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Práticas sociais de estudantes de medicina na universidade pública: celebrações, eventos e cidadania

Social practices for Medical students in the public universities: celebrations, events, and citizenship

Resumos

Este artigo fundamenta-se em uma pesquisa empírica de cunho social em que são analisados os significados atribuídos por estudantes de medicina aos agrupamentos formados por eles próprios em uma universidade pública, indagando-se a partir daí sobre a relação desses espaços com o desenvolvimento da cidadania em uma sociedade de consumo na qual importantes deslocamentos estão ocorrendo. Obteve-se o material empírico através de observações em diversos cenários de convivência dos alunos e de entrevistas realizadas com estudantes de medicina, tendo como referencial teórico noções da educação crítica e do pós-estruturalismo. Os resultados revelam que são hegemônicas no espaço universitário festas e celebrações de grande visibilidade e de forte aspecto mercantilista. Também acontecem grupos de estudo, encontros religiosos, debates sobre afirmação da raça e da opção sexual, atividades comunitárias e científicas, porém com menor visibilidade e prestígio. Nesse contexto, o centro acadêmico e o centro esportivo, além das suas finalidades respectivas de engajamento político-estudantil e de organização de práticas esportivas, se constituem importantes espaços de convivência entre estudantes em diferentes períodos da graduação. Com base nesses resultados, discutimos o relacionamento a ser estabelecido entre esses espaços e o currículo universitário, tendo em vista valores de solidariedade, liberdade e deveres sociais.

práticas sociais; cidadania; identidades; educação médica


This article is based on an empirical research project of social nature that analyzes the meanings students of medicine attribute to the groupings formed based on their initiative in a public university and discusses the relationship between this space and the development of citizenship in a consumption society in which important movements are taking place. The empirical material was obtained from observations made in several scenarios experienced by the students and from semi-structured interviews carried out among students of medicine, the theoretical reference for which were notions of critical education and post-structuralism. The studies reveal parties, events, and celebrations, largely visible and strongly mercantilist social practices, are not hegemonic in the university space. There are also study groups, religious gatherings, debates on racial and sexual choice affirmation, community activities and scientific events, even though less visible and prestigious. In this context, academic center and sports centers, in addition to their respective purposes of political and academic engagement and of organizing sporting events, are important spaces for daily experiences and to bring students from different undergraduate periods. Based on these results, we discuss aspects of the relationship to be established between these spaces and the university curriculum, Considering values of solidarity, liberty, and social obligations.

social practices; citizenship; identities; medical education


ARTIGO ARTICLE

Práticas sociais de estudantes de medicina na universidade pública: celebrações, eventos e cidadania

Social practices for Medical students in the public universities: celebrations, events, and citizenship

Glória Walkyria de Fátima Rocha1 1 Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Linguagens e Mediações do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes/UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). < gloriawalkyria@yahoo.com.br> ; Vera Helena Ferraz de Siqueira2 2 Professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Laboratório de Linguagens e Mediações do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes/UFRJ). Doutora em Educação pela Columbia University (EUA). < verahfs@yahoo.com.br>

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde Laboratório de Linguagens e Mediações Centro de Ciências da Saúde, bloco A, sala 26 Ilha do Fundão, CEP 21949-902

RESUMO

Este artigo fundamenta-se em uma pesquisa empírica de cunho social em que são analisados os significados atribuídos por estudantes de medicina aos agrupamentos formados por eles próprios em uma universidade pública, indagando-se a partir daí sobre a relação desses espaços com o desenvolvimento da cidadania em uma sociedade de consumo na qual importantes deslocamentos estão ocorrendo. Obteve-se o material empírico através de observações em diversos cenários de convivência dos alunos e de entrevistas realizadas com estudantes de medicina, tendo como referencial teórico noções da educação crítica e do pós-estruturalismo. Os resultados revelam que são hegemônicas no espaço universitário festas e celebrações de grande visibilidade e de forte aspecto mercantilista. Também acontecem grupos de estudo, encontros religiosos, debates sobre afirmação da raça e da opção sexual, atividades comunitárias e científicas, porém com menor visibilidade e prestígio. Nesse contexto, o centro acadêmico e o centro esportivo, além das suas finalidades respectivas de engajamento político-estudantil e de organização de práticas esportivas, se constituem importantes espaços de convivência entre estudantes em diferentes períodos da graduação. Com base nesses resultados, discutimos o relacionamento a ser estabelecido entre esses espaços e o currículo universitário, tendo em vista valores de solidariedade, liberdade e deveres sociais.

Palavras chave: práticas sociais; cidadania; identidades; educação médica.

ABSTRACT

This article is based on an empirical research project of social nature that analyzes the meanings students of medicine attribute to the groupings formed based on their initiative in a public university and discusses the relationship between this space and the development of citizenship in a consumption society in which important movements are taking place. The empirical material was obtained from observations made in several scenarios experienced by the students and from semi-structured interviews carried out among students of medicine, the theoretical reference for which were notions of critical education and post-structuralism. The studies reveal parties, events, and celebrations, largely visible and strongly mercantilist social practices, are not hegemonic in the university space. There are also study groups, religious gatherings, debates on racial and sexual choice affirmation, community activities and scientific events, even though less visible and prestigious. In this context, academic center and sports centers, in addition to their respective purposes of political and academic engagement and of organizing sporting events, are important spaces for daily experiences and to bring students from different undergraduate periods. Based on these results, we discuss aspects of the relationship to be established between these spaces and the university curriculum, Considering values of solidarity, liberty, and social obligations.

Keywords: social practices; citizenship; identities; medical education.

Introdução

O presente artigo é fundamentado em investigação sobre aspectos da construção identitária de alunos de cursos de graduação3 3 Agradecemos ao CNPq pelo apoio financeiro dado ao projeto maior ao qual este estudo está relacionado. Trata-se da pesquisa "Cidadania e alteridades: espaços não formais da universidade e construções identitárias por alunos de medicina e biologia", coordenada pela professora Vera Helena Ferraz de Siqueira, que conta com financiamento do CNPq (Edital Universal/ 2007). em espaços não formais da universidade. Com base em estudo empírico realizado entre alunos de uma universidade pública da região Sudeste do país, indaga-se a respeito das possibilidades e dos limites dos processos de socialização que ocorrem nesses espaços para o desenvolvimento da cidadania no contexto de uma sociedade de consumo globalizada, onde ocorrem importantes deslocamentos com repercussões importantes nas conformações identitárias dos sujeitos e nas respostas que oferecem às demandas sociais relacionadas à educação e à educação em saúde.

A universidade, dentro do projeto da modernidade, tem sido considerada um espaço privilegiado para a construção da cidadania, objetivando o desenvolvimento de sujeitos autônomos que contribuam para o questionamento e desenvolvimento da sociedade. Giroux (1997) acredita que é fundamental encarar as universidades como esferas públicas democráticas, dedicadas a formas de fortalecer o self e o social. Nestes termos, indica o autor, essas instituições são lugares onde os estudantes podem aprender o conhecimento e as habilidades necessárias para viver em uma democracia autêntica. Em vez de definir as escolas como extensões do local de trabalho ou como instituições de linha de frente na batalha dos mercados, as escolas como esferas públicas democráticas são construídas em torno de formas de investigação crítica que, para Giroux, dignificam o diálogo significativo e a atividade humana.

Autores como Giroux (2002, 2003), nos Estados Unidos, e Veiga Neto (2002), no Brasil, integram uma vertente crítica da educação que vem dialogando com deslocamentos contemporâneos, em decorrência dos quais, conforme apontado em Siqueira e Rocha (2008) vive-se hoje a multiplicidade e a fragmentação das identidades e do próprio conceito da identidade (Hall, 2000; Sarlo, 2004; Bauman, 2005; Canclini, 2005). Sabemos que o 'pertencimento' ao grupo e a 'identidade' não têm solidez e não são garantidos para toda a vida são bastante negociáveis e revogáveis e que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre e a maneira como age são fatores cruciais tanto para o pertencimento quanto para a identidade. Sem dúvida, esse cenário tem repercussões sobre a construção das posições de sujeito e das relações sociais que ocorrem na universidade. É nesse contexto que educadores como Giroux e Veiga Neto vêm apontando para um crescente afastamento das universidades em relação a esses ideais. Estes estudiosos identificam a presença do processo de mercantilização que marca a sociedade atual na instituição universitária, com efeitos importantes na subjetividade do alunado e nos papéis sociais que assumem. Entre outras questões, essas análises apontam para uma ausência de utopias dos jovens, um esvaziamento de projetos de vida e de espaços públicos. Entretanto, a exemplo do que fazem esses autores, reconhecemos a necessidade de questionar as possibilidades de crítica existentes no interior das práticas e dos discursos, escapando de algumas visões deterministas que vêm posicionando os jovens necessariamente como alienados e fechando as possibilidades para a existência de espaços públicos de construção da cidadania.

Partimos do pressuposto de que a cultura escolar não se limita a conteúdos formais curriculares:

Na situação escolar se aprendem muitas outras coisas, inúmeras das quais vão depender da experiência de interação entre os sujeitos nas diversificadas relações grupais. Em grande medida a partir das interpelações feitas nas mesmas, esses alunos passam a ocupar certas posições de sujeito, seja como alunos, consumidores, filhos ou cidadãos: o/a jovem 'esperto/a', o/a 'comprometido/a', o/a 'reformador/a social', o/a 'estudioso/a' e daí para diante. (...) Certamente as atividades informais não são autônomas aos diversos dispositivos de poder que regulam o funcionamento dos sujeitos, como é o caso da regulação do tempo e do espaço inerente ao currículo escolar, entretanto o que se nota nessas interações é que há um afrouxamento dessa regulação (Siqueira e Rocha, 2008, p. 236 e 243).

Assumimos aqui a questão da cidadania como categoria útil para indagar sobre a constituição dos espaços universitários. A noção de cidadania vem sendo historicamente discutida a partir de múltiplas perspectivas e consideramos pertinente abordá-la tendo em visto a multiplicidade dos contextos em que esta se constrói e as formas através das quais se articula aos deslocamentos da chamada pós-modernidade. Nos dias atuais, o debate sobre cidadania tornou-se ainda mais agudo diante do desafio levantado pelas transformações sofridas pela sociedade, entre as quais se destacam a questão do individualismo e a apatia crescente que vêm dominando a vida social, conforme aponta Bignotto (2005).

Como afirmam Pinsky e Pinsky (2003), ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. É, em resumo, ter direitos civis, porém os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação dos indivíduos na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde. Nesse entendimento, a cidadania não é algo passivo. Ela exige participação política e cívica, que geralmente acontece a partir de lutas e de conflitos. Tomando a cidadania como um aprendizado para os sujeitos, que se dá em toda e qualquer interação social, a universidade assume o papel fundamental de aproximar dessa realidade cotidiana o saber nela e por ela produzido, não como algo a ser dado a esses sujeitos, sequer tomando-os como objetos, mas construído na interação com eles, como salienta Simeone (2005). A questão da cidadania também está estreitamente relacionada às formas pelas quais atualmente está se dando a construção das identidades e das diferenças. Canclini (1995, p. 22) aponta os direitos à "diferença como uma dimensão central tomada na América Latina nos últimos tempos para se entender a cidadania e não mais os direitos à igualdade, como anteriormente". Mais do que como valores abstratos, salienta Canclini (1995, p.22 e 23) "os direitos são importantes como algo que se constrói e muda em relação a práticas e discursos". A cidadania e os direitos não falam unicamente da estrutura formal de uma sociedade; além disso, indicam o estado da luta pelo reconhecimento dos outros como "sujeitos de interesses válidos, valores pertinentes e demandas legítimas" (Canclini, 1995, p. 23), como argumenta o autor.

O estudo que aqui relatamos insere-se em um projeto maior, "Cidadania e alteridades: espaços não formais da universidade e construções identitárias por alunos de medicina e biologia", com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Edital Universal/07). Neste projeto, Siqueira (2007) argumenta que no contexto contemporâneo, marcado por importantes deslocamentos, o entendimento da constituição subjetiva dos indivíduos e das relações estabelecidas entre eles deve levar em conta aspectos referentes a esses deslocamentos, como "as tendências de globalização, a transitoriedade das mercadorias, a instabilidade dos valores, a coexistência de múltiplas culturas e os avanços tecnológicos os quais redefinem o senso de pertencimento e identidades sociais de novas gerações" (Siqueira, 2007, p. 20).

Em artigo anterior relacionado à mesma pesquisa, já tínhamos nos detido em analisar a construção das diferenças de gênero entre esses estudantes de medicina por ocasião da realização do trote (Siqueira e Rocha, 2008). No presente artigo, relatamos um recorte que visou a analisar como, em diferentes contextos de convivência não formal no espaço universitário, ocorrem formas particulares de interação entre os estudantes de medicina e como elas influenciam o seu processo identitário em relação às questões da cidadania.

Tratou-se de pesquisa qualitativa de cunho exploratório, que fez uso de observações das interações entre estudantes em diversos cenários (corredores do Centro de Ciências de Saúde, quiosques de alimentação, centros acadêmicos etc.) e de entrevistas de cunho exploratório com 12 estudantes de medicina.4 4 Os nomes dos depoentes são fictícios. Chegamos aos alunos principalmente através de indicações, observando como critério ter uma variedade de pertencimentos aos grupos.

Além de pontuar os múltiplos espaços não formais que surgem a partir da iniciativa dos estudantes e são por eles frequentados, nossas questões solicitaram seu posicionamento sobre os mesmos, pois interessava-nos aferir processos de identificação, atitudes e valorações. Assim, pudemos detectar motivações e interesses que originam o processo de formação desses agrupamentos no espaço universitário, que, no nosso entendimento, se constituem importantes elementos para a compreensão do processo de formação da identidade profissional com repercussões evidentes para a cidadania.

Todo o material empírico obtido foi analisado com base no referencial dos teóricos críticos da educação, em diálogo com algumas noções pós- estruturalistas, em relação às questões de identidade e subjetividade. Encontramos relações de alguns desses espaços com práticas mercantilistas, o que discutimos em um primeiro momento neste artigo. Em seguida, discutimos a importância de a universidade levar a sério o que ocorre nesses espaços informais, considerando as suas consequências para a formação do alunado e tentando ocupar espaços que resgatem seu papel de esferas públicas democráticas voltadas ao fortalecimento dos indivíduos e da sociedade.

O espaço universitário relacionado às práticas mercantilistas

Ao mapear os diferentes agrupamentos criados por alunos de medicina, tínhamos em vista entender como esses jovens se constituem situacionalmente nesses grupos em relação a questões relacionadas com a cidadania. Nesses espaços, que não coincidem com os das políticas e normas do currículo formal, os sujeitos deliberam, se posicionam, se engajam em ações e assumem valores.

Esses espaços de convivência sem dúvida se assemelham aos que têm lugar em outras circunstâncias do cotidiano dos/as jovens, como em clubes, festas etc.; entretanto, é importante caracterizar suas especificidades: são organizados e ocorrem dentro da instituição universitária, não sendo autônomos aos respectivos dispositivos de poder que regulam o funcionamento dos sujeitos nas instituições escolares, como as regras e definições quanto ao uso do espaço, do tempo etc.; e, são instâncias socializadoras criadas por iniciativa dos próprios jovens, ao contrário, por exemplo, dos encontros que se dão em clubes, shopping centers e festas para as quais são convidados/as. Assim é que, de forma importante, o cotidiano na universidade toma forma quando alunos de graduação, atores centrais na Universidade, desenvolvem espaços de socialização de diferentes ordens, fora das demarcações do currículo formal: festas, grupos de estudo, encontros religiosos, debates sobre afirmação da raça e da opção sexual, e atividades comunitárias (Siqueira e Rocha, 2008, p. 235 e 236).

O Centro Acadêmico (CA) exerce um importante papel de referência para os estudantes de medicina. Em suas sedes, localizadas no Centro de Ciências da Saúde e no Hospital Universitário, permanecem e se relacionam estudantes de diferentes períodos em suas horas vagas, inclusive aqueles que não se interessam pela militância estudantil. Um dos entrevistados explica o que representa para ele o Centro Acadêmico:

Um grande ponto de encontro dos alunos. Eu definiria assim. Eu acho que o que deu mais certo. Engraçado que volta e meia, assim: às vezes sua aula acaba mais cedo; lá também tem poltrona, então: "Tô com sono". Você vai lá e tira uma soneca. E sempre quando você tá lá tem sempre um plá: "Pô, hein, Gilberto, tudo bem?" Sexto período, quinto, quarto, sabe, terceiro... Isso é muito bom, sempre trocando conversa, brincadeira, experiência e tal (Gilberto).

É interessante verificar neste depoimento que o Centro Acadêmico, além de ser um espaço óbvio de engajamento político estudantil, constitui um local de convivência que mais se aproxima de um ambiente doméstico, familiar. Durante a sua permanência no Centro Acadêmico, muitos desses estudantes fazem suas refeições trazidas de casa, descansam, ouvem músicas, veem televisão, leem, conversam descompromissadamente e se informam sobre vários aspectos referentes ao curso médico através do contato com estudantes de níveis mais adiantados.

Já o chamado Centro Esportivo concentra as atividades físicas dos alunos, sendo responsável pelas Olimpíadas Regionais dos Estudantes de Medicina (Orem), um evento bastante tradicional, organizado em parceria com os centros acadêmicos de medicina de algumas faculdades da região Sudeste e apoiado pela Direção Executiva dos Estudantes de Medicina (Denem). Entretanto, os depoentes se queixam de que o esporte deixou de ser o principal objetivo da olimpíada e a organização fica a cargo de firmas de eventos contratadas pelos centros acadêmicos, evidenciando que esses encontros hoje se tornaram espetáculos lucrativos:

Eles trazem uma superbanda, cobram um absurdo, ou seja, eu que, por exemplo, só quero jogar no caso, jogo handebol e nado tenho que comprar um pacote com um show que sai a cem reais se eu quiser ir, senão eu não faço nem inscrição nos jogos. Então o pessoal do CA contrata uma firma de evento. Você imagina só: são 18 escolas de medicina (...). São quase três mil alunos. Hoje você está pagando cem reais, não é? No ano passado foram quase três mil pessoas. A cem reais já são trezentos mil. Para estudante de medicina é muito dinheiro, não é? (Walter).

Outro entrevistado também comenta a mudança de perfil do evento:

É, as Orem viraram megaevento mesmo, sabe? Um dia a gente vai ter Jammil e Uma Noites, no outro dia, se eu não me engano, Jota Quest. O Rappa já foi em alguns. Ficou shows grandes até. Torna-se até um evento difícil de ser conduzido (Alberto).

Entre as festas e celebrações, Alberto explica que a 'chopada' é o principal evento: "É a culminância da recepção aos calouros." Gilberto, um estudante do oitavo período, coloca: "No início, eu pensava que a chopada era para tentar promover uma integração." E continua:

Tem! Tem! [referindo-se a interesses financeiros] Acho que sim. A chopada, por exemplo, na minha turma. Na minha época, eles pediam pra você juntar trezentos reais. Calouro pedindo na rua. Tinha dia que eu ia pedir, pedir e não conseguia. Eles te dão uma punição se você não consegue. Tinha dia que eu conseguia quarenta; tinha dia que eu conseguia cinquenta; uns conseguiram oitenta reais. Eles tacavam ovo na sua cabeça. Então, você calcula tipo trezentos reais por pessoa e multiplica por cem alunos. São trinta mil! Não! Um pouco menos porque nem todos participaram. Tem gasto com aluguel do local, tem gasto para comprar cerveja. Só que você percebe que é meio desigual. Eles compram muita cerveja e pouco refrigerante. E o pessoal que não bebe cerveja tem que comprar refrigerante por fora. Eles lucram sim! Tanto é que na minha turma um deles encheu o tanque do carro; uma outra foi pro shopping e comprou três camisas. Tem lucro sim (Gilberto).

Como analisar a tendência desses grupos hegemônicos em transformar suas práticas de confraternização no espaço público universitário quer sejam de cunho político, científico, esportivo ou cultural em eventos 'profissionalizados', lucrativos e que revelam a privatização desse espaço?

O mercado cultural responsável pela apresentação dessas 'superbandas' é uma estrutura comercial autônoma e alheia às finalidades da educação pública, que realiza lucros importantes e agrega valor a seus 'produtos' por se associar às organizações estudantis. Tais confraternizações tornaram-se 'megaeventos', afastando-se cada vez mais do que é compreendido por vários alunos como a verdadeira finalidade desses encontros.

Guy Debord (1997, p. 30) aponta o "espetáculo" como expressão de uma situação histórica em que a "mercadoria ocupou totalmente a vida social". Para o autor, espetáculo, mercadoria e capitalismo estão profundamente associados. Desse modo, a "sociedade do espetáculo" pode ser interpretada como conformação avançada do capitalismo etapa contemporânea da sociedade capitalista. Para Rubim (2002), a elaboração de Debord pode ser relacionada à caracterização da sociedade atual como modalidade contemporânea do capitalismo, marcada pela intensa presença e convergência da comunicação, da informação, das telecomunicações e da informática e pela aceitação de que elas tornaram-se mercadorias diferenciais, zonas privilegiadas de acumulação e setores de ponta do desenvolvimento científico e tecnológico dessa etapa do capitalismo. Ainda de acordo com Rubim, o outro eixo interpretativo da análise de Debord refere-se à separação entre 'real' e 'representação'. Esta cisão, consumada na contemporaneidade, inaugura a possibilidade da sociedade do espetáculo. Nela, as 'imagens' passam a ter 'lugar' privilegiado no âmbito das representações. Segundo Debord: "O espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa humana" (Debord, 1997, p. 18, grifos do autor).

Voltando aos agrupamentos identificados pela pesquisa, encontramos um grupo formado por estudantes todos do sexo masculino conhecido como 'Grupo da Bagunça' ou 'Grupo da Baderna'. Os alunos que o integram podem ser facilmente identificados por circularem nos espaços de convivência do Centro de Ciências da Saúde ostentando camisetas com inscrições tais como 'Esquadrão de Bombas'. Gilberto reflete sobre a hegemonia deste grupo na faculdade, temido até por alguns professores:

Então você tem o Grupo da Bagunça. Que quer saber de festa e tal, que está sempre matando aula. Tudo quanto é aula fica conversando. Às vezes, o professor perde um pouco a paciência: "Atrapalha! Vocês podiam sair daqui se não querem assistir à aula!" E dentro desse grupo há aqueles que se acham no direito... Aí levanta um e diz: "Essa aula está uma porcaria!" E aí já vai muito mais pro desrespeito. Não são todos, mas boa parte do grupo é o pessoal de renda mais alta. Posso dizer pra você que, de certa forma, já estão encaminhados na vida. Eles já têm aonde ir, o pai já tem relações e tal. Se você for pensar neste assunto, eu acho que de repente eles sabem que já têm o pé-de-meia deles, então agem, levam meio que na bagunça (Gilberto).

O grupo seria formado por cerca de vinte a 25 estudantes, boa parte deles identificados pelos entrevistados como oriundos das classes sociais mais altas. "Gente que vai aos eventos apenas para depredar", como revela Alberto, referindo-se ao que ocorreu em um Encontro Científico dos Estudantes de Medicina (Ecem) realizado em outra universidade pública brasileira:

Então, a gente tinha 184 inscritos; faltando um dia para acabar, a comissão organizadora do evento decidiu que ia expulsar a nossa universidade e ela expulsou 184 estudantes de medicina porque um pequeno grupo de dez a vinte estava depredando! Estava depredando o alojamento em que a gente estava... Eram duas salas contíguas grandes dentro de um pequeno prédio de laboratórios; então deu algum problema no banheiro e a galera começou a mijar na divisória. Alagou assim, sabe! Soltando uma bomba atrás da outra! Soltando uma bomba atrás da outra, sabe! Socaram uma divisória, abriu um buraco na divisória! (Alberto).

E conclui revelando sua perplexidade:

Os que já estão no internato até parecem se dedicar à faculdade, porque fazem parte de ligas acadêmicas, são monitores de matérias. Isso é até impactante, porque você vê que é um cara que não é um marginalizado! Que está inserido na faculdade! Que segue bem! Que possivelmente é elogiado pelos professores! Que é reconhecido! Que é respeitado como estudante de medicina. Só que ele toma uma atitude completamente assim... É aterrorizante! Esse cara vai cuidar da tua mãe daqui a pouco! Daqui a pouco ele tem um diploma e cuida da sua mãe. Se ela passar mal, é ele quem vai cuidar! (Alberto).

Professores, alunos, direção da escola, todos preferem se calar a respeito desses acontecimentos. Segundo os entrevistados, na ocasião, a direção da faculdade tomou conhecimento de que seus alunos foram coletivamente expulsos do Ecem, mas preferiu não se posicionar a respeito. Essa dificuldade de tomar para si a responsabilidade de punir esses jovens pode guardar relação com o que Kehl (2002) denomina de fenômeno de 'teenagização':

O adolescente, enfant gaté da publicidade, ocupa hoje o lugar do ideal para todas as gerações. Todos querem sentir-se adolescentes, vestir-se como adolescentes, agir como adolescentes. Isso significa que a vaga de 'adulto', na nossa cultura, está desocupada. Ninguém quer estar 'do lado de lá', o lado careta, do conflito de gerações, de modo que o tal conflito, bem ou mal, se dissipou (Kehl, 2002, p. 1).

Para a autora, o adulto que se espelha em 'ideais teen' sente-se desconfortável ante a responsabilidade de tirar suas conclusões sobre a vida e passá-las a seus descendentes; mais desconfortável ainda em sustentar a diferença de 'lugar', ante o filho ou o aluno adolescente, a partir da qual a dose necessária de autoridade justa possa se exercer. Além do mais, no caso em questão, esses jovens em grande parte são identificados como alunos 'competentes', de tal forma que as atitudes que eles tomam fora das demarcações do currículo provavelmente não são identificadas pela direção da faculdade como sendo de sua responsabilidade ou de maior importância.

Há também omissão dos próprios grupos que realizam tais festas e eventos esportivos. Como diz um dos depoentes, "a maioria deles, dos jovens que pertencem a esses grupos, não soltaria bomba, mas eles não assumem qualquer tipo de reprovação aos baderneiros". Então, "aquele tipo de conduta fica socialmente aceito dentro do grupo".

Em relação às evidências de mercantilização do espaço público universitário encontradas nesta investigação, as análises de Giroux (2002, 2003), apesar de realizadas a partir da realidade das universidades americanas, ajudam a entender a questão. O autor utiliza o termo 'cultura empresarial' para se referir a um conjunto de forças ideológicas e institucionais que funciona política e pedagogicamente para governar a vida organizacional por meio do controle gerencial superior e para produzir, na visão do autor, "trabalhadores submissos, consumidores despolitizados e cidadãos passivos" (2003, p. 52). As práticas mercantilistas que os alunos da universidade pesquisada vêm desenvolvendo parecem ter afinidade com esta cultura empresarial e se contrapõem à prática da cidadania, pois, como sugere Giroux, na linguagem e nas imagens da cultura empresarial a cidadania é retratada como uma questão totalmente privatizada, cujo objetivo é produzir indivíduos competitivos interessados em si mesmos, lutando pelo seu próprio ganho material e ideológico. Para Giroux (2003, p. 53), "a boa vida", de acordo com esse discurso, "é construída em termos de nossas identidades como consumidores somos o que compramos".

No caso da universidade estudada, entendemos que esta restringe sua responsabilidade ao que acontece apenas na sala de aula, no ambulatório ou na enfermaria limites do que se entende por 'verdadeiro currículo' no que concerne, principalmente, ao desenvolvimento de conhecimentos científicos e técnicos. Ela se omite da centralidade do seu papel na construção da cidadania durante o processo de formação profissional desses jovens, desconsiderando ou não dando a devida importância ao fato de que tais práticas mercantilistas vêm ocorrendo cada vez mais em seus espaços de convivência.

Giroux (2003) alerta que as esferas públicas são substituídas por esferas comerciais à medida que a democracia crítica é esvaziada e substituída por uma democracia de mercadorias, havendo assim uma desvalorização do conhecimento, dos valores sociais e de habilidades mais amplos. O autor considera, no entanto, que essa crise pode ser uma oportunidade para que os educadores progressistas expandam e aprofundem o significado da democracia definida radicalmente pelo autor como "uma luta para combinar a distribuição da riqueza, da renda e do conhecimento, com um reconhecimento e uma valorização positiva da diversidade cultural reafirmando a primazia da política, do poder e da luta como tarefa pedagógica" (Giroux, 2003, p. 55).

Nadando contra a maré: as experiências de solidariedade que buscam visibilidade

Paralelamente aos agrupamentos aqui identificados, verificamos a existência de vários outros constituídos por um número menor de estudantes e de menor visibilidade no espaço universitário. São aqueles caracterizados pelo desenvolvimento de atividades assistenciais e/ou religiosas relacionadas, em grande parte, à educação e/ou à saúde. Por exemplo, há o 'Movimento Humanista', que, assim como os dos católicos e dos evangélicos, é apoiado por organizações externas à universidade. Vale destacar que de alguns deles participam não só alunos de medicina, mas também das mais diversas profissões da área da saúde.

Walter é um aluno que, desde que entrou para a faculdade de medicina, vem envidando esforços para participar de ações sociais. Chegou a ficar durante um ano e meio dando aula de biologia em um cursinho pré-universitário de iniciativa do Movimento Humanista nos espaços da universidade. Quanto a iniciativas da própria instituição que estimulem a prática da cidadania, o depoente expõe:

Extensão é zero pra quem quiser. Parte cultural assim fraquíssima; a gente pode falar de alguns eventos para os estudantes. Tem a vida do CA que é um pouco paralela e que é muito relacionada à política, mas assim coisa de vida mesmo, sabe, de experiências, de conhecer, de trocar ideias, eu vejo que é muito, muito restrito, sabe. Tipo assim, a faculdade não oferece, então, quem quer, corre atrás de outras coisas, de outros aprendizados, de outros contatos, de novas formas de se ver a realidade. E coisas que eu sinto muita falta: de você sair da universidade, sair do hospital. Então, tive que correr muito atrás disso (Walter).

A propósito do engajamento de estudantes universitários em projetos sociais, Walter Benjamin, ao assumir a direção do Estudantado Livre de Berlim, elaborou uma série de questionamentos dirigidos tanto aos estudantes como a toda comunidade universitária alemã, que muito embora tenham sido elaborados no início do século XX, mais especificamente em 1914, permanecem atuais.

Existe um critério muito simples e seguro para testar o valor espiritual de uma comunidade. A questão: nela se expressa a totalidade do indivíduo atuante? Está comprometido com ela o ser humano integral? Este lhe é imprescindível? Ou a comunidade é prescindível a cada ser humano na mesma medida em que este é prescindível àquela? É muito simples formular esta questão, muito simples respondê-la em relação aos tipos atuais de comunidade social, e essa resposta é decisiva (Benjamin, 2002, p. 35).

Para Benjamin (2002), todo indivíduo atuante aspira pela totalidade, e o valor do desempenho individual reside precisamente nessa totalidade, ou seja, no fato de que a essência total e indivisível de um ser humano possa ganhar expressão. Mas Benjamin já chamava a atenção no início do século XX para o fato de que a realização socialmente fundamentada é algo inteiramente fragmentado e derivado. O autor considera que a maior objeção, contudo, não é o fato de que o trabalho social esteja desvinculado e abstrato no essencial ao verdadeiro trabalho estudantil; o decisivo não é que a totalidade desse trabalho seja, na realidade, um "utilitarismo vazio e genérico", mas sim que esse trabalho exija, apesar de tudo, "o gesto e a atitude do amor onde se processa apenas uma obrigação mecânica" (Benjamin, 2002, p. 36). Benjamin avaliava que, "do trabalho social dos estudantes não resultou qualquer renovação do conceito e da apreciação do trabalho social. Para a opinião pública o trabalho social continua sendo aquela mistura singular de ato individual de dever e de compaixão", concluindo o autor que "malogrou a tentativa de organizar a vontade de uma comunidade acadêmica sob a forma de comunidade de trabalho social" (Benjamin, 2002, p. 37). Trata-se de uma crítica dirigida à instituição universitária que vem de longe, no tempo e no espaço. E hoje como nos encontramos? O que podemos questionar a partir de nossas próprias experiências?

Partindo do pressuposto de que existe uma relação entre o que ocorre nos espaços curriculares formais e os valores e atitudes assumidos pelos estudantes nos mais variados processos de interação do qual participam, faz-se importante um breve olhar sobre o currículo universitário. Miguel Arroyo (1988) e Milton Santos (1999) apresentam uma discussão pertinente sobre a dicotomia entre 'ciência técnica e cultura' na formação acadêmica, que parece útil à nossa análise. Para Arroyo, considera-se o ensino de ciências um saber inacessível e inquestionável, se comparado a outros saberes. Segundo o autor, é este tipo de entendimento que faz com que grande parte dos professores considere que o ensino de ciências exatas corresponde à real preparação para o mundo produtivo, levando o jovem a concluir que as ciências humanas, por tratarem do humano, do social, do cívico, não têm a mesma importância quando relacionadas ao mundo do trabalho e à opção profissional. É bem sabido que a formação dos profissionais de medicina, em geral, delega às ciências humanas e sociais um espaço bastante secundário, sendo estes conhecimentos considerados de menor importância em relação aos ensinamentos biológicos e técnicos. Tal conclusão poderá acompanhar o futuro profissional cidadão trabalhador e dificultar uma compreensão unitária das diversas dimensões de sua existência e da sociedade em que vive e para cuja construção contribui. No mesmo sentido, Santos (1999, p. 5-8) salienta que o "mundo do pragmatismo triunfante pode destruir o equilíbrio educacional entre a formação para a vida plena e a formação para o trabalho". De acordo com o autor, hoje, sob o pretexto de que é preciso formar os estudantes "para obter um lugar no mercado de trabalho afunilado, o 'saber prático' tende a ocupar todo o espaço da escola", enquanto o "saber filosófico" é considerado como "residual ou mesmo desnecessário", uma prática que, segundo Santos, a médio prazo, "ameaça a democracia, a República, a cidadania e a individualidade" (Santos, 1999, p. 5-8). Prevalecendo esta lógica, entendemos que a formação médica pode ser reduzida também a um simples processo de treinamento ou, como afirma Milton Santos (1999) referindo-se a modelos contemporâneos de formação, "a um aprendizado que se exaure precocemente ao sabor das mudanças rápidas das formas técnicas e organizacionais do trabalho exigidas pela competitividade".

Santos conclui com sua análise sobre o problema da formação profissional unicamente orientada para um mercado de trabalho seletivo alertando que desta forma "a escola deixará de ser o lugar de formação de verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de deficientes cívicos" (Santos, 1999, p. 5-8).

Considerações finais

Os achados deste estudo sinalizam para a necessidade de os educadores questionarem como essas práticas que acontecem pelas iniciativas dos próprios jovens a partir das suas afinidades, do desejo de celebrações ou de solidariedade em seus variados espaços de convivência estão sendo significadas no contexto do curso de graduação médica, assim como quais são os sentidos colocados pela universidade nos valores de solidariedade, de liberdade individual e de deveres sociais.

A educação para a cidadania diz respeito a todas as instituições de socialização, de formação e de expressão da vida pública, cabendo à universidade proporcionar ao estudante acesso aos saberes e às práticas de uma cidadania ativa, que tenham um significado real para sua futura prática profissional, assumindo o dever de retribuir à sociedade a sua educação. Não que sua formação seja submetida a ela, mas acreditamos ser necessário retornar a ela, em benefício dela, o que se aprendeu.

Os participantes deste estudo se ressentem da falta de atividades oferecidas pela instituição para se engajarem em projetos nos quais percebam que estão contribuindo para mudanças sociais. Fleuri (2006) considera que práticas de extensão universitária orientadas pela educação popular em saúde geram possibilidades de mudanças significativas na formação de profissionais da saúde. A situação de miséria, de doença e o encontro com a morte afetam a subjetividade de estudantes, instigando-os a criar novas estratégias de cuidado do outro e de cuidado de si, pois neste encontro com o outro e consigo próprio "agentes de saúde revalorizam o trabalho (...) em equipe, re-significam os saberes populares, redescobrindo a importância da afetividade e da espiritualidade nos processos de cura" (Fleuri, 2006, p. 232).

É amplamente discutida a ausência de um compromisso social na formação do profissional de medicina. Para Hodson (2003), é tempo para um currículo científico orientado para uma ação sociopolítica. O autor argumenta que os problemas sociais e de desenvolvimento correntes estão para ser resolvidos e, para isso, precisamos de uma geração de cidadãos capacitados cientifica e politicamente. A ciência, argumenta Hodson, é um produto de seu tempo e lugar e pode às vezes mudar completa e radicalmente a forma como as pessoas pensam e agem. O autor critica algumas iniciativas curriculares em que se utilizam elementos da história, filosofia e sociologia da ciência para mostrar como o conhecimento científico é influenciado pelo contexto sociocultural no qual está localizado, "mas não utilizam esta compreensão para politizar os estudantes" (Hodson, 2003, p. 654). Segundo o autor, muitos professores evitam confrontar os interesses políticos e valores sociais que estão na base das práticas científicas e tecnológicas do que ensinam, evitando fazer julgamentos sobre isto ou influenciar estudantes em dadas direções.

Hodson (2003, p. 654) salienta que "agir como um cidadão também implica no desenvolvimento de valores, habilidades e entendimento". O autor advoga para um currículo de ciência e tecnologia voltado para a finalidade de formação da cidadania dos sujeitos, o provimento de uma seleção de temas de enfoque local, regional, nacional e global focado em sete áreas5 5 As sete áreas do currículo de ciência e tecnologia importantes para orientar o estudante para ações sociopolíticas são, segundo Hodson (2003): saúde humana; alimentação e agricultura; terra, água e recursos minerais; recursos energéticos e consumo; indústria (incluindo manufatura, indústria de serviços e biotecnologia); transferência de informação e transporte; liberdade e controle em ciência e tecnologia (ética e responsabilidade social). que exigem posicionamento e ação sociopolíticos. Dentre essas áreas, destacamos a da 'saúde humana', por entendermos que a inclusão dessa temática, em uma vertente crítica, faz sentido, seja no currículo formal da medicina, seja por que não? nas iniciativas de engajamento estudantil que guardam relação com as de extensão universitária. Como diz Giroux (1997, p. 29), "isto significa educá-los para assumirem riscos, para esforçarem-se pela mudança institucional e para lutarem contra a opressão e a favor da democracia fora da escola, em outras esferas públicas de oposição e na arena social mais ampla".

Parece-nos também que experiências solidárias de educação e de saúde, vivenciadas por iniciativas de alguns estudantes, precisam ganhar apoio e maior visibilidade e, em alguns casos, até serem assumidas pelo currículo formal, já que são práticas que, por incentivarem um mergulho na realidade social, favorecem o desenvolvimento da consciência do 'outro' e, porquanto, da cidadania. Se assumirmos a centralidade dessas práticas não formais na construção identitária do alunado, isto implicará se fazer escolhas sobre quais delas devem ser estimuladas, assumidas como projetos ou questionadas e até excluídas do espaço universitário, compartilhando a comunidade universitária a responsabilidade dessas decisões com a sociedade civil e assumindo as consequências éticas e políticas dessa escolha.

Notas

Recebido em 03/04/2008

Aprovado em 25/02/2009

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  • 1
    Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Linguagens e Mediações do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes/UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). <
  • 2
    Professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Laboratório de Linguagens e Mediações do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes/UFRJ). Doutora em Educação pela Columbia University (EUA). <
  • 3
    Agradecemos ao CNPq pelo apoio financeiro dado ao projeto maior ao qual este estudo está relacionado. Trata-se da pesquisa "Cidadania e alteridades: espaços não formais da universidade e construções identitárias por alunos de medicina e biologia", coordenada pela professora Vera Helena Ferraz de Siqueira, que conta com financiamento do CNPq (Edital Universal/ 2007).
  • 4
    Os nomes dos depoentes são fictícios.
  • 5
    As sete áreas do currículo de ciência e tecnologia importantes para orientar o estudante para ações sociopolíticas são, segundo Hodson (2003): saúde humana; alimentação e agricultura; terra, água e recursos minerais; recursos energéticos e consumo; indústria (incluindo manufatura, indústria de serviços e biotecnologia); transferência de informação e transporte; liberdade e controle em ciência e tecnologia (ética e responsabilidade social).
  • Endereço para correspondência:
    Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde
    Laboratório de Linguagens e Mediações
    Centro de Ciências da Saúde, bloco A, sala 26
    Ilha do Fundão, CEP 21949-902
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
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