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Questões epistemológicas das neurociências cognitivas

Epistemological questions of the cognitive neurosciences

Resumos

Neste ensaio, identificam-se quatro questões centrais fundamentais para a epistemologia da neurociência de orientação cognitiva: a multiplicidade de níveis de análise no estudo das funções do cérebro; o confronto entre modelos computacionais e dinamicistas; o tratamento adequado das interações entre cérebro, corpo e ambiente; e os problemas filosóficos encontrados nas tentativas de se construir uma teoria neurobiológica dos processos conscientes e da linguagem humana.

epistemologia; neurociência cognitiva; representações; consciência; linguagem


This essay pinpoints four key issues that are central to the epistemology of cognition-oriented neurosciences: the multiple levels of analysis in the study of the brain functions, the confrontation between the computational and dynamicist models; the proper treatment of the interactions among the brain, the body, and the environment; and the philosophical problems encountered in the attempts made to build a neurobiological theory of conscious and human language processes.

epistemology; cognitive neuroscience; representations; consciousness; language


DEBATE DEBATE

Questões epistemológicas das neurociências cognitivas

Epistemological questions of the cognitive neurosciences

Alfredo Pereira Jr.1 1 Professor adjunto do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), São Paulo, Brasil. Doutor em Lógica e Filosofia da Ciência pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-Doutorado em Ciências do Cérebro e da Cognição no Massachusetts Institute of Technology. < apj@ibb.unesp.br>

Correspondência Correspondência: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Campus de Botucatu, Distrito de Rubião Júnior, s/n CEP 18.618-970, Botucatu, São Paulo, Brasil

RESUMO

Neste ensaio, identificam-se quatro questões centrais fundamentais para a epistemologia da neurociência de orientação cognitiva: a multiplicidade de níveis de análise no estudo das funções do cérebro; o confronto entre modelos computacionais e dinamicistas; o tratamento adequado das interações entre cérebro, corpo e ambiente; e os problemas filosóficos encontrados nas tentativas de se construir uma teoria neurobiológica dos processos conscientes e da linguagem humana.

Palavras-chave: epistemologia; neurociência cognitiva; representações; consciência; linguagem.

ABSTRACT

This essay pinpoints four key issues that are central to the epistemology of cognition-oriented neurosciences: the multiple levels of analysis in the study of the brain functions, the confrontation between the computational and dynamicist models; the proper treatment of the interactions among the brain, the body, and the environment; and the philosophical problems encountered in the attempts made to build a neurobiological theory of conscious and human language processes.

Keywords: epistemology; cognitive neuroscience; representations; consciousness; language.

Introdução

Os resultados das pesquisas neurocientíficas têm influenciado, por meio de suas aplicações médicas, diversos aspectos da vida humana; no entanto, as bases conceituais da neurociência têm recebido pouca atenção. A pesquisa empírica tem gerado um grande número de resultados experimentais, mas tal conhecimento ainda não foi integrado em um quadro convincente de como os processos cognitivos são realizados pelo cérebro. Isso se deve a fatores metodológicos e sociológicos que conduziram à proliferação de dados sem a concomitante sofisticação teórica. As limitações decorrem, possivelmente, da dificuldade intrínseca em se produzir uma teoria unificada da função cognitiva do cérebro e da hiperespecialização da vida acadêmica, fazendo que as carreiras científicas dos pesquisadores se estabeleçam dentro de recortes conceituais e metodológicos limitados.

A neurociência cognitiva se originou de um esforço colaborativo recente, seguindo um padrão histórico de trabalho interdisciplinar nas ciências do cérebro e do comportamento. Tais esforços incluem a psicologia fisiológica do início do século XX, a neuropsicologia de meados do século passado até o presente, e o próprio termo 'neurociências', que apareceu nos anos 1960, denotando uma área mais ampla que a neuroanatomia e neurofisiologia. Tais esforços tentaram relacionar estudos dedicados a aspectos diversos do cérebro, e que podem ser pensados em três dimensões: a) 'vertical': referindo-se a níveis de organização estrutural, e respectivas funções - átomos, moléculas, células, tecidos, subsistemas, redes de ampla escala; b) 'horizontal': referindo-se a interações entre cérebro, corpo e ambiente de organismos; c) temporal: referindo-se a processos filogenéticos e ontogenéticos que determinam estrutura e função de cérebros de organismos individuais.

Tais dimensões e respectivos níveis de análise parecem ser irredutíveis e difíceis de integrar. Em face dessas dificuldades, alguns cientistas como G. Edelman (1987; 1989), A. Damasio (1999) e R. Llinás (2002) têm se proposto a discutir problemas epistemológicos, o que conduziu a contribuições originais e pertinentes a respeito dos paradigmas neurocientíficos. A migração conversa, de filósofos que discutem neurociência, tem sido notavelmente pequena. Os Churchland são exceções importantes a esse respeito (ver Churchland, 1986; Churchland, 1988), apesar de sua proposta de substituição da descrição de senso comum dos estados mentais pela linguagem neurocientífica (materialismo eliminativo) não ter encontrado o apoio que esperavam.

Os paradigmas computacional e dinamicista

Os dois principais tipos de modelos cognitivos utilizados no século XX para se entender o funcionamento cerebral são o combinatorial (ou 'computacional') e o de sistemas dinâmicos, frequentemente tomados como opostos e excludentes. Já no Simpósio Hixon, realizado em 1948, foram defendidas duas visões da função cerebral. Os que a conceberam em termos da computação de pulsos elétricos (von Neumann, 1951; McCulloch, 1951) discordaram dos que a pensaram em termos de 'campos' (Kohler, 1951) ou de 'ação de massas' (Lashley, 1960). Da proposta dos primeiros, derivou-se a neurociência computacional, uma tentativa de explicar as funções cognitivas com base em mecanismos de processamento de informação e construção de representações mentais que vicejou ao final do século XX. Da proposta dos segundos, deriva-se a corrente dinamicista, que concebe os processos cognitivos em uma dimensão corpórea e interativa com o ambiente, favorecendo modelos de cunho ecológico que enfocam as ações dos sistemas cognitivos em seus respectivos contextos. Assim, as funções de representação ficariam em segundo plano, entendendo-se a cognição como um processo de adaptação ativa.

Nos anos 1950 e 1960, o uso do eletroencefalograma para o estudo de cognição sugeriu uma concepção de função cerebral em termos de padrões dinâmicos (Walter, 1963; Roy John, 1967), ideia ainda defendida por investigadores em percepção (Pribram, 1991) e proponentes de metodologias dinamicistas em neurociência (Kelso, 1995; van Gelder, 1997). Não obstante, nos anos 1970, a época de ouro da inteligência artificial, o modelo do computador digital foi frequentemente considerado adequado para apreender as funções cognitivas do cérebro.

O paradigma computacional tem influído na interpretação de dados obtidos por meio de tecnologias de imagem da atividade cerebral, PET-scanners e MRI funcional. Esforço significativo tem sido dedicado ao mapeamento do cérebro em termos de 'módulos', seguindo o conceito proposto por Fodor (1983). Tais interpretações supõem que as diversas regiões do cérebro (em especial, do neocórtex) seriam especializadas em funções cognitivas como memória, atenção e pensamento. Também têm sido usados modelos de tipo 'conexionista' (ou de 'redes neurais') simulados por computadores digitais, para se descrever a possível arquitetura de tais 'módulos'. Esse paradigma dominou a neurociência cognitiva nos anos 1990, mas sinais de esgotamento são visíveis, acompanhados por uma tendência a refocalizar os problemas da integração e sincronização.

A história da neurociência exibe uma ênfase alternada nas questões especialização e integração de função. Tal alternância refletiria a 'dialética fundamental' da organização do cérebro (Frith e Friston, 1997), consistindo em oposição e ao mesmo tempo complementaridade entre especialização e integração de função. Alguns processos cerebrais parecem ser mais bem analisados em termos de sistemas combinatoriais biologicamente especializados (processos bioquímicos na sinapse, codificação da informação sensorial pela frequência dos disparos neuronais), ao passo que outros seriam mais bem analisados em termos de sistemas dinâmicos apoiados por mecanismos físicos gerais (por exemplo, a difusão de íons de cálcio, a interação de campos eletromagnéticos, os ciclos de percepção e ação, o funcionamento do sistema vestibular etc.). De fato, seria surpreendente se cérebros animais usassem só uma dessas estratégias. Um reconhecimento de tal complementaridade faria diferença no estudo das funções cerebrais, levando ao descrédito os modelos que assumem exclusivamente uma visão computacional ou dinamicista.

Interações cérebro, corpo e ambiente

A relevância das interações entre cérebro, corpo e ambiente de organismos foi antecipada num trabalho teórico, escrito em 1938, do pioneiro da etologia Jakob von Uexkull (1957), e na pesquisa em percepção visual (por exemplo, Held e Hein, 1963; Gibson, 1979). Recentemente essa questão reemergiu como a visão 'encarnada' (embodied) da cognição, proposta na ciência cognitiva (por exemplo, Clark, 1996), na robótica (por exemplo, Brooks, 1991) e na neurociência (por exemplo, Ballard et al., 1997). A interação entre cérebro, corpo e ambiente envolve difíceis problemas epistemológicos relativos à influência de padrões externos de informação na sinapse e na atividade metabólica do neurônio, e à gênese da intencionalidade subjacente à consciência. Aqui enfocarei dois tópicos centrais, a distinção entre 'reconhecimento' e 'representação', e a dimensão pragmática dos processos computacionais do cérebro.

O conceito de 'reconhecimento' de padrões é aqui entendido como a formação de correspondências parciais entre propriedades dos estímulos que excitam o sistema nervoso periférico e os correspondentes padrões de atividade neuronal no sistema nervoso central (SNC) elicitados pelos primeiros - o conceito de 'correspondência parcial' entre estruturas em modelos científicos foi proposto por Da Costa e French (1990). A formação de correspondências parciais sugere um mecanismo de 'ressonância', como proposto no modelo de redes neurais ART (Adaptive Resonance Theory) de S. Grossberg (ver Grossberg e Merrill, 1996; para uma proposta semelhante, ver também Amit, 1995). É possível que os padrões ressonantes tenham uma estrutura temporal, descritível em termos de autocorrelação, ou seja, várias partes de um sistema, em diferentes escalas temporais, apresentam padrões de atividade semelhantes (ver Cariani, 1994).

O conceito de 'representação', por sua vez, implica uma relação isomórfica entre a estrutura que representa e a estrutura representada (Newell, 1990); seu uso, portanto, deve restringir-se a processos em que tal isomorfismo esteja presente. Na neurociência, estes processos seriam aqueles em que padrões formados em uma parte do cérebro são copiados e recombinados por outra parte do cérebro. Processos de reconhecimento de padrões externos ocorrem nas áreas perceptuais, formando 'matrizes' que são copiadas e recombinadas pelo 'sistema executivo', gerando novos padrões informacionais, úteis para o planejamento e o controle do comportamento. As matrizes são reutilizadas em processos de imaginação, no sonho e no relembrar, podendo ainda ser alteradas mediante processos perceptuais novos.

A distinção entre reconhecimento e representação seria semelhante então à distinção entre 'entender' e 'raciocinar'. 'Entender' corresponde a processos de reconhecimento, que emparelham padrões internos e externos. 'Raciocinar' corresponde a processos combinatoriais endógenos que constroem padrões mais complexos com base em recombinações de cópias das matrizes perceptuais, independentemente da estrutura do mundo externo (no exemplo clássico, pode-se formar a imagem de um unicórnio pela recombinação de padrões de animais percebidos).

Na literatura científica, notamos que tal distinção não é feita, resultando em um uso indiscriminado do termo 'representação mental' para se referir à atividade de circuitos cerebrais que presumivelmente dariam suporte a processos cognitivos. Esse uso pode ser considerado um dos maiores problemas epistemológicos das neurociências cognitivas, ensejando muitas críticas e tentativas de eliminação de sua utilização, uma vez que o termo carrega consigo determinadas suposições oriundas da filosofia moderna e que foram absorvidas pelas ciências cognitivas. Dentre elas, destaco as seguintes:

• identificação de processos mentais com processos lógicos: o ser humano seria um agente exclusivamente racional que pautaria sua conduta em raciocínios corretos, por meio dos quais as alternativas de ação seriam representadas explicitamente a fim de que houvesse uma escolha consciente;

• intencionalidade cognitiva: a mente humana seria um sistema fundamentalmente cognitivo cuja consciência sempre se refere a objetos intencionais, ou seja, aqueles cuja existência está no domínio da própria mente e/ou em um mundo platônico das ideias. O pensamento se refere a objetos intencionais mediante representações, sendo a linguagem o meio mais apropriado para se elaborarem as mesmas;

• exclusividade cognitiva: mesmo que se considerem os processos afetivos e emocionais como constituintes da mente humana, eles são rebaixados a segundo plano, atuando como perturbações dos processos cognitivos.

Particularmente espinhosa é a discussão do uso do termo 'representação' para fazer referência a estados afetivos e emocionais. Será que o cérebro representa sensações (como calor, fome, dor) e sentimentos (feelings em inglês, incluindo, por exemplo, tristeza, raiva e medo)? Não seria mais apropriado dizer que o indivíduo como um todo vivencia tais sensações e emoções?

Encontramos, na situação acima descrita, dois novos problemas linguísticos, que acabam tornando-se problemas epistemológicos: a atribuição dos estados mentais ao cérebro, e não à pessoa como um todo, e a suposição de origem racionalista, possivelmente cartesiana, e que a linguística de Chomsky herdou, de que estados afetivos e emocionais seriam redutíveis a estados cognitivos.

Uma computação pragmática?

Nos sistemas vivos submetidos à pressão adaptativa, o processo de recombinação de conteúdos mentais é guiado por objetivos. Cérebros reconhecem padrões naturais oriundos dos ambientes nos quais os animais lutam para sobreviver, e recombinam tais padrões obedecendo a parâmetros pragmáticos. Em computadores digitais falta a dimensão pragmática, derivada da pressão seletiva pela sobrevivência e pela reprodução; os computadores seriam máquinas que associam representações artificialmente codificadas, de acordo com funções previamente programadas.

Nos sistemas vivos, as recombinações são monitoradas por meio de mecanismos de reaferência (reafference), que alertam o organismo sobre os resultados de ações prévias. O planejamento de ações novas está baseado na correção de discrepâncias (mismatches) entre o resultado intencionado e as consequências percebidas de ações prévias.

No cérebro dos mamíferos, caracterizado pelo desenvolvimento das áreas neocorticais, a recombinação de padrões constituiria o modus operandi do 'sistema executivo', composto pelo córtex pré-frontal e suas conexões com áreas associativas perceptuais - a parietal e a ínfero-temporal posterior -, e pelo sistema límbico (ver D'Esposito e Grossman, 1996). Essa visão é compatível com a concepção funcional do cérebro como composto de um nível básico de processadores paralelos que se combina com um segundo nível de processamento de tipo serial (ver Dennett, 1991). Os sistemas perceptuais de reconhecimento seriam os processadores paralelos, e a biocomputação realizada pelo sistema executivo constituiria o processamento serial.

Entretanto, os modelos computacionais, que se baseiam na codificação digital da informação, podem ser incompatíveis com os aspectos afetivos e emocionais da experiência consciente. Ora, os mecanismos de reaferência só se tornam efetivos quando geram respostas afetivas/emocionais que possibilitam ao indivíduo avaliar - em termos existenciais, que incluem, mas não se limitam, ao processamento lógico - a adequação de suas ações. Por exemplo, acredita-se que a existência da dor sirva como sinal de alerta para que os indivíduos procurem se afastar de determinadas situações que possam colocar em risco a sua integridade físico-biológica. Nesse caso, o componente dor seria essencial em modelos computacionais da cognição, porém como implementar o fenômeno da dor em computadores ou robôs?

Seria possível distinguir computacionalmente, por meio de uma codificação digital, a dor e o prazer? Tal tarefa parece ser impossível, pois inclusive no plano biológico tal distinção é nebulosa. Por exemplo, uma região do cérebro chamada ínsula é ativada em ambas as situações, ou seja, quando uma pessoa sente certos tipos de dor e quanto sente certos tipos de prazer. Para explicar os feelings em termos físico-biológicos, possivelmente seja necessário um novo tipo de abordagem (ver, por exemplo, Pereira Jr. e Furlan, 2010).

Atividade cerebral e atividade mental

Uma concepção de processos cognitivos baseada em categorias das ciências do cérebro não implica a tese de que as categorias psicológicas seriam teoricamente redutíveis a - ou elimináveis, em prol de - categorias neurobiológicas, o que tinha sido proposto por Churchland (1986) e Crick (1994). Ao contrário, nos estudos experimentais da neurociência cognitiva, cada nível de função do cérebro é acessado por uma metodologia diferente, encontrando-se possíveis correlações quando os resultados são comparados. Por exemplo, em uma sessão de fMRI (functional Magnetic Resonance Imaging/Ressonância Magnética Funcional) o sujeito executa tarefas cognitivas enquanto seu cérebro é esquadrinhado pelo equipamento de neuroimagem. É na interpretação de resultados que os dados da neuroimagem são correlacionados com os dados comportamentais da tarefa cognitiva, induzindo-se uma possível relação (causal ou não) entre eles.

Explicações causais de cognição em termos de processos cerebrais são possíveis e cientificamente desejáveis, embora talvez incompletas. Os efeitos de neurotransmissores e receptores sobre estados cognitivos e emocionais estão sendo progressivamente descobertos. O progresso do conhecimento da fisiologia do cérebro não fará as disputas filosóficas sobre a natureza da mente desaparecerem, mas pode provocar uma mudança do estilo de discussão: em vez de um confronto de posições em nível puramente teórico, pode-se passar a discussões baseadas na interpretação dos dados empíricos. Por exemplo, ao se discutir se um transtorno mental - como a esquizofrenia - tem uma base genética, é possível classificar os diversos tipos de alterações cerebrais correlacionados com as psicopatologias e verificar se existem elementos comuns em suas diversas manifestações.

Uma conclusão sugerida pelos estudos de lesões cerebrais e alterações farmacológicas é que de alguma maneira (a ser elucidada) processos cerebrais 'causam' processos conscientes (o que tem sido discutido por Searle, 1997). Nesses estudos, por exemplo, são comparados dois comportamentos em um único organismo: o primeiro, anterior, e o segundo, imediatamente posterior a uma lesão cerebral ou a uma alteração bioquímica. A inferência usualmente feita é que a diferença pertinente se deve à ausência da estrutura subtraída pela lesão ou pela alteração de concentração de compostos bioquímicos. Tal inferência é semelhante ao que é feito em outras áreas de ciência. Quando outra premissa plausível é acrescentada - a de que as mudanças de comportamento indicam mudanças nos processos conscientes -, a conclusão em questão é obtida, ou seja, que alterações em estados cerebrais 'causariam' mudanças nos processos conscientes.

Manifesta-se aqui o problema de se entender como é possível que processos eletroquímicos na rede neuronal contribuam de alguma forma para 'causar' a experiência consciente, uma vez que as categorias que descrevem a experiência consciente (por exemplo, as qualidades sensoriais, como cores e sons, chamadas pelos filósofos de qualia) não seriam dedutiva ou mesmo semanticamente deriváveis dos referidos processos neuronais. Tal visão implicaria um conceito peculiar de causação que não foi discutido por Searle (1997): haveria relações causais entre processos descritos por categorias diferentes e lógico/semanticamente irredutíveis? O efeito não seria uma consequência lógica, nem pertenceria à mesma categoria semântica da causa. Uma consequência disso é que propriedades do efeito (conteúdos dos processos conscientes) não poderiam ser deduzidas das propriedades da causa (características dos processos cerebrais).

Em outras palavras, embora a neurociência cognitiva descubra correlações entre o cérebro e a mente, um 'fosso explicativo' (explanatory gap, de acordo com Levine, 1983) restaria. Essa visão parece desafiar tanto o clássico princípio de razão suficiente, de Leibiniz, o qual afirma que tudo aquilo que existe tem uma razão, no sentido de explicação racional, quanto o modelo de lei de cobertura (Nagel, 1961), usado para a explicação científica dos fenômenos e que postula serem as propriedades dos efeitos dedutíveis das propriedades das causas (usando-se como premissas as leis científicas e as condições iniciais do sistema em estudo). Uma contribuição original da epistemologia da neurociência cognitiva seria a análise da possibilidade de efetiva explicação de processos cognitivos com base em categorias neurobiológicas.

No caso de se concluir por uma impossibilidade, resta ainda a alternativa epistemológica de construção de modelos das relações entre processos cerebrais e processos mentais conscientes, como proposto por Lungarzo e Pereira Jr. (2009). O monismo de duplo aspecto (Pereira Jr. et al., 2010) é uma posição filosófica que entende serem indissociáveis os aspectos físicos e mentais, ambos constituintes fundamentais do mundo em que vivemos, e não poderem ser eliminados ou reduzidos um ao outro. Nessa perspectiva em que o mundo físico e o mundo mental constituem uma unidade do tipo yin-yang, a tarefa da neurociência cognitiva seria justamente a de encontrar as devidas correspondências (isomorfismos ou homeomorfismos) entre padrões de atividade biofísica do cérebro e padrões de atividade mental (consciente ou inconsciente).

Comentários finais

Os quatro temas epistemológicos aqui resenhados convergem no problema principal da neurociência cognitiva: entender como processos cognitivos são executados pelo cérebro, em suas interações com o (restante do) corpo e o ambiente. Tais temas refletem o avanço de pesquisa neurocientífica em uma área previamente ocupada por filósofos e psicólogos.

Uma discussão mais detalhada desses temas pode ser encontrada nas seguintes publicações do autor: Pereira Jr., 1997; Pereira Jr., 1998; Pereira Jr. e Rocha, 2000; Pereira Jr., 2001; Rocha, Pereira Jr. e Coutinho, 2001; Pereira Jr., 2003; Pereira Jr., 2007a; Pereira Jr., 2007b; Teixeira e Pereira Jr., 2009; Pereira Jr., 2008; Pereira Jr. e Ricke, 2009; Pereira Jr. et al., 2010 e Pereira Jr. e Furlan, 2010. Nesse último trabalho, apresentamos uma nova perspectiva a respeito do funcionamento cerebral e da consciência humana, considerando a participação de células gliais - em particular, dos astrócitos - como componentes centrais no processamento da informação cerebral e instanciação dos conteúdos conscientes.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Notas

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    Professor adjunto do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), São Paulo, Brasil. Doutor em Lógica e Filosofia da Ciência pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-Doutorado em Ciências do Cérebro e da Cognição no Massachusetts Institute of Technology. <
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    Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
    Campus de Botucatu, Distrito de Rubião Júnior, s/n
    CEP 18.618-970, Botucatu, São Paulo, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Nov 2010
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