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Paulo Buss: Paulo Buss

Interview

ENTREVISTA INTERVIEW

Entrevista: Paulo Buss

Interview: Paulo Buss

O pediatra e sanitarista Paulo Buss, coordenador geral do Centro de Relações Internacionais da Fundação Oswaldo Cruz, presidiu a Fiocruz por dois mandatos (de 2001 a 2008) e assumiu recentemente a presidência da Federação Mundial de Saúde Pública. Em 2005, durante a 58ª Assembleia Mundial de Saúde, como representante do Brasil no comitê executivo da Organização Mundial da Saúde, teve contato com a iniciativa da referida organização sobre determinantes sociais da saúde (DSS) e, desde então, tem se engajado politicamente para a difusão desta discussão. Nesse sentido, sua coordenação à frente da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde tem como um dos objetivos gerar evidências no plano acadêmico a respeito do quanto certos fatores sociais influenciam a saúde das pessoas, reforçando assim a politização da saúde e da doença nas sociedades atuais. Nesta entrevista,1 1 Entrevista concedida a André Malhão, diretor, e Anamaria Corbo, coordenadora da Cooperação Internacional, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz. concedida à revista Trabalho, Educação e Saúde, Buss apresenta um breve histórico da retomada do tema dos determinantes sociais da saúde, realiza considerações sobre os objetivos de desenvolvimento do milênio, além de apontar a influência dos DSS nas agendas de cooperação técnica internacional.

Pediatrician and sanitarian Paulo Buss, the general coordinator of Fundação Oswaldo Cruz's International Relations Center, was the president of Fiocruz for two terms (from 2001 to 2008), and recently took-over as the president of the World Federation of Public Health Associations. In 2005, during the 58th World Health Assembly, as Brazil's representative in the executive committee of the World Health Organization, he came into contact with the mentioned Organization's initiative on the social determinants of health (SDH), and since then has been politically engaged in disseminating this discussion. In this regard, his coordination ahead of the National Commission on Social Determinants of Health has among its objectives to generate evidence in the academic plan regarding how certain social factors influence peoples' health, reinforcing, as such, the politicization of health and of disease in the current societies. In this interview, granted to Trabalho, Educação e Saúde, Buss presents a brief history of the retaking of the issue of social determinants of health, speaks about the millennium development goals, and discusses the influence the SDH have on the international technical cooperation agendas.

Revista

Na sua concepção, o que significam os determinantes sociais da saúde hoje? Seriam uma espécie de retomada das concepções presentes na reforma sanitária? Qual é o seu caráter político?

Paulo Buss

A questão central dos determinantes sociais são as iniquidades em saúde, pois uma sociedade mais inequitativa tem piores resultados em saúde. A saúde tem indicadores melhores nas sociedades em que a renda e os bens socialmente produzidos são mais bem distribuídos e os serviços públicos oferecem um acesso mais equitativo. O estudo que fizemos no Brasil mostra que a posição da pessoa ou dos diversos grupos sociais na estrutura social é absolutamente determinante da sua situação de saúde. Quando olhamos também os determinantes sociais da educação, da habitação, enfim, da dimensão social que você escolher, eles são bastante equivalentes. Então, quem não tem saúde, não tem também acesso à água, ao esgoto, ou melhor, o acesso é menor, a renda é menor, o acesso à educação é menor etc. O tema dos determinantes sociais da saúde está presente desde meados do século XIX, quando Engels escreveu o tratado sobre a situação da classe trabalhadora - A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de 1845 -, mostrando que nas sociedades recém-industrializadas os operários é que tinham as piores condições de vida e de saúde. Dali decorreu uma série de análises teórico-conceituais da sociedade, fundamentadas pelo marxismo, com diversos movimentos revolucionários consequentes. No transcorrer do século XX, com o progresso propiciado pelas ciências da saúde, muitos passaram a acreditar que os problemas do setor se resolveriam por esta via. A questão dos determinantes sociais da saúde fica esmaecida e inclusive é apropriada em geral com uma concepção funcionalista. E isso tem implicações muito profundas na forma como se faz o enfrentamento dessa discussão nos diversos aspectos da vida. O principal, talvez, tenha sido uma apropriação reducionista por parte dos 'países desenvolvidos' do conceito de determinantes sociais. Se nos aprofundarmos no tema, veremos que a estrutura da sociedade é que precisa mudar. O que a sociedade contemporânea, industrializada, e, em especial, os países desenvolvidos fazem, 'funcionalizando' esse conceito, é identificar ações sobre aspectos particulares da determinação. A Cúpula do Milênio da ONU [Organização das Nações Unidas], em 2000, que resultou na Declaração dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), é a expressão disso. Não propõe mudanças sociais, nem políticas transformadoras. Diz apenas: nós temos aqui um conjunto de questões para serem resolvidas pela ajuda internacional dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento, que se resumem em oito objetivos centrais, todos eles voltados para a questão da redução da pobreza, redução de algumas das doenças, melhora de alguns dos indicadores (mortalidade infantil e materna, HIV/Aids, malária e tuberculose, no caso da saúde), igualdade de gênero etc., ou seja, recorta os problemas e não trata a questão central que seria a transformação global de uma determinada sociedade nacional, de uma determinada formação social.

Revista

De acordo com o que o senhor expôs, o setor saúde estaria fortemente influenciado por uma explicação funcionalista dos processos sociais, atravessada por reducionismo teórico e até mesmo político. Como interpretar estas questões?

Paulo Buss

Embora não deixe de ser uma abordagem funcionalista da explicação dos determinantes sociais, com reducionismos e limitações, creio que a possibilidade política, ideológica e social que atingimos, dada por esse movimento da ONU, implica em uma tomada da consciência mundial pela redução das profundas iniquidades, pelo menos nessa agenda básica, definida por esses oito objetivos. O último deles, e isso é pouco falado, é a construção de uma chamada 'aliança para o desenvolvimento', para que os sete objetivos que precedem este último reduzam essas enormes iniquidades, tanto entre os países quanto no interior dos mesmos, até 2015. Apesar da aliança que se teria estabelecido em torno dos ODM, os últimos dois relatórios de avaliação, de 2007 e de 2008, mostram que, além de não ter dado conta de abordar o teor dos determinantes numa aliança global liderada pela ONU, mesmo nesse esquema fracionado, o mundo não foi capaz sequer de alcançar o que se esperava até 2008. Os países com piores indicadores continuam da mesma forma. Não se atingiram índices satisfatórios, nem em dois terços dos indicadores são 48 para os oito objetivos se chegou sequer a uma redução. Isto quer dizer que os países que já vinham melhorando continuaram nesse padrão, e os que estavam piores, muitas vezes pioraram ainda mais. A estratégia que a ONU propõe, a aliança pelo desenvolvimento, visa a ampliar a quantidade de ajuda externa dos países desenvolvidos para aqueles em desenvolvimento, dentro de um conceito definido em 2005, na chamada Declaração de Paris, sobre a eficácia da ajuda ao desenvolvimento. Nessa reunião, da qual participaram representantes de vários países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], se reforçou a necessidade de apropriação, harmonização, alinhamento, resultados e responsabilidade mútua. Ou seja, os doadores devem levar em conta os planos de desenvolvimento dos países pobres e, no caso da saúde, os planos nacionais de saúde. Apesar das declarações bem intencionadas de 2005, os últimos relatórios de avaliação (de 2007 e 2008) mostram que a ajuda externa reduziu ao invés de aumentar e que o gap entre os países que melhoraram e os que pioraram se elevou. Dentro dos países, entre regiões, o gap também aumentou, com algumas exceções.

Revista

Como você situa o Brasil neste contexto?

Paulo Buss

Para nossa satisfação, o Brasil teve uma melhora expressiva na distribuição de renda medida pelo índice de Gini. No campo da saúde, os indicadores que estavam previstos já foram alcançados por nós com folga. Mas, nos países africanos, onde a situação era pior, não houve qualquer melhora significativa. O oitavo objetivo deveria atuar nesse sentido, elevando os padrões, criando um aumento da ajuda externa e a melhoria da apropriação, ou seja, da liderança pelos próprios países desses projetos de desenvolvimento, bem como do respeito aos programas nacionalmente estabelecidos. Isso também evoluiu de uma maneira bisonha. Toda a sociedade, a comunidade global, está profundamente preocupada com isso. A reunião de Accra [Fórum de Alto Nível de Accra], realizada na capital de Gana, em setembro de 2008, mostrou que as condições da ajuda externa continuam no mesmo padrão fragmentado; os recursos foram reduzidos e a apropriação da ajuda pelos países continua profundamente difícil para eles. Também ainda não se leva em conta os planos de desenvolvimento. O que temos é uma visão pessimista, ou melhor, realista, mas não é uma visão que nos entusiasma.

Revista

No cenário traçado pelo senhor, o Brasil não tem reproduzido resultados tão pessimistas. Em termos de políticas públicas, quais seriam os fatores que nos permitem entender melhor essa distinção?

Paulo Buss

Isso seguramente é devido aos diversos trabalhos, tanto independentes quanto do Ministério do Desenvolvimento Social, que mostraram que a política de redistribuição da renda pelo Estado, através do Programa Bolsa Família, foi o grande diferencial. Na realidade, o dinheiro proveniente de imposto que foi para as famílias pobres melhorou o consumo e, diferentemente do que dizem os principais arautos contrários ao Programa Bolsa Família, esse programa, falando pela regra básica do capitalismo, além de ser excelente instrumento de distribuição de renda, é um dinamizador da economia, porque amplia o mercado interno. Concordo inteiramente com a orientação do governo que, mesmo diante da crise, decide aumentar o número de pessoas beneficiadas pelo programa e aprimorar o Bolsa Família. Este é um compromisso minimamente equitativo e solidário através do imposto. Sua aplicação correta permite que uma sociedade se torne mais equitativa. Este é um conceito de solidariedade social, para dizer o mínimo.

Revista

Em que medida a concepção dos determinantes sociais da saúde entra em conflito com o consenso supostamente formado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que, embora pareça ter esse mesmo discurso/ação/concepção, não entra em questões agudas como miséria, desigualdade social e pobreza, geradas pela concentração de riqueza?

Paulo Buss

No momento em que tivemos a derrocada do socialismo real, a esquerda, os vários partidos de esquerda, seus intelectuais e as lideranças de movimentos sociais mais comprometidos com as mudanças mais profundas e, de fato, transformadoras da sociedade não conseguiram construir uma alternativa. Existe um ótimo texto do Frei Betto, que saiu na edição brasileira do Le Monde Diplomatique, no qual ele afirma que os partidos de esquerda foram incapazes de construir alternativas até agora. O capitalismo desregulado, o capitalismo dirigido apenas pela mão invisível do mercado, sem a intervenção do Estado, mostrou também suas contradições. Quer dizer, depois da queda do socialismo real, o capitalismo foi oferecido como a grande solução para a paz, a prosperidade e o desenvolvimento no século XXI, e não se passaram mais do que vinte anos para termos esse modelo completamente falido. Na ONU, de maneira geral, na OMS, no próprio Ecosoc [Conselho Econômico e Social das Nações Unidas], que é o segmento da Assembleia da ONU que trata dessa questão da desigualdade, não há questionamento quanto à regra básica do capitalismo: que o crescimento e o desenvolvimento devem ser dirigidos pelo mercado. Creio que estamos numa fase em que as duas formas de olhar a sociedade contemporaneamente estão em profunda crise conceitual e de propostas de prática social e de prática política. Parte do que nos cabe fazer é revisitar alguns clássicos, como Marx, Engels e Keynes. Devemos retomar a teoria política. O que emergirá daí, sinceramente, não dá para visualizar ainda e obviamente não tenho respostas, pois, se tivesse, eu seria no mínimo um gênio. É possível dizer que estamos num período de profunda transição, tanto teórico-conceitual quanto das práticas políticas, seja da sociedade civil ou do próprio Estado. Acho que estamos tateando no escuro.

Revista

É possível definir ações no sentido da equidade, estabelecendo apenas a relação com o setor saúde, na medida em que se fala em determinantes sociais? Não é uma contradição referir-se ao mesmo tempo a determinantes sociais e estabelecer esse recorte?

Paulo Buss

Já sabemos desde há pelo menos 150 anos que a posição de uma pessoa ou de um grupo na sociedade é absolutamente determinante da sua situação de saúde, e não há como diminuir a iniquidade em saúde sem reduzir também as demais iniquidades. Mas as iniquidades em saúde precisam também de abordagens específicas. De que iniquidades em saúde estamos falando? Seria a dos resultados em saúde ou a do acesso aos serviços? Se observarmos sob essa dimensão, são as duas, obviamente, sendo que a primeira é consequência das iniquidades gerais, dos diversos aspectos da vida. Se você me perguntar se as iniquidades em saúde têm conserto, exclusivamente por ação do setor saúde, eu responderia que não. Há compensações. Quer dizer, se por um lado amplio o acesso à vacina, à água considerando a água um elemento para a saúde, e não da saúde, ao esgoto e a um ambiente proximal de qualidade, como habitações adequadas etc., isso terá implicação sobre a saúde, indiscutivelmente. Por outro lado, as iniquidades no acesso também têm de ser enfrentadas. Se alguém adoeceu por causa das iniquidades sociais, há mais razões para ser equitativo no acesso aos recursos que a sociedade, por acúmulo técnico e científico, oferece às pessoas que estão sofrendo os danos, isto é, as consequências dos riscos. É o caso do acesso à atenção especializada, a diagnósticos, terapêuticas avançadas, cirurgias, transplantes etc. Então, se afirmamos que não se superarão as iniquidades em saúde se não superarmos as iniquidades gerais, podemos reafirmar a necessidade de tratar também as iniquidades no acesso aos serviços de saúde. Ao falar em água, esgoto, condições adequadas de habitação e ar não poluído, estamos nos referindo a medidas que não dependem da noção clássica de serviços de saúde, e sim de um sistema de proteção social, que comporta inclusive ações sobre a questão do desemprego e outras. Por isso que, quando o Brasil promulgou a Constituição, tínhamos o conceito de seguridade, ou seja, direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, isto é, era a proteção social e a saúde como partes integrantes. Essa dimensão voltou a ser colocada de certa forma em todo o mundo, mas principalmente na América Latina. No Brasil, esse conceito de rede de proteção social também retornou com muita força, o que implica mais do que a oferta de serviços de saúde curativos, preventivos ou até de promoção. Portanto, o sistema de seguridade social é fundamental para reparar danos e para proteger de danos a vida real das pessoas. Neste sentido, o movimento pela saúde certamente não pode se reduzir ao SUS [Sistema Único de Saúde].

Revista

No referencial teórico adotado pela Comissão Nacional de Determinantes Sociais, existe a distinção entre os tipos de determinantes, indicando uma linha de ação sobre o comportamento individual, neste contexto denominados como 'determinantes proximais'. A ênfase na adoção dessa linha de pensamento, aliada aos conceitos de redução do risco de doença, não acarretaria um distanciamento do propósito de trazer as desigualdades sociais para o centro da discussão sobre saúde?

Paulo Buss

Não considerar a dimensão dos determinantes proximais, dos grupos sociais menores e da própria pessoa é ignorar a realidade; quer dizer, uma coisa não pode obscurecer a outra. O que afirmamos no relatório é que as dimensões do caráter pessoal, do estilo de vida, são também socialmente determinadas. A escolha da dieta, a prática de exercício físico, o uso de substâncias fumo, álcool, drogas ilícitas etc., isso é flagrante e profundamente determinado socialmente. Existem 'n' exemplos disso. O que a gente sabe é que sociedades equitativas são mais saudáveis e, ao falar em equidade, estamos falando em termos de renda, de acesso aos bens que melhoram a qualidade de vida habitação, água, saneamento etc. E existe uma dimensão, obviamente, que não está ligada nem à pessoal nem à do papel do aparelho do Estado na promoção da equidade. É algo de outra natureza, que são as chamadas redes sociais. O que também se sabe é que em sociedades mais solidárias, no sentido da convivência e da existência de redes informais, os ganhos em saúde são maiores. Quando pessoas que compartilham uma situação semelhante se apoiam mutuamente, verifica-se uma melhora naquele aspecto particular. Por exemplo, grupos de mães que estão amamentando, grupos de fumantes ou alcoolistas, grupos de obesos etc. se beneficiam quando discutem suas experiências em redes sociais solidárias, o que reforça posturas saudáveis e mudanças de comportamentos nocivos. Isto porque não são meras escolhas pessoais, mas determinadas socialmente e, portanto, por estas redes de solidariedade. Isso, se pensado e aplicado em grande escala, mostra o poder da sociabilidade, o poder da solidariedade. É de uma outra natureza. São essas conexões que se fazem na vida real entre pessoas, grupos sociais etc., e que o setor saúde passou a aproveitar como estratégia de promoção da saúde. Mesmo a religião, o sentido de pertencimento a um determinado culto, torna a vida das pessoas mais fácil de viver, de melhor qualidade, mais agradável, ainda que possamos ser muito críticos a vários elementos das diversas religiões. Então, na realidade, existem três dimensões: a da esfera pessoal; a das políticas públicas, da proteção social implementada por um Estado, que é representativa das contradições da sociedade; e a das redes informais. Contudo, não podemos deixar que o peso dessas dimensões obscureça a questão central, que é o estilo de produção, o modo de produção capitalista, as implicações que existem sobre as iniquidades e, consequentemente, sobre a saúde e a qualidade de vida.

Revista

Gostaríamos de trazer para a discussão o tema das relações internacionais, em torno do qual o senhor tem refletido e atuado. Que inflexões efetivamente esta concepção de determinantes sociais confere aos papéis das relações internacionais para que rompam com as concepções de assistência técnica até então implementadas nas ações neste âmbito?

Paulo Buss

Se usarmos o conceito de determinantes sociais em toda a sua plenitude, a ideia da cooperação internacional também teria que ser integrada a essa concepção. Em outras palavras, fazer cooperação setorial já é uma deformação. Então, felizmente, foi incluída na agenda do final dos anos 80 e início dos anos 90, pelo Pnud [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento] principalmente, uma agenda para o desenvolvimento. Mas, na ONU, temos as agências setoriais, como a OMS e muitas outras. Então, o que fez a ONU na década de 1990? Começando pela Rio-92, foi feito um conjunto de pelo menos 15 grandes conferências mundiais setoriais sobre temas tão variados como desenvolvimento, saúde, educação, mulher etc. Houve o Summit Social de Copenhagen, a Cúpula da Criança etc., preparando o mundo para o século XXI. Só que este preparo foi fragmentado. As várias contribuições terminaram na Cúpula do Milênio, realizada no ano 2000, em Nova York, quando foi aprovado um pacto para o desenvolvimento, traduzido fragmentadamente. Se essa é a única maneira de se trabalhar, eu não sei, mas o que se depreende do exame dos princípios é que a ONU entendeu a questão da agenda para o desenvolvimento como uma ajuda em vários setores críticos da sociedade. E deu a cada um, e muitas vezes até para um único objetivo, mais de uma agência da ONU, com a atribuição de se encarregar da costura, que mais uma vez não se efetiva. Como já mencionei, a preocupação dos primeiros cinco anos depois da Declaração do Milênio foi que o negócio não estava funcionando e então realizaram uma grande reunião em Paris para saber 'como é que nós vamos trabalhar a agenda para o desenvolvimento', para a chamada 'eficácia da ajuda'. Olhar para a agenda dos países em desenvolvimento e não impor uma definida de fora. A isso chamamos alinhamento, harmonizar os doadores, isso quer dizer rearticular a oferta e ajudar a governança dos países a se apropriar dessa ajuda externa de uma maneira mais coordenada. Só que essa dimensão de articulação, na verdade, não consegue se constituir. E por quê? Porque existe uma contradição básica que é a competição entre as várias burocracias internacionais. Cada burocracia acaba vinculando a sua própria sobrevivência e tem de gerar projetos para ela continuar existindo. Então, com isso, o que percebemos é que, embora estejamos eivados de boas intenções, as coisas não se concretizam (digo sempre que se 20% das concepções e das coisas que foram ditas nas conferências da ONU dos anos 90 estivessem sendo aplicadas, o mundo hoje não seria o que é). E se nós estivéssemos trabalhando de uma forma articulada entre os vários doadores, inclusive as agências da ONU, o mundo estaria em outra situação. Eu tenho dito onde posso que em 2015, já estamos antevendo isso, poderemos ter a constatação de um enorme fracasso da ONU, que já está em crise há muito tempo. Ela já não consegue sequer manter a paz. Estamos com 18, 19 forças de segurança no mundo; só na África são milhares de homens mobilizados. Se nem a paz se consegue, imagine avançar numa agenda de desenvolvimento. Então, temos defendido, quanto à questão da ajuda brasileira, que é necessário, em primeiro lugar, articular a ajuda da saúde; em segundo, a ajuda para o desenvolvimento do Brasil. Vejam que tarefa nós temos pela frente. Não conseguimos tampouco articular bem a agenda de cooperação da Fiocruz! Devemos fazer a crítica disso e procurar realizar todos os esforços para superar essas fragmentações: a da ajuda para os vários segmentos do desenvolvimento, a dos doadores, a interna dos países doadores. Nos Estados Unidos, por exemplo, está tudo separado: Usaid [United States Agency for International Development], CDC [Centers for Disease Control and Prevention], NIH [National Institutes of Health]... Todo mundo tem ajuda externa lá, mas não existe a menor articulação. No Brasil é a mesma coisa. Aí é que nos deparamos, por um lado, com a questão da assistência técnica, que não considera os planos de desenvolvimento ou de saúde ou de qualquer outro setor. É preciso participar da agenda do país e, até mesmo, ajudar para o aperfeiçoamento desses planos de desenvolvimento, para posteriormente pensar setorialmente. Por outro lado, as relações internacionais são muito inequitativas também. Quando você compara o que os países ricos dão como subsídios para sua agricultura interna, é oito ou dez vezes maior do que para a ajuda externa. O principal mercado global que os países em desenvolvimento têm acesso, em geral o mercado das commodities agrícolas, está minado pelo subsídio. Você dá uma migalha aqui, outra acolá, mas isso não permite ao produtor colocar de uma forma honrada a sua produção no mercado mundial. Então, a globalização, que foi vendida como redenção para o progresso do mundo, aprofundou, pela divisão internacional do trabalho, a iniquidade entre os países, o que repercute profundamente no interior das nações porque, no final das contas, terminamos com a economia de subsistência e passamos a ter a organização interna dos países para a exportação. Só que a exportação está na mão de multinacionais ou de grandes empresas exportadoras nacionais, que se apropriam da maior parte do dinheiro que vem desse tipo de operação. Além do mais, estamos observando o ressurgimento, ou melhor, a explicitação do protecionismo. Na verdade, a conformação de um modelo de governança global, que resulte em uma globalização justa, depende muito do papel que os países desenvolvidos venham a ter. Essa questão crítica da agricultura, por exemplo, é resultado do grande choque da última negociação de Doha, sem que se chegue a um fechamento da questão. Então, em síntese, para voltar à pergunta originalmente colocada, não dá para se pensar em programas de ajuda externa ou na cooperação internacional também, se não for para atender a ideia do enfrentamento das múltiplas causas das iniquidades, o que não se consegue sem estar trabalhando com esse conceito de determinação social, inevitavelmente. E é isso que estamos tentando incluir em todos os nossos textos e vamos ver aonde chegamos.

Revista

Implementar o 'treinamento' em saúde de membros das comunidades carentes para que atuem na prevenção de doenças tem sido uma das estratégias de ampliação de ações desse setor, vista como um caminho para a garantia de acesso à saúde e melhoria das condições de vida. Isto não seria um reflexo de uma compreensão reduzida da complexidade do trabalho em saúde e, ao mesmo tempo, um esvaziamento do papel da educação na qualificação deste trabalhador?

Paulo Buss

Sem nenhuma dúvida. Temos de ajudar a construir instituições capazes de pensar o concreto do seu país e de formular intervenções na formação de pessoal no contexto específico desse país, com sua complexidade e seus próprios recursos. É preciso pensar que para os países que estão em condições piores, do ponto de vista de indicadores de saúde, do ponto de vista de condições econômicas, é absolutamente crítica a questão de pessoal da área técnica, quer dizer, do pessoal de nível médio. Não adianta querer sonhar também com grandes universidades, se não há projetos sérios para a área fundamental. A África tem dado muitos exemplos: se não há qualquer outro recurso, use o que tem. Agora, se pudéssemos ajudar os países mais pobres da África, da América do Sul e da Ásia nunca falamos da Ásia porque fica distante da gente a estruturar instituições de formação de pessoal técnico sustentavelmente, quer dizer, que possa gerar o próprio pensamento crítico da sua sociedade e trazer nesse pensamento crítico uma resposta para a formação, isso é o que temos de perseguir. A Fiocruz, através da Escola Politécnica e da Escola Nacional de Saúde Pública, tem papel fundamental na construção de redes de escolas com estas concepções nos países em desenvolvimento com quem o Brasil mantém ativa cooperação na área da saúde.

Revista

Qual o 'risco' das cooperações internacionais se traduzirem em dominação dos países centrais sobre os países periféricos? Em que medida as ações e estratégias implementadas podem fortalecer a ideologia e as formas de exploração capitalista?

Paulo Buss

Em torno disso, identifico duas questões mais relevantes. Uma é a do modelo e a outra é a da retórica da ajuda, porque, na realidade, não foram detectados aumentos expressivos na ajuda externa nos últimos anos. A decisão de aplicar 0,7% do PIB dos países desenvolvidos em ajuda externa só se materializou de fato em cinco países 'pequenos', os nórdicos: Dinamarca, Noruega e Suécia, além de Luxemburgo e Holanda. Já nos países de grandes PIBs, Alemanha, França, Estados Unidos, principalmente, estão distantes de fazer essa aplicação. E quando fazem, a definição acontece fora, como é o caso do PEPFAR [President's Emergency Plan for Aids Relief], que define que a ajuda vai ser para a saúde, para a parte de malária, tuberculose e HIV/Aids. Ora, a maneira como se dá essa ajuda é autoritária, porque ela define esses três problemas baseada na carga de enfermidade, mortalidade e morbidade. Essa ajuda não leva em conta como é que se estruturam os programas de saúde dos países. Afinal, tem de administrar e fazer acontecer. Oferece dez vezes o salário que a pessoa receberia do sistema de saúde do próprio país e, por conta disso, esse programa destrói, porque capta as melhores pessoas do sistema de saúde desses países. Depois de alguns anos, vão embora e a distorção permanece. A tendência, hoje, se você quiser superar essa ideia de centro e periferia, e se quiser superar a ideia da dependência e da manutenção da dependência, é contribuir efetivamente numa cooperação e não numa assistência, na organização da demanda por parte desses países, o que significaria que o país deterá as demandas que ele vai fazer, saberá fazer e será respeitado nesse aspecto, porque a ajuda será destinada para que se responda às demandas que o país tem. Aí existem algumas coisas críticas, na minha visão. A primeira é o reforço a sistemas de saúde e não a programas de controle de doença. Esses programas fragmentados, em pedacinhos, podem e devem entrar em uma concepção mais geral de reforçar o sistema de saúde. Não vejo outra maneira de reforçar o sistema de saúde se não ajudarmos a construir instituições estruturantes dentro desses sistemas e, para mim, as principais instituições estruturantes do sistema de saúde são os ministérios da saúde, os institutos nacionais de saúde, as escolas técnicas, as escolas de saúde pública, as principais graduações, ou seja, todo o programa de formação de profissionais para a saúde, mas com uma profunda ligação com o sistema de saúde. Assim deixamos sustentável essa ajuda, fazendo dela não algo casuístico, mas definitivamente sustentável. Acho que o Brasil realizou isso com os seus próprios recursos, quer dizer, na saúde brasileira, assim como na agricultura - algumas outras áreas, como a educação, eu não conheço tanto -, foram os recursos próprios do país que construíram a concepção de sistema. É o exemplo clássico da VIII Conferência, [VIII Conferência Nacional de Saúde] que teve em sua história um movimento de saúde pública forte, um movimento de escolas técnicas forte, mesmo com todas as mazelas que nós sabemos existirem. Então, a superação do modelo de dependência é, nesse sentido, o reforço, a construção da sustentabilidade institucional no campo da saúde. E nos demais campos, eu diria no mínimo da agricultura, educação e saúde, nesses três devíamos promover uma ajuda global, por se tratarem de áreas absolutamente vitais. Por isso que não sou tão crítico em relação aos objetivos do milênio, porque ele é até mais amplo do que isso. E quando você faz a ideia da aliança para o desenvolvimento, se a gente conseguir constituir um elemento de articulação ou de coordenação e, eventualmente, de integração, acho que é um caminho. Porque, afinal de contas, esse é que foi o acordo global, temos de reforçar isso também. No último artigo que escrevi, faço uma crítica severa aos ODM, mas que pretendo que seja construtiva, porque não quero contribuir para a destruição do único grande acordo global entre países que aconteceu nas últimas décadas. O resto foi a barbárie do liberalismo...

Nota

  • 1
    Entrevista concedida a André Malhão, diretor, e Anamaria Corbo, coordenadora da Cooperação Internacional, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
    Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio Avenida Brasil, 4.365, 21040-360 Rio de Janeiro, RJ Brasil, Tel.: (55 21) 3865-9850/9853, Fax: (55 21) 2560-8279 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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