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O programa marxiano de educação e o fundamento da práxis

The marxist program of education and the principle of praxis

Resumos

Este artigo pretende afirmar a idéia da existência de um programa marxiano de educação dentro do qual se destacam: o trabalho, a escola e a práxis como atividade político-educativa. Defende-se que o problema da educação em Marx se constitui numa elaboração complexa em que vários elementos se mostram organicamente articulados. O programa marxiano de educação aparece relacionado às elaborações marxianas feitas em face de três elementos importantes do cotidiano (educativo) das classes trabalhadoras: o caráter educativo das relações contraditórias do trabalho (ainda que se refira ao trabalho abstrato), o momento da educação escolar, de preferência em união com o trabalho, e, por último, a práxis político-educativa desenvolvida nos diversos momentos associativos dos trabalhadores nos sindicatos, partidos, locais de moradia etc., quando os trabalhadores atuam política e coletivamente como classe social defendendo seus interesses e fortalecendo sua organização, sua educação/formação política como classe social potencialmente revolucionária. Partindo de uma nova concepção a respeito da relação trabalho e práxis, procura-se discutir a absolutização do trabalho e o esquecimento da práxis realizados pela tradição dos estudos da área. Considera-se que esse esquecimento da práxis mutila e empobrece a contribuição do programa marxiano de educação.

trabalho; práxis; educação


This article aims to affirm the idea of the existence of a Marxist program of education in which work, school and praxis as a political-educational activity stand out. It is argued that the problem of Marxist education is a complex elaboration in which various elements are shown organically articulated. The Marxist Education program appears related to the Marxist elaborations made in light of three important elements of everyday life (educational) of the working classes: the educational character of the contradictory relations of work (even if related to abstract work), period of school education, preferably together with the work, and, lastly, the political-educational praxis developed at different associative moments of workers in unions, political parties, places of residence etc., when workers act politically and collectively as a social class defending its interests and strengthening its organization and its political education/training as a potentially revolutionary social class. Starting from a new conception of the work and praxis relationship, we seek to discuss the primacy of work and the neglect of the praxis carried out by previous studies of the area. It is considered that this neglect of praxis mutilates and impoverishes the contribution of Marxist education program.

work; praxis; education


ARTIGO ARTICLE

O programa marxiano de educação e o fundamento da práxis

The marxist program of education and the principle of praxis

Justino de Sousa Junior1 1 Professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG). Pós-doutorado no Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). < justinos@ufmg.br>

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Ivan Lins, 386, apto. 604, Dona Clara Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, CEP 31260-020

RESUMO

Este artigo pretende afirmar a idéia da existência de um programa marxiano de educação dentro do qual se destacam: o trabalho, a escola e a práxis como atividade político-educativa. Defende-se que o problema da educação em Marx se constitui numa elaboração complexa em que vários elementos se mostram organicamente articulados. O programa marxiano de educação aparece relacionado às elaborações marxianas feitas em face de três elementos importantes do cotidiano (educativo) das classes trabalhadoras: o caráter educativo das relações contraditórias do trabalho (ainda que se refira ao trabalho abstrato), o momento da educação escolar, de preferência em união com o trabalho, e, por último, a práxis político-educativa desenvolvida nos diversos momentos associativos dos trabalhadores nos sindicatos, partidos, locais de moradia etc., quando os trabalhadores atuam política e coletivamente como classe social defendendo seus interesses e fortalecendo sua organização, sua educação/formação política como classe social potencialmente revolucionária. Partindo de uma nova concepção a respeito da relação trabalho e práxis, procura-se discutir a absolutização do trabalho e o esquecimento da práxis realizados pela tradição dos estudos da área. Considera-se que esse esquecimento da práxis mutila e empobrece a contribuição do programa marxiano de educação.

Palavras chave: trabalho; práxis; educação.

ABSTRACT

This article aims to affirm the idea of the existence of a Marxist program of education in which work, school and praxis as a political-educational activity stand out. It is argued that the problem of Marxist education is a complex elaboration in which various elements are shown organically articulated. The Marxist Education program appears related to the Marxist elaborations made in light of three important elements of everyday life (educational) of the working classes: the educational character of the contradictory relations of work (even if related to abstract work), period of school education, preferably together with the work, and, lastly, the political-educational praxis developed at different associative moments of workers in unions, political parties, places of residence etc., when workers act politically and collectively as a social class defending its interests and strengthening its organization and its political education/training as a potentially revolutionary social class. Starting from a new conception of the work and praxis relationship, we seek to discuss the primacy of work and the neglect of the praxis carried out by previous studies of the area. It is considered that this neglect of praxis mutilates and impoverishes the contribution of Marxist education program.

Keywords: work; praxis; education.

Neste texto, pretende-se discutir a existência de um programa marxiano de educação e o lugar que nele ocupariam as categorias 'trabalho' e 'práxis'.2 2 Os estudos sobre o problema da educação em Marx, via de regra, adotam um entendimento segundo o qual recai sobre a categoria trabalho - por que não dizer exclusiva e absolutamente - toda a preocupação para com a educação. A premissa desse entendimento é a concepção do trabalho como categoria que resumiria em si a atividade humana em geral. A centralidade da categoria trabalho - postulado contra o qual não se põe objeção - somada à compreensão de que o trabalho é uma importante experiência educativa e ainda às muitas referências marxianas à educação ou instrução associada ao trabalho fizeram com que o princípio educativo do trabalho surgisse como o princípio educativo fundamental de Marx, quando não exclusivo do problema marxiano de educação. Consequentemente, o princípio da união trabalho e ensino geralmente é tomado como sendo a grande contribuição marxiana para a educação. Este estudo segue outra direção a qual não busca, de maneira alguma, retirar do trabalho sua centralidade, seu estatuto de categoria, vital, ontologicamente fundamental, mas recorre ao concurso da categoria da práxis para pensar o programa marxiano de educação. Para tanto, adota-se como referência a contribuição de Vázquez (2007), para quem a práxis é a grande categoria marxiana dentro da qual se situa o trabalho, portanto, como momento da práxis, como uma das modalidades de práxis, como práxis produtiva. Esse modo de considerar a relação entre trabalho e práxis coloca importantes implicações para a discussão do tema da educação em Marx. Com algumas diferenças, cujo mérito não importa por ora, mas com a vantagem de não considerar a categoria trabalho como única forma de atividade humana, se junta ao autor hispano-mexicano as contribuições de Konder (1992, p. 125), para quem "a práxis, que nasce do trabalho, vai além dele afirmando potencialidades que se multiplicam num sujeito que se diferencia", e Kosik (1995, p. 224, grifos do autor), autor que argumenta que "assim, a práxis compreende - além do momento laborativo - também o momento existencial: ela se manifesta tanto na atividade objetiva do homem, que transforma a natureza e marca com sentido humano os materiais naturais, como na formação da subjetividade humana, na qual os momentos existenciais como a angústia, a náusea, o medo, a alegria, o riso, a esperança etc., não se apresentam como 'experiência' passiva, mas como parte da luta pelo reconhecimento, isto é, do processo da realização da liberdade humana. Sem o momento existencial o trabalho deixaria de ser parte da práxis". Como se sabe, a temática da educação jamais se constituiu, para Marx, como um problema central, pelo menos se tomada em sentido estrito, como processo formal, institucional de ensino-aprendizagem. Porém, mesmo não sendo a educação, no sentido apontado, um tema sobre o qual Marx houvesse dedicado especial atenção, ainda assim acredita-se que sua obra oferece grande contribuição para o tema, desde que se amplie a concepção de educação para além dos processos formais e dos espaços institucionalizados.

Procedendo dessa maneira, ou seja, ampliando o conceito de educação, torna-se possível não apenas identificar uma perspectiva marxiana de educação, através da identificação de elementos que fundamentam e orientam a reflexão sobre a educação, como se pode falar mesmo num programa de educação, isto é, pode-se mesmo falar da existência de uma elaboração teórica em que a educação adquire contornos programáticos, pois nela se definem claramente concepção, princípios, propostas, estratégias, finalidade etc.

Uma perspectiva marxiana de educação se constrói a partir da própria constatação da presença de um forte caráter educativo nas formulações marxianas sobre a práxis, o trabalho, a alienação, a coisificação, a revolução, a emancipação, a construção do homem novo, entre outras. Nesse sentido, pode-se mesmo afirmar que as concepções de Marx sobre o homem, a sociedade, a história, a transformação social, entre outras temáticas, formam uma rica perspectiva de educação.3 3 A expressão 'perspectiva de educação' pretende indicar que, em Marx, toda a noção de (trans)formação do homem, de construção de sua humanidade, está assente na idéia da autotransformação que se dá através da própria atividade humana, consciente, mediada linguisticamente e realizada socialmente. O conceito de 'homem novo' é exemplar para definir a perspectiva marxiana de educação, pois o tal homem novo só poderá aparecer como resul tado da ação político-educativa transformadora, cuja meta é estabelecer as condições históricas necessárias para o desenvolvimento amplo e livre do homem.

Por sua vez, o programa4 4 A ideia de um programa marxiano de educação não é comum. Todavia, encontra-se também em Suchodolski (1976, p. 26), onde há ainda um entendimento semelhante ao desta pesquisa a respeito do lugar da proposta de união trabalho e ensino: "a concepção de ligação entre o ensino e o trabalho produtivo é, no entanto, apenas um dos elementos fundamentais do programa educativo e de ensino que os fundadores do socialismo científico defenderam. O segundo elemento fundamental é o princípio da ligação entre a educação, o ensino e a atividade revolucionária da classe operária." marxiano de educação se torna possível a partir da consideração do modo como determinados elementos importantes se articulam nas proposições de Marx, feitas em algumas obras, mas, principalmente, nos debates na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT).

O programa marxiano de educação aparece relacionado às elaborações marxianas feitas em face de três elementos importantes do cotidiano (educativo) das classes trabalhadoras: o caráter educativo das relações contraditórias do trabalho (ainda que se refira ao trabalho abstrato), o momento da educação escolar, de preferência em união com o trabalho, e, por último, a práxis político-educativa desenvolvida nos diversos momentos associativos dos trabalhadores nos sindicatos, partidos, locais de moradia etc., quando os trabalhadores atuam política e coletivamente como classe social defendendo seus interesses e fortalecendo sua organização, sua educação/formação política como classe social potencialmente revolucionária.

É basicamente a partir desses três elementos, especialmente destacados, que se encontra a síntese do programa de educação marxiano: o trabalho, a escola e a práxis político-educativa.

Assim, pode-se afirmar que a perspectiva marxiana de educação se apresenta como parte integrante de toda sua obra, justamente porque todo o seu grande esforço está em compreender - e favorecer que os trabalhadores compreendam - o modo como a realidade alienada/estranhada da sociabilidade burguesa tende a formar homens unilaterais e uma sociabilidade submetida à dinâmica imposta pelo movimento de acumulação do capital.

O processo histórico através do qual os trabalhadores se transformam numa massa que sintetiza de maneira mais universal a alienação e exploração do capital e sobre a qual, consequentemente, repousam as principais condições para unificar as diversas formas de ser das classes trabalhadoras na perspectiva da superação do capital, ou seja, o processo histórico que cria a massa de trabalhadores como classe social potencialmente revolucionária, é em si mesmo um processo histórico com forte caráter educativo, dentro do qual aparece com força o trabalho como categoria central.

Por sua vez, a (trans)formação (ou educação) - neste caso, estes conceitos apresentam elementos comuns na direção semântica da educação como permanente processo de constituição/transformação do ser - da massa de trabalhadores, isto é, sua elevação de classe potencialmente revolucionária a classe efetivamente revolucionária também aparece como momento educativo e aqui surge com força a categoria da práxis como atividade político-educativa dedicada à transformação social. Resumindo: a passagem da classe-em-si a classe-par-si não é outra coisa senão a efetivação da práxis política como práxis educativa.

Seguindo ainda com a tentativa de demonstração de como se revela a perspectiva marxiana da educação, a pretensão da construção do homem novo do mesmo modo não é outra coisa senão um processo histórico de (trans)formação/educação do homem. Marx então aponta como a sociabilidade do capital forma homens alienados, ao mesmo tempo em que cria o sujeito social potencialmente revolucionário. Este, por sua vez, se educa através de sua práxis político-educativa em busca de se transformar em classe efetivamente revolucionária (classe-par-si). A revolução também aparece fortemente marcada por um caráter educativo na medida em que representa o momento no qual, pela sua práxis, os homens provocam uma transformação radical das condições históricas e buscam criar novas condições dentro das quais seja possível o surgimento de relações novas e do homem novo.

Portanto, a atividade humana, como práxis e como trabalho, cria um mundo de alienação e estranhamento ao mesmo tempo em que essa mesma atividade humana como práxis e como trabalho torna possível a 'humanização da natureza e a naturalização do homem' ou, noutros termos, a superação do 'reino da necessidade'.

O programa marxiano de educação

Passemos então a analisar mais detalhadamente o que seria ou do que se constituiria o programa marxiano de educação, para então discutirmos em seguida o lugar ou a importância que têm dentro dele as categorias 'trabalho' e 'práxis'.

O programa marxiano de educação possui um sujeito precisamente definido. Trata-se do proletariado, classe social potencialmente revolucionária que sintetiza mais universalmente a exploração e alienação do capital. O processo de educação desse programa consiste na transformação dessa classe-em-si a classe-para-si. As estratégias e os meios dessa educação são as contradições do trabalho, portanto, os elementos educativos do trabalho (ainda que alienado, abstrato) na medida em que favorece a constituição da massa explorada como força histórica revolucionária. Neste caso, o espaço privilegiado seria o espaço fabril, onde se realiza a principal forma da produção econômica. Nesse item, aparece como proposta de maior importância a educação politécnica (ou tecnológica, segundo Manacorda e Nosella5 5 Aqui trabalharemos com o conceito de politecnia mesmo, a despeito da discussão levantada pelos autores citados. A respeito desse tema, ver Nosella (2006) e Saviani (2006). ) e a proposta da união trabalho e ensino. Outro elemento articulado ao trabalho, que compõe o programa de educação marxiano, é a escola segundo as possibilidades mesmas da escola liberal-democrática, como instituição sob a estrutura estatal, obrigatória, pública e gratuita, que deve contribuir com a socialização de conhecimentos 'objetivos'.6 6 No congresso da AIT de 1869, Marx faz uma exposição nos seguintes termos: " disciplinas que admiten conclusiones no debieran enseñarse en lãs escuelas; de esto podrían ocuparse los adultos bajo la guía de maestros como la señora Law que profesa lecciones sobre religión" (Marx e Engels, 1988, p. 548). Marx expõe o que entende por conhecimentos objetivos e subjetivos, que comportam visões classistas ou não. Essa exposição de Marx foi redigida nos anais da AIT por um relator, portanto, não ficou para a história como texto de próprio punho. Trata-se de uma manifestação problemática, que recebeu inúmeras críticas e objeções. Porém, ela traz uma questão importante que é o que, aliás, deve ser retido nesta discussão: a indicação de que a escola é uma instituição classista que, quanto mais afastada da possibilidade de definir a visão de mundo dos trabalhadores, melhor. Caberia a ela, então, os conhecimentos que possibilitam o menos possível a inculcação da visão de mundo burguesa. Já Marx defende que os próprios trabalhadores devem encarregar-se dos conteúdos diretamente vinculados à sua formação política ou sua elevação à classe social efetivamente revolucionária. Essa é a grande questão que deriva da referida exposição de Marx: a autoeducação dos trabalhadores, em instituições e/ou espaços próprios, sob seu inteiro e exclusivo controle como um momento importante do programa marxiano de educação. Por último, mas não menos importante, aparece a práxis político-educativa dos trabalhadores através da qual eles podem de fato alcançar o estágio de classe-para-si e se tornarem classe efetivamente revolucionária. Naturalmente, os conteúdos dessa educação são todos os elementos que contribuem diretamente para a realização da meta estabelecida, e os principais instrumentos e meios são as organizações dos trabalhadores criadas no trabalho, nos locais de moradia etc.

Pelo exposto até aqui, compreende-se que existe um programa de educação em Marx e afirma-se que ele se constitui de três elementos principais: o trabalho, a escola e a práxis político-educativa. Esse modo de compreender o problema da educação em Marx coloca algumas questões como: seria correto concentrar toda a preocupação relacionada ao problema da educação em Marx na categoria trabalho? Que consequências isso acarretaria? Poder-se-ia considerar o princípio da união trabalho e ensino como o princípio pedagógico fundamental de Marx? Quais as consequências da negligência ou secundarização da práxis político-educativa dentro do programa marxiano de educação? De que maneira o princípio de união trabalho e ensino e a proposta de politecnia podem representar reducionismo do programa marxiano de educação? A sequência do texto tentará acercar essas questões.

A união trabalho e ensino como o princípio pedagógico fundamental de Marx

A grande questão subjacente a toda a obra de Marx é a perspectiva da emancipação humana. E se esta apenas se mostra possível pela revolução proletária, portanto pela práxis político-educativa, então como pode a união trabalho e ensino ser o princípio pedagógico fundamental de Marx? Como pode um princípio imanente às relações emancipadas, futuras, ser fundamental para o processo de emancipação da sociedade atual? Ou, em outros termos, como pode uma proposta que, num certo sentido, é uma simples medida tática de resistência à exploração do capital ser considerada 'o princípio pedagógico fundamental' para a emancipação?

Segundo se observa, o princípio da união trabalho e ensino cumpre duas ordens de preocupações diferentes: imediatamente, ele é pensado como antídoto contra a divisão do trabalho e como momento de formação do proletariado; como projeto futuro, ou seja, na sociedade livre, ele aparece como princípio imanente às novas relações de produção, que aboliram a propriedade privada dos meios de produção que extinguiram o antagonismo de classes e que, consequentemente, não conhecem mais a radical separação entre teoria e prática.

A importância do princípio de união trabalho e ensino é inquestionável e foi destacada em muitos estudos sobre o tema. O que se questiona aqui é sua elevação a princípio pedagógico fundamental em Marx,7 7 Sobre esta questão, ver, em especial, os textos de Enguita, Manacorda e Nogueira constantes das referências bibliográficas desta obra. posto que recusa a compreensão do programa marxiano de educação como articulação complexa de elementos diversos, secundariza ou negligencia a categoria da práxis e provoca um reducionismo da perspectiva marxiana de educação.

A tese defendida aqui considera que a união trabalho e ensino não é o princípio pedagógico fundamental de Marx, nem em seu caráter imediato, ou seja, como proposta articulada à realidade do trabalho abstrato, no contexto estranhado da sociedade burguesa, nem em seu caráter mediato, como questão própria das novas relações emancipadas.

Antes de qualquer coisa, é importante destacar que não resulta produtivo discutir qual aspecto, dentre outros do programa marxiano da educação, se constitui no princípio pedagógico fundamental de Marx, como se fosse possível destacá-lo do todo. A questão que se coloca é precisamente a necessidade de se considerar a educação em Marx como um programa no qual três elementos principais se destacam: a instrução em instituições formais de educação, que deve se articular ao trabalho como um outro elemento, e, por último, a auto-educação dos trabalhadores, como práxis político-educativa (escola, trabalho e práxis).

Podemos acrescentar por nossa conta, mas inspirados em Marx, que esse terceiro elemento contempla uma gama de atividades e momentos diversos do cotidiano dos trabalhadores, dentre os quais se incluem a família, os locais de moradia, os momentos do 'tempo livre' etc. São esses elementos articulados que representam o programa de educação marxiano no qual o princípio da união trabalho e ensino é apenas uma parte.

Definitivamente, o destaque de qualquer elemento representa um reducionismo do programa. Todavia, se porventura se colocasse a necessidade de se estabelecer alguma hierarquia entre os elementos indicados, adotaríamos o conceito de práxis de Vázquez (2007),8 8 Em última instância, o trabalho é práxis: "entre as formas fundamentais da práxis temos a atividade prática produtiva, ou relação material e transformadora que o homem estabelece - mediante seu trabalho - com a natureza" (Vázquez, 2007, p. 226). Mas esse modo de compreender a relação práxis e trabalho não retira do trabalho sua importância fundamental, ainda que aqui o trabalho seja uma modalidade de práxis: "a práxis produtiva é, assim, fundamental porque nela o homem não só produz um mundo humano ou humanizado, no sentido de um mundo de objetos que satisfazem necessidades humanas e que só podem ser produzidos na medida em que se plasmam neles fins ou projetos humanos, como também no sentido de que na práxis produtiva o homem se produz, forma ou transforma a si mesmo" (Vázquez, 2007, p. 228-229). segundo o qual o trabalho se define como uma modalidade de práxis, e afirmaríamos esta última categoria como fundamental no programa de educação de Marx. Primeiro, porque a práxis político-educativa, revolucionária, é a condição da superação da ordem burguesa; segundo, porque a práxis livre (práxis humana em geral, sob as diversas modalidades) seria a própria expressão, a forma de realização das relações emancipadas - justamente por não se reduzir a nenhum momento particular, mesmo que seja esse um momento da maior importância, como é o caso do momento laborativo.

A consideração da união trabalho e ensino como princípio pedagógico fundamental em Marx é uma forma de reducionismo e a ela cabe objeção semelhante ao alerta feito por Enguita ao discutir a amplitude da posição de Marx em relação à educação: "reduzir esse componente à educação que se ministra no âmbito escolar seria apenas agarrar-se à concepção burguesa da educação, ao reflexo ideológico do estágio atual da divisão do trabalho, que converteu a educação num ramo separado" (Enguita, 1993, p. 99).

No caso de Nogueira (1990), ao eleger o princípio de união trabalho e ensino a princípio pedagógico fundamental de Marx, não se trata de nenhuma confusão com o conceito burguês de educação, nem tampouco de se restringir a educação à escola, mas, de qualquer forma, trata-se de reduzir a educação à união trabalho e escola, o que é absolutamente estranho ao programa marxiano de educação, pois sacrifica um elemento importantíssimo que é o momento da práxis, seja como atividade humana em geral, seja sob a forma de práxis político-educativa.

Já em O capital, o próprio Marx reconhece que o princípio de união trabalho e ensino é apenas parte do processo mais amplo de transformação, este sim, fundamental:

Mas não há dúvida de que a conquista inevitável do poder político pela classe trabalhadora trará a adoção do ensino tecnológico, teórico e prático, nas escolas dos trabalhadores. Também não há dúvida de que a forma capitalista de produção e as correspondentes condições econômicas dos trabalhadores se opõem diametralmente a esses fermentos de transformação e ao seu objetivo, a eliminação da divisão do trabalho. Mas o desenvolvimento das contradições de uma forma histórica de produção é o único caminho de sua dissolução e do estabelecimento de uma nova forma (Marx, 1989, p. 559).

De forma alguma o princípio de união trabalho e ensino pode ser considerado o princípio pedagógico fundamental de Marx, pois, como proposta imediata, ele não passa de mais um tipo de 'fermento das transformações' e, como proposta mediata, tampouco, pois, nas novas relações, é na práxis humana em geral como atividade livre, tanto no momento laborativo quanto no tempo livre ou no tempo do ócio, que, em última instância, se educa definitivamente o ser social emancipado.

A discussão sobre o problema do tempo livre, do tempo de não-trabalho no comunismo, ajuda a entender a questão. Nogueira (1990, p. 132) afirma que, em Marx, o tempo livre "constituía condição para o desenvolvimento intelectual humano". A autora tenta colocar o entendimento de Marx sobre o tempo livre como tempo importante para o livre desenvolvimento do homem, assegurando:

Em contrapartida, na sociedade socialista a redução do tempo de trabalho necessário à satisfação das necessidades sociais far-se-á (...) visando liberar tempo para o livre desenvolvimento das individualidades, através da formação científica, artística, em síntese, cultural dos trabalhadores (Nogueira, 1990, p. 135).

Reforçando o argumento, ela cita o Marx dos Manuscritos de 1844, onde se lê que o tempo livre é o "tempo para poder criar intelectualmente e saborear as alegrias do espírito". Em seguida, recorre aos Grundrisse, afirmando que o tempo livre é como "tempo que serve ao desenvolvimento completo do indivíduo" e, para completar, traz uma citação de O capital, onde se verifica que o tempo livre é o "tempo conquistado para a livre atividade espiritual e social dos indivíduos" ou, por último, que é o "tempo para a educação humana, para o desenvolvimento intelectual" (Nogueira, 1990, p. 135).

Pelo que demonstra a autora, nota-se com clareza que, em Marx, a atividade trabalho em si e somente não é a única responsável pela formação do homem nas circunstâncias históricas da sociedade livre, especialmente porque o trabalho necessário à satisfação das necessidades é reduzido gradativamente a períodos cada vez menores, restando tempo para a atuação dos homens em diversas tarefas diferentes e livres. No entanto, a autora, não entendendo a totalidade da vida social livre, incluindo o tempo de trabalho e o tempo de não-trabalho, portanto desconsiderando a importância da categoria da práxis como o momento da educação completa dos homens, aponta apenas o tempo livre como o momento desta educação como se fora tese de Marx e coloca ainda que este apresenta a formação do homem no tempo de não-trabalho separada do trabalho. Ela afirma que:

Se, por tanto assim como acabamos de mostrar, Marx concebe o tempo livre como requisito para o enriquecimento cultural de homens, parece-nos que a este nível, ele pensa a cultura geral (...) como algo exterior à produção material e sem ligações com ela (Nogueira, 1990, p. 135).

Com efeito, ajuda a entender essa questão a compreensão da perspectiva marxiana de educação como constituída de dois momentos, sendo um referente aos processos que se desenrolam no interior da sociedade burguesa e outro demarcado pela consideração genérica da formação/educação do homem no conjunto das relações sociais.

Ora, para Marx, o trabalho é categoria fundante para se pensar a sociabilidade, mas a sociabilidade representa uma totalidade de relações humanas em si educativas e que, por sua vez, são construções da práxis humana, daí a necessidade e importância da categoria da práxis. Por sua vez, nas relações livres, as novas formas de trabalho, não alienadas, são fundamentais para a formação do homem, mas não esgotam o processo de educação do homem livre. Nogueira não considera de maneira alguma a práxis como categoria que, assim como o trabalho - e, segundo Vázquez, até mais amplamente que este -, traduz uma perspectiva educativa.

Nogueira se esquece do papel que a atividade vital livre tem para a formação do homem, a qual Marx destaca desde os escritos de juventude. Mas o fundamental é que ela esquece a transformação que ocorre no trabalho quando se passa do 'reino da necessidade' para o 'reino da liberdade'. O trabalho, para ela, ao que parece, continua igual ao da sociabilidade burguesa, ou seja, simples meio de vida e não manifestação humana mesma, como atividade vital.

Por um lado, Nogueira atribui ao princípio da união trabalho e ensino - tanto como proposta para superar as relações capitalistas de produção quanto como princípio imanente às relações emancipadas - um caráter fundamental como princípio pedagógico em Marx. Por outro lado, ela retira da categoria trabalho nas novas relações de produção sua importância como atividade produtiva livre, como categoria que encerra em si um princípio educativo importante na medida em que representa como trabalho não alienado o resgate da humanidade perdida no trabalho alienado. Consequentemente, a autora atribui toda a importância pedagógica exclusivamente ao tempo de não-trabalho, separado do trabalho como práxis produtiva.

A consideração do caráter educativo da categoria da práxis em suas diversas modalidades torna-se imprescindível, sobretudo, no estágio histórico superior à sociedade burguesa. Enguita, por exemplo, chega a afirmar que "de um ponto de vista marxista, não há dúvida de que, a longo prazo, a escola deve desaparecer, dando lugar à sociedade pedagógica (...)" (Enguita, 1993, p. 100).

Ao supervalorizar o princípio de união trabalho e ensino, Nogueira parece desconsiderar que a emancipação social é o grande processo educativo para o qual todas as propostas devem convergir e que ele é resultado, acima de tudo, da práxis político-educativa e revolucionária.

Mazzotti (2001) também contribui para essa discussão, a seu modo. Este autor elabora uma crítica aos resultados das pesquisas dos pedagogos marxistas9 9 O autor menciona a hegemonia gramsciana como referência predominante dentre as possibilidades interpretativas do problema da educação em Marx e destaca Manacorda e Saviani, especialmente este último, como principais representantes e divulgadores desta corrente no Brasil. (é como ele se refere aos sujeitos a quem dirige sua crítica) baseado na tese de que, para Marx, o fundamento da formação humana não era o trabalho, mas o tempo livre. Segundo o autor, para Marx, "a condição vital - material e espiritual - é a existência de tempo livre para o desenvolvimento humano" (Mazzotti, 2001, p. 52).

A argumentação desenvolvida pelo autor no seu artigo pretende demonstrar que uma interpretação fidedigna em relação às proposições marxianas não pode adotar o trabalho como a categoria central para se pensar o problema da educação. Contrariamente, seria o tempo de não-trabalho o fundamento da educação humana. Segundo o autor,

a educação que produziria o 'homem integral', o 'homem omnidimensional', ou 'desenvolvido em todas as direções', só poderia se iniciar - ainda no interior da sociedade capitalista - pela regulamentação do trabalho das crianças e jovens de ambos os sexos combinando o trabalho remunerado (produtivo) com a educação intelectual, ginástica e tecnológica (Mazzotti, 2001, p. 56).

Mazzotti levanta uma questão interessante que é exatamente a crítica à supervalorização do trabalho. Todavia, suas conclusões não parecem apropriadas na medida em que não se satisfazem em rediscutir a importância da centralidade do trabalho para se pensar a educação, mas visam a retirar dele qualquer importância e, lembrando a 'curvatura da vara', passam a atribuir ao tempo de não-trabalho a centralidade retirada do trabalho.

O autor procura fundamentar sua argumentação a partir da discussão dos embates dentro dos quais Marx defendeu ardorosamente a regulamentação do trabalho de crianças e jovens. O autor supõe que Marx estaria aí afirmando a tese de que seria apenas fora do trabalho que a educação ou formação onilateral se tornaria possível. Desse modo, se perde nas análises do autor qualquer possibilidade de o trabalho abstrato apresentar contradições fecundas para o problema da formação/educação dos trabalhadores.

Mazzotti chega à tese inaceitável da negação do princípio educativo do trabalho. A interpretação de que a luta pela diminuição e regulação da jornada de trabalho indicaria a recusa do caráter educativo do trabalho não tem o menor fundamento.

Outra questão que apontaríamos contra as análises do autor, além da oposição entre trabalho e tempo de não-trabalho como momentos que favorecem e que não favorecem o livre desenvolvimento humano, é a ausência da práxis como categoria importante para se pensar a educação fora - ou para além - do trabalho. O tempo livre não favorece nenhuma educação se não se desenvolverem nele práxis que de fato realizem efetivamente a ação educativa. Desse modo, as contribuições do autor são interessantes para demonstrar por quantos caminhos se pode seguir nas análises do problema da educação em Marx, bem como para discutir uma questão quase sacrossanta no âmbito do marxismo: a centralidade - ou absolutização, posto que o limiar entre uma e outra se torna às vezes difícil de se determinar - da referência do trabalho para se pensar a educação.

A proposta da politecnia

A politecnia é também uma importante proposta feita por Marx no/para o campo educacional. Ela preserva e amplia a noção da união trabalho e ensino e ocupa lugar de destaque entre os estudiosos da relação trabalho e educação.

Apesar de ser uma proposta marcante do marxismo para a educação, tendo inclusive sido adotada como principal referência das propostas de educação socialistas, a politecnia também apresenta o risco do reducionismo do programa de educação marxiano.

Os debates em torno do conceito de politecnia recolocam a tendência dos educadores/pesquisadores marxistas do campo da educação de supervalorizarem o mundo formal/institucional do trabalho e da escola, desprezando ou atribuindo importância secundária aos processos de educação desenvolvidos além do trabalho e da escola, no mundo da práxis cotidiana, especialmente a secundarização ou até o esquecimento da práxis político-educativa.

Nosella (2006) se aproxima da conclusão de que o 'programa' marxiano de educação é mais completo, ou seja, de que ele não se reduz a uma proposta particular e que como uma totalidade deve ser compreendido, quando afirma: "porém, considero que a bandeira da 'politecnia' os tem levado [os educadores marxistas] preferencialmente a desenvolver estudos sobre a escola média e profissional. Com isso, o trabalho como princípio educativo sofreu entre nós um certo reducionismo" (Nosella, 2006, p. 23).

Afora essa aproximação pela idéia do risco do reducionismo, não restam muitas identidades. Na verdade, Nosella faz uma crítica ao reducionismo do reducionismo, pois ele não se refere à mutilação do programa marxiano de educação como um todo, mas a uma parte dele apenas, que é o princípio educativo do trabalho. Ademais, ele apenas estabelece uma relação circunstancial associando a preferência pela escola média e profissional ao uso inadequado do termo politecnia como motivo do reducionismo. Já de acordo com o que se procura estabelecer nestas páginas, a própria centralização ou absolutização do trabalho como princípio educativo - ainda que o princípio educativo do trabalho seja uma das formulações mais caras ao marxismo - já representa em si mesma um tipo de reducionismo.

A proposta de politecnia em Marx está fortemente vinculada ao mundo do trabalho abstrato e ao mundo das instituições formais de educação. Portanto, cabe a esses educadores perceberem que, uma vez reduzida a esses aspectos, a concepção marxiana de educação ou o programa marxiano de educação perderia o seu vigor, o qual reside justamente na tentativa de articular as várias dimensões da práxis no cotidiano proletário como um amplo processo educativo: escola, trabalho e autoformação política nas organizações de classe, nos movimentos sociais e no tempo de não-trabalho.

Quando o foco é centralizado no conceito de politecnia ou ensino tecnológico, tende-se a esquecer ou secundarizar os demais momentos ou espaços educativos. Essa concepção acaba sendo cômoda para aqueles marxistas pouco afeitos ao envolvimento direto com o trabalho organizativo-educativo da/com a massa trabalhadora.

Por outro caminho analítico e com diferentes propósitos - cujo mérito não cabe discutir aqui - e referindo-se a uma questão particular, Nosella corrobora a ideia de que a centralização exagerada de alguns elementos pode gerar uma visão reducionista do 'programa' ou da perspectiva marxiana de educação: "Assim, nos anos 1990, o termo politecnia operou semanticamente como um freio à reflexão sobre a proposta educacional socialista. Pouco a pouco, nós educadores marxistas aceitamos de nos tornar especialistas do ensino médio profissional" (Nosella, 2006, p. 17-18).

Embora o foco da preocupação de Nosella seja o modo como o termo politecnia é usado pelos educadores marxistas, ele aponta para uma constatação importante que reforça - sem que seja sua intenção - a ideia desenvolvida ao longo destas páginas: a supervalorização do princípio educativo do trabalho, reduzido às experiências do trabalho abstrato e somado às experiências nas instituições formais de educação, pode significar um 'freio' às aspirações socialistas se não forem considerados os variados elementos que compõem o programa marxiano de educação, sobretudo a categoria da práxis como atividade político-educativa.

Nosella tem absoluta razão em afirmar que a politecnia não é uma proposta de educação socialista, mas é preciso entendê-la como uma proposta proletária, antes de tudo preocupada em enfrentar as agruras do trabalho alienado e da sociedade estranhada na perspectiva da emancipação social. Como é de domínio geral entre os interessados nesta matéria, a politecnia tem suas primeiras inspirações ligadas à distante proposta de união trabalho e ensino formulada pelos socialistas utópicos. Posteriormente, é defendida pelos 'economistas filantropos' antes de adquirir outro sentido com Marx quando se situa no interior de um 'programa' cuja perspectiva é a emancipação social. A politecnia, por fim, é uma formulação ligada à dimensão do trabalho abstrato com o propósito de enfrentar as adversidades impostas pela realidade desta forma de trabalho e apenas articulada ao mundo da práxis político-educativa revolucionária adquire um verdadeiro sentido emancipador.

Conclusão

A partir do que foi posto, aqui são retomadas as questões levantadas anteriormente. Em primeiro lugar, não parece correto, nem adequado ou profícuo, concentrar na categoria trabalho toda a preocupação da análise da educação em Marx.

Primeiro porque, ainda que seja correto se tomar a categoria trabalho como a categoria que não apenas detém a centralidade ontológica, mas resume em si todas as formas possíveis da atividade humana, no momento de se pensar a relação trabalho e educação esta concepção de trabalho acabaria por estabelecer uma redução.

Essa redução se colocaria no momento em que a categoria trabalho deixa de se apresentar a partir de sua definição essencial, como categoria detentora de centralidade ontológica, e aparece imediatamente sob a forma histórica do trabalho alienado ou do trabalho abstrato.10 10 Não se está propondo uma separação radical entre as duas formas. É evidente que a forma de trabalho abstrato não desfaz a natureza ontológica do trabalho, mas adquire outras determinações importantes.

Pois há momentos das formulações marxianas sobre a educação em que esta aparece articulada à realidade do trabalho abstrato, daí a questão seria: até que ponto o trabalho abstrato pode resumir em si todas as formas possíveis da atividade humana ou, ainda, que tipo de problema esta concepção acarretaria para a atualização do programa marxiano de educação no contexto da realidade regressivo-destrutiva do capital?

O principal e maior de todos os problemas que acarreta para a reflexão marxiana a supervalorização da categoria trabalho no sentido que vem sendo discutido é que os educadores marxistas correm o risco - o que se confirma em determinadas pesquisas sobre trabalho e educação - de mergulharem no 'mundo do trabalho', no 'chão de fábrica', com a pretensão - e a melhor das intenções - de compreender o modo de realização das tarefas, o modus operandi do fordismo-taylorismo ou do toyotismo, as relações de domínio ou controle que se estabelecem, as estratégias de resistência, a socialização do saber ou a apropriação deste; enfim, pretendendo compreender este mundo e seu caráter educativo, mas acabam presos e enredados nele como fim em si.

O risco perigosíssimo que se coloca aí e que, em se efetivando, significa a destruição do que há de mais vigoroso nas formulações marxianas é justamente o esquecimento ou a secundarização da ação política (práxis político-educativa) que se articula ao 'mundo do trabalho', mas não pode estar subentendido nele.

A pesquisa marxista em trabalho e educação corre o risco de resultar precisa e rigorosa na descrição do mundo do trabalho, na verificação de seu momento educativo. Pode até resultar extremamente crítica de toda a realidade social como extensão do 'chão de fábrica', mas pode cometer o grave engano de pensar todo este esforço como uma tarefa em si mesma, posto que não dá o passo decisivo ao encontro da práxis. Assim, mutila-se a perspectiva marxiana da educação ao não incorporar sua complexidade programática.

Não se trata de exigir que toda pesquisa em trabalho e educação precise ter um desdobramento prático, político. Trata-se de exigir uma pesquisa em trabalho e educação do campo marxista que assuma como pressuposto a noção de que a compreensão do 'mundo do trabalho' jamais será uma tarefa com fim em si mesma. Ela deverá compreender, acima de tudo, que em Marx jamais se pode abrir mão da ação política e de que esta ação política é um momento a mais, diferente, embora articulado ao momento do trabalho abstrato - contraditoriamente educativo - mas, ainda assim, esta realidade da práxis produtiva (Vázquez, 2007) não pode ser subsumida ou ficar subentendida no trabalho.

Pensar a educação a partir de Marx é obrigatoriamente pensar o momento do trabalho sem diminuir um milímetro que seja a importância da práxis político-educativa. Ainda que uma dada pesquisa não alcance amplamente a realidade, ainda que precise limitar seu alcance, na sua base deve estar a compreensão de que o programa marxiano de educação como um todo não se resume ao trabalho, sobretudo quando o esse é trabalho abstrato.

Notas

  • ENGUITA, Mariano F. Trabalho, escola e ideologia: Marx e a crítica da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
  • KONDER, Leandro. O futuro da filosofia da práxis: o pensamento de Marx no século XXI. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
  • KOSIK, Karel. Dialética do concreto 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
  • MANACORDA, Mário A. Marx e a pedagogia moderna São Paulo: Cortez, 1991.
  • MARX, Karl. O capital: para a crítica da economia política. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras fundamentales: La internacional - documentos, artículos y cartas. v. 17. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1988.
  • MAZZOTTI, Tarso B. Educação da classe trabalhadora: Marx contra os pedagogos marxistas. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 5, n. 9, p. 51-65, 2001.
  • NOGUEIRA, Maria. A Educação, saber, produção em Marx e Engels São Paulo: Cortez, 1990.
  • NOSELLA, Paolo. Trabalho e perspectivas de formação dos trabalhadores: para além da formação politécnica. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE TRABALHO E PERSPECTIVAS DE FORMAÇÃO DOS TRABALHADORES, 1, 2006, Fortaleza. Universidade Federal do Ceará, 2006.
  • SAVIANI, Dermeval. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Trabalho encomendado pelo GT Trabalho e Educação. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 29, 2006, Caxambu.
  • SUCHODOLSKI, Bodan. Teoria marxista da educação Lisboa: Editorial Estampa, 1976.
  • VÁZQUEZ, Adolfo S. Filosofia da práxis Buenos Aires, São Paulo: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales (Clacso), Expressão Popular, 2007.
  • 1
    Professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG). Pós-doutorado no Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). <
  • 2
    Os estudos sobre o problema da educação em Marx, via de regra, adotam um entendimento segundo o qual recai sobre a categoria trabalho - por que não dizer exclusiva e absolutamente - toda a preocupação para com a educação. A premissa desse entendimento é a concepção do trabalho como categoria que resumiria em si a atividade humana em geral. A centralidade da categoria trabalho - postulado contra o qual não se põe objeção - somada à compreensão de que o trabalho é uma importante experiência educativa e ainda às muitas referências marxianas à educação ou instrução associada ao trabalho fizeram com que o princípio educativo do trabalho surgisse como o princípio educativo fundamental de Marx, quando não exclusivo do problema marxiano de educação. Consequentemente, o princípio da união trabalho e ensino geralmente é tomado como sendo a grande contribuição marxiana para a educação. Este estudo segue outra direção a qual não busca, de maneira alguma, retirar do trabalho sua centralidade, seu estatuto de categoria, vital, ontologicamente fundamental, mas recorre ao concurso da categoria da práxis para pensar o programa marxiano de educação. Para tanto, adota-se como referência a contribuição de Vázquez (2007), para quem a práxis é a grande categoria marxiana dentro da qual se situa o trabalho, portanto, como momento da práxis, como uma das modalidades de práxis, como práxis produtiva. Esse modo de considerar a relação entre trabalho e práxis coloca importantes implicações para a discussão do tema da educação em Marx. Com algumas diferenças, cujo mérito não importa por ora, mas com a vantagem de não considerar a categoria trabalho como única forma de atividade humana, se junta ao autor hispano-mexicano as contribuições de Konder (1992, p. 125), para quem "a práxis, que nasce do trabalho, vai além dele afirmando potencialidades que se multiplicam num sujeito que se diferencia", e Kosik (1995, p. 224, grifos do autor), autor que argumenta que "assim, a
    práxis compreende - além do momento
    laborativo - também o momento
    existencial: ela se manifesta tanto na atividade objetiva do homem, que transforma a natureza e marca com sentido humano os materiais naturais, como na formação da subjetividade humana, na qual os momentos existenciais como a angústia, a náusea, o medo, a alegria, o riso, a esperança etc., não se apresentam como 'experiência' passiva, mas como parte da luta pelo reconhecimento, isto é, do processo da realização da liberdade humana. Sem o momento existencial o trabalho deixaria de ser parte da
    práxis".
  • 3
    A expressão 'perspectiva de educação' pretende indicar que, em Marx, toda a noção de (trans)formação do homem, de construção de sua humanidade, está assente na idéia da autotransformação que se dá através da própria atividade humana, consciente, mediada linguisticamente e realizada socialmente. O conceito de 'homem novo' é exemplar para definir a perspectiva marxiana de educação, pois o tal homem novo só poderá aparecer como resul tado da ação político-educativa transformadora, cuja meta é estabelecer as condições históricas necessárias para o desenvolvimento amplo e livre do homem.
  • 4
    A ideia de um programa marxiano de educação não é comum. Todavia, encontra-se também em Suchodolski (1976, p. 26), onde há ainda um entendimento semelhante ao desta pesquisa a respeito do lugar da proposta de união trabalho e ensino: "a concepção de ligação entre o ensino e o trabalho produtivo é, no entanto, apenas um dos elementos fundamentais do programa educativo e de ensino que os fundadores do socialismo científico defenderam. O segundo elemento fundamental é o princípio da ligação entre a educação, o ensino e a atividade revolucionária da classe operária."
  • 5
    Aqui trabalharemos com o conceito de politecnia mesmo, a despeito da discussão levantada pelos autores citados. A respeito desse tema, ver Nosella (2006) e Saviani (2006).
  • 6
    No congresso da AIT de 1869, Marx faz uma exposição nos seguintes termos: "
    disciplinas que admiten conclusiones no debieran enseñarse en lãs escuelas; de esto podrían ocuparse los adultos bajo la guía de maestros como la señora Law que profesa lecciones sobre religión" (Marx e Engels, 1988, p. 548). Marx expõe o que entende por conhecimentos objetivos e subjetivos, que comportam visões classistas ou não. Essa exposição de Marx foi redigida nos anais da AIT por um relator, portanto, não ficou para a história como texto de próprio punho. Trata-se de uma manifestação problemática, que recebeu inúmeras críticas e objeções. Porém, ela traz uma questão importante que é o que, aliás, deve ser retido nesta discussão: a indicação de que a escola é uma instituição classista que, quanto mais afastada da possibilidade de definir a visão de mundo dos trabalhadores, melhor. Caberia a ela, então, os conhecimentos que possibilitam o menos possível a inculcação da visão de mundo burguesa. Já Marx defende que os próprios trabalhadores devem encarregar-se dos conteúdos diretamente vinculados à sua formação política ou sua elevação à classe social efetivamente revolucionária. Essa é a grande questão que deriva da referida exposição de Marx: a autoeducação dos trabalhadores, em instituições e/ou espaços próprios, sob seu inteiro e exclusivo controle como um momento importante do programa marxiano de educação.
  • 7
    Sobre esta questão, ver, em especial, os textos de Enguita, Manacorda e Nogueira constantes das referências bibliográficas desta obra.
  • 8
    Em última instância, o trabalho é práxis: "entre as formas fundamentais da práxis temos a atividade prática produtiva, ou relação material e transformadora que o homem estabelece - mediante seu trabalho - com a natureza" (Vázquez, 2007, p. 226). Mas esse modo de compreender a relação práxis e trabalho não retira do trabalho sua importância fundamental, ainda que aqui o trabalho seja uma modalidade de práxis: "a práxis produtiva é, assim, fundamental porque nela o homem não só produz um mundo humano ou humanizado, no sentido de um mundo de objetos que satisfazem necessidades humanas e que só podem ser produzidos na medida em que se plasmam neles fins ou projetos humanos, como também no sentido de que na práxis produtiva o homem se produz, forma ou transforma a si mesmo" (Vázquez, 2007, p. 228-229).
  • 9
    O autor menciona a hegemonia gramsciana como referência predominante dentre as possibilidades interpretativas do problema da educação em Marx e destaca Manacorda e Saviani, especialmente este último, como principais representantes e divulgadores desta corrente no Brasil.
  • 10
    Não se está propondo uma separação radical entre as duas formas. É evidente que a forma de trabalho abstrato não desfaz a natureza ontológica do trabalho, mas adquire outras determinações importantes.
  • Endereço para correspondência:
    Rua Ivan Lins, 386, apto. 604, Dona Clara
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      2009
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