blue jeans (...) (Schwarz, 1978, p. 65-66).

A crítica se voltava para a 'deformação populista do marxismo', que esteve no centro da vida política e cultural do país do pós-guerra até o golpe militar de 1964, compondo um sistema conciliatório de alianças, passando pela mediação forte do Estado, que explicava bastante a produção cultural da esquerda brasileira da época.

Caberia aos professores, essas 'longínquas tartarugas', para usar aqui a curiosa expressão do próprio Schwarz, a crítica rigorosa do reformismo populista e seus pontos fracos. Já que o ambiente da época estimulava a leitura do marxismo, não apenas professores, mas também estudantes, se puseram a ler essas referências críticas, permitindo, assim, mostrar os engodos e ilusões da propaganda oficial e das ilusões do Partido Comunista. Nessa altura da análise, Schwarz distingue bem as práticas reformistas e seus resultados culturais, notando que uma coisa não era sinônimo automático da outra. Na verdade, a prática reformista podia ser a atmosfera da época, mas o trabalho político e cultural efetivo podia ganhar outros contornos, mais fortes e interessantes.

Aqui, o exemplo é o Movimento de Cultura Popular, em Pernambuco, que começa em 1959, apoiado por Miguel Arraes, com uma finalidade eleitoral imediata: a saber, eleger o próprio Arraes governador. No processo, foram estimuladas várias formas "de organização do povo, em torno de interesses reais, de cidade, de bairro, e mesmo folclóricos (...)" (Schwarz, 1978, p. 68), como maneira de fortalecer o povo contra a demagogia eleitoral. Aqui, o autor lembra que o programa era de inspiração reformista e cristã, centrado na 'promoção do homem', o que daria seu limite diante do que se poderia entender como marxismo revolucionário. O que não impediu que, desse impulso, surgisse o método Paulo Freire de alfabetização de adultos, que não concebia a leitura como uma "técnica indiferente" mas como "força no jogo da dominação social", de onde viria seu interesse crítico, já que, "em lugar de aprender humilhado, aos trinta anos de idade, que o vovô vê a uva, o trabalhador rural entrava, de um mesmo passo, no mundo das letras e no dos sindicatos, da constituição, da reforma agrária, em suma de seus interesses históricos." (Schwarz, 1978, p. 68-69). Assim sendo, o método tirava o professor da posição de burguês, qualificando os pobres para uma nova profissão, e os alunos de seu lugar passivo e definido. Schwarz (1978, p. 69) vê um movimento dialético nesse processo, já que cada um dos elementos em jogo se transformaria no interior do método. E conclui, com entusiasmo, que no processo "de fato pulsa um momento da revolução contemporânea".

Levando mais longe o entusiasmo, Schwarz considera que os grupos teatrais envolvidos na explicação e divulgação do crédito agrícola, durante o governo Arraes, que iam aos camponeses e dramatizavam os problemas da inovação, davam um verdadeiro passo adiante em relação à arte e à cultura burguesas, confinadas em seus espaços fechados e privilegiados. É quando se apresentam as perguntas, fortes e, talvez, excessivas, dada a simplicidade das formas teatrais e dramáticas empregadas por esses grupos: "Num caso destes, quem seria o autor? Quem aprende? A beleza ainda adorna as classes dominantes? De onde vem ela?" (Schwarz, 1978, p. 69). Seja como for, e seguindo a análise de Schwarz, estavam postas, no contexto de uma educação coletiva em processo, as questões de uma 'cultura verdadeiramente democrática', brotando por todo canto, "na mais alegre incompatibilidade com as formas e o prestígio da cultura burguesa" (Schwarz, 1978, p. 69).

Por extenso, o processo tinha mesmo interesse e alcance, e dá bem a medida do 'processo de educação coletiva' que foi interrompido pela ditadura militar. Entram como exemplo os centros populares de cultura, fazendo cinema, canções, lançando discos e improvisando teatro em portas de fábricas e favelas. Com isso, mesmo que em escala pequena, a produção cultural começava a reorientar a sua relação com as massas. Como Schwarz não deixa de notar, processo alegre e irreverente, passando um tanto ao largo do dogmatismo partidário e da propaganda oficial.

O outro paradoxo do período, que serve de fio condutor à análise de Schwarz, diz respeito ao período que vai de 1964 a 1968. Apesar de derrotada, a cultura de esquerda foi dominante até o ano de 1968, quando o espaço público se fechou de vez. Em 1964, a repressão bateu, primeiro, nos movimentos e lideranças populares, reprimindo, torturando e matando líderes camponeses, operários e das forças armadas. Cortada a relação entre a cultura e os movimentos populares, foi possível o paradoxo que o crítico aponta, porque a derrota ainda não chegara, por inteiro, à classes médias, aos artistas e aos intelectuais. E é nesse espaço de quatro anos que está situado o Tropicalismo, um dos pontos marcantes da crítica de Schwarz, e que será comentada mais adiante.

Dado o golpe em 1964, "era outra camada geológica do país que tinha a palavra" sintetizada por Schwarz (1978, p. 70) na seguinte pergunta poética: "Corações antigos, escaninhos da hinterlândia, quem vos conhece?". Era o retorno do arcaico, ativando esse sentimento na pequena burguesia, fazendo com que "tesouros da bestice rural e urbana" saíssem à rua, na forma de Marchas da família, com Deus e pela liberdade, petições contra o divórcio, a reforma agrária e os padres comunistas. Ou, na ironia muito precisa de Schwarz (1978, p. 70), "ficavam em casa mesmo, rezando o Terço em Família, espécie de rosário bélico para encorajar os generais". Era a revanche dos ressentidos e dos preteridos do capital, acertando as contas com os avanços, mesmo que contraditórios, conseguidos nos primeiros passos da referida 'educação coletiva em processo'. No caso das universidades, o acerto de conta dos ressentidos se deu, muitas vezes, na forma da delação, ou no silêncio mais omisso, sempre visando a ocupar os cargos deixados vagos pelos professores que se demitiram, que foram presos ou que se exilaram.

Nos termos do próprio Schwarz (1978, p. 71), "(...) no conjunto de seus efeitos secundários, o golpe apresentou-se como uma gigantesca volta do que a modernização havia relegado; a revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em leis etc. (...)" A regressão não podia ser maior, e a mudança de pauta era evidente, tirando de cena o debate público voltado para a reforma agrária, o imperialismo, o voto do analfabeto, o salário mínimo, resumindo "a experiência organizada dos sindicatos, operários e rurais, das associações patronais ou estudantis, da pequena burguesia mobilizada, etc. (...)" (Schwarz, 1978, p. 71) - tudo referido a questões reais e relevantes para a vida do país e da população. O conteúdo arcaico e regressivo, reativado pela ditadura militar, trazia à tona essas camadas geológicas antigas e muito conservadoras, que valiam, então, como uma espécie de caução de boa correção política diante da nova ordem. No fecho dessa passagem da análise, Schwarz (1978, p. 71) formula um problema com muito alcance para se pensar a literatura brasileira, por um ângulo crítico e não celebratório: "À sua maneira, a contra-revolução repetia o que havia feito boa parte da mais reputada poesia brasileira deste século; ressuscitou o cortejo dos preteridos do capital."

Mas, como se veria em seguida, esse retorno do arcaico e seus conteúdos mais regressivos, na forma de uma 'liga dos vencidos', não era a verdadeira face do processo em curso, que de fato era moderna, tecnocrática e visava à integração do país na esfera do capitalismo norte-americano, de maneira pragmática e objetiva, como aconteceu, daquela época em diante, com uma intensidade muito evidente nas últimas décadas. Mas essa combinação esdrúxula de arcaico e moderno, na forma de 'cotidiana fantasmagoria e anacronismo social', de maneira indireta, preparou a matéria para o movimento tropicalista - na música popular, na literatura, no cinema, no teatro e nas artes plásticas - um dos alvos principais da crítica de Schwarz.

No centro do problema, a combinação do moderno e do arcaico em momentos de crise, juntando a integração mais avançada ao capitalismo e elementos da ideologia burguesa mais antiga. Na crise instalada pelo golpe de 1964, já bem entendida por Schwarz (1978, p. 74) como um dos momentos cruciais da Guerra Fria, a integração ao sistema imperialista "revive e tonifica a parte do arcaísmo ideológico e político de que necessita para a sua estabilidade". O passo seguinte da análise apresenta ao leitor um exemplo de 'reprodução moderna através do atraso': "De obstáculo a resíduo, o arcaísmo passa a instrumento intencional da opressão mais moderna, como, aliás, a modernização, de libertadora e nacional, passa a forma de submissão." É nesse contexto que uma cultura de oposição triunfa moralmente sobre a ditadura instalada e, apesar da derrota sofrida em 1964, marca o período que vai até o final de 1968, quando o confronto armado entre grupos de esquerda e o novo sistema militar de poder radicaliza de vez o processo, com os resultados bárbaros que se conhece, e não se pode esquecer.

É nessa constelação contraditória que Schwarz situa sua crítica à 'alegorias do Tropicalismo', como combinação entre arcaico e moderno muito ambígua que, no fundo, forneceria uma interpretação do Brasil como um 'absurdo insolúvel', mas repleto de contrastes e confrontos sugestivos, capazes de fornecer um material interessante para o trabalho da criação estética. Fazendo a ressalva de que se trata de um esquema, do qual o próprio autor não tem muita certeza, mesmo em suas linhas principais, a análise indica que o trabalho criativo do Tropicalismo, situado exatamente nesse conjunto contraditório de resultados em momento de crise, marcaria uma nova situação intelectual, artística e de classe. Em resumo, e arriscando um pouco, "o efeito básico do Tropicalismo está justamente na submissão de anacronismos desse tipo, grotescos à primeira vista, inevitáveis à segunda, à luz branca do ultramoderno, transformando-se o resultado em alegoria do Brasil". Por extensão, o reservatório de imagens do país arcaico e rural é exposto "à forma ou técnica mais avançada ou na moda mundial - música eletrônica, montagem eisensteniana, cores e montagens do pop, prosa de Finnegans Wake, cena ao mesmo tempo crua e alegórica, atacando fisicamente a platéia" (Schwarz, 1978, p. 74).

O resultado da combinação alegórica crua é entendido por Schwarz como literalmente um disparate, "uma espécie estridente de segredo familiar trazido à rua", sendo ao mesmo tempo uma "traição de classe". Mas, não apenas isso, porque, embora disparate, a alegoria tropicalista configura um desacerto em que está "figurado um abismo histórico real, a conjugação de etapas diferentes do desenvolvimento capitalista" (Schwarz, 1978, p. 74).

Não escapa ao leitor que a crítica de Schwarz ao Tropicalismo encaminha, ao mesmo tempo, uma crítica vanguarda da época, representada pela Poesia Concreta, aliada aos tropicalistas, assim como uma crítica da técnica mais avançada como elemento conformista, integrado sem mais moda do momento, daí resultando a ambigüidade, tanto das alegorias tropicalistas quanto da própria posição de classe de seus criadores. Indo fundo na desconfiança diante das alegorias tropicalistas, da vanguarda e da moda internacional, Schwarz, numa passagem muito rica e interessante da análise, ironiza a combinação de arcaico e de moderno, em que veículos modernos põem em circulação conteúdos arcaicos, numa espécie de 'exibicionismo social', cuja força artística viria de

citar, sem conivência, como se viessem de Marte, o civismo e a moral que saíram rua - mas com intimidade, pois Marte fica lá em casa - e vem também de uma espécie de delação amorosa, que traz aos olhos profanos de um público menos restrito os arcanos familiares e de classe (Schwarz, 1978, p. 74-75).

No fecho desse ponto, num estilo ao mesmo tempo irônico e sensível à configuração estética do material da alegoria tropicalista, Schwarz aprofunda a crítica:

noivas patéticas, semblantes senatoriais, frases de implacável dignidade, paixões de tango - sem a proteção da distância social e do prestígio de seu contexto, e gravadas nalguma matéria plástico-metálica" - fosforescente e eletrônica, estas figuras refulgem estranhamente, e fica incerto se estão desamparadas ou são malignas, prontas para um fascismo qualquer (Schwarz, 1978, p. 75).

Como se pode notar, a sereia ambígua das alegorias tropicalistas canta. E o crítico, muitíssimo desconfiado, firma sua posição justo contra o que haveria de ambíguo na composição bruta da matéria social misturada, ou seja, ao modo da crítica dialética, ficariam faltando as necessárias mediações e especificações, situando e configurando o material de outro modo, ao que parece mais simbólico e realista, já que a composição alegórica carregaria, em sua própria composição, até mesmo o risco de serem malignas, disponíveis para qualquer apropriação do tipo fascista. Aqui, com certeza, a desconfiança do crítico foi longe demais. Em nenhum momento a alegoria tropicalista foi incorporada ao repertório da reação fascista e regressiva. No geral, Schwarz ressalta sempre a ambigüidade, não apenas da alegoria tropicalista, mas também da posição de classe de seus criadores, que estariam ora alinhados com um esforço crítico, ora apenas integrados à 'crista da onda da moda do momento', seguindo o fluxo do que era mais moderno nas grandes capitais do país. Assim sendo, "sobre o fundo ambíguo da modernização, é incerta a linha entre sensibilidade e oportunismo, entre crítica e integração" (Schwarz, 1978, p. 75); bem feitas as contas, o Tropicalismo teria muito de adesão de universitários citadinos à ponta de lança internacional, uma espécie de 'esnobismo de massas', submetendo noções prestigiosas de uma esfera da cultura ao consumo de massas, com resultado inseparável de um certo privilégio dos que tinham acesso a essas noções reservadas e exclusivas.

Nesse passo da análise, Schwarz retoma o exemplo do método Paulo Freire e o contrapõe á alegoria tropicalista. No método político e crítico de alfabetização de adultos, a contradição entre arcaico e moderno não era insolúvel, já que a oposição poderia se resolver através da própria alfabetização política, trazendo o trabalhador para o campo e para os seus interesses reais. Na alegoria tropicalista, ao contrário, o efeito dependeria sempre de uma 'contraposição insolúvel entre o antigo e o novo', esdrúxula e estridente, resultado de uma tentativa fracassada de modernização nacional, que a ditadura militar cristalizaria. O resultado seria uma 'visão absurda do Brasil', ambígua, contraditória e, no fundo, irracionalista. Não é pouca coisa, e o leitor pode bem entender o alcance da crítica. Por contraste, Schwarz lembra do cinema brasileiro da época, um pouco antes e um pouco depois do golpe militar, em que valeu a palavra de ordem de Glauber Rocha - 'por uma estética da fome' - , da qual resultariam alguns de nossos melhores filmes, como Vidas secas, Deus e o diabo na terra do sol e Os fuzis, respectivamente dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Rui Guerra. Nesses filmes, ao contrário da alegoria tropicalista, o artista se situa na etapa presente da vida nacional, guardando, o quanto fosse possível, distância e independência diante do aparato tecnológico e econômico, orientando sua posição sempre pelo inimigo.

Já o Tropicalismo faria o caminho inverso, perdendo de vista a dimensão política do uso da técnica avançada, e 'aceitando seu estágio internacional' como uma espécie de parâmetro da 'infelicidade nacional', levando os atualizados e integrados com a moda internacional e a técnica avançada a cristalizar a tentativa falha de modernização, a tornarem 'o absurdo a alma do país e a nossa'. Dando um passo adiante na crítica a essa representação ambígua e alegórica do processo social, Schwarz ironiza a noção de 'pobreza brasileira' que, entende-se assim, fora do contexto da luta de classes, seria uma abstração genérica, que atingiria, 'igualmente, ricos e pobres'. Como em outros momentos do ensaio, Schwarz arremata o raciocínio de modo ao mesmo tempo crítico e literário:

A noção de uma 'pobreza brasileira', que vitima igualmente a ricos e pobres - própria do tropicalismo - resulta de uma generalização semelhante. Uns índios num descampado miserável, filmados em tecnicolor humorístico, uma cristaleira no meio da auto-estrada asfaltada, uma festa grãfina, afinal de contas provinciana - em tudo estaria a mesma miséria. Esta noção de pobreza não é evidentemente a dos pobres, para quem falta de comida e de estilo não podem ser vexames semelhantes (...) (Schwarz, 1978, p. 77).

Por essa via, o fundamento histórico do Tropicalismo na arte brasileira resultaria numa visão alegórica que congelaria e reduziria ao absurdo, generalizando, a própria reprodução moderna do atraso, do novo que se moderniza justo através do atraso do país. Em resumo, e o leitor saberá medir o alcance do argumento crítico, 'na composição insolúvel mas funcional dos dois termos, estaria figurado um destino nacional, que dura desde os inícios do país'. Levando mais longe a crítica, Schwarz considera que o mesmo processo de montagem alegórica poderia ser estendido em termos de latinoamericanidad, resultando, da passagem, uma América Latina que seria também 'tropicalista'.

Por certo que tudo de forma abstrata, atemporal, fora da História, generalizando de modo absurdo contradições, que poderiam ser resolvidas, e não tornadas representações alegóricas e permanentes, quer do Brasil, quer da América Latina. No final da análise, e referindo-se ao problema da alegoria versus o símbolo - este especificado, aquele relacionando idéias e imagens de maneira externa, um como 'aparição sensível da idéia', a outra como persistência não transfigurada da materialidade documental, como que escolhos da história real - Schwarz (1978, p. 78) refere-se ao estudo de Walter Benjamin sobre o drama barroco alemão, concluindo que é "justamente no esforço de encontrar matéria sugestiva e datada - com a qual alegorizam a 'idéia' atemporal de Brasil - que os tropicalistas têm seu melhor resultado". No arremate sobre a combinação anacrônica de arcaico e de moderno, ativada sempre pela via alegórica,

os ready made do mundo patriarcal e do consumo imbecil põem-se a significar por conta própria, em estado indecoroso, não estetizado, sugerindo infinitamente suas histórias abafadas, frustradas, que não chegaremos a conhecer. A imagem tropicalista encerra o passado na forma de males ativos ou ressuscitáveis, e sugere que são nosso destino, razão pela qual não cansamos de olhá-la (...) (Schwarz, 1978, p. 78).

Como o leitor também há de notar, o contraponto ao processo de ativação alegórica, a referência de fato crítica, só poderia vir de um processo de composição realista, simbólico e mediado, especificado e situado nas linhas contraditórias de força do processo social e histórico, jamais resultando numa representação atemporal, abstrata, genérica, além de absurda, do Brasil, ou seja, uma contraposição de fundo, cheia de ressonâncias, que vale a pena ressaltar.

De certo modo, os argumentos críticos de Schwarz reelaboram, de modo muito articulado e sensível, a oposição entre realismo e vanguarda, que ocupou uma parte importante dos debates críticos na Europa da primeira metade do século XX, envolvendo as posições de Lukács, de Brecht, de Adorno, de Benjamin e de Ernst Bloch, para ficar apenas nos nomes principais. Ao fundo, como se sabe, e com bastante peso, os erros e os acertos das posições de Georg Lukács, a defesa do realismo crítico e a refutação em bloco da arte por ele considerada 'de vanguarda', linhas de força que tinham presença marcante no debate brasileiro da época estudada por Schwarz. Problema dos mais complicados, que escapa dos limites deste estudo, e fica apenas sugerido, caso o leitor tenha interesse pelo assunto e seus desdobramentos. Mas fica indicado que a contraposição, direta, entre o método Paulo Freire de alfabetização, político e didático por sua própria natureza, e a imagem tropicalista, situada na esfera da representação estética, mesmo que alegórica, de certo modo desequilibra o argumento crítico de Schwarz, como se esperasse das imagens tropicalistas uma clareza didática que não poderia mesmo, de qualquer ângulo, oferecer.

Destaco a seguir, já encaminhando a parte final da análise, alguns pontos importantes do ensaio "Cultura e política, 1964-69", que venho usando como referência e comentando. A começar pela crítica de Schwarz ao teatro da época, antes e depois do golpe. Por exemplo, em espetáculos como Opinião e Liberdade, liberdade, montados logo depois do golpe de 1964. Certo que como espetáculos de oposição à ditadura, mas com problemas. Em resumo,

Apesar do tom quase cívico destes dois espetáculos, de conclamação e encorajamento, era inevitável certo mal-estar estético e político diante do total acordo que se produzia entre palco e platéia. A cena não estava adiante do público. Nenhum elemento da crítica ao populismo fora absorvido. A confirmação recíproca e o entusiasmo podiam ser importantes e oportunos, entretanto era verdade também que a esquerda vinha de uma derrota, o que dava um traço indevido de complacência ao delírio do aplauso. Se o povo é corajoso e inteligente, por que saiu batido? E se foi batido, por que tanta congratulação? (Schwarz, 1978, p. 80-81).

Indo ao ponto, Schwarz não adere ao entusiasmo fácil e pede os termos de uma derrota, a análise crítica de uma derrota. Ao colocar a exigência uma 'cena adiante do público', refere uma elaboração estética e política de outra ordem, mais difícil e complicada, certamente menos capaz de conseguir adesões imediatas e entusiasmos delirantes. Tendo como referência, de modo bem claro, o teatro dialético de Brecht.

No entanto, havia mais em jogo. A platéia desses espetáculos era informada e politizada, com um grande número de estudantes, o que seria, para Schwarz (1978, p. 81), "a composição normal da platéia do teatro de vanguarda". Se, por uma lado, a relação era tautológica, por outro havia algo de novo na situação, que a análise não deixa de destacar:

Essa cumplicidade tem, é certo, um lado fácil e tautológico; mas cria o espaço teatral - que no Brasil o teatro comercial não havia conhecido - para o argumento ativo, livre de literatice. De modo geral, aliás, o conteúdo principal deste movimento terá sido uma transformação de forma, a alteração do lugar social do palco. Em continuidade com o teatro de agitação da fase Goulart, a cena e com ela a língua e a cultura foram despidas de sua elevação 'essencial', cujo aspecto ideo-lógico, de ornamento das classes dominantes, estava a nu (Schwarz, 1978, p. 81).

Como se nota, os termos de uma derrota ainda não absorvida, mas, também, as referências de uma educação coletiva, que estava em processo, ao modo de uma acumulação crítica à esquerda, que era promissora, embora contraditória e problemática, foi interrompida pelo golpe militar.

Levando adiante o argumento crítico, Schwarz nota que essa mudança social do lugar do palco e da platéia diminuiu muito a distância entre o especialista e o leigo, tirando a cultura do seu lugar 'elevado', propriamente burguês, como privilégio para uns poucos entendidos. Encurtada a distância, e trazida a cena para a vida cotidiana do presente, esse tipo de trabalho, "em lugar de oferecer aos estudantes a profundidade insondável de um texto belo ou de um grande ator, [o teatro] oferecia-lhes uma coleção de argumentos e comportamentos bem pensados, para imitação, crítica ou rejeição" (Schwarz, 1978, p. 81).

Como o leitor percebe, aqui a referência é o teatro dialético de Brecht, muito refletido, onde os personagens gostam de pensar e ir fundo nas situações e gestos sociais. Assim sendo, a consideração educativa e formativa daquele processo não escapa a Schwarz, funcionando como um exemplo de que "a democratização, em arte, não passa por barateamento algum, nem pela inscrição das massas numa escola de arte dramática; passa por transformações sociais e de critério, que não deixam intocados os termos iniciais do problema (...)" (Schwarz, 1978, p. 82).

É uma clara resposta aos críticos da arte engajada, quase sempre entendida como redução grosseira, tudo se resumindo a panfletos e propaganda sem elaboração estética. Pela linha da herança heterodoxa do marxismo, Schwarz ressalta o contrário, justo a força educativa e formativa do processo, e o movimento dialético que liga o palco, a platéia e o processo social em andamento. Processo no qual até mesmo a mais que criticada arte de agitação e propaganda tem o seu lugar que, no entanto, não é exclusivo, nem ponto de chegada estético e político.

Tratando do Teatro de Arena, e dos espetáculos Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, Schwarz apresenta pontos fortes e fracos das montagens. Como pontos fortes, destaca em Zumbi a agilidade da montagem; os atores representam vários papéis, com isso marcando uma distância na identificação direta entre ator e personagem; a capacidade que tiveram os atores de trazer o canto e a dança para o espetáculo, colocados ao 'alcance prático do leigo'; além do que, o principal personagem do espetáculo era coletivo, fazendo com que as caracterizações fossem objetivadas, sendo socializadas e imitáveis. O ponto fraco de Zumbi, ainda seguindo Schwarz (1978, p. 83), estava em que "(...) no centro de sua relação com o público - o que só lhe acrescentou o sucesso - Zumbi repetia a tautologia de Opinião: a esquerda derrotada triunfava sem crítica, numa sala repleta, como se a derrota não fosse um defeito". Como em Opinião, Schwarz (1978, p. 83) destaca a estranha e curiosa unanimidade entre palco e platéia, conseguida através da "aliança simbólica entre música e povo". Em Zumbi, o problema era mais complexo, embora análogo ao de Opinião. No centro da montagem de Zumbi, Schwarz percebe uma 'dualidade não resolvida', que faz a montagem oscilar entre a crítica política e a exortação pura e simples, enfraquecendo o conjunto. Isso se devia a uma mistura de planos na montagem: a oposição entre escravos e senhores portugueses, de um lado, e, de outro, a oposição entre o povo brasileiro e a ditadura pró-imperialista. Isso permitia falar, de modo oblíquo, do que era problemático, o que interessava. Mas a dualidade, misturando os planos, confundia os termos do que foi o escravismo no Brasil e o problema político da época da montagem de Zumbi, que oscilava entre os planos e as realidades históricas abordadas. Em resumo, Augusto Boal considerava, na época, que o teatro deveria tanto criticar quanto entusiasmar, criar distanciamento, mas, também, identificação entre palco e platéia, ou seja, uma combinação dos métodos de Stanislavski e de Brecht. Como não é difícil notar, Schwarz situa sua análise nos termos do teatro de Brecht, e a partir daí faz sua crítica, que separa logo as águas do entusiasmo, fácil e direto, e o distanciamento crítico, que permitiria reflexão, trazendo à tona os termos dos problemas abordados.

Ao analisar a montagem de Arena conta Tiradentes, Schwarz usa o mesmo modelo crítico. Começa destacando que a figura do Tiradentes - personagem principal, o mártir da independência e homem de origem humilde -

é apresentada através de uma espécie de gigantismo naturalista, uma encarnação mítica do desejo de libertação nacional. Em contraste, as demais personagens, tanto seus companheiros de conspiração, homens de boa situação e pouco decididos, quanto os inimigos, são apresentados com distanciamento humorístico, à maneira de Brecht (Schwarz, 1978, p. 84).

Resulta dessa combinação desigual o ponto fraco da montagem, já que os personagens abastados

calculam politicamente, têm noção de seus interesses materiais, sua capacidade epigramática é formidável e sua presença em cena é bom teatro; já o mártir corre desvairadamente em pós a liberdade, é desinteressado, um verdadeiro idealista cansativo, com rendimento teatral menor (Schwarz, 1978, p. 84).

Indo ao ponto, Schwarz indica um 'impasse formal', que prejudica o espetáculo e enfraquece sua intenção crítica, já que o método de Brecht, em que a inteligência conta muito, é aplicada aos inimigos dos revolucionários, e o método de Stanislavski, ligado ao entusiasmo, cabe ao caricato Tiradentes, correndo feito louco pelo palco. O que não deixa de ter sua graça, mesmo olhando de longe, em retrospecto. Impasse formal que Schwarz (1978, p. 84) relaciona, de modo muito agudo e preciso, "a um momento ainda incompleto da crítica ao populismo". Com isso, ficava irresolvido o impasse, ao mesmo tempo formal e social, estético e político, deixando de lado a efetiva composição social e de interesses do movimento popular:

Porque a composição social das massas não é homogênea, parece-lhe [ao Arena] que mais vale uni-las pelo entusiasmo que separá-las pela análise crítica de seus interesses. Entretanto, somente através desta crítica surgiriam os verdadeiros temas do teatro político: as alianças e os problemas de organização que deslocam noções como sinceridade e entusiasmo para fora do campo do universalismo burguês (Schwarz, 1978, p. 84).

Ficou faltando esse passo adiante, de superação crítica do populismo, em direção a um teatro maduro e político, em sentido mais forte.

Por fim, uma consideração crítica sobre o Teatro Oficina, também de oposição e do campo da esquerda, mas, segundo Schwarz (1978, p. 85), "ambíguo até a raiz dos cabelos". Dirigido por José Celso Martinez Correa, o Oficina se situava nas antípodas do Arena: "Ligavam-se ao público pela brutalização, e não como o Arena, pela simpatia; e seu recurso principal é o choque profanador, e não o didatismo. A oposição no interior do teatro engajado não podia ser mais completa" (Schwarz, 1978, p. 85). Aqui, também, a referência crítica de Schwarz é o teatro dialético de Brecht, mas a análise toma um rumo bem diferente daquele com que foi abordado o Arena, em que não se nota qualquer simpatia pelo trabalho do Oficina. O que vem resumido na seguinte passagem:

De fato, a hostilidade do Oficina era uma resposta radical, mais radical que a outra (a do Arena), derrota de 1964; mas não era uma resposta política. Em conseqüência, apesar da agressividade, o seu palco representava um passo atrás; é moral e interior à burguesia, reatou com a tradição pré-brechtiana, cujo espaço dramático é a consciência moral das classes dominantes (Schwarz, 1978, p. 86).

Isso porque, para o Oficina e seu diretor, José Celso Martinez Correa, a pequena burguesia se alinhou com a direita ou não resistiu ao golpe de 1964, enquanto a grande burguesia se alinhava ao imperialismo. Assim sendo, "todo consentimento entre palco e platéia é um erro ideológico" (Schwarz, 1978, p. 85). A graça da situação, notada por Schwarz, é que a platéia talvez gostasse de ser massacrada, porque lotava os espetáculos do Oficina. Só que não eram os tais 'pequeno-burgueses' de direita, mas, em sua maioria, estudantes e intelectuais de esquerda, ou gente simpática à oposição. Mas, no centro dessa relação de hostilidade e agressão, havia um problema: os estudantes da platéia, irritados com os resíduos populistas do Arena, nos espetáculos do Oficina compunham um curioso paradoxo, já que não se identificavam com a platéia, mas com o agressor. Aqui também a sereia do Oficina apresenta de modo chocante e profanador, intencionalmente vulgar, cheio de clichês cômicos e caricatos, a desagregação burguesa e da classe média, mas o crítico marxista, desconfiado e com o pé atrás, não se deixa levar. E se pergunta se as profanações postas em cena pelo Oficina eram de fato chocantes e terríveis, ou apenas 'terríveis'.

Tem sua graça, e muito interesse, a distância crítica de Roberto Schwarz, no calor da hora, pensando os espetáculos do Oficina:

Terríveis ou 'terríveis'? Indignação moral ou imitação maligna? Irritação e indignação, levadas ao extremo, transformam-se uma na outra, uma guinada de grande efeito teatral, em que se encerra e expõe com força artística uma posição política. A platéia, por sua vez, choca-se três, quatro, cinco vezes com a operação, e em seguida fica deslumbrada, pois não esperava tanto virtuosismo onde supusera uma crise (Schwarz, 1978, p. 87).

Mais que isso, as montagens do Oficina se aproximavam da platéia, chegando perto e tocando os espectadores, de certo modo rompiam a caixa preta e fechada da cena burguesa. No entanto, é também com ironia que Schwarz nota que esse arranjo só funcionava do palco para a platéia. Se acontecesse o inverso, desmontaria a cena. Indo uma vez mais ao ponto, Schwarz resume bem a posição:

A colossal excitação e o mal-estar que se apossam da sala vêm, aqui, do risco de generalização: se todos se tocassem? Também nos dois outros exemplos violam-se tabus. Por sua lógica, a qual vem sendo desenvolvida ao que parece pelo Living Theater, este experimentos seriam libertários, e fazem parte de um movimento novo, em que imaginação e prática, iniciativa artística e reação do público estão consteladas de maneira também nova. No Oficina, no entanto, são usados como insulto. O espectador é tocado para que mostre seu medo, não seu desejo. É fixada sua fraqueza, e não o seu impulso. Se não ficar intimidado e tocar uma atriz, por sua vez, causa desarranjo na cena, que não está preparada para isto. Ao que pude observar, passa-se o seguinte: parte da platéia identifica-se ao agressor, à expensas do agredido (...) (Schwarz, 1978, p. 87-88).

Ou seja, que teatro libertário era aquele, que insultava a platéia, convidava para o jogo, mas bloqueava o movimento e o contato, tocando o espectador apenas em seu 'medo', não em seu 'desejo'? E, pior, criando na platéia não um movimento solidário, mas uma estranha maneira de se identificar com o agressor, às custas de quem estava sendo agredido. No vértice, estaria "o cinismo da cultura burguesa diante de si mesma". Não seria, portanto, um teatro político, mas uma maneira de se instalar "no descampado da ideologia burguesa", inventando e explorando jogos apropriados a esse terreno, tornando habitável e divertido o espaço do niilismo que resultou do golpe militar de 1964.

Pode-se argumentar que a intenção do Oficina era essa mesmo, cutucar o medo e provocar reações que trouxessem à tona uma estranha identificação com o agressor. É possível. Mas qual seria o ganho crítico do processo? Separar o que já estava mesmo separado? Bloquear ainda mais o que já estava de qualquer modo bloqueado? Ou, pior, reforçar ainda mais o movimento da dominação, que identifica de modo passivo o sujeito com o mais forte, com o próprio agressor? Haveria espaço para imaginar que esse processo perverso era intencional, apontando para fora da relação palco e platéia, indicando ao espectador, de modo cru, problemas que estavam fora do teatro, nas próprias perversidades da vida social? Talvez. Visto o problema desse ângulo, a análise poderia seguir outro rumo. Que não cabe discutir aqui e agora, e fica para outra ocasião.

Valendo notar que a crítica de Schwarz aos espetáculos do Oficina, como também ao Tropicalismo e suas alegorias, percebe sempre uma espécie de "má mimese", de representação pouco mediada, portanto ambígua e contraditória, com algo de "maligno" ao fundo, resultado da exposição crua e brutal dos contrastes e conflitos sociais a céu aberto, de modo direto e espetacular. Pode-se argumentar que não havia nada de maligno no Tropicalismo, no teatro, no cinema ou na canção popular. E a desconfiança aguda do crítico, tentando perceber um fundo fraco, apropriável pela via regressiva e fascista, não tinha muita razão de ser. Mas, seja como for, a composição da imagem tropicalista estava mesmo distante do racionalismo crítico, materialista e dialético, que orienta as análises de Schwarz. Mas daí não segue que essa crítica marxista fosse ortodoxa, como gostariam seus detratores. Bem ao contrário, tinha e teve sempre muito de heterodoxo, pesando e ponderando com muito cuidado dialético os termos dos problemas e das análises. Como o leitor há de ter notado, o argumento crítico é elaborado direita e à esquerda, não facilitando as coisas em nenhum nível, daí seu interesse.

Mas cabe um reparo, que talvez tenha sentido. O termo constante de comparação usado por Schwarz é o teatro de Brecht, é o movimento dialético do processo social trazido para a cena, alterando a própria cena, a relação com a platéia e o lugar social do teatro. O argumento é forte e funciona como contraponto ao longo de toda a crítica ao Tropicalismo, ao Oficina e ao Arena. Fica como o ponto mais avançado da consciência crítica e dialética da arte e do lugar social da arte, mas não há, ao longo de todo o ensaio, nenhuma análise do teatro de Brecht no Brasil. Isso viria depois, muito depois, de forma muito refletida, na análise que se lê em "Altos e baixos da atualidade de Brecht", que faz parte do livro Seqüências brasileiras (Schwarz, 1999c, p. 113). Mas aí já era depois da queda, muito longe do calor da hora.

Fechando o ensaio, Schwarz bate firme na própria noção de cultura brasileira, incluindo uma crítica bastante dura aos artistas e intelectuais da época. Em relação à cultura, a crítica vai nos seguintes termos:

Falamos longamente da cultura brasileira. Entretanto, com regularidade e amplitude, ela não atingirá 50.000 pessoas, num país de 90 milhões. É certo que não lhe cabe a culpa do imperialismo e da sociedade de classes. Contudo, sendo uma linguagem exclusiva, é certo também que, sob este aspecto ao menos, contribui para a consolidação do privilégio (...) (Schwarz, 1978, p. 92).

Rompida a relação com as massas trabalhadoras, parece que à cultura não restava outra alternativa que não fosse fincar pé no privilégio e na linguagem exclusiva.

No calor da hora, e dando uma boa medida da distância que separa o nosso presente daquele momento de crise aguda em nosso país, Schwarz (1978, p. 92) formula outra crítica muito dura, voltada agora para os intelectuais de esquerda: "Que interesse terá a revolução nos intelectuais de esquerda, que eram muito mais anticapitalistas elitários que propriamente socialistas? Deverão transformar-se, reformular as suas razões... A História não é uma velhinha benigna (...)" E conclui, lembrando a figura do 'fazendeiro do ar', tradicional na nossa literatura, centrada "no homem que vem da propriedade rural para a cidade, onde recorda, analisa e critica, em prosa e verso, o contato com a terra, com a família, com a tradição e com o povo, que o latifúndio lhe possibilitara. É a literatura da decadência rural" (Schwarz, 1978, p. 92). Naquela altura da crise, a ponta do processo estaria em outro vértice, bem apresentada no romance Quarup, de Antonio Callado, na figura do padre Nando: "Um intelectual, no caso um padre, viaja geográfica e socialmente o país, despe-se de sua profissão e posição social, à procura do povo, em cuja luta irá se integrar - com sabedoria literária - num capítulo posterior ao final do livro" (Schwarz, 1978, p. 92). Vale dizer, o intelectual que faz o movimento de uma traição de classe, aproxima-se do povo, e adere à luta armada, que é o movimento indicado pela espécie de conversão que o padre Nando representa em Quarup. O capítulo posterior ao último do livro, fechado o espaço público, cassadas as liberdades civis, desmontada a acumulação crítica, bem representada pela educação coletiva em processo interrompida pela ditadura militar, ampliou a derrota de 1964, já que os grupos da esquerda armada não tinham a menor chance contra o aparato da repressão e foram destroçados em pouco tempo. Não havia mais dúvida que a revolução tinha faltado ao encontro. Passados os anos, e pensando a partir do presente, faltou quele encontro, que parecia marcado, e se afastou do horizonte histórico da nossa época. A encruzilhada difícil e perigosa, onde foi preciso fazer escolhas extremas, estava desfeita.

Notas

Recebido em 01/04/2008

Aprovado em 02/06/2008

  • BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de História. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 222-234.
  • SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-69. In: O pai de família e outros estudos Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 52-71.
  • ______. O pai de família e outros estudos Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
  • ______. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1981a.
  • ______. A sereia e o desconfiado: estudos críticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981b.
  • ______. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.
  • ______. Seqüências brasileiras São Paulo: Cia. das Letras, 1999a.
  • ______. Os sete fôlegos de um livro. In: Seqüências brasileiras São Paulo: Cia. das Letras, 1999b. p. 46-58.
  • ______. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: Seqüências brasileiras, São Paulo: Cia. das Letras, 1999c. p. 113-148.
  • 1
    Professor Associado I da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-doutor em Letras Modernas pela Universidade de São Paulo (USP). <
  • 2
    Nota do Autor, que abre a publicação brasileira do ensaio "Cultura e política, 1964-69", no livro
    O pai de família e outros estudos, de Roberto Schwarz.
  • Endereço para correspondência:
    Rua Oliveira Rocha, 19, apto. 102
    Jardim Botânico, Rio de Janeiro, CEP 22.461-070.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Out 2008

    Histórico

    • Recebido
      01 Abr 2008
    • Aceito
      02 Jun 2008
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