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O público e o privado na história da educação brasileira: concepções e práticas educativas

REVIEWS

Marco Antônio Santos

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil<santosma@fiocruz.br>

O público e o privado na história da educação brasileira: concepções e práticas educativas. José Claudinei Lombardi; Mara Regina Martins Jacomeli; Tânia Mara da Silva (Orgs.). Campinas: Autores Associados; HISTEDBR; Unisal, 2005, 186 p. (Coleção Memória da Educação).

O livro tem o mesmo título da III Jornada do Grupo de Estudos e Pesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil" (HISTEDBR), da Faculdade de Educação da Unicamp. O HISTEDBR funciona há mais de vinte anos, publica uma revista online (www.histedbr.fae.unicamp.brrevista/edicoes/29/index.html) e tem como objeto de investigação a História da Educação. Este coletivo de pesquisadores se define pela sua relação com este campo, no qual a temática da educação é trabalhada a partir da História, com os métodos, teorias e características próprias dessa área do conhecimento. O HISTEDBR conta com três GTs temáticos e a ele estão vinculados 29 GTs de diferentes universidades em todo o país.

O livro reúne textos apresentados na referida jornada: o da conferência de abertura e os das três mesas-redondas que enfocaram respectivamente "O público e o privado como categoria de análise em educação", "O público e o privado: teorias e configurações nas práticas educativas" e "A problemática do público e do privado na história da educação brasileira".

Na conferência de abertura, Carlos Roberto Jamil Cury parte da atuação histórica do que chama 'quatro senhores' a que a educação obedeceu no Brasil - Estado, família, iniciativa privada e Igreja católica - para, em seguida, analisar as mudanças na legislação educacional brasileira, problematizando a liberdade de ensino e a ação do Estado desde os tempos da colônia até a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996. Aborda a mercantilização da educação ao citar a resolução do Conselho Federal de Educação (CFE) de 1974, segundo a qual "as associações criadas para a manutenção de universidades não poderão ter fins lucrativos" (p. 20), entendimento confirmado por parecer de 1979 do CFE, de acordo com o qual "tornou-se tradicional, na jurisprudência do Conselho, a afirmativa de que a atividade educacional deve ser, necessariamente, uma atividade não lucrativa" (p. 21). A LDB de 1996 introduz uma modalidade de instituição privada de educação escolar - as de finalidade não-lucrativa. Segundo Cury, por oposição lógica, haveria outra espécie das que podem ter finalidade lucrativa, como se depreende de outros artigos da LDB e da Constituição, indicados no texto.

Na primeira mesa-redonda, "O público e o privado como categoria de análise em educação", Antonio Joaquim Severino relaciona as categorias de público e privado no contexto da educação brasileira a três momentos histórico-sociais. O primeiro se estende do período colonial até a revolução de 1930. Nele, a categoria de público parece se esvair, já que a educação fica totalmente entregue ao domínio da Igreja. A Proclamação da República, mesmo com os seus alegados fundamentos positivistas, não representou uma ruptura na política educacional. O segundo momento se estende de 1930 até 1964 e é marcado pelo avanço do capitalismo, da indústria e da urbanização. "Neste contexto, a dimensão pública afirma-se como uma alternativa autônoma e positiva para a condução das políticas sociais, em geral, e da política educacional, em particular" (p. 32). O novo modelo de organização social entra em conflito com a tradição ideológica da Igreja católica, o Estado brasileiro se consolida e implanta o sistema público de ensino. O conflito e o compromisso entre católicos e liberais acaba por colocar em cena um terceiro grupo - os empresários da educação - que se tornará hegemônico a partir da década de 1970. O Estado militar implantado em 1964 inaugura um terceiro momento em que 'público' é caracterizado pela "identificação do civil ao mercadológico, ou seja, a sociedade civil não é mais a comunidade dos cidadãos, mas a comunidade dos produtores e consumidores em relação ao mercado" (p. 33). O autor aponta um deslizamento do sentido de 'público' entendido como equivalente a estatal e 'privado', não-estatal, "uma mudança empobrecedora, decorrente da idéia de que caberia ao aparelho estatal cuidar do interesse comum, administrá-lo" (p. 31). Apesar da utopia iluminista da modernidade a respeito de um Estado a serviço da justiça e da eqüidade, "trata-se, no Brasil, de uma instituição [o Estado] que, apesar de estatal, não é efetivamente pública, é autenticamente privada, apesar de custeada com o sangue e o suor do trabalho realizado pelo conjunto da sociedade civil" (p. 36-37). Daí, segundo o autor, a penumbra envolve o repasse das verbas públicas para as instituições privadas, os pequenos avanços registrados pela LDB, comprometida com a dicotomia público/privado, disfarçando mal sua verdadeira opção.

É de Ester Bufa o segundo texto da primeira mesa-redonda. A autora afirma a fecundidade das categorias público e privado para a compreensão da educação brasileira e apresenta um estudo histórico dos textos publicados sobre a temática e são comentados os trabalhos de vários autores. Nos debates ocorridos nos anos de 1930 e, mais tarde, nos anos de 1950-1960, o entendimento do que fosse público e privado era claro: "Público era o ensino mantido com recursos governamentais e privado era o ensino mantido por particulares - igreja, ordens religiosas ou proprietários leigos." (p. 51). Mais tarde, nas discussões da assembléia constituinte, em 1987, são feitas distinções entre público (destinado ao conjunto da população), estatal (mantido pelo Estado), privado (regido pelo lucro) e privado confessional, filantrópico, comunitário. Bufa encerra referindo-se aos debates na Organização Mundial do Comércio (OMC) a respeito da proposta de quebra das normas atuais, possibilitando que os serviços de ensino sejam comercializados livremente, facilitando a atuação de grupos educacionais estrangeiros e a aprovação de cursos a distância, um indicativo, pelo próprio fórum escolhido para o debate, de como tem sido tratada a educação no capitalismo.

No último texto da mesa-redonda, José Claudinei Lombardi discute se as palavras 'público' e 'privado' podem ser consideradas categorias de análise para uma perspectiva metodológica e teórica orientada pelo marxismo. Parte de uma reflexão etimológica, histórica e filosófica sobre palavras, conceitos e categorias, e considera que o sentido de público e privado só se torna inteligível na época moderna, com o advento do capitalismo que utiliza tais termos para mascarar o exercício do poder de Estado por uma classe, em seu próprio benefício. Na sua conclusão, afirma: "Desde o marxismo, considero complicado tomar essas categorias burguesas como categorias de análise científica" (p. 95). Talvez seja mais produtivo buscar entender o processo histórico de organização das escolas brasileiras, analisando como foi impregnado pela dicotomia entre o público e o privado.

A segunda mesa-redonda tematiza "O público e o privado: teorias e configurações nas práticas educativas". O texto de Gilberto Luiz Alves, "A inovação nas práticas educativas das escolas estatais e particulares: subsídios para a discussão da relação entre o público e o privado", parte da constatação de que o desvio de recursos públicos para a rede privada tem sido uma das questões mais focalizadas nas discussões sobre o público e o privado na educação. São apresentados vários estudos e pesquisas sobre situações antigas e atuais que demonstram essa apropriação direta de recursos públicos por instituições privadas, muitas através de negociatas e do tráfico de influência. Diante disso, o autor se pergunta se existiria uma esfera educacional pública voltada para o atendimento da maioria da população. A sua resposta é não, por considerar que numa sociedade de classes, o Estado, que administra e controla a educação, é, ele próprio, um instrumento de realização dos interesses privados da classe que detém o poder. Além disso, considera que as forças sociais que atuam dentro da escola têm exercido, basicamente, uma prática política conservadora e que a maioria dos educadores e de suas entidades, mesmo quando utilizam uma retórica favorável à transformação social, assumem, paradoxalmente, prática política antagônica. Quanto à questão da incorporação de inovações ao ensino estatal, o autor apresenta três idéias: "1) as inovações, no âmbito do trabalho didático, sempre se deveram a iniciativas isoladas de escolas da esfera particular; 2) a posteriori, essas inovações foram ampliadas para o âmbito do ensino estatal, quase sempre por meio de precárias experiências pilotos, invariavelmente fugazes; 3) no Brasil, as condições subjetivas da escola estatal vêm sendo adversas à inovações do trabalho didático" (p. 120).

Para José Carlos Souza Araújo, autor do segundo texto, o campo educacional é palco do antagonismo entre interesses confessionais, públicos e empresariais, antagonismo que pode estruturar-se do ponto de vista concepcional, organizacional ou político-educacional. O texto recupera reflexões de autores liberais em torno das responsabilidades em relação à educação pública para indicar que "tem sido inerente ao ideário liberal assumir e viver tal ambivalência entre o público e o privado, seja privatizando o público, seja publicizando o privado" (p. 134). Afirma que "categorialmente, estabelecer barreiras entre o público e o privado pode conduzir a compreensão do movimento da história educacional a uma imobilização. Na verdade, há um intercâmbio representado seja pelos interesses sociais na configuração da educação escolar, seja promovida pela iniciativa pública ou privada, porque, apesar da concorrência e da rivalidade dos interesses privados em relação aos públicos, observa-se a busca do intercâmbio, da parceria, da convivência inclusive por agentes da representação pública para instituir, alimentar ou fortalecer os interesses privados" (p. 142).

Na terceira intervenção na mesa-redonda, Olinda Maria Noronha situa o processo conflituoso e contraditório do desenvolvimento histórico do capitalismo, marcado por um duplo movimento de conservação (reprodução das relações) e transformação (rupturas), e a importância crescente que assume nesse modo de produção a monopolização e controle dos bens significativos, entre eles o conhecimento. Utilizando a categoria 'monopólio do conhecimento', trabalhada por Gentili, a autora afirma que tal monopólio "constitui o fundamento que tem orientado as iniciativas educacionais, as reformas e até mesmo as teorias pedagógicas que caracterizam a educação brasileira" (p. 148). Segundo perspectiva, já que os homens são destinados a diferentes posições no mundo da produção, a educação também deveria ser diferenciada. Hoje o monopólio do conhecimento é ocultado pelo discurso de que as modernas tecnologias estão colocando o conhecimento e a informação à disposição de todos e democratizando os saberes acumulados.

"O público e o privado: sobre o direito de educar a consciência" é o título do texto de Paulo de Tarso Gomes, autor da última intervenção na segunda mesa-redonda. Gomes situa na filosofia do direito a origem dos conceitos de público e privado, tão freqüentemente empregados nos debates sobre educação. O autor argumenta que os liberais colocavam sob a jurisdição do Estado apenas a formação da consciência cidadã (relativa a seus direitos e deveres legais), mas não a consciência moral e nem a religiosa. A educação pública republicana no Brasil não aderiu, no entanto, a esse ideal de não ingerência do Estado sobre a consciência. "O processo político brasileiro mostra que, no caso do direito de educar e ser educado, convenientemente a utopia liberal foi convertida em ideologia, para que o direito a ser educado fosse convertido num direito do Estado de ditar a educação por meio de suas políticas públicas" (p. 159). Exemplo disso é a lei nº 9.475/1997, que altera a LDB, ao considerar o ensino religioso facultativo como parte da formação básica do 'cidadão'. Gomes conclui afirmando competir à educação pública formar a consciência cidadã, o que não é pouco, já que "a democracia não é a adesão amorosa de todos a um objetivo, mas o respeito, ainda que externo, das vontades expressas por meios legítimos" (p. 163).

Na terceira mesa-redonda, "O público e o privado na história da educação brasileira", Dermeval Saviani divide a sua intervenção em dois momentos. No primeiro, apresenta quatro enunciados teórico-históricos: o público e o privado constituem categorias correlatas e indissociáveis entre si; público e privado são categorias originárias e específicas da época moderna; rigorosamente falando, só se pode considerar público e privado como categorias educacionais, a partir do século XIX, pois, é somente a partir daí que se configura nitidamente a educação pública; e, em sentido próprio, só é possível falar de público e privado em educação no Brasil, a partir de 1890, portanto, já nos umbrais do século XX. No segundo, intitulado "Abordagem teórico-prática: revisitando uma proposta de estratégia para a defesa da escola pública elaborada em 1980", Saviani aponta equívocos e alternativas. Considera que, em lugar de centrar a defesa da escola pública na oposição entre o ensino público e privado, cabe concentrá-la na oposição entre ensino de elite e educação popular. Em lugar de colocar a tônica da questão da escola pública no ensino superior, cabe lutar pela popularização do saber e, por fim, longe de defender a sujeição da educação à tutela do Estado, trata-se, ao contrário, de dela libertá-la, o que não significa liberar o Estado dos encargos educacionais, mas que ele os assuma plenamente. Por outro lado, é necessário que as organizações populares exerçam severo controle sobre a educação, em especial sobre as escolas mantidas pelo Estado.

No texto seguinte, "A problemática do público e do privado na história da educação brasileira", José Luís Sanfelice revisita o conceito de Estado no pensamento marxista citando Bottomore, para quem tal conceito só se torna um campo de investigação importante dentro do marxismo a partir do fim do predomínio do stalinismo. Destaca ainda abordagens mais recentes da questão da 'autonomia relativa' do Estado. Na medida em que o Estado não é neutro e se destina a atender os interesses da classe dominante, escola estatal e escola pública não são equivalentes, quando se entende por público o que pertence a todos, aberto a qualquer pessoa. Para Sanfelice, embora grande parte da historiografia tenha consagrado a terminologia 'educação pública' como sinônima de 'educação estatal', é preciso considerar que, rigorosamente, escola estatal não é pública e não poderia sê-lo numa sociedade assentada na propriedade privada dos meios de produção e que, numa sociedade de classes como a nossa, os fins últimos da educação não transcendem os limites do próprio capitalismo.

O livro proporciona elementos para pensar de forma crítica questões tornadas urgentes pelos discursos sobre o fim da história, sobre a inevitabilidade da lógica do mercado, e das políticas que tentam impor, como único caminho, o das políticas privatizantes. Neste sentido, representa uma contribuição significativa para os que buscam aprofundar o conhecimento do campo educacional visando construir caminhos para uma educação emancipatória e uma sociedade mais justa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2012
  • Data do Fascículo
    Out 2008
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