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André Malhão

André Malhão

ENTREVISTA INTERVIEW

Quando ingressou na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), em 1987, André Malhão tinha como atribuições principais atuar na formação de jovens adultos, à época denominada supletivo, e integrar o grupo responsável pela formulação e implementação do Curso Técnico de Nível Médio em Saúde, de cuja coordenação fez parte por dez anos. Durante esses 22 anos, Malhão atuou como docente, desenvolveu projetos de formação e teve participação ativa na vida institucional da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sendo ainda diretor geral da Associação dos Servidores da Fundação Oswaldo Cruz (Asfoc), atualmente sindicato nacional. Nos últimos oito anos, em que esteve à frente da gestão da EPSJV, intensificou sua ação no sentido de estabelecer a educação profissional em saúde como um objeto de pesquisa, ensino - inclusive em nível de pós-graduação - e cooperação nacional e internacional. É a partir de uma reflexão crítica em torno dessas experiências e da dimensão política na qual se inserem que André Malhão concedeu essa entrevista à Trabalho, Educação e Saúde, na qual se destaca sua convicção do lugar do Estado na garantia tanto da educação quanto da saúde como direitos de cidadania, bem como das propostas decorrentes das interações entre essas esferas.

When André Malhão joined the Joaquim Venâncio Polytechnic School of Health (EPSJV) in 1987, his main tasks were to participate in the training of young adults, at the time called supplemental education, and to integrate the group responsible for the formulation and implementation of the course in Middle Level Technical Health, of whose coordination he has been a part of for ten years. During these 22 years, Malhão served as a teacher, developed projects for training, actively participated in the institutional life of the Oswaldo Cruz Foundation (Fiocruz), and served as the director of the Association of Civil Servants of the Oswaldo Cruz Foundation (Asfoc), currently the national union. Over the past eight years, during which he lead the management of the EPSJV, he intensified its action to establish professional education in health as an object of research, education - including at the postgraduate level - and national and international cooperation. It is from a critical reflection about these experiences and the political dimension in which they are inserted that André Malhão granted this interview to Trabalho, Educação e Saúde, which stresses his conviction of the place of the state in ensuring both education and healthcare as rights of citizens, as well as the proposals arising from the interactions between these spheres.

Revista

O último projeto para o ensino profissional e tecnológico prevê a criação de novas unidades de ensino, de milhares de vagas. Como o senhor analisa o atual processo de expansão do ensino profissional?

André Malhão

O mais recente projeto do atual governo federal sobre expansão da educação profissional contém uma série de dimensões que merecem ser analisadas, além daquelas já tradicionais sobre a educação técnica e que apontam para a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual. Do meu ponto de vista, devemos pensar como esse processo atua no terreno da contradição, que é própria da sociedade em que vivemos. Se nos detivermos nas últimas décadas, ou seja, diante da onda neoliberal, veremos que o governo anterior, liderado por Fernando Henrique Cardoso, defendia e colocava em prática a diminuição clara e ostensiva do Estado. É possível identificar ao menos dois conjuntos de procedimentos que viabilizaram essa diminuição: os processos de privatização direta de empresas e instituições públicas (como, por exemplo, nas áreas de energia, telefonia e exploração mineral), e outro, talvez menos comentado e visível, um brutal contingenciamento da atuação do Estado. Assim, mesmo nos espaços em que se afirmava a importância do Estado, como as áreas da saúde e da educação, houve retração na contratação de servidores federais, aliada à diminuição de verbas de custeio e capital, enfim, das bases típicas de sustentação de instituições públicas. Ou seja, ainda que no discurso oficial houvesse a identificação desses lugares como sendo cabíveis de intervenção estatal, ocorria claramente uma aposta no sentido contrário.

Revista

Poderia especificar as políticas ou os projetos aos quais o senhor está se referindo?

André Malhão

A primeira política é a de ampliação das escolas técnicas. O Programa de Expansão da Educação Profissional (Proep), desenvolvido no governo Fernando Henrique, dá bem a medida do que estou falando. Também tinha o pressuposto de ampliação da educação profissional, mas suas linhas, seus princípios e suas diretrizes eram distintos da política atual, que inaugura os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (Ifets), um processo paralelo que já está ativado. Por exemplo, o Proep tinha como um dos seus componentes principais o 'apoio ao segmento comunitário'. Do meu ponto de vista, na realidade isso significava apoio direto ao setor privado educacional. Na prática, não houve priorização para as redes públicas de educação técnica, embora tenham sido destinados recursos para as unidades do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) e outras instituições, como a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), no plano federal, e outras no plano estadual. Já o projeto do atual governo federal, liderado por Lula, de expansão da Rede Federal de Educação Profissional, pretende criar mais 250 escolas técnicas federais (vinculadas aos Cefets ou aos Ifets), buscando alcançar quinhentas mil matrículas. O governo federal centrou fogo na expansão da rede federal. Qual era a sua base? Agrotécnicas e Cefets. No meio do processo, veio uma reorganização estrutural dessa rede, que levou grande parte dos Cefets a se transformarem em Ifets - hoje existe pelo menos um Ifet ou Cefet em cada unidade da federação, agregando inúmeras escolas técnicas ou agrotécnicas instaladas em diversos campi, indicando preocupação em proporcionar cobertura em todo o território nacional.

Eu não tenho qualquer ressalva ao atual projeto de expansão do ensino profissional. Considero essa política completamente acertada. O meu entendimento é de que os que se comprometem com a educação profissional pública devem se aliar fortemente na defesa dessa expansão, pois antes de tudo significa assumir e fortalecer o lugar de Estado num projeto de formação da sociedade. Nossa análise não pode secundarizar o fato de que essa ampliação vai atingir os segmentos mais necessitados da população, mais empobrecidos, mais excluídos e que, salvo exceções, estão sendo empurrados para o setor privado.

Revista

O senhor está fazendo alusão ao setor privado de ensino? Seria possível alterar essa tendência?

André Malhão

Sim. Nos segmentos populares, observa-se que, em primeiro lugar, é necessário deixar o dia livre para o trabalho, acarretando a busca pelo ensino noturno. Isto está entre as causas de maior peso no crescimento de instituições de ensino privadas, absolutamente precárias, em diversos sentidos, que oferecem mensalidades a um custo que esse segmento da população pode, com esforço, pagar. Os números do Observatório dos Técnicos em Saúde da EPSJV mostram, por exemplo, que 80% da oferta de educação profissional em saúde eram provenientes do setor privado. Não sei se isso mudou, mas até 2005 esse era o quadro que tínhamos no Brasil. A alteração desse quadro passa por uma política de afirmação do lugar do Estado na educação. Isso tem implicações práticas que vêm sendo assumidas, dentre as quais eu destacaria a construção predial; a instalação de escolas em lugares em que anteriormente elas não existiam; a contratação de professores; o reajuste salarial dos professores; e, como decorrência disso, a ampliação de matrículas e a oferta de educação profissional para esses segmentos da população. O que se percebe é que se os segmentos médios - a elite nem se fala - conseguem viver sob a tutela das suas famílias durante mais tempo, prolongando o período de estudos, indo para a universidade e depois fazendo mestrado, doutorado, o que não ocorre nos segmentos populares. Mesmo admitindo que isso não faria parte da sociedade que desejamos, a possibilidade de ampliar a educação profissional para quinhentas mil vagas, mesmo que de forma fetichizada, sustenta a possibilidade concreta de ter processo formativo que abre possibilidade de inserção no chamado mercado de trabalho. Portanto, não deixa de ser interessante. O contraponto disso é um modelo exclusivamente centrado numa imagem de classe média, no qual há uma formação propedêutica, apostando que a única via de acesso ao mundo do conhecimento e do trabalho é a universidade e, posteriormente, o mestrado e o doutorado. Isso não se coloca para uma sociedade inteira. Não quero que pareça que estou defendendo um modelo em que, para os segmentos médios, o previsto é o Ensino Médio, a universidade e daí por diante, e para os segmentos populares, quando muito, se chega à formação profissional no Ensino Médio. Porém, não podemos deixar de nos situar ante as possibilidades concretas da população e a superação dessas possibilidades, e nos relacionarmos de forma mais madura com as necessidades de efetivação da existência desta população. Neste contexto, a formação profissional é fundamental, por pressupor alguma garantia de chances de disputa - porque, infelizmente, essa é uma sociedade de disputa - de este segmento ter algum nível de inserção social. O que precisamos fazer é romper, ao mesmo tempo, com os princípios e a materialização da sociedade dual e excludente e abrir as possibilidades para a construção de uma sociedade baseada na diversidade de inserções no mundo do trabalho e igualitária nas condições de produção da vida humana.

Revista

Retomando a questão do fetiche em torno da educação profissional, em que medida o modelo de sociedade atual deve ser responsabilizado pelo fracasso de uma inserção social?

André Malhão

Quais são os problemas disso? É óbvio que em uma sociedade que, por essência, é excludente, a questão da educação é trabalhada no suposto de um certo fetiche, como se, ao formar profissionalmente, existisse a garantia de empregabilidade. Esse é um mito danoso, do ponto de vista individual, coletivo, familiar ou escolar. Eu costumo dizer que chega a ser perverso porque induz o indivíduo e a sociedade a pensarem que, depois das ofertas e 'oportunidades' que foram dadas, quando ocorre o abandono da escola, ou mesmo quando há continuidade no estudo, se isso não redunda em obtenção de emprego, o problema é do indivíduo, ou da família, ou da escola, e nunca do próprio modelo de sociedade excludente, competitiva e não solidária. Isso é um perigo, não tenho a menor dúvida, porque se reflete na ideia de que são oferecidas oportunidades, como se elas se distribuíssem de forma igual para segmentos completamente desiguais. Isto é uma base para a construção da ideia do desemprego como fracasso do indivíduo, da família ou da escola. A sociedade monta uma engrenagem de tal ordem que as questões que estruturam essa debilidade, esse processo de exclusão, ficam pouco aparentes. O que fica fora desse entendimento é que a oferta de emprego e a capacidade de, de fato, gerar pleno emprego para todos, é um processo que depende de determinação política, viável somente num outro marco de organização e princípios de sociedade, em que se busque compor a ordem econômica com a ordem social. Isso não acontece, porque as concepções hegemônicas atuais colidem, conflitam, confrontam e buscam anular qualquer outro projeto que se coloque em antagonismo. Não dispomos, nem sequer se propõe, de uma planificação da economia de tal forma que possa se buscar alcançar a possibilidade de pleno emprego, mas, ao contrário, trata-se de uma sociedade de elevada concentração de riquezas, profundamente desigual. Portanto, o processo de desemprego tende a ser cada vez mais acentuado.

Revista

Que equívocos o senhor apontaria em relação à educação voltada tendenciosamente para o mercado, em detrimento de uma formação completa do homem?

André Malhão

Mesmo sendo absolutamente positiva a ampliação da educação profissional, como registrei anteriormente, uma boa pesquisa poderia focalizar até que ponto esses projetos locais não entraram nesse terreno do fetiche da relação educação-empregabilidade. Uma forma de colocar isso em discussão seria a adesão aos chamados 'arranjos produtivos' das regiões com a pretensão de adequar a organização de currículos mais afeitos à preparação para o mercado. Então, se por um lado a leitura que faço aponta para a positividade de se retomar o papel do Estado, a intervenção estatal, principalmente na busca de criar, num ambiente público, condições mais dignas para os segmentos populares, inclusive como possibilidade de formação da sua juventude, por outro lado, essa ampliação ainda se dá sobre alguns pressupostos relativos à educação, hegemônicos na nossa sociedade. Assim, trilha-se o caminho no qual a educação profissional é equivalente à ideia de treinar para o mercado de trabalho, o que é um duplo equívoco. Primeiro, do ponto vista das concepções de homem e sociedade que podemos alcançar, visto que enfatiza que alguns homens, quando muito, servem para ser preparados, portanto limitados, reduzidos na sua construção social. Mas é também um equívoco do ponto de vista operacional, concreto. No mundo, temos exemplos que mostram que também do ponto de vista do crescimento e do desenvolvimento econômico e social é mais vantajoso a viabilização de uma formação plena. Infelizmente, embora o Brasil pretenda ser moderno do ponto de vista econômico, se mantém atrasado em relação ao pensamento educacional de outros povos.

Revista

Em sua opinião, até que ponto o currículo é, entre os diversos mediadores dos processos pedagógicos, aquele que mais efetiva o risco de gerar uma formação instrumentalizadora?

André Malhão

No campo da educação, o currículo constituiu-se como uma área de estudos específicos, do qual eu não me aproprio, em particular. Minha reflexão sobre a questão curricular se apoia muito mais na experiência como professor e gestor de uma escola, a Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, que nos seus 24 anos tem lidado de diversas formas com a elaboração de currículos. Assim, o que tenho aprendido é que a opção por orientar a elaboração de cursos pela oferta de trabalho que está posta, em uma economia plantada na lógica de determinação pelo mercado, é um equívoco. Se um produto, um calçado, por exemplo, passa a não ser vendido, aquilo que era o forte daquela região deixa de ser. A própria definição dos cursos é perigosa quando foca exageradamente nas tais prioridades dos arranjos produtivos locais. A perspectiva de desenvolver uma formação profissional exclusivamente mirando que aqueles jovens que vão fazer o curso depois vão ser empregados em uma função restrita tende a fomentar uma organização segmentada e reducionista tanto do currículo quanto do plano de curso. Se, ao invés de pensarmos uma atividade mais restrita, imaginarmos, por exemplo, o campo da saúde, veremos que o aumento da expectativa de vida da população, as modernas tecnologias e os propósitos de alcançar melhoria da qualidade ambiental fazem da saúde um campo profissional em franca expansão e, por decorrência, um campo de incorporação de trabalhadores, seja de nível médio ou superior. E espera-se que o setor saúde se faça presente em todas as regiões, acompanhando o processo de desenvolvimento dessas regiões.

Entretanto, o que é bom do processo educacional é que a contradição está sempre presente. É óbvio que aquilo sobre o que estou falando, como tendência de restrição, pode não se dar em determinados espaços educacionais porque os próprios educadores que estão à frente da construção de currículos e de planos de curso, e isso é muito comum, reagem a esses 'pressupostos'. A própria ideia do Ensino Médio integrado é excelente, e várias dessas propostas que estão em curso são no Ensino Médio integrado, ou seja, Ensino Médio junto com a formação profissional. Agora, quando você coloca os professores de física junto com os de biologia, história etc., com disciplinas da área técnica, eles mesmos deverão criar tensão para a realização do currículo e do plano de curso, a fim de não correr o risco de se cair em uma proposta reducionista. Na EPSJV, temos uma experiência que é muito interessante. Apesar de alguns discursos/falas de determinadas pessoas, do ponto de vista da racionalidade, transmitirem a lógica de preparação para o mercado, no concreto da formulação dos cursos isso não se dava, porque os docentes tinham uma boa formação e, na hora de elaborar uma proposta de formação, eles não se limitavam à dimensão instrumental.

Revista

Em sua fala sobre a educação, está muito presente o entendimento de que coexistem as possibilidades de retrocesso e avanço social. Tendo em vista sua menção ao campo da saúde, o senhor poderia retomar esse eixo de reflexão para pensar sobre a saúde?

André Malhão

Estou trabalhando com a contradição como uma categoria central de análise. Em uma sociedade que se pauta pela lógica de mercado, do ponto de vista da disputa, tendo o discurso de que seria o consumidor quem define o que tem ou não valor, vai sobreviver a mercadoria que o consumidor comprar. Existem modelos de sistemas de saúde funcionando dessa maneira. Você dá dinheiro na mão da população e ela compra, no mercado, o que ela quiser. Sobrevive assim o plano de saúde ao qual a população mais recorrer, com baixíssima regulação. Não vislumbro alternativa que não seja apostar no sentido inverso. E essa aposta tem não só a elite, mas a mídia como uma força contrária. Quando essa entrevista for publicada, certamente estaremos lidando com as afirmações de que a carga tributária é alta, que a arrecadação pública é alta e que o Estado está inchado. São leituras para as quais a expansão da educação profissional, por exemplo, incha o Estado. São mais servidores públicos, mais instalações prediais, mais manutenção, mais capital... Mas, voltando para a saúde, é um dilema parecido que se vive. Só que eu encontro aí uma complexidade própria, ancorada em um movimento progressista brasileiro, que exacerbou a descentralização no sentido da municipalização. O lugar público e estatal, no caso da saúde, hoje é preponderantemente representado pela esfera municipal. Em algumas atividades, os estados e a União atuam como órgão de regulação e de financiamento, com indução de políticas a partir do financiamento. Quando eu estava falando da expansão da educação profissional no plano federal, isso se viabiliza por existir um instrumento poderoso que os Cefets passaram a ser. Se a educação tivesse o mesmo processo da saúde, não existiriam mais instituições federais de educação técnica. Inclusive existia defesa, naquela época, por uma concepção ultrafederalista de país, de que a União fosse tão somente 'o lugar' de recolhimento prioritário de impostos, concentração, portanto, dos fundos públicos majoritários e indutores de políticas. A execução seria dos estados e municípios. Na medida em que o projeto de constituição do Sistema Único de Saúde (SUS), que é o formato concreto e material do que seriam algumas das concepções da Reforma Sanitária, estabelece a descentralização e a municipalização, a meu ver de forma absolutamente excessiva e radical, passam a faltar alguns instrumentos executivos federais necessários para a construção de projetos centrais e nacionais. Por exemplo, se um governo federal define como importante criar pelo país unidades assistenciais hospitalares federais, isso é praticamente impossível ou muito difícil de se viabilizar hoje. Propostas nesse sentido quase sempre são condenadas como uma refederalização ou uma volta a um passado da realidade da saúde que não se quer mais. A permanência dessas estruturas, no Rio de Janeiro, em Brasília e no Rio Grande do Sul, por questões históricas, conjunturais e circunstanciais, é considerada uma anomalia à própria construção do SUS. O governo federal se tornou frágil neste sentido e assim passou a depender necessariamente de uma forma de controle e de indução de política única e exclusivamente a partir do financiamento. O nível federal não consegue ter uma relação de supervisão efetiva sobre a execução dos projetos pactuados, o que me parece gerar expectativas excessivas em torno da capacidade de os modelos de avaliação oferecerem essas respostas. A realidade da educação profissional, no caso brasileiro, era - e ainda é - exatamente essa. Havia uma soma razoável de dinheiro e não sabemos o que, efetivamente, foi feito pelos estados ou pelos municípios. Parece-me que a saúde, do ponto de vista organizativo, necessitaria ter um novo balanço de concepções, questionando se não caberia algum papel federal ainda na dimensão executiva. Não seria necessário ter dimensões que trouxessem para o campo da contradição e dos conflitos na sua própria engrenagem federalista? Entendo que o Brasil é uma federação, só que uma federação até complexa, porque ela não foi concebida, por exemplo, no modelo americano, que tem grande independência nas esferas estaduais. No Brasil, é uma federação com autonomias relativas. Se o Estado quiser definir uma lei que legaliza o aborto ou descriminaliza o uso de drogas, para pegar temas da saúde, não é possível. Isso é necessariamente matéria federal. Na saúde, fez-se uma opção, que eu compreendo, que está correta, que é estabelecer a realidade local como plano de poder para a definição de prioridades a partir das necessidades, do perfil epidemiológico. Daí a dizer que por isso é preciso radicalizar organizativamente, executivamente, não acho acertado. É claro que na saúde vão ter questões, principalmente, traçadas pelo perfil e pelas condições socioambientais existentes na área que podem existir somente naquela área. Mas não é só isso que existe ali. Creio que é preciso haver mais mediação nesse processo.

É importante tomar cuidado, para que não nos tornemos idealistas, em um mal sentido, com hipertrofia à crítica e sem perceber a materialidade e as possibilidades concretas postas pela realidade. A Reforma Sanitária é um exercício perfeito sobre isto, pois é proposta para uma sociedade capitalista e traz a tensão de não ceder a essa lógica, em face da compreensão da saúde como direito, ao mesmo tempo que não fica aguardando um socialismo, uma outra sociedade libertária, para construir um sistema de saúde com projeto socializante. A Reforma Sanitária trabalha com o que é possível, 'esticando a corda' não apenas na saúde, mas, até pelo conceito de saúde que adota, no próprio projeto de sociedade. Então, é simultaneamente espaço de resistência e de avanço. Não é à toa que o movimento da saúde e as políticas de saúde estão entre os mais interessantes 'das décadas de 1970 e 1980', com ápice na Constituição de 1988. Ela é emblemática, porque trabalha efetivamente na lógica da contra-hegemonia, no sentido de afirmar que saúde, tal como a educação, são bens da humanidade, portanto, universais, para todos. Aí encontramos o sentido do bem-estar social, da qualidade de vida das pessoas sobre a qual a saúde atua fortemente, seja na assistência, na prevenção e na promoção.

Revista

O processo de formação em saúde em curso no Brasil tem conseguido refletir a concepção política de saúde e de sociedade propugnada pelos preceitos da Reforma Sanitária?

André Malhão

O processo formativo também passou a integrar a dimensão da saúde, com o tema da formação se fazendo muito presente. Mas eu identifico aí uma lógica mecânica na relação entre o que seriam as necessidades do SUS e a formação do trabalhador. Se, até certo ponto, é coerente responder às necessidades do sistema com processos de formação, de preparação, até mesmo de treinamento, é extremamente problemático trabalhar com essa dimensão no seu próprio interior, na ideia de formação. Não é à toa que é muito comum o uso na saúde da expressão 'recursos humanos', que na sua própria concepção situa alguns como gestores de humanos. Então, a pessoa está num outro lugar, deslocado, ela não é um trabalhador também, mas um gerente dos recursos humanos, assim como existem os gerentes de recursos materiais e financeiros. Esta lógica traz embutidas as referências de quantidade, qualidade, estoque. Assim, por mais que a premissa, o sentido, a necessidade e o objetivo sejam contra-hegemônicos, progressistas, os processos formativos acabam submetidos a essa lógica. Quanto à Reforma Sanitária, por tratar-se de um projeto trabalhado no campo da política, o próprio processo formativo pressupõe a compreensão e a apreensão da concepção política da visão de saúde e de sociedade. Por essa especificidade poderia ter havido mais avanço. Se houvesse a extensão, para o plano da formação em saúde, da lógica e dos princípios que estavam pautando as propostas de mudança para setor saúde, teríamos como consequência processos políticos e técnicos, que mais gerariam contradições, conflitos e confrontos no próprio sistema de saúde. O que seria bom. Por exemplo, por que a estratificação no interior do nível superior, do nível médio e ainda por que uma pirâmide tão grande? Por que a criação de agentes de saúde, agentes de endemia, auxiliares? Isso é típico de uma organização fabril, empresarial, que tem uma segmentação entre humanos segundo a qual aqueles que estão no ápice detêm maior saber e os outros são cargos e formações mais executivas, em uma velha e clássica separação entre trabalho de concepção e trabalho de execução, entre trabalho intelectual e trabalho manual etc. Então, se por um lado são compreensíveis determinadas opções em função de necessidades postas pelo sistema de saúde, não podemos aceitá-las como se representassem uma forma harmônica de estruturar o sistema e o trabalho em saúde. A questão é que esta segmentação traz a própria divisão social, e não é só a divisão técnica do trabalho. E essa divisão social está em profunda contradição com o próprio projeto de Reforma Sanitária, que visava, e visa, na verdade, à reforma da sociedade, e não só da saúde.

Revista

Então, as soluções que deveriam ser temporárias para um sistema de saúde nascente, calcado na realidade do país, acabaram se cristalizando, fortalecendo a categorização da divisão social do trabalho...

André Malhão

Vou centrar meu raciocínio no profissional técnico. É possível o trabalhador qualificar-se em torno de um conhecimento técnico de nível médio, sem necessariamente ir para a graduação, o mestrado e o doutorado. Porém, o seu lugar na sociedade, tendo em vista a especificidade do agir/fazer técnico, deveria poder torná-lo tão qualificado quanto um doutor, considerando-se inclusive a necessidade do desenvolvimento daquele trabalho na sociedade. Portanto, isso poderia estar expresso através do tripé básico de reconhecimento, que inclui realização financeira, satisfação pessoal quanto ao que é produzido e reconhecimento da sociedade sobre o valor daquele trabalho. Não cabe aqui a hipocrisia, por exemplo, de dizer que o trabalho de lixeiro é muito bom, útil e necessário, porém os segmentos médios que trazem esse discurso não querem que seus filhos tenham essa profissão. Então, ele não é, na prática, valorizado. Ele é secundarizado. Trabalhos simples e que não poderiam gerar uma profissionalização associada à valorização deveriam ser feitos em rodízio. Um projeto como o da saúde, o da Reforma Sanitária, através do qual se expressa o desejo por uma 'sociedade de iguais', em que se rompe com a saúde como mercadoria, acessível aos que dispõem de determinadas condições (financeiras ou de inserção social) e aos demais, destinado à caridade ou aos programas assistencialistas, requer muitos trabalhadores bem formados para a implementação dessa política. O problema é quando, em relação à formação, a lógica predominante se dá em torno da ideia de recursos humanos aliados a uma estratificação hierárquica que redunda na definição de 'doses de conhecimento' supostamente adequado a cada estrato. E é nesse cenário que se impõe um outro discurso complicado, sobre a escassez de recursos financeiros. Esse discurso vem apoiado pela ideia de responsabilidade e racionalidade no uso do recurso público, só que infelizmente não coloca em questionamento algumas prioridades, cuja destinação de recursos deteriora a capacidade pública de financiamento para áreas como a saúde. Vejo como consequência desse processo uma naturalização de situações que deveriam ser transitórias e circunstanciais. A ideia dos atendentes de enfermagem, os agentes de saúde, os agentes de endemia, os diversos auxiliares. São necessários? Claro que são. Isso foi uma bela saída, do ponto de vista do sistema, de ampliar a possibilidade de cobertura e do atendimento e alcançar alguns bons indicadores de saúde? Foi. Agora, daí a dizer que é este o modelo que queremos estabilizar, é um problema. Não negar formulações de ações que são necessárias e que são as possíveis para aquele momento é válido, mas é igualmente necessário realizá-las assumindo que se trata de um processo insuficiente, limitado, que ainda traz consigo desigualdade. A questão é se a determinação vai ser de trabalhar nos marcos dessas políticas, afirmando o seu lugar de contradição, para dar o passo seguinte, ou se vai se naturalizar. Aí é que entrou uma contradição forte na área de formação de recursos humanos na saúde. Nesse caso, e retomando a questão da formação na saúde, as lideranças técnicas não poderiam acreditar que essas pirâmides trazem benefícios, mas me parece que acreditam nisso e fazem uso dos argumentos dos limites financeiros para consolidar essa hierarquização profundamente desigual. É permitir que a dimensão executiva tome conta da dimensão política e intelectual.

Revista

O que o senhor está apontando é que a hipertrofia da dimensão executiva institucionaliza a precariedade das relações de trabalho?

André Malhão

Para esclarecer, vamos tratar de situações concretas. Eu poderia falar da enfermagem, que já é um exemplo clássico. Mas prefiro trazer uma política mais recente e de grande envergadura que é a estratégia Saúde da Família, enfatizando o lugar do agente comunitário de saúde (ACS). Surpreendentemente, o processo de inserção desse trabalhador, o ACS, em certa medida reproduz o processo anteriormente vivido na enfermagem. Só que com agravantes, pois se constrói sobre a perda da memória do que foi o percurso da enfermagem. O que acontece com o ACS? Pela insuficiência de recursos do Estado, faz-se um programa de saúde da família dentro do que seriam as possibilidades brasileiras. Não estou condenando o programa, acho que é correto e necessário. Então, cria-se o ACS como elemento de relação entre os segmentos mais pobres da sociedade e os profissionais de nível superior. É recorrente a ideia de que o ACS é um elo entre comunidade e serviço de saúde. Isso não está proposto da mesma forma para os segmentos médios da população. Mas a ideia do Programa Saúde da Família é importante, tendo em vista vários pressupostos que balizam o setor saúde hoje, como a promoção e o próprio reordenamento do sistema, privilegiando a atenção básica. Porém, estou mais interessado em destacar as questões que precisam ser trabalhadas ou reveladas. Surpreendentemente, a saúde, que é considerada progressista, e que até alguns anos atrás criava esse processo como lógica de tensionamento, hoje reage contrariamente ao assumir que o ACS não pode ficar nessa esfera, em que o previsto como formação/educação é mínimo, e assim levantar a bandeira do curso técnico, como formação mínima dos trabalhadores da saúde, como existe hoje em qualquer país mais desenvolvido e em processo de desenvolvimento. Mas o que vimos é que, mesmo dentro dos segmentos da Reforma Sanitária, em especial os que se encontram nas esferas governamentais argumentam que não se trata apenas da falta de capacidade financeira, mas entendem que o sistema não necessita de um agente de saúde que tenha de ser técnico ou, ainda, que não deveria ser técnico, pois poderia acarretar a perda da identidade com a sua população, com o seu grupo de origem. Isso é um absurdo completo. Trata-se de uma abordagem antagônica à própria concepção e aos princípios da Reforma Sanitária brasileira.

Revista

Esse argumento da perda de identidade ainda se faz presente na discussão sobre a formação dos ACS, o quanto isso lhe parece válido e consistente para orientar proposições de formação?

André Malhão

Em relação a isso, tenho uma pergunta: nós queremos que essa população continue com essa identidade? Precisamos questionar a mensagem que estamos transmitindo para a sociedade. Estamos dizendo aos que são pobres que é importante que convivam e vivam a precariedade, inclusive educacional, que caracteriza a pobreza? Esse segmento da população deve esperar que todos deixem de ser pobres para que eles possam vislumbrar algum nível de ascensão social? Existe algum projeto nacional, algum projeto que de fato acabe com a desigualdade, que acabe com o processo de exclusão, que, portanto, acabe com as favelas como condição de moradia e transforme-as todas em bairros, com condições de dignidade, que todos tenham escolas e que crianças e jovens até 18 anos possam não precisar trabalhar? Não tem isto. Então, não se resolve um problema que é da sociedade e se quer condicionar que aquele trabalhador, que é o agente de saúde, fique esperando, sabe-se lá qual o tempo histórico? Isso em nome de ele continuar sendo elo, tradutor da comunidade? Além disso, se tem uma identidade que pode ser relevante, neste caso, seria a identidade de classe, o que não se constrói necessariamente pelo compartilhamento do cotidiano. O outro elemento que eu destaco é que quanto mais os trabalhadores da área da saúde forem escolarizados, mais bem formados, certamente o próprio sistema de saúde ganha. Os próprios trabalhadores alcançam, assim, melhores chances de realização e atuação no próprio processo de trabalho e na sociedade como um todo. Então, vamos puxando, esticando a corda e fazendo apostas políticas, necessariamente. A Reforma Sanitária foi tensão pura. Sergio Arouca, quando liderava algum processo, o fazia na tensão pura, colocando o dedo na ferida da contradição e empurrando para frente. Vai me dizer que em 1988 havia condições financeiras, um país melhor para implantar um sistema único de saúde pública? Então, a resposta à sua pergunta é a seguinte: claro que a sociedade tem limites, é finita nos seus recursos e, portanto, precisa de uma organização da sua força de trabalho que pressuponha a existência até dos agentes e dos auxiliares. A questão é acomodar-se com isso ou não. Precisamos de um projeto, para a sociedade como um todo, em que todos tenham, no mínimo, o curso técnico e o Ensino Médio. Mais à frente, que todos sejam graduados, se for esse o projeto de sociedade. A educação não tem esse aspecto servil, do ponto de vista de que ela, por si só, vai gerar a empregabilidade, porém, sem educação não se faz nada. Educação é base estruturante de uma sociedade, de uma nação.

Revista

Na formação técnica de nível médio e no âmbito das concepções da própria formação técnica, dos cursos técnicos, também existem diferenças relevantes que ainda requerem demarcação?

André Malhão

Evidentemente, pode-se ter um curso técnico em que o predomínio é a formação para atividades de execução, formação das habilidades e competências. E como são definidas as competências e habilidades? Em geral, a resposta se dá no sentido do mercado de trabalho, do trabalho que está posto. Digamos que é um olhar sobre a realidade que não incorpora o potencial de transformação. Dentro dessa lógica, o profissional de análises clínicas precisa saber preparar uma lâmina, fazer coloração, a aplicação, a conservação e pronto, está formado o técnico. Essa é uma visão. Penso que essa concepção é de formação/treinamento. O que advogamos, a partir de uma concepção de homem, de sociedade, de saúde e de educação, é necessariamente uma formação plena. Para ser um técnico realizado nesse processo, e com capacidade criativa, crítica e de interação, o que se requer é uma formação geral, propedêutica, do Ensino Médio aliado à formação técnica. E mesmo na formação técnica, é preciso ter presentes componentes, fundamentos científicos e tecnológicos sobre os quais se constroem essas técnicas. Portanto, não é aprender somente a técnica em si. Na escola mesmo, existia um professor de técnicas laboratoriais que desmontava o microscópio e apresentava os princípios da ótica que nos permitiam confiar naquele instrumento. Isto é conhecimento do campo da física. Para que o aluno alcançasse a plenitude da compreensão do seu próprio processo de trabalho, as possibilidades de ampliação dadas pelo microscópio e a relação disso com a identificação de anomalias nos tecidos analisados. Mesmo que não se esteja pensando em uma sociedade igualitária, que é o que tentamos nos apropriar e defender, a busca de uma formação plena é também interessante, porque os processos tecnológicos estão avançados, e se o processo formativo é limitado, as pessoas se situam num espaço que posteriormente o gerente de recursos humanos acaba dizendo que elas precisam ser 'recicladas'. Então, a necessidade de pensar a ampliação da escolarização, a formação do técnico, seja para os ACS, para os agentes de endemias, para os demais auxiliares, tem que se opor às concepções predominantes de habilidades e competências. Eu vejo com preocupação as discussões de formação desses agentes, em particular. Porque elas significam claramente recuos. E não existe fórmula de reverter esses recuos, nos quais a formação é um bom exemplo, mas não o único, sem partir para os embates fundamentais sobre a alocação de recursos públicos.

  • Entrevista: André Malhão

    Interview: André Malhão
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Out 2009
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