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Construtores de casa e artífices de cidadania: modos cooperativos de trabalhar e viver

Constructors of houses and artifices of citizenship: cooperative ways to work and live

Resumos

Este artigo centra-se na análise de uma cooperativa da construção civil orientada por princípios da economia solidária. Buscou-se compreender em que medida essa experiência associativa, além de constituir uma estratégia de sobrevivência e de resistência diante do desemprego e subemprego, pode contribuir para a invenção de novas formas de trabalho e vida produtoras de saúde. Realizou-se um estudo qualitativo voltado ao conhecimento das principais questões que atravessam o processo produtivo cooperativo, sua viabilidade econômica e técnica e as relações estabelecidas entre os associados. Encontrou-se que o empreendimento rompe com a lógica habitual de trabalho implantada nos canteiros de obra, investe na qualificação de trabalhadores e expande um novo sentido formativo, de partilha, de sentimento associativo e de compromisso social com a comunidade local. Apesar das limitações decorrentes da falta de financiamento compatível com a especificidade de iniciativas dessa natureza, constitui uma referência exemplar de sucesso sob premissas da economia solidária.

cooperativismo; subjetividade; trabalhador da construção; economia solidária


This article focuses on the analysis of a civil construction cooperative guided by the principles of solidary economy. The goal was to understand to what extent this associative experience, in addition to building a strategy of survival and of resistance to unemployment and underemployment, can contribute to the invention of new forms of work and of life that can produce health. A qualitative study was carried out to get to know the main issues involved in the cooperative productive process, its economic and technical viability, and the relationships established among the members. It was found that the project breaks away from the habitual logic of work that is deployed at construction sites, that it invests in worker qualification, and expands a new qualification sense, one of sharing, of associated feeling, and of social commitment to the local community. In spite of the limitations derived from the lack of funding compatible with the specificity of initiatives of this nature, it is an exemplary reference of success under the premises of the solidary economy.

cooperativism; subjectivity; construction worker; solidary economy


ARTICLES

Construtores de casa e artífices de cidadania: modos cooperativos de trabalhar e viver

Constructors of houses and artifices of citizenship: cooperative ways to work and live

Silvana Mendes Lima1 1 Pesquisadora visitante da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), Rio de Janeiro, Brasil. Doutora em Ciências da Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). < sm.lima1960@uol.com.br> ; Carlos Minayo Gomez2 2 Pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Ciências pela Universidade de Salamanca (US), Espanha. < minayogo@ensp.fiocruz.br>

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Desembargador Itabaiana de Oliveira, 24, apto. 402 Icaraí, Niterói Rio de Janeiro, Brasil, CEP 24.230-135.

RESUMO

Este artigo centra-se na análise de uma cooperativa da construção civil orientada por princípios da economia solidária. Buscou-se compreender em que medida essa experiência associativa, além de constituir uma estratégia de sobrevivência e de resistência diante do desemprego e subemprego, pode contribuir para a invenção de novas formas de trabalho e vida produtoras de saúde. Realizou-se um estudo qualitativo voltado ao conhecimento das principais questões que atravessam o processo produtivo cooperativo, sua viabilidade econômica e técnica e as relações estabelecidas entre os associados. Encontrou-se que o empreendimento rompe com a lógica habitual de trabalho implantada nos canteiros de obra, investe na qualificação de trabalhadores e expande um novo sentido formativo, de partilha, de sentimento associativo e de compromisso social com a comunidade local. Apesar das limitações decorrentes da falta de financiamento compatível com a especificidade de iniciativas dessa natureza, constitui uma referência exemplar de sucesso sob premissas da economia solidária.

Palavras-chave: cooperativismo; subjetividade; trabalhador da construção; economia solidária.

ABSTRACT

This article focuses on the analysis of a civil construction cooperative guided by the principles of solidary economy. The goal was to understand to what extent this associative experience, in addition to building a strategy of survival and of resistance to unemployment and underemployment, can contribute to the invention of new forms of work and of life that can produce health. A qualitative study was carried out to get to know the main issues involved in the cooperative productive process, its economic and technical viability, and the relationships established among the members. It was found that the project breaks away from the habitual logic of work that is deployed at construction sites, that it invests in worker qualification, and expands a new qualification sense, one of sharing, of associated feeling, and of social commitment to the local community. In spite of the limitations derived from the lack of funding compatible with the specificity of initiatives of this nature, it is an exemplary reference of success under the premises of the solidary economy.

Keywords: cooperativism; subjectivity; construction worker; solidary economy.

Introdução

Neste artigo centramo-nos na análise de uma experiência orientada por princípios do que se nomeia, atualmente, como economia solidária. Propomo-nos a apontar em que medida essa experiência associativa e cooperativa, além de se constituir em estratégia de sobrevivência e de resistência diante do desemprego e subemprego, pode contribuir para a invenção de novas formas de trabalho e vida que sejam produtoras de saúde.

Os empreendimentos econômicos solidários abarcam um amplo leque de agrupamentos, sob a forma de empresas autogeridas pelos trabalhadores, pequenas e médias associações ou cooperativas de produção, comercialização e dos mais variados serviços; projetos comunitários e cooperativas agropecuárias. Essas experiências organizacionais, freqüentemente desenvolvidas com a intermediação e o incentivo de instâncias públicas, ONGs, sindicatos, organizações religiosas, universidades e agências internacionais, inscrevem-se hoje em torno da dinâmica das novas formas de solidariedade e compõem o campo da economia solidária (França, 2001).

As bases da economia solidária encontram-se já presentes na Idade Média, nas guildas, confrarias e corporações de ofício e compagnonnages (associações de solidariedade entre trabalhadores). No movimento associativista operário da primeira metade do século XIX, na Europa, emergiram, também, um grande número de experiências solidárias largamente influenciadas pelo ideário da ajuda mútua (o mutualismo), da cooperação e da associação. Representavam formas de resistência e proteção social, no contexto do nascimento do capitalismo, frente à situação de pobreza de amplas parcelas da população, da exploração do trabalho e do desemprego, enquanto iniciativas oriundas dos setores populares combinavam, ao mesmo tempo, na sua ação organizacional, dimensões sociais e econômicas sob um fundo de luta política.

Ao longo da história, no entanto, essas experiências, conhecidas como de economia social, foram mudando de fisionomia e acabaram transformando-se em unidades de produção ou de serviços nos moldes da economia de mercado.

No Brasil, emigrantes europeus fomentaram, no começo do século XX, a criação de cooperativas, principalmente de consumo, na cidade, e agrícolas, no campo. As de consumo eram, em geral, formadas por empresas com a finalidade de reduzir despesas dos trabalhadores com produtos básicos para o sustento familiar. Com a expansão das grandes redes de supermercados, a maioria dessas iniciativas refluiu. As cooperativas agrícolas foram se desenvolvendo, a ponto de algumas se transformarem em grandes empreendimentos agroindustriais ou comerciais (Singer, 2002).

Foi a partir da década de 1980 que, com o crescimento do desemprego e da exclusão social - aliado à limitada capacidade reguladora de um Estado que nunca foi caracterizado como de bem-estar social - a economia solidária adquiriu impulso. Assumiu a forma de cooperativas ou associações produtivas autogestionárias, de diferentes modalidades, que vêm se articulando e recebendo o apoio de diversas instituições. Tomando como valores centrais o trabalho - entendido como fonte de vida e não como mera mercadoria - o saber e a criatividade dos trabalhadores, a economia solidária orienta-se na busca da satisfação das necessidades básicas de quem trabalha por meio de relações sociais apoiadas na cooperação, reciprocidade, comunicação, no respeito à diversidade e na solidariedade (Lopes, 2001; Minayo-Gomez e Thedim-Costa, 2005; Barbosa, 2007). Tais são os traços que distinguem os empreendimentos solidários da empresa capitalista, assim como de algumas das iniciativas que compõem o leque de atividades da economia popular.

A grande relevância que tais formas de geração de trabalho e renda - não restritas à dimensão econômica - vêm adquirindo no país evidencia-se pelo elevado número de redes e fóruns articuladores desses empreendimentos, constituídos por representantes das instâncias governamentais e de organizações da sociedade civil, com diferentes finalidades e níveis de abrangência. A conformação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, com vistas a consolidar os princípios norteadores que caracterizam o setor, e a formular estratégias de ação frente à necessidades coletivas, reflete o alto grau de articulação atingido por esse novo sujeito social. Cabe destacar o papel crucial que o Fórum vem desempenhando como legítimo interlocutor com diversas instâncias públicas e, em particular, com o da Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego.

Nesse diversificado e heterogêneo universo de empreendimentos, contemplamos - como objeto de investigação - uma experiência que se rege pelos princípios norteadores do cooperativismo (Schneider, 1994), além de estar superando entraves econômicos, técnicos e de gestão que, freqüentemente, ameaçam ou inviabilizam a continuidade de iniciativas dessa natureza.

O estudo tem também como referência os pressupostos do campo denominado saúde do trabalhador (Mendes e Dias, 1991; Lacaz, 1996; Minayo-Gomez e Thedim-Costa, 1997), em que a análise da interseção das relações sociais e técnicas que configuram os processos de trabalho constitui a premissa fundamental na avaliação do quadro de saúde de um coletivo de trabalhadores. Diferentemente das empresas convencionais, no interior das unidades de produção associada, o controle das situações geradoras de agravos à saúde depende - em grande medida - da decisão dos próprios trabalhadores, em função das condições favoráveis - objetivas e subjetivas - presentes no andamento dos empreendimentos.

Sabemos que a produção de um processo de cooperação e autogestão nas formas de trabalho e vida tem sido, historicamente, um desafio. Na contemporaneidade, esse processo ganha novas nuances em virtude da tendência dominante de transformar o trabalho e a vida em uma sobrevida, conduzindo a existência ao eixo consumidor/mercadoria. Um eixo em que "tudo pode ser comprado, tudo é investimento financeiro e em que temos que fazer render nosso corpo, nossa comida, nosso tempo" (Pelbart, 2000, p. 25). Como o próprio autor aponta se, por um lado, nos encontramos sempre de sobressalto diante das formas de trabalho e vida que vêm sendo propostos, como, afinal, irmos além do susto e sondarmos gestos e atitudes de reinvenção da vida? Temos que estar atentos para os riscos e ofertas que o contexto atual tem nos lançado, posto que o capitalismo tomou de assalto a subjetividade - em uma dimensão nunca vista - enquanto uma matéria-prima essencial das relações de produção.

Vale ressaltar que, nesta pesquisa, a subjetividade é concebida como produção, sendo composta de diversos elementos, seja de natureza interna e/ou externa (afetivos, familiares, do corpo, da mídia, da linguagem, do desejo, entre outros). Essa heterogeneidade de elementos, em constante processualidade, faz da subjetividade uma instância múltipla indissociável de práticas sociais concretas (Caiafa, 2000).

Mas, se a nossa subjetividade está diretamente conectada com a máquina do capital, estamos sempre diante de um embate incessante entre criar formas de resistir ao modo de produção dominante ou, de maneira inversa, nos encontrarmos mais contaminados por ele. É nesse sentido que Foucault (2000) assinala a importância atual em reinventar a subjetividade mais do que decifrá-la. Isso implica em uma postura diferenciada, ou seja, o objetivo não seria descobrir o que somos, mas recusá-lo. É a partir dessa perspectiva que analisamos, dentre as experiências cooperativas, uma do ramo da construção civil que se destaca quando cria alternativas valiosas aos embates vividos por trabalhadores frente aos modos de vida vigentes. Na ultrapassagem de diversos dilemas, encontramos nela uma multiplicidade de vínculos, variações e peculiaridades estabelecidas por uma perspectiva laboral guiada nos fundamentos da economia solidária.

Trata-se, então, de um estudo de caso com uma abordagem eminentemente qualitativa que objetivou compreender, a partir do discurso dos cooperados e da observação e análise do processo de trabalho nas suas dimensões sociais e técnicas, os fatores que influíram na construção histórica, espacial e subjetiva dessa iniciativa e que novos sentidos são engendrados nas formas de trabalho e vida dos cooperados. Buscamos, ainda, analisar em que medida essa experiência vem conseguindo efetivar níveis de participação que ultrapassem a cultura do assalariamento e da submissão, de modo a fundar uma horizontalidade nas relações instituídas no processo de trabalho.

Iniciamos a investigação entrevistando a equipe de gestão do empreendimento para conhecer, entre outros aspectos, o contexto de criação e construção da cooperativa, sua estrutura organizacional, as estratégias de formação, as decisões que influíram na sua configuração atual, as principais questões que atravessam o processo de gestão do trabalho, tanto do ponto de vista de sua viabilidade econômica e técnica, como das relações com e entre os cooperativados.

Em seguida, empreendemos junto aos cooperados uma convivência diária a partir de visitas aos canteiros de obras. Uma convivência pautada, basicamente, em observações e diálogos informais com vistas a nos familiarizar com os diversos modos de trabalhar, inaugurados por eles. Posteriormente, realizamos entrevistas semi-estruturadas individuais e coletivas com a maior parte dos trabalhadores, a fim de detectar suas percepções sobre essa prática cooperativa e as possíveis mudanças ocorridas na maneira de ser, pensar e agir. Nessas entrevistas abordamos os seguintes assuntos: história ocupacional; antecedentes sociais; motivações para aderir à cooperativa e descrição de sua experiência como trabalhador associado (vantagens e inconvenientes, assim como os avanços profissionais e pessoais); participação anterior e atual em movimentos sociais, políticos, culturais, religiosos e organizações de classe. Para interpretação do sentido dessas práticas discursivas, recorremos á análise temática (Bardin, 1979), vinculando as falas - nas suas regularidades e diversidades - ao contexto em que foram produzidas.

Os resultados dessa investigação foram sendo restituídos à equipe de gestão do empreendimento ao final do processo de realização da pesquisa. No que diz respeito ao marco referencial, recorremos a um conjunto de autores que vem se dedicando á temática da economia solidária. Tendo-os como interlocutores de nossa discussão, pudemos acessar as bases conceituais dessa forma singular de geração de trabalho e renda, assim como os desafios que a economia solidária suscita. Esses desafios dizem respeito, especialmente, à viabilidade econômica e técnica que permita garantir a vida desses empreendimentos sobre as premissas que o fundamentam.

Sobre a cooperativa

Contar a história da cooperativa e seu momento inaugural implica, antes de tudo, remeter a um personagem que deu identidade institucional peculiar ao empreendimento. Algo que passa pela experiência e pela formação de uma pessoa que vem apostando na invenção de formas dignas e saudáveis de vida e trabalho. Com competência profissional e carisma, encontrou, na economia solidária, algumas respostas à questão: como organizar trabalho social numa perspectiva que não seja da ordem do precário?

Trata-se de Abel, um nordestino que, como tantos outros, em função de sua situação de pobreza, migrou para a cidade grande à procura de formas de sobrevivência. Seu sonho, como ele mesmo o descreve, era trabalhar, ter uma profissão e seu próprio negócio. Foi servente, meio oficial de carpinteiro, carpinteiro e mestre-de-obra. Nessa trajetória, conseguiu abrir seu próprio negócio, tornando-se proprietário de uma empreiteira no ramo da construção civil que conquista credibilidade no mercado local. No entanto, em determinado período da sua vida, se vê impossibilitado de trabalhar em função de problemas familiares que mudaram significativamente a maneira de conceber a forma de vida que até então exercitara.

Como ele mesmo nos refere, viveu um momento muito especial que o levou a refletir sobre o sentido de sua existência. Essa reflexão promove, para si, uma visão que problematiza um modo de ser capitalista que, segundo ele, personificara até então enquanto empreiteiro. A partir dessa problematização, firma a idéia de criar uma cooperativa de trabalho no ramo da construção civil, com base no seu conhecimento desse mercado, mesmo sem ter uma noção mais precisa do que essa perspectiva de trabalho representava.

Na ocasião, ele participava de experiências tecidas pela igreja católica e, especialmente, da Ação da Cidadania contra a miséria e pela vida criada em 1993, uma campanha que contava como um de seus expoentes o sociólogo Herbet de Sousa, o Betinho. No âmbito dessa campanha, Abel participa de uma noite de comemoração natalina e, em meio a uma reflexão sobre o sentido dessa data, os participantes expressam seu maior desejo acerca do que gostariam de ganhar de presente na noite de Natal. A resposta imediata e unânime surpreendeu Abel e lhe atingiu profundamente: "a grande maioria disse que queria uma casa". A expressão desse desejo coletivo de ter uma casa própria correspondia à situações habitacionais precárias de pessoas que residiam em uma das áreas mais pobres daquela localidade, tendo, inclusive, que pagar aluguel por barracos miseráveis.

A partir desse momento, iniciou-se uma grande mobilização que contou até com apoios externos de instituições religiosas internacionais. Conseguiu-se arrecadar fundos suficientes para a compra de terrenos e material para a construção de casas para essas famílias. Em pouco tempo, com a participação de moradores e voluntários - em mutirões - estava construída a cooperativa habitacional Shangrila que materializava o sonho da casa própria da população daquela área. Hoje o conhecimento acumulado ao longo dessa experiência é transmitido a vários grupos populares que pretendem formar cooperativas habitacionais.

Paralelo à questão da moradia para essas famílias, em situação de extrema pobreza, Abel trazia como preocupação a necessidade premente de propiciar-lhes meios adequados de subsistência. Dada sua "vocação de botar as coisas em prática", como ele mesmo diz, e com o apoio de uma ONG, se tornou precursor e idealizador dessa cooperativa no ramo da construção civil, situada no bairro de Jacarepaguá, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro.

A cooperativa foi constituída, inicialmente, por quatro trabalhadores. Com o paulatino crescimento do ramo, o número de associados foi aumentando e agregou, por um período, uma média de 38 cooperados, sendo que no ano de 2003 contava com 54 membros. A maioria se incorporou, sem nenhuma experiência prévia de trabalho, nesse setor, desempregados e com baixo nível de escolaridade. Alguns deles eram analfabetos e, inclusive, se encontravam em situações muito específicas, entre as quais a do uso abusivo de álcool e de drogas, que os colocavam segregados das formas de trabalho vigentes.

A cooperativa cresceu e é solicitada para assessorar outras iniciativas de trabalhadores com vistas à criação de cooperativas dentro e fora do setor da construção civil. Apóia também projetos de natureza diversa como, por exemplo, o Casa & Cidadania, para a construção de casas em regime de mutirão para os seus associados e outras pessoas que não possuem suas próprias habitações.

De acordo com o regimento interno do empreendimento, encontra-se estabelecida, como uma de suas normas, que o conjunto de atividades próprias à cooperativa deve ser realizado por três comissões: de obras e segurança; de formação e mobilização e de finanças, sendo obrigatória a participação dos associados em pelo menos um desse grupos de trabalho. Um regimento que, de certo modo, retrata um modo cooperativo de desenvolver um projeto de trabalho comum, ou seja, conta com instâncias de administração e de gestão regularmente eleitas pelos próprios cooperativados.

Cabe à comissão de obras e segurança encontrar terrenos passíveis de construção, elaborar projetos de obra e aprová-los. Na procura dos terrenos e na criação do projeto de construção, Abel ocupa um papel central, devido à sua larga experiência no ramo, contando também com o apoio de um arquiteto que, voluntariamente, assina e registra os projetos, dando-lhe o suporte legal. É também o próprio Abel quem localiza o investidor entre um círculo de pessoas sabedoras de que 'não terão aborrecimentos'. Garantida a infra-estrutura e a remuneração da mão-de-obra por contrato verbal, reúne-se a comissão de obras para fazer a seleção dos trabalhadores que participarão na nova frente de trabalho.

O investidor, por sua vez, se compromete a comprar o terreno e o material de construção, além de pagar a parte correspondente à mão-de-obra dos cooperados. Surpreendentemente, para os tempos atuais, o contrato com o investidor se dá, até hoje, de forma verbal: 'olho no olho', 'na base da confiança'. Como o próprio Abel diz: "se não confiar em mim e eu em você, nada feito." Esse tipo de contrato social baseado nas relações primárias de confiança, no valor da palavra, nos remete às sociedades de tradição oral, regidas por formas de solidariedade mecânica (Durkheim, 1995). Formas de atuação típicas das sociedades pré-capitalistas, onde os indivíduos se identificam através da família, da religião, da tradição, dos costumes. Pertencem a uma coletividade que reconhece os mesmos valores, os mesmos sentimentos, os mesmos objetos sagrados. Esse comportamento reflete a multiplicidade de modos de convivência que sempre existiram entre formas primitivas e modernas mais impessoais de contrato. Em virtude dessa prática - fundada também na credibilidade conquistada ao longo da sua trajetória profissional - e da qualidade dos serviços oferecidos, a cooperativa adquiriu um sólido reconhecimento no mercado.

Além de projetar a obra e estabelecer o contrato verbal, essa mesma comissão se responsabiliza por questões ligadas segurança no trabalho, orientando os cooperados para que tomem medidas de proteção, indicando a compra de equipamentos de segurança e fiscalizando as obras.

A comissão de mobilização e formação representa a cooperativa nos fóruns de economia solidária e em outros eventos. Enquanto responsável pela formação de seus associados, essa comissão organiza grupos de trabalho de capacitação técnica e de formação sobre cooperativismo. Promove, igualmente, ações de solidariedade e incentiva projetos para melhoria da qualidade de vida dos cooperados e de outros grupos populares locais.

O processo de qualificação dos cooperados combina a oportunidade do aprendizado do que seria uma espécie de 'treinamento em serviço', baseado na transmissão de conhecimentos dos mais experientes com o estímulo à participação em cursos, quando necessário. Em certa medida, essa estratégia se aproxima da que regia as antigas corporações de ofício, em evidente contraste com a prática habitual observada nos canteiros de obra de empresas da construção civil, onde as probabilidades de qualificação são extremamente limitadas.

Na cooperativa, um ajudante de pedreiro pode, gradativamente, galgar a função de coordenador de obra. Nesse processo de capacitação é respeitada a disposição individual de tornar-se ou não um profissional da construção. Há o caso particular do cooperado que se recusa a ser promovido e insiste: "me deixem em paz, pra mim está bom, o que eu quero é ser servente". Curiosamente, trata-se de um trabalhador que demonstra ter uma notável capacidade intelectual e reuniria todas as condições para ascender profissionalmente, mas prefere ser 'servente eterno'.

Constata-se também o fato de alguns cooperados, uma vez qualificados, "se destacam tanto que conseguem bom lugar no mercado de trabalho formal". Uma opção não questionada pelos coordenadores: "não pretendemos segurar ninguém, o que nós desejamos é a promoção das pessoas, seja onde for". Essa preocupação com o crescimento pessoal dos cooperados é a tônica dominante desse empreendimento e que é efeito, paradoxalmente de um sentido de pertença coletivo produzido nas relações de trabalho próprias à Cooperativa. Isso é visível nos casos em que os trabalhadores "saíram e voltaram com outra mentalidade, com maior responsabilidade, com maior compromisso com a produção", caracterizando, desse modo, que qualquer mudança seja de que natureza for, passa pelos indivíduos e seus processos singulares. Assistimos à criação de um espaço de liberdade, a uma incessante aposta no processo de emancipação do outro, sem condicionar o progresso individual ao compromisso de permanência na cooperativa.

Por fim, a comissão de finanças auxilia o tesoureiro na organização da contabilidade, na prestação de contas dos saldos da cooperativa e na previsão de despesas a serem aprovadas nas assembléias. As decisões de rotina são tomadas por um conselho deliberativo, devendo ser convocada a assembléia geral em casos de aprovação do orçamento geral, de integração de novos cooperados, de desligamento de membros, e em outras situações que o conselho considerar necessário.

Essa experiência tomada como dispositivo de análise é recheada de elementos significativos que permeiam a organização do trabalho e a construção de um processo de autogestão. Entretanto, do mesmo modo que outros empreendimentos dessa natureza, a Cooperativa enfrenta uma série de descontinuidades. Assim, entre linhas contínuas e descontínuas, assistimos à efetivação de modos cooperativos que engendram processos autônomos possíveis.

Modos cooperativos e processos autônomos

Entendemos que, sob o ponto de vista de uma economia que se pretende cooperativa e solidária, é de fundamental importância problematizar a lógica de encaixe das formas de trabalho e vida aos ditames do mercado. Tal problematização é um aspecto essencial nessa experiência, na medida em que ela fomenta um embate incessante entre fazer da existência diária, unicamente, um expediente para o mercado e gerar um processo contínuo de produção de novas relações sociais, capazes de interferir nos valores dominantes próprios da sociedade capitalista.

No caso dessa experiência em particular, trata-se de uma categoria de trabalhadores cuja força de trabalho é historicamente desqualificada e extremamente desvalorizada do ponto de vista salarial. Contrariamente a essa lógica de exploração, a cooperativa - conforme expressa Abel - "vem para fortalecer o trabalhador e a sua força de trabalho". Além do empenho em qualificar os trabalhadores, promove-se um reconhecimento de ordem econômica:

(...) há uma pregação aí de que cooperativa é para trabalhar baratinho. Nós somos contra isso. A cooperativa organizada de trabalhadores tem que se capacitar e entrar no mercado para mexer na distribuição de renda. O nosso preço no mercado talvez seja um dos mais caros. Nós nos capacitamos para isso (Abel).

Um bom sinal do sucesso dessa estratégia de qualificação está no fato de que freqüentemente as casas são vendidas antes que a obra tenha sido finalizada, dado o prestígio conquistado no mercado imobiliário local em virtude da qualidade das obras construídas, como pudemos verificar em contato com a principal corretora que intermedeia as vendas com os proprietários. Contam, inclusive, com uma pequena rede de clientes fixos sempre dispostos a estabelecer novos contratos. Um outro aspecto singular é que, findada a obra, oferecem, ainda, cinco anos de garantia.

Essa forma de trabalho, diferença de muitas outras iniciativas, porta viabilidade econômica, técnica e de mercado. No entanto, devido à falta de financiamento, a maior parcela dos ganhos fica nas mãos dos investidores. Daí que Abel conceba a situação do empreendimento como uma busca de "equilíbrio entre o capital e a força de trabalho."

Vislumbra-se também, nessa experiência, o exercício de uma liderança, de uma autoridade, reconhecida por todos que não é imposta, mas intensificada por seu carisma e sua experiência. Embora Abel insista em sair do lugar de liderança que lhe destinam, a maior parte dos cooperados acaba se espelhando nele. Sua prática entra em dissonância com a idéia de dirigente que estabelece ou faz cumprir normas, entendendo-se o poder como domínio, como mera relação de mando e obediência. É uma autoridade cujo poder é construído pelo fortalecimento do próprio grupo, pelo "agir em concerto" (Arendt, 2001), numa busca da autonomização do 'outro', a partir do espaço de trabalho.

Esse processo de autonomização diante das formas de trabalho e vida atuais dirige-se também ao acolhimento de novos cooperados que, como já mencionado, se encontram em situação de vulnerabilidade social extrema. Acolhimento que se traduz em uma política diária e que se ocupa não apenas em inserir tais trabalhadores na cooperativa, mas integrá-los a redes e formas de apoio social (tratamentos, medicamentos, local para morar), como afirma um dos cooperados:

Temos grande preocupação com o trabalhador. A gente cria normas para isso, como o projeto Casa & Cidadania, e se ocupa também com a questão da saúde, mas a questão da segurança no trabalho é um problema. Todos têm botas para trabalhar, mas as levam para o shopping e aqui vêm de chinelos (Cooperado a).

Também se observa a preocupação em ajudar outras entidades e organizações; inclusive, existe um pequeno fundo não só para apoiar o cooperado, mas, também, para ajudar quem precisa.

Há histórias emblemáticas sobre esse processo concomitante de inserção e integração de vidas que andam na "corda bamba e de sombrinha", como conta o próprio Abel ao referir-se à história de inserção de um associado, que ele conheceu quando estava envolvido com projetos sociais ligados à igreja. Esse associado morava numa ocupação num cômodo de 3x3, coberto de plástico preto, com a mulher e os dez filhos. Sensibilizados com a situação precária de moradia daquela família, acionou-se um mutirão e "criaram um fundo" para a construção de uma casa de três cômodos e convidaram-no para trabalhar no empreendimento. O processo de adaptação se deu de forma lenta e descontínua, já que "ele era alcoólatra mesmo". Eram freqüentes as faltas, os atrasos, "sempre com desculpas", "todo dia bêbado", o que exigiu da cooperativa, como descreve Abel, "muita paciência".

Assim, passados três meses desde a construção da casa, ele comunica que sua esposa havia vendido a casa por uma 'mixaria' e "com a metade do dinheiro compra doces para todas as crianças do bairro". Essa situação deixa a todos indignados, mas acabaram levando a família para uma das casas de Shangri-la. Como relata e insiste Abel: "olha só o grau de disponibilidade que a gente tem que ter nesses projetos", pois hoje é um cooperativado responsável a ponto de ser "o encarregado do condomínio maior que estamos construindo".

Um grau de disponibilidade e de aposta no outro que acata as situações caóticas não como uma distorção, mas como efeitos possíveis que emergem no confronto com as adversidades próprias de uma ordem social que não comporta essas vidas e nem pretende incluí-las. A cooperativa vai á contramão desse processo de exclusão dominante.

Um empreendimento que acolhe os desviantes3 3 A idéia de desvio que buscamos referendar no texto é compreendê-lo como algo que faz parte da vida, ou ainda, é uma das expressões em que a vida se manifesta. Neste sentido, os desvios não são concebidos como defeito de qualquer ordem, mas efeitos de uma situação política, econômica, social e subjetiva que produz, ela mesma, seus 'desviantes'. Portanto, a cooperativa, foco desse estudo, por compreender essa ordem de questões acata e, por isso mesmo, produz um exercício e uma experiência, cada vez mais rara nas formas de vida e trabalho atuais, nomeada experiência da alteridade. , os que extrapolam, os que se encontram desnorteados e em situações limites, demonstrando uma capacidade ímpar de se colocar no lugar do outro, ou seja, a disponibilidade em promover continuamente a experiência da alteridade. Do mesmo modo, essa forma de acolhimento compreende que seus associados não têm lugar no mercado. É o povo do ofício que, historicamente, sempre portou uma condição servil (Arendt, 1981).

No caso da Constrói Fácil, observa-se uma tentativa de ultrapassar essa condição servil a partir de uma perspectiva de criarem o próprio mercado, de modo a garantir, na medida do possível, um trabalho digno no setor da construção civil.

Para tanto, preservam as dimensões de ofício, a partir de uma série de procedimentos e técnicas operados nas formas de trabalho que colocam em análise aquilo que tecnicamente foi apropriado de forma normatizadora e que produz rupturas com os processos que se tornaram dominantes nas relações de trabalho nesse setor.

Assistimos a diferentes modos de se relacionarem com o tempo, com a forma de produzir, criando um conjunto de regras próprias de um coletivo orientado pelos diferentes ofícios exercidos na construção civil, como aponta um de seus cooperados ao afirmar que "(...) na empreiteira é o mesmo ritmo, direto. Aqui é de acordo com você. Se está cansado, faz um serviço mais leve. Lá não pode faltar porque mandam embora. Aqui posso ficar em casa. O encarregado não pega no pé, não dá esporro. Lá eles querem tirar o seu sangue". Além dessa relação diferenciada com o tempo para realizar as atividades de um setor que se caracteriza, predominantemente, por um tipo de trabalho pesado e de baixa remuneração, outros elementos, ligados à liberdade e à segurança de permanecer no emprego, são ressaltados:

A gente tem mais liberdade (...) O salário é maior do que se estivesse numa empresa. (...) Outro lado bom é a segurança. Numa empresa de construção civil, chega um certo tempo que eles mandam todo mundo embora. Aqui na cooperativa é diferente. Aqui o patrão é você mesmo. Aí você experimenta a sua norma. Fora que a gente ganha bem mais aqui do que lá fora. Profissional nenhum aí consegue tirar lá fora mais do que tira aqui, com certeza (Cooperado b).

Percebe-se que na forma de trabalho instaurada na cooperativa não há sanções, as regras não foram feitas para punir. No entanto, como afirma esse cooperado: "você experimenta a sua norma". É essa experimentação, viabilizada por um coletivo de trabalho, que parece permitir a cada um perceber a si próprio, inclusive de conceder-se uma espécie de "direito à preguiça, desde que não abuse", conforme nos comentava um coordenador de obra ao ver um trabalhador descansando num canteiro em pleno horário de trabalho. Uma norma fundada na eqüidade que produz, ao mesmo tempo, um espaço de liberdade entre escolher o tempo dedicado ao trabalho e assumir as conseqüências de tal opção.

Esse espaço de liberdade e de invenção das próprias regras acaba repercutindo, também, em algumas mudanças de comportamento operadas com relação aos filhos e a outros familiares: "a convivência lá em casa ficou mais coletiva. Eu não tinha a liberdade de conviver com eles (filhos) como eu tenho hoje. A gente pode se aproximar mais deles porque pode tirar um tempo se precisar". Também se observa uma inserção mais ativa na vida comunitária local, nas associações religiosas, culturais e de lazer e nos partidos políticos, como aponta um cooperado: "antes eu aproveitava a folga para fazer a minha casa. Agora, aproveito para participar das reuniões da igreja e também descanso. Se a folga é maior, saio e vou à praia".

Tal exercício pautado na liberdade em que se criam e recriam as relações de trabalho requer uma mobilização coletiva. Assumir a liberdade e o senso de responsabilidade que acompanha tal direção - quando se enseja produzir processos autônomos possíveis - é um grande desafio, posto que como recorda um cooperado: "(...) é difícil conscientizar o pessoal. Ninguém está acostumado a decidir e a ter responsabilidade." Estamos frente a uma questão que transcende o espaço dessa experiência. A prática de delegar responsabilidades aos outros é um problema civilizatório - de construção da democracia - que perpassa toda a vida social (Mills, 1972).

Essa dificuldade varia, em certa medida, de acordo com as diferenças existentes entre os cooperados nas suas trajetórias de vida. Assim, aqueles que já participaram de movimentos sociais de base, de associações ligadas à Igreja ou de partidos políticos se envolvem com maior empenho na construção de todo o processo autogestionário. Neles se percebe a vontade de construir uma democracia da vida cotidiana que se convém inventar com todas as dificuldades e os impasses que isso representa.

Entre esses, um dos impasses, que é lembrado por todos, se deu num momento muito especial da cooperativa em que conseguiram juntar uma reserva de recursos que permitiria conquistar a autonomia de trabalhar para si, sem depender de investidores. Como é de praxe nesses empreendimentos, a decisão sobre o destino desse fundo se deu na assembléia de fim de ano quando se delibera sobre a utilização das denominadas 'sobras', que correspondem ao saldo existente, uma vez cobertas todas as despesas, inclusive as 'retiradas' semanais. Nesse empreendimento, os valores das retiradas variam de acordo com a função desempenhada e o número de horas trabalhadas4 4 O regime de trabalho da cooperativa é o que comumente existe na legislação brasileira: 40 horas semanais. Mas qualquer mudança pode ser decidida em assembléia, posto que as pessoas podem, em circunstâncias particulares do momento da obra, ou por vontade própria, trabalhar mais ou menos horas. Ninguém os obriga. Já as 'sobras dos ganhos', ao final do ano, são distribuídas igualmente para todos de acordo com as horas trabalhadas, independentemente da função. Acreditamos que nessa forma de distribuição eqüitativa e justa está uma forma de solidariedade. . Entretanto, para a divisão das sobras de fim de ano, o único critério seguido é o número de horas. A adoção desse critério foi uma forma de valorizar e reconhecer a dedicação de todos, embora, inicialmente, encontrou-se forte reação de cooperados mais antigos e experientes que se consideravam injustiçados.

As propostas apresentadas na assembléia apontavam, de um lado, para que as sobras fossem integralmente divididas no grupo, sendo que cada associado decidiria sobre o destino que daria á sua parte e, de outro, havia aqueles que desejavam manter as retiradas habituais e aplicar o valor restante na compra de outro terreno, de modo a se tornarem mais independentes com relação aos investidores. Não havendo consenso, acionou-se um processo de votação, sendo decidido, por maioria dos votos, que o montante total seria dividido entre as partes, conforme as horas trabalhadas.

Esse acontecimento é descrito, por alguns de seus associados, como a perda da possibilidade de conquistarem uma maior autonomia da cooperativa e um indicativo da dificuldade dos trabalhadores em aderirem a uma iniciativa de caráter coletivo. No entanto, para a grande maioria dos cooperados, que, naquele momento, optou pela retirada total do saldo acumulado, suas prioridades se dirigiram para outros tipos de interesses como o de viajar para o norte do país, região de onde advém grande parte dos cooperados, ou de montar seu próprio negócio. Podemos traduzir tal tomada de decisão, sob certo ângulo, dentro de uma perspectiva mais individualista em contraponto com a lógica solidária. No entanto, passível de ser produzida num modo de ser dominante que apregoa tais valores e que, também, atravessa as formas de vida e de trabalho dos cooperados.

Tais impasses trazem a tensão vivida por um líder democrático como Abel, que oscila entre dois extremos. De um lado, compreender os limites e a realidade da maioria das pessoas que compunham a cooperativa, para os que "a necessidade fala mais alto e não adianta ter dinheiro no fundo se em casa não tem geladeira"; de outro, acatar uma decisão que comprometia a expectativa de avançar na consolidação da autonomia econômica do empreendimento.

Os efeitos dessa precipitação se fazem presentes na atualidade quando se deparam com a dificuldade de retomar essa via da autonomia do empreendimento e, do mesmo modo, tais efeitos dão visibilidade ao desconhecimento dos riscos que tal decisão portava, a respeito de uma liderança para com uma decisão de natureza coletiva e à fragilidade de uma experiência com pouco tempo de gestação.

Nesse sentido, a produção da autogestão desses empreendimentos econômicos solidários tem se deparado com determinados entraves, entre esses, a carência de recursos materiais que os impedem de promover inovações tecnológicas e de efetuar um controle mais efetivo dos riscos e, sobretudo, a dificuldade de acesso a créditos e a financiamentos, cuja superação possibilitaria atingir objetivos satisfatórios.

Apesar desse episódio e de todos os entraves, encontram-se, nos relatos dos cooperados, algumas tentativas em definirem o significado de uma experiência que busca incorporar uma perspectiva autonomista comparando-a com outras formas de inserção ao trabalho mais tradicional em que apontam suas vantagens e desvantagens, a saber:

(...) como empregado, você está sempre enriquecendo cada vez mais o outro. Ele vai crescendo. Por mais que você produza algo de valor, você fica na mesma e só o patrão que enriquece. Aí você praticamente está sendo um escravo dele. Quando chega ao final do ano você recebe o 13º, o mesmo salário que você ganha. Não vejo vantagem (Cooperado c).

Essas diferenças ganham visibilidade quando o tema é liberdade: "não tem dinheiro que pague essa liberdade que a gente tem de trabalhar. Não tem que aturar patrão. Na empresa, se você faz alguma coisa errada, você está ferrado. Aqui a gente tem direito de errar e consertar o erro." No entanto, um aspecto apontado como desvantajoso é aquilo "(...) que tem em algumas empresas e que não tem na cooperativa é um plano de saúde".

Embora muitos que participam hoje do empreendimento tenham sido inseridos sem compreenderem nada sobre cooperativismo, atualmente entendem o termo "(...) como algo que é nosso, onde não tem patrão; trabalha-se para si mesmo; tudo o que se faz trará benefício ou prejuízo para o grupo. Por isso não pode desperdiçar e tem que dividir". Nessa divisão, a sobra final é de todos. Na firma é tudo do patrão. Seu trabalho vai de mão beijada para os outros (...). Aqui, se eu chegar atrasado, o pessoal não critica. Na firma é cheio de regrinhas. Não pode falar o que quer." Seguindo a mesma lógica, um outro associado afirma que "(...) cooperativa é um grupo em que cada um trabalha para ajudar o outro. Cada um faz a sua parte ajudando. Tem também a divisão no final do ano. Muitos não entendem o que é isso".

É compreensível essa dificuldade de entender um modo cooperativo de trabalho, pois contrasta com a sujeição própria da cultura do assalariamento, e não propicia determinados direitos sociais, como expressa um associado:

(...) existe muita diferença. A carteira assinada dá muitas coisas que aqui não tem... Não tem direito a um PIS, um fundo de garantia, uma féria. Não tem nada. Aqui a gente ganha até mais. Aqui tem mais liberdade. A gente trabalha para a gente mesmo. O ganho depende da produção de cada um (Cooperado d).

Porém, percebemos uma incorporação gradativa da proposta autogestionária onde se cria um espaço de trabalho satisfatório, tornando-se preponderante um bom convívio com as diferenças existentes entre eles. Diferenças próprias a um coletivo formado, predominantemente, de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, alijadas dos serviços básicos como saúde e educação e que não logram inserção no mercado de trabalho. Neste sentido, a importância de uma liderança, tal qual exercida por Abel, junto a uma população que sofre todas essas adversidades, que traz de forma emblemática a singularidade de um empreendedor cujas ações se voltam para a invenção de novas formas de vida e trabalho. Suas ações parecem comportar e compreender que:

Existem virtualidades presentes num estado de oferecimento, enganches, atualizações, proliferações de onde cada um, indivíduo ou parte de um indivíduo em conexão com parte de um outro, extrai e constrói a sua terra natal, por mais imaterial que ela seja, a partir da qual certos processos de subjetivação podem desdobrar-se e ganhar consistência (Pelbart, 1993, p. 53).

Construir essa terra natal, considerando esse campo de virtualidades, onde o tempo é vivido como uma abertura, uma indeterminação: eis o exercício próprio a uma experiência que acata o caráter processual inerente à própria vida, abrindo todo um campo de possíveis. Esse campo de possíveis é expresso por Abel quando se refere a projetos futuros com relação à cooperativa e quais as perspectivas de mudança que ele vislumbra:

Muitas coisas. A gente nunca aprende tudo. Tem uma coisa que eu gostaria muito de fazer com a cooperativa que é desenvolver um projeto que beneficia a ecologia, que preserve a saúde. Queria também que a gente pudesse usar a tecnologia; mas uma tecnologia que beneficia o homem, uma tecnologia que não tire o trabalho do homem; que sirva para melhorar a retirada, a saúde, para o bem-estar das pessoas. Mas com as finanças da cooperativa ainda não dá (Cooperado e).

Nessa direção, a cooperativa extrapola uma acepção de trabalho apenas como meio de sobrevivência e, embora historicamente as atividades que desenvolvem portem, na sua natureza, uma condição servil, imprime e expande um novo sentido formativo, de partilha, de sentimento associativo, de convivência social e comunitária.

Considerações finais

Tratar a composição saúde, trabalho e economia solidária implica uma tarefa complexa. Tal complexidade advém, primeiramente, quando se pretende produzir uma alternativa econômica mais solidária, autônoma, justa e participativa dentro de uma lógica neoliberal, que elege o mercado como regulador exclusivo das necessidades sociais.

Formulada essa questão, não podemos desconhecer alguns embates que se situam entre duas posições extremas. De um lado, aqueles que se colocam de forma mais crítica frente à economia solidária, apontando que as experiências promovidas nessa área - enquanto formas de geração de emprego e renda-se limitam a administrar os estragos produzidos pelo capital, substituindo, inclusive, um papel que seria atribuição do Estado; de outro, os que a consideram uma economia alternativa, orientada por valores não mercantis e mesmo avessa ao capitalismo, portadora de princípios capazes de mudar e transformar o sistema de produção dominante.

Assim, na contestação ao modo de produção capitalista, alguns de seus arautos incorrem, por vezes, no equívoco de pretender substituir o modelo liberal centrado na universalização do mercado pela utopia solidária baseada no antimercado (Coraggio, 2001; Catani, 2003). Ou, segundo questiona Antunes (1999), como uma alternativa real para a transformação da lógica do capital e do seu mercado. Embora caibam inúmeras indagações sobre o futuro desse universo complexo e heterogêneo, as experiências atuais já colocam desafios suficientes para se materializar um projeto comum capaz de fortalecer e ampliar as iniciativas do setor.

Num momento histórico em que a maior parte da força de trabalho situa-se fora do mercado formal, o movimento da economia solidária pode representar não apenas um fenômeno passageiro frente à exclusão social, tal qual vivido em épocas anteriores. Se considerarmos o que vem acontecendo em diversas experiências internacionais, ele apresenta claros indícios de um novo estilo de vida, com grande potencial de melhorar, significativamente, o padrão de vida dos participantes nos empreendimentos e de lhes proporcionar uma inserção social mais justa e igualitária, que entendemos como produtora de saúde. Uma produção da saúde, que comporta um ideário de ajuda mútua, de cooperação e de associação e que resiste à tendência dominante de reduzir a existência à lógica do mercado e do consumo, excluindo, por meios diversos, aqueles que não se encaixam nos moldes pós-capitalistas em curso.

Assim, o estudo dessa experiência, em particular, se configurou numa oportunidade única para reunir elementos elucidativos sobre as possibilidades de incorporação das premissas do campo da saúde do trabalhador, quando se interfere nas condições e relações de trabalho sem as mediações intrínsecas à valorização do capital. Sua análise pode oferecer alguns marcos de referência para subsidiar negociações que visem à melhoria dos processos laborais nas empresas em que a ingerência dos trabalhadores decorre, fundamentalmente, da correlação de forças vigente entre capital e trabalho.

A experiência analisada neste estudo porta algumas características ímpares dos empreendimentos cooperativos e solidários. Alia-se a busca de eficiência e viabilidade econômica à autonomia de gerir o próprio empreendimento e uma atitude de responsabilidade e envolvimento social que traz, como alguns de seus efeitos, a obtenção de benefícios no plano da educação, da qualificação profissional, das formas de sociabilidade, enfim, no plano da produção de novas subjetividades.

Se considerarmos os desafios de empreendimentos dessa natureza diante das formas atuais impressas pelo capital, compreenderemos que a cooperativa, foco deste estudo, destaca-se como uma experiência singular, dada a forma de organização de seu trabalho diário, a sua perspectiva de inclusão, de preocupação com o indivíduo e com a comunidade em volta, como, por exemplo, na construção de moradias como é o caso do Projeto Casa & Cidadania. Nessa direção a experiência, do nosso ponto de vista, ganha relevância se comparada com estudos que nós mesmos vimos realizando com outras iniciativas de economia solidária e, sobretudo, com empresas tradicionais de construção civil.

Embora a cooperativa busque exercitar todas as dimensões de um coletivo pautado por um processo de autogestão e constitua uma experiência de sucesso, as dificuldades de acesso a linhas de crédito, compatíveis com a realidade econômica do empreendimento, colocam em risco sua própria continuidade nos moldes atuais. Nesse sentido, há necessidade - como aponta Singer (2004) - da criação de um outro sistema financeiro solidário, popular e comunitário, voltado para os diferentes empreendimentos da economia solidária que estão sendo desenvolvidos em várias partes do Brasil.

Considerando esses moldes atuais, constatamos que o capital tem-se apropriado da subjetividade de forma inusitada, mas, como contrapartida, a "subjetividade é ela própria, um capital que cada um dispõe com conseqüências políticas a determinar" (Pelbart, 2000, p. 42). Nesse sentido, percebemos que no decurso seguido pela cooperativa cria-se um movimento incessante de acreditar e desacreditar dessas verdades, produzidas pelo capital na sua forma atual, tão fortemente estabelecidas. Nesse movimento, inverte-se o jogo proposto e, ao invés de pensar a vida como um mercado de variedades, esses trabalhadores têm se esforçado em produzir um modo coletivo e solidário de trabalho que aposta na variação das formas de vida.

Notas

Recebido em 27/03/2008

Aprovado em 18/06/2008

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  • ______. A economia solidária no governo federal Boletim de mercado de questões para a construção do documentário, 2004.
  • 1
    Pesquisadora visitante da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), Rio de Janeiro, Brasil. Doutora em Ciências da Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). <
  • 2
    Pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Ciências pela Universidade de Salamanca (US), Espanha. <
  • 3
    A idéia de desvio que buscamos referendar no texto é compreendê-lo como algo que faz parte da vida, ou ainda, é uma das expressões em que a vida se manifesta. Neste sentido, os desvios não são concebidos como defeito de qualquer ordem, mas efeitos de uma situação política, econômica, social e subjetiva que produz, ela mesma, seus 'desviantes'. Portanto, a cooperativa, foco desse estudo, por compreender essa ordem de questões acata e, por isso mesmo, produz um exercício e uma experiência, cada vez mais rara nas formas de vida e trabalho atuais, nomeada experiência da alteridade.
  • 4
    O regime de trabalho da cooperativa é o que comumente existe na legislação brasileira: 40 horas semanais. Mas qualquer mudança pode ser decidida em assembléia, posto que as pessoas podem, em circunstâncias particulares do momento da obra, ou por vontade própria, trabalhar mais ou menos horas. Ninguém os obriga. Já as 'sobras dos ganhos', ao final do ano, são distribuídas igualmente para todos de acordo com as horas trabalhadas, independentemente da função. Acreditamos que nessa forma de distribuição eqüitativa e justa está uma forma de solidariedade.
  • Endereço para correspondência:
    Rua Desembargador Itabaiana de Oliveira, 24, apto. 402
    Icaraí, Niterói
    Rio de Janeiro, Brasil, CEP 24.230-135.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Out 2008

    Histórico

    • Aceito
      18 Jun 2008
    • Recebido
      27 Mar 2008
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