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Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetórias

REVIEWS

Gustavo Corrêa Matta

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil<gcmatta@fiocruz.br>

Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetórias. Telma Maria Gonçalves Menicucci. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007, 320 p.

O livro de Telma Menicucci, pesquisadora da Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais, é fruto de sua tese de doutorado em ciências humanas - sociologia e política - , defendida em 2003 na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Pelo título do livro, podemos perceber a amplitude do tema abordado e a densidade do trabalho de pesquisa realizado pela autora.

Menicucci faz um resgate histórico e institucional da política de assistência à saúde no Brasil, a partir da dualidade público/privado no sistema de saúde brasileiro desde os anos 60 até o início do século XXI. Neste sentido, seu trabalho tem a virtude de examinar de forma original e corajosa um tema complexo e espinhoso para os defensores da reforma sanitária brasileira e do Sistema Único de Saúde (SUS).

Trata-se de uma obra de fôlego, uma vez que não se resume a uma análise puramente histórica como o título do livro poderia sugerir. A abordagem metodológica apresenta interpretações sobre as contradições entre o público e o privado nas políticas de saúde de forma inovadora, opondo-se a operações analíticas totalizantes como interpretações superestruturais que determinam os impasses para a consolidação do SUS como um sistema universal e igualitário decorrentes da implantação do ideário neoliberal dos anos 80 e 90, e das influências dos organismos internacionais, como o Banco Mundial, que têm como modelo as políticas sociais focalizadas, a mercadorização e a segmentação dos serviços e ações de saúde.

A perspectiva crítica é ancorada, de um lado, pelo chamado neo-institucionalismo e, por outro, pela sociologia histórica, produzindo argumentos e análises que articulam atores, instituições e conjunturas históricas e sociais.

A influência teórico-metodológica do neo-institucionalismo aponta para a crítica das análises excessivamente externalistas, no sentido de uma dependência das instituições e organizações sob os processos sociais, políticos e ideológicos mais amplos. Desta forma, a valorização dos processos empreendidos pelas instituições e atores condiciona o que a autora conceitua como 'dependência de trajetória' (path dependence), isto é, a existência de arranjos e padrões institucionais preexistentes que estruturam o comportamento político dos atores e influenciam nas tomadas de decisão, na organização e na condução da política.

Tomando como objeto de estudo a assistência à saúde no Brasil, Menicucci afirma que o contexto atual é dependente "das políticas ou escolhas anteriores, particularmente a partir da década de 60" (p. 18), quando um padrão de relação com o privado foi aperfeiçoado e institucionalizado, constituindo interesses, organizações e concentrando recursos políticos que estruturaram a dualidade público/privado da atenção à saúde no país.

O estabelecimento e a estruturação de um sistema privado, desde as caixas de aposentadorias e pensões nos anos 30, com as primeiras formulações das políticas de saúde no Brasil, vieram configurando um padrão institucional e cognitivo, fomentando regras e idéias, bem como constituindo grupos de interesses sobre os serviços e ações de saúde. Nos anos 60, quando se instaurou uma assistência médica de caráter empresarial tanto na prestação de serviços públicos quanto na criação de um sistema privado independente - incentivado pelo caráter meritocrático das formas de proteção social - foi estabelecido um padrão de comportamento político e institucional que vem sendo desenvolvido e reforçado, com grande dificuldade de reversão.

A hipótese defendida pela autora é que o fortalecimento do setor privado no Brasil "não decorre de uma tendência atual de privatização na saúde (...). O crescimento do setor privado - traduzido seja na prestação de serviços por unidades privadas, seja na existência de formas privadas de financiamento, gestão e acesso a serviços de saúde - é anterior ao movimento de valorização do mercado, fruto das reformas econômicas dos anos 90 no país (...). O desenvolvimento recente da política de saúde encontra seus fundamentos no próprio formato institucional da prestação da assistência à saúde no Brasil, caracterizada, desde sua constituição, por formas híbridas, com justaposição ou articulação de mecanismos privados e públicos, quando foram feitas escolhas por formas privadas de assistência" (p. 45-46).

Isso não significa que Menicucci desvalorize ou minimize as conjunturas econômicas e políticas do final do século XX, onde os ajustes estruturais nas economias periféricas e a retração dos Estados de bem-estar social afetaram profundamente o ideário universalista e humanista das políticas públicas no Brasil e no mundo. Mas trata-se de considerar outras variáveis que estruturaram as formas de assistência à saúde no país e que, a partir dessas influências internacionais, não determinaram uma mudança de rumo, mas reafirmaram e aprofundaram uma lógica político-institucional já existente.

A instituição do SUS no final dos anos 80, apesar de trazer mudanças profundas na organização do sistema de saúde no Brasil, pautadas pela noção de direito à saúde, pela equidade e pela participação popular, só foi possível devido à crise do sistema previdenciário e à conjuntura de abertura política mediante o restabelecimento do Estado de direito no país. Mas o legado da dualidade da assistência à saúde, a ausência de uma rede própria para prestação de serviços públicos de saúde e as reformas econômicas e gerenciais sofridas durante os anos 90 apenas reforçaram a trajetória da assistência á saúde no Brasil, configurando uma dupla identidade do sistema de saúde brasileiro: uma face pública universal, voltada para as populações excluídas, e uma face privada mercadológica, dirigida aos segmentos produtivos da sociedade.

A relevância do estudo em tela remete à diversas possibilidades de análise da trajetória das políticas de saúde no Brasil, podendo ser lido tanto numa perspectiva histórica quanto sociológica, no sentido de uma sociologia das instituições de saúde no país. Se, por um lado, a constatação das dificuldades e constrangimentos da convivência da dualidade público-privado no país não é nova, por outro, a valorização e a apresentação de novas estratégias metodológicas para analisar essas dificuldades enriquecem o campo da saúde coletiva, demonstrando claramente seu caráter interdisciplinar, produtor de novas ferramentas para a análise crítica, e sua tentativa de superação.

Apesar de a autora dialogar em vários momentos do livro com possíveis críticos em relação à perspectiva teórico-metodológica adotada, é impossível negar a aparência estruturalista e behaviorista de seu trabalho. Estruturalista, no sentido de identificar padrões, estruturas lógicas e sociais que condicionam os processos políticos ao longo da história, tornando complexa e obscura suas formas de superação. E behaviorista, devido às operações de condicionamento e reforço dos atores e práticas sociais, determinando condutas, comportamentos e escolhas num processo cognitivo de reforço às práticas instituídas.

Essas perspectivas são fortalecidas pela ausência de um debate formal com o institucionalismo francês, que identifica as instituições como redes lógicas de saber-poder, inaugurado por Michel Foucault e apropriado pelo trabalho, também citado pela autora, de Madel Luz em As instituições médicas no Brasil: instituição e estratégia de hegemonia (Luz, 1979).

A organização de instituições portadoras de um projeto de medicalização da assistência à saúde no Brasil e suas relações com o complexo médico-industrial configura uma rede de saberes e práticas que institui estratégias de hegemonia que ajudam a qualificar a dualidade publico/privado na saúde. A medicina, enquanto uma prática discursiva, ou seja, como uma prática de poder, é fundamental para a compreensão da dependência de trajetória defendida pela autora, dependência que vem dilapidando as iniciativas de políticas públicas e igualitárias de saúde.

Para todos aqueles que se preocupam com o destino das políticas de saúde no Brasil, o livro de Menicucci é fundamental. Possui uma base empírica que aponta tanto para a possibilidade de redescrição das variáveis que influenciam o processo político, como para a ampliação do debate em torno do direito à saúde e seus constrangimentos históricos e institucionais.

  • LUZ, Madel Therezinha. As instituições médicas no Brasil: instituição e estratégia de hegemonia. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2012
  • Data do Fascículo
    Out 2008
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