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Modelos, mercado e poder: elementos do currículo oculto que se revelam na formação em odontologia

Models, market, and power: elements of the hidden curriculum that show through in training in dentistry

Modelos, mercado y poder: elementos del currículo oculto que se revelan en la formación en odontología

Resumos

Este artigo analisa a dimensão ética da formação profissional de estudantes de odontologia. Empregando-se a abordagem qualitativa, foram realizadas entrevistas com professores e estudantes, observações de atividades acadêmicas e grupos focais com alunos de dois cursos. Por meio das categorias de análise relacionadas ao currículo oculto foi possível perceber os valores mais presentes ou menos no processo de socialização profissional, implicados em conflitos de interesses, em questões de prestígio das áreas e de poder nas dinâmicas das relações interpessoais, bem como nos modelos em que os estudantes se espelham na sua construção identitária. A discussão e a reflexão sobre esses achados permitem avançar na compreensão da complexidade de fatores que compõem o 'currículo real' e que conformam a dimensão ética da formação profissional, tão importante para o desenvolvimento de futuros profissionais-cidadãos eticamente sensíveis e socialmente competentes.

currículo oculto; graduação em odontologia; formação em saúde; ética; bioética


This article examines the ethical dimension of the professional training of dentistry students. Using a qualitative approach, interviews were carried out among professors and students, observations were made of academic activities, and focus groups were held with students from two courses. By means of the analysis categories associated with the hidden curriculum, it was possible to note the values that are more or less present in the professional socialization process involved in conflicts of interest, in matters of area prestige, in the power of the dynamics of interpersonal relationships, as well as in the models in which students reflect on their identity. Discussing and reflecting on these findings allow one to make progress in understanding the complexity of factors that make up the 'actual curriculum' and shape the ethical dimension of vocational training, which is so important to develop future professionals-citizens who are ethically sensitive and socially competent.

hidden curriculum; undergraduate course in dentistry; health education; ethics; bioethics


Este artículo examina la dimensión ética de la formación profesional de estudiantes de odontología. Mediante el empleo de un enfoque cualitativo, se realizaron entrevistas con profesores y estudiantes, observaciones de actividades académicas y grupos de discusión con alumnos de dos cursos. Por medio de las categorías de análisis asociadas al currículo oculto fue posible observar los valores más o menos presentes en el proceso de socialización profesional, involucrados en conflicto de intereses, en temas de prestigio de las áreas y de poder en las dinámicas de las relaciones interpersonales, así como en los modelos en que los estudiantes se reflejan en la construcción de su identidad. El debate y la reflexión sobre estos hallazgos permiten avanzar en la comprensión de la complejidad de los factores que conforman el 'currículo real' y que constituyen la dimensión ética de la formación profesional, tan importante para el desarrollo de futuros profesionales-ciudadanos éticamente sensibles y socialmente competentes.

currículo oculto; pregrado en odontología; formación en salud; ética; bioética


ARTIGO ARTICLE

Modelos, mercado e poder: elementos do currículo oculto que se revelam na formação em odontologia

Models, market, and power: elements of the hidden curriculum that show through in training in dentistry

Modelos, mercado y poder: elementos del currículo oculto que se revelan en la formación en odontología

Mirelle FinklerI; João Carlos CaetanoII; Flávia Regina Souza RamosIII

IUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Doutora em Odontologia em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina. <mirellefinkler@yahoo.com.br>

IIUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Doutor em Odontologia Social pela Universidade Federal Fluminense. <caetano@saude.sc.gov.br>

IIIUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Doutora em Filosofia da Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina. <flaviar@ccs.ufsc.br>

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Servidão Feliciano Martins Vieira, 138, apartamento 402, Itacorubi CEP 88034-130, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

RESUMO

Este artigo analisa a dimensão ética da formação profissional de estudantes de odontologia. Empregando-se a abordagem qualitativa, foram realizadas entrevistas com professores e estudantes, observações de atividades acadêmicas e grupos focais com alunos de dois cursos. Por meio das categorias de análise relacionadas ao currículo oculto foi possível perceber os valores mais presentes ou menos no processo de socialização profissional, implicados em conflitos de interesses, em questões de prestígio das áreas e de poder nas dinâmicas das relações interpessoais, bem como nos modelos em que os estudantes se espelham na sua construção identitária. A discussão e a reflexão sobre esses achados permitem avançar na compreensão da complexidade de fatores que compõem o 'currículo real' e que conformam a dimensão ética da formação profissional, tão importante para o desenvolvimento de futuros profissionais-cidadãos eticamente sensíveis e socialmente competentes.

Palavras-chave: currículo oculto; graduação em odontologia; formação em saúde; ética; bioética.

ABSTRACT

This article examines the ethical dimension of the professional training of dentistry students. Using a qualitative approach, interviews were carried out among professors and students, observations were made of academic activities, and focus groups were held with students from two courses. By means of the analysis categories associated with the hidden curriculum, it was possible to note the values that are more or less present in the professional socialization process involved in conflicts of interest, in matters of area prestige, in the power of the dynamics of interpersonal relationships, as well as in the models in which students reflect on their identity. Discussing and reflecting on these findings allow one to make progress in understanding the complexity of factors that make up the 'actual curriculum' and shape the ethical dimension of vocational training, which is so important to develop future professionals-citizens who are ethically sensitive and socially competent.

Keywords: hidden curriculum; undergraduate course in dentistry; health education; ethics; bioethics.

RESUMEN

Este artículo examina la dimensión ética de la formación profesional de estudiantes de odontología. Mediante el empleo de un enfoque cualitativo, se realizaron entrevistas con profesores y estudiantes, observaciones de actividades académicas y grupos de discusión con alumnos de dos cursos. Por medio de las categorías de análisis asociadas al currículo oculto fue posible observar los valores más o menos presentes en el proceso de socialización profesional, involucrados en conflicto de intereses, en temas de prestigio de las áreas y de poder en las dinámicas de las relaciones interpersonales, así como en los modelos en que los estudiantes se reflejan en la construcción de su identidad. El debate y la reflexión sobre estos hallazgos permiten avanzar en la comprensión de la complejidad de los factores que conforman el 'currículo real' y que constituyen la dimensión ética de la formación profesional, tan importante para el desarrollo de futuros profesionales-ciudadanos éticamente sensibles y socialmente competentes.

Palabras clave: currículo oculto; pregrado en odontología; formación en salud; ética; bioética.

Introdução

Com a publicação das diretrizes curriculares nacionais em 2001 para os cursos de enfermagem, medicina e nutrição e, em 2002, para os cursos de farmácia, fonoaudiologia e odontologia (Brasil, 2002), as profissões da área da saúde atualmente compartilham alguns desafios, dentre eles implantar e aperfeiçoar os novos projetos políticos pedagógicos de seus cursos (Ramos, 2007). Tais diretrizes determinam a mudança do modelo rígido de currículo, com número de disciplinas e conteúdos delimitados, para um modelo mais flexível, com maior liberdade para a sua reorganização. Com isso, as questões de currículo, que há muito já não são um tema exclusivo dos especialistas em educação, estão novamente em pauta nas discussões da área da saúde (Ramos e Padilha, 2006).

Currículo pode ser definido como o conjunto de experiências que os estudantes vivem na escola, ou seja, as situações, os estímulos e modelos que a escola oferece e que geram, em cada estudante, experiências particulares de aprendizagem (Galli, 1989); mas é, ao mesmo tempo, a expressão do posicionamento do curso diante de seu papel social e de suas bases teóricas (Feuerwerker e Almeida, 2004).

Segundo Apple (1982), algumas concepções normativas de cultura e valores foram introduzidas historicamente no currículo, representando os interesses sociais e econômicos dos grupos que primeiramente orientaram a seleção e a organização curricular. Desse modo, o currículo tem servido como um mecanismo de controle social gerador de desigualdades – as escolas, como um meio de reprodução cultural das relações de classes, e a ciência, como uma capa retórica para ocultar decisões sociais e educacionais conservadoras. Assim, poder e cultura devem ser considerados atributos das relações econômicas existentes nas sociedades, estando dialeticamente entrelaçados.

Faz-se então fundamental o questionamento das formas de conhecimento difundido: de quem é essa cultura? A que grupo social pertence esse conhecimento? De acordo com o interesse de quem se transmite determinado conhecimento? Pois a educação, o conhecimento e o currículo não são magistérios neutros; não acontecem num vazio cultural, político, ideológico, religioso... Por meio de mecanismos 'discretos', mas explícitos de controle do trabalho docente sobre as formas de ensinar e sobre o que se (diz que se) ensina, a escolarização e também a graduação universitária têm mantido na prática um modelo de exclusão, diretamente voltado para a manutenção do sistema econômico capitalista, subjugando estudantes e professores aos requisitos impostos pelas políticas delineadas pelo mercado de trabalho (Paraskeva, 2002).

A hegemonia social é assim produzida e reproduzida pelo corpus formal do conhecimento escolar – o currículo planejado e explicitado – e também pelo currículo oculto, entendendose por este as normas, os valores e ideologias implícitos, porém efetivamente vivenciados e não mencionados pelos professores em seus planos de ensino (Apple, 1982).

O currículo oculto consiste em um processo quase imperceptível e concomitante com a aprendizagem formal, por meio do qual o estudante incorpora a cultura social/profissional, identifica os atributos que gozam de prestígio profissional e adquire uma escala de valores, tomando para si, como próprios, os modos de comportamento e os valores dominantes no grupo (Galli, 1989). Os estudantes aprendem essas normas e valores principalmente por tomarem parte nos encontros e nas tarefas diárias da vida na sala de aula, muitas das quais serão empregadas em áreas da vida futura, o que documenta como a escolarização contribui para o ajustamento individual a uma determinada ordem social, política e econômica (Apple, 1982).

Na área da saúde, tem-se discutido também a participação do currículo paralelo na formação profissional, que seria o currículo vivenciado fora dos muros das faculdades, sem a supervisão docente, nas atividades de extensão, como estágios, plantões e outras modalidades de busca de aprendizagem, geralmente ligadas à prática, ou seja, à vivência clínica (Rego, 1998). Esse currículo paralelo evidentemente participa da formação ética dos futuros profissionais, daí advém a preocupação com que estes sejam adequadamente supervisionados e alocados em cenários e momentos adequados (Tavares et al., 2007).

No processo de socialização profissional, o estudante é sujeito ativo e não um objeto a ser moldado pela corporação, embora esta busque uma padronização mínima de conhecimentos, valores e atitudes particulares a determinada atuação profissional (Machado, 1995). Dessa forma, o processo de socialização profissional inclui o processo de desenvolvimento moral, entendido como o processo de valoração de atos, comportamentos e características do indivíduo, tais como a capacidade de refletir sobre aspectos morais e realizar julgamentos pessoais de ordem moral, escolhendo entre o que é certo ou errado, justo ou injusto, bom ou mau (Rego, 2003).

Por meio do desenvolvimento moral do estudante a dimensão ética da formação profissional se processa, devendose buscar uma capacidade de raciocínio autônomo que contribua para uma atuação profissional capaz de conviver em uma sociedade democrática e pluralista, direcionada a buscar relações sociais mais justas e humanizadas (Rego, 2003).

Por formação ética entendese o ensino/aprendizagem/vivência da ética em bases não deontológicas, compromissados com o desenvolvimento e a realização de valores humanizadores e com a conformação da identidade profissional durante a graduação. Ou seja, envolvese tudo aquilo que contribui para que o profissional pense, aja e reaja às situações profissionais de determinada forma ou com determinado padrão de atitudes (Rego, 2003), inclusive os aprendizados do currículo oculto.

Mas como vem sendo trabalhada essa dimensão da formação profissional? Na odontologia, a ausência de estudos que busquem a compreensão acerca desse processo justificou a realização desta pesquisa, que problematizou o desenvolvimento da dimensão ética da formação profissional de maneira a contribuir para a construção de conhecimentos relativos às mudanças necessárias para a formação de cirurgiõesdentistas eticamente competentes e, por consequência, socialmente comprometidos.

É preciso ressaltar que a 'formação ética' é conformada por uma série de fatores que vão desde influências do processo de socialização primária, que se inicia precocemente na infância, até as questões diretamente relacionadas ao desenvolvimento moral que acontece durante a graduação, passando pelo mundo da profissão e do trabalho em saúde, pelas particularidades da formação profissional em saúde, pelo processo de socialização profissional e pelo currículo formal e oculto (Finkler, 2009). Na interface desses conceitos, o objeto desta pesquisa – a dimensão ética da formação profissional – pôde ser delimitado em um marco conceitual, direcionando a busca de estratégias metodológicas que possibilitassem compreender como ela vem sendo desenvolvida.

O presente artigo busca discutir alguns dos achados da pesquisa relacionados ao currículo oculto que influenciam diretamente a dimensão ética da formação dos estudantes de odontologia ao interagir com as situações previstas no currículo formal, concretizando o currículo que é efetivamente vivido, ao qual se tem chamado de currículo real (Silva et al., 2008). Ao possibilitar maior compreensão sobre essa realidade, pretendese contribuir para as mudanças curriculares que buscam a construção de um perfil profissional mais ético e cidadão, comprometido com as mudanças necessárias na sociedade na qual se forma e para a qual atuará profissionalmente.

Métodos

Quando em um contexto de vida real se busca apreender um fenômeno na sua totalidade, descrevendo, compreendendo e interpretando a complexidade de um caso concreto, com base em uma variedade de evidências, caracterizase a pesquisa como sendo um estudo de caso (Minayo et al., 2005). De fato, este estudo descritivo1 1 Pesquisa realizada com bolsa Capes de Doutorado com Estágio no Exterior, resultante de tese, sem conflitos de interesses. pode assim ser definido, pois investigou um fenômeno contemporâneo sobre o qual não se tem controle – qual seja, a formação ética de futuros profissionais de saúde. Para tanto, empregouse a abordagem qualitativa por ser considerada a mais adequada à compreensão de fenômenos específicos e delimitáveis, mais pelo seu grau de complexidade interna do que por sua expressão quantitativa.

A coleta de dados foi iniciada após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (parecer n. 139/07). Os resultados aqui apresentados fazem parte de uma pesquisa que selecionou 17 cursos, compondo uma amostra equivalente a aproximadamente 10% dos cursos de odontologia brasileiros, representativa em termos de distribuição geográfica (70% nas regiões Sul e Sudeste e 30% nas regiões Norte, Nordeste e CentroOeste) e de financiamento (aproximadamente 70% privados e 30% públicos).

Respeitada essa distribuição, a seleção dos cursos foi definida intencionalmente – porque a amostragem em pesquisa qualitativa deve se esforçar para que a escolha do lócus e do grupo de sujeitos contenha o conjunto das experiências e expressões que se pretende objetivar com a pesquisa, do que decorre que o conhecimento, as experiências e os contatos anteriores do pesquisador são pontos de partida. Nesses casos, a representatividade numérica é menos importante do que a análise da questãoproblema em várias perspectivas, pontos de vista e de observação, sendo que a validade dessas amostragens consiste na capacidade de se objetivar o objeto empiricamente (Minayo, 1999).

Dos 17 cursos, apenas dois privados da região Sudeste recusaram participação, ficando a amostra composta por 15 faculdades, sendo cinco (33%) públicas (uma de cada região) e dez (66%) privadas (uma no Nordeste, uma no CentroOeste, seis no Sudeste e duas no Sul).

Inicialmente, um questionário foi aplicado aos coordenadores dos cursos com o objetivo de se traçar um panorama sobre a formação ética em odontologia e de selecionar alguns cursos para o aprofundamento da pesquisa.2 2 Para conhecer em detalhes a metodologia e os resultados dessa etapa da pesquisa, consultar Finkler et al. (2011a). Foram escolhidos os dois cursos que demonstraram estar em situações mais diferentes entre si sobre como têm desenvolvido a dimensão ética da formação de seus estudantes, sendo um público e o outro privado, de diferentes regiões. Vale ressaltar que o objetivo não consistia em realizar comparações, mas somar evidências para este estudo de caso dos cursos de graduação em odontologia brasileiros, mediante uma aproximação mais concreta com a realidade acadêmicopedagógica, de modo que se apreendessem os elementos presentes no currículo oculto que influenciam a dimensão ética da formação profissional.

Para tanto, foram realizadas análises documentais,3 3 Os documentos analisados foram os projetos político-pedagógicos, as ementas disciplinares e a antiga e a nova grade curricular de cada um dos dois cursos selecionados. Os dados coletados abarcavam: os conceitos de odontologia, saúde, saúde bucal, educação, multidisciplinaridade e ética; o histórico de reformulações do currículo, a visibilidade das diretrizes curriculares, o direcionamento pelo e para o SUS, a integração do curso com o SUS, a importância da saúde coletiva e o envolvimento com o Pró-Saúde; as formas previstas para o desenvolvimento das competências de âmbito político, de reflexão, crítica e autonomia, bem como a educação moral dos estudantes, humanística e cultural; as inovações em termos de organização curricular, de metodologias e interatividade; a integração ensino-serviço; a capacitação dos docentes e sua percepção sobre responsabilidade pela formação ética dos estudantes; e, quanto às disciplinas relacionadas à ética, seus objetivos, valores, ementas, marcos referenciais, conteúdos programáticos, metodologias de ensino-aprendizagem e de avaliação e bibliografia. entrevistas semidirigidas com professores que exerciam alguma liderança no curso ou ministravam disciplinas relacionadas direta ou indiretamente à ética, observação 'não participante' de atividades acadêmicas (aulas teóricas e atividades clínicas) e grupos focais com alunos das fases finais dos cursos. Por meio destas técnicas, buscouse coletar dados acerca das lideranças, das relações de poder, da organização dos discentes, das atividades extracurriculares, da capacitação docente, dos métodos de ensinoaprendizagem e de avaliação, das oportunidades e do estímulo à reflexão crítica, à interatividade, à educação moral, dados sobre disciplinas (ética, deontologia, bioética, humanidades e afins), concepções, conteúdos e competências éticas, os principais interesses e valores dos estudantes, as preferências pelos diferentes modelos profissionais, a orientação pedagógica, os vínculos entre corpos discente e docente, a recepção aos calouros, a percepção e a vivência de problemas éticos nas salas de aula e nas clínicas, entre outros aspectos. Estas diferentes formas de coleta de dados permitiram a triangulação dos achados (Turato, 2003), confrontando concepções sobre a temática da pesquisa, comportamentos, a percepção de modelos, estereótipos e de valores mais ou menos vivenciados pelos sujeitos da pesquisa.

Em todas essas estratégias, a coleta foi finalizada quando se percebeu a saturação dos dados. Uma vez transcritas as entrevistas e os grupos focais e agrupadas as informações registradas no diário de campo, os dados coletados foram analisados conforme Minayo (1999) e Trentini e Paim (1999), por meio dos processos de ordenação (1), categorização inicial (2), reordenação dos dados empíricos com o agrupamento das categoriais iniciais por temáticas semelhantes, configurando categorias temáticas4 4 Neste artigo, Faz-se um recorte dos resultados da pesquisa ao se apresentar e discutir uma categoria temática composta por três subcategorias: modelos profissionais, mercado de trabalho e poder. (3) e, por fim, análise delas à luz das referências teóricas pertinentes (4).

Modelos profissionais: estereótipos e espelhos

Tanto a cultura leiga quanto a profissional possuem estereótipos acerca do trabalho do cirurgião-dentista, da profissão e das possíveis carreiras a seguir. Esses estereótipos, geralmente negativos na representação social (Pinho, 2008), traduzemse na imagem de um profissional vestido de branco, que emprega suas habilidades técnicas no atendimento à 'saúde bucal' de indivíduos, num espaço de trabalho isolado, com alta valorização social. Ainda que criticado no discurso acadêmico e mesmo rejeitado por uma parte dos profissionais, tal estereótipo mantémse – fruto da história da profissão – e permanece pela existência de modelos profissionais que o reforçam. Esses modelos são ao mesmo tempo causa e consequência, pois fomentam a formação continuada desse perfil profissional.

Alguns professores acabam se transformando em referências profissionais quanto às competências e por conta do desempenho que esse professor individualmente tem no mercado, ou pela colocação dele profissionalmente dentro da academia (...) Eles veem, por exemplo, dentro do implante, professores de nome regional fazendo implante, que têm ótima colocação junto à associação de classe e que têm destaque do ponto de vista social, e às vezes as pessoas se espelham nisso (Entrevista, professor 2, curso privado).

Segundo Hughes (1998), o primeiro dos três mecanismos de socialização profissional é o da 'quase alienação' do estudante do seu entendimento leigo sobre a profissão, ou seja, é a fase em que o estudante percebe o mundo profissional de um modo contrário ao que imaginava. Isto pode ser percebido na fala do docente que relata a mudança da expectativa inicial dos estudantes à medida que eles vão se inserindo no mundo acadêmico:

Eles já entram sabendo quais especialidades que eles vão fazer – ortodontia – e todos querem montar consultório particular, certo? Mas quando eles terminam, a visão deles é muito diferente disso. Eles sabem o que vão encontrar lá fora, sabem as dificuldades que vão encontrar lá fora, aí, durante o curso, a tendência à especialização varia, daí não é mais todo mundo que gostaria de fazer 'orto', né? Eles acabam pulverizando... (Entrevista, professor 1, curso privado).

Espera-se do estudante uma identificação com a profissão e uma capacidade de atuação quando ele ainda nem se sente identificado ou preparado para tanto – o que implica a aquisição também antecipada de normas, valores e modelos de comportamento dos membros do grupo de referência (Dubar, 2005). Dessa forma, é compreensível que os estudantes tomem parte nos modelos profissionais que encontram e com o qual interagem – quais sejam, o do clínico e o do professor/pesquisador – e passem a pensar e a agir conforme esses 'espelhos'.

No segundo mecanismo da socialização profissional, ocorre a chamada 'instalação na dualidade' entre o modelo ideal da profissão (dignidade, imagem e valor) e o modelo prático (diferentes tarefas e mercado de trabalho), para o que a seleção de um grupo de referência, antecipando as posições desejadas e legitimando capacidades, é um importante mecanismo na gestão desse conflito (Hughes, 1998). De fato, esse mecanismo pode ser percebido quando os docentes falam sobre os 'especialistas precoces':

Crise de alunos que antes a gente dizia que eram os especialistas precoces, então aquele aluno que não via nada: "eu quero ser cirurgião bucomaxilo". Então ele já entrava e nada mais importava (...). Essa mentalidade, graças a Deus, tem mudado (Entrevista, professor 2, curso público).

Mas tal mudança não tem sido de paradigmas. Consiste no surgimento de novas especialidades clínicas, diante da percepção das atuais demandas do mercado de trabalho. Assim, a preferência pelas áreas mais técnicas e clínicas mantémse forte e explícita na fala de todos os sujeitos de pesquisa, com os estudantes valorizando as diferentes áreas do conhecimento do mesmo modo que a maior parte de seus docentes.

A preferência pela dimensão técnica, clínicocirúrgica, surge ainda pelo contraste com a desvalorização do trabalho em outras áreas, como a saúde coletiva. Essa desvalorização também foi historicamente construída, à medida que a prática odontológica no Brasil se desenvolvia com base no profissional liberal e no seu modelo de prática individualizada, mecanicista e isolada das demais profissões da saúde (Finkler et al., 2009). Também o manejo de instrumentos técnicos mais sofisticados atribuindo valor ao profissional e a supervalorização da alta tecnologia em relação às questões mais relacionais do trabalho levaram a saúde coletiva a ser considerada como de menor valor, exigindo menor qualificação, o que remete a um entendimento restrito da tecnologia operada nas ações profissionais ou mesmo das próprias necessidades de saúde da população.

Sabe-se que as áreas cujo prestígio é relativamente alto tendem a arregimentar membros com muito talento (Appel, 1982), o que se percebeu na realidade estudada. O bom desempenho no mercado de trabalho, expresso em termos econômicos e em prestígio, é o fator que predomina na maior ou menor valorização das áreas. Essas considerações fazem parte do mecanismo final da socialização profissional, no qual ocorre o ajuste da concepção de Si, que é o momento no qual o estudante, consciente de suas capacidades e preferências, escolhe o grupo de referência no qual efetivamente se inscreverá (Dubar, 2005).

A importância atribuída às áreas é percebida de diversas maneiras, que vão desde o interesse e o envolvimento direto dos estudantes com as disciplinas curriculares, o respeito e a admiração pelos professores, a escolha da temática para os trabalhos de conclusão de curso, a seleção de temas de palestras nos eventos científicos organizados pelos acadêmicos, até a escolha de uma especialidade que a maioria docente e discente julga necessária realizar. Por parte dos professores, a maior importância justifica o nível de cobrança das disciplinas.

As disciplinas teoricamente mais importantes, falando terapeuticamente, elas exigem mais com as suas disciplinas, para elas ficarem melhores (...) num sentido estrutural (...) exigem mais da administração. E algumas exigem mais dos alunos também, né? (Entrevista, professor 1, curso público).

Tais disciplinas cobram mais porque se consideram mais importantes na formação profissional, mas também porque suas exigências são consideradas mais importantes e são, portanto, aceitas. Mesmo uma grande dedicação dos docentes das disciplinas menos valorizadas e um significativo desempenho em termos de produção científica não alteram a atenção dada pelos estudantes, ainda que demonstrem reconhecer tais fatos.

Eu não suporto pensar que a minha disciplina é o 'patinho feio' e que eu não preciso, por exemplo, avaliar... Eu avalio do mesmo nível da clínica, problema de quem não estudar, problema de quem não prestar atenção. Meu nível é altíssimo, assim, altíssimo vírgula, para o nível de graduação. Claro que eu poderia puxar muito mais e eu tento puxar o máximo que eu consigo... (Entrevista, professor 4, curso privado).

As mudanças no mercado de trabalho do cirurgião-dentista, principalmente com a ampliação do número de equipes de Saúde Bucal da Família (Morita, Haddad e Araújo, 2010) e as mudanças curriculares – em especial, a maior inserção das disciplinas de saúde coletiva nos novos currículos –, parecem modificar um pouco a situação. Mesmo assim, o desinteresse pela área ainda é o comum. A valorização da saúde coletiva acaba sendo atribuída ao interesse pelo mercado de trabalho, ou a maior identificação com a visão de mundo de alguns poucos alunos, ou ainda aos valores de estudantes economicamente menos favorecidos.

Quem está mais relacionado com as assistências em relação à odontologia preventiva são os alunos que têm mais carência. E eu acho que é fato isso (Entrevista, professor 1, curso público).

A aluna começou a ser marginalizada na sala de aula (...). Eu via que ela falava e o pessoal ria. Porque ela aderiu ao discurso (da saúde coletiva), aquela coisa de não falar tão positivamente (Entrevista, professor 4, curso privado).

É necessário alertar que estas últimas falas foram pontuais, mas incluídas nesta discussão por sugerirem que pode haver uma identificação entre a visão de mundo destes alunos e os valores mais presentes nas disciplinas das áreas de ciências humanas e de saúde coletiva, como a justiça, a solidariedade, a autonomia, entre outros. A maior sensibilidade para estas áreas ilustraria como a socialização primária integra o processo de socialização secundária, ou seja, como os contextos socioculturais e as relações interpessoais que participaram da construção da identidade do indivíduo desde muito cedo influenciam posteriormente na sua formação profissional, na continuidade da sua construção identitária (Dubar, 2005).

Outro vazio observado na formação está relacionado ao (à falta de) estímulo à liderança dos estudantes. De fato, lideranças estudantis efetivas são pouco frequentes nas faculdades de docentes pareçam valorizar esse aspecto. Contudo, são pontuais as situações de ensinoaprendizagem que estimulam a vivência e a formação política dos estudantes.

Durante a ditadura militar, perdeuse muito do poder de participação e crítica na vida política do país. Nas escolas e universidades, professores, alunos e funcionários eram proibidos de toda e qualquer manifestação de caráter político. Após um lento processo de retomada dessa dimensão da vida social, as marcas daqueles tempos ainda se mostram presentes na desvalorização da dimensão política da formação profissional.

Paralelamente à dimensão política, a capacidade de análise crítica dos estudantes também vem sendo pouco desenvolvida. Apenas pontualmente a criticidade dos estudantes é evidenciada, como por exemplo entre aqueles que realizam iniciação científica ou participam de metodologias ativas de ensinoaprendizagem, ou ainda nas atividades das disciplinas de saúde coletiva, quando o aspecto social da realidade é tomado como conteúdo e cenário de ensino. Entretanto, a realidade social ainda está bastante afastada da formação profissional, especialmente pela falta de integração entre o ensino e os serviços de saúde (Finkler et al., 2011b).

É um mal da nossa escola. O aluno, ele é muito isolado e ele é muito exigido dentro do espaço (...) tem muita aula e isso falta. Falta essa parte até dentro de projetos de extensão que vai a uma comunidade (Entrevista, professor 4, curso público).

Mercado de trabalho: de olho no futuro (ou ainda no passado?)

Percebeu-se que o principal interesse dos estudantes está relacionado à ascensão social individual e, mais especificamente, à futura entrada no mercado de trabalho. Um segundo foco de atenção recai sobre o próprio bemestar no dia a dia da graduação. Portanto, seus interesses são bastante autocentrados, o que vai, de certa maneira, ao encontro do relatado pelos próprios estudantes acerca do individualismo vivenciado no ambiente acadêmico, embora o discurso da convivência e do relacionamento entre eles seja, de modo geral, positivo.

Eu vejo muito a questão do egoísmo que tem aqui dentro, as pessoas são muito individualistas (...) todos se relacionam muito bem, existe muita amizade, coleguismo (...) mas ao mesmo tempo tem a questão do individualismo muito grande.

Ninguém pensa muito no outro. Tanto é que quando tem concurso, prova pra bolsa, essas coisas não se espalha...

Existe um individualismo, sim (...) isso é um reflexo da sociedade. A sociedade tem pregado que você seja capitalista ao extremo, consumista ao extremo e individualista ao extremo (Grupo focal de estudantes, curso público).

Interessante perceber a aceitação de que é normal ser individualista porque a sociedade é assim. Sugere haver uma acomodação com a situação. A sociedade individualista parece ser vista como uma condição a que se é empurrado para vencer e progredir e é aceita com a mesma naturalidade com que é aceita a falta de confiança no outro. O individualismo dificulta inclusive a articulação da categoria profissional...

Numa sociedade capitalista (...) não é diferente a competição, a falta de companheirismo (...) essa competição também vai amanhã influenciar na conduta, porque cada um vai entrar pra dentro do seu consultório, vai ser individualista, e a partir daí (...) é uma grande deficiência da nossa profissão, né? Que a corporação tem problemas em comum. Ela não consegue mais trabalhar junto. Hoje, o cirurgião-dentista, ele não participa nem mais de atividades sociais... (Entrevista, professor 5, curso privado).

Se os cursos falham em estimular a união e a cooperação entre os estudantes, o mercado de trabalho pode também contribuir para o aumento da competitividade entre os futuros profissionais, pois a preocupação com o ingresso e a manutenção no mercado é premente.

Uma grande preocupação deles hoje é a empregabilidade, a hora que eles saírem da faculdade (...). Eu vejo que a necessidade deles mesmo é de colocação, de poder fazer aquilo que eles aprenderam, de ter um consultório com pacientes ou de ir para um serviço público com pacientes (Entrevista, professor 2, curso privado).

Empregabilidade é um novo conceito, introduzido ante as mudanças do mundo do trabalho, que consiste em manterse em estado de competência e de competitividade, para ter sua carreira protegida dos riscos inerentes ao mercado de trabalho. Assim, já não seria mais a escola (ou a empresa) que produz as competências exigidas do indivíduo para enfrentar o mercado, mas ele próprio ao assumir a responsabilidade pela aquisição e manutenção de suas próprias competências (Ludke e Boing, 2004). A preocupação com a empregabilidade relacionase com a saturação do modelo de trabalho liberal em odontologia, o que provoca uma grande inquietação nos estudantes, tendo em vista seu ideal de prática liberal.

Hoje em dia, se vê muito mais os alunos preocupados com o que vai ser da vida daqui a dois anos quando eles saírem... Compromisso de tentar ingressar no mercado bem, porque eles estão vendo que a dificuldade é muito grande (Entrevista, professor 1, curso público).

Cabe lembrar que a odontologia é considerada, de acordo com os critérios tradicionais empregados pela sociologia das profissões, uma profissão institucionalizada, pois possui um saber próprio e uma prática profissional específica, requer dedicação profissional em tempo integral, depende de um importante componente vocacional, tem um ideal de serviço (ou seja, serve aos interesses da coletividade tendo uma praticidade e um compromisso social), além de dispor de uma estrutura corporativa com código de ética estabelecido e um alto grau de autonomia. Esta última – entendida como a capacidade de uma determinada profissão avaliar e controlar por si própria a técnica de seu trabalho, bem como a sua independência socioeconômica, da qual deriva prestígio social – é justamente o elemento mais característico de uma atividade profissional (Machado, 1995).

É compreensível, portanto, que a principal preocupação dos estudantes esteja relacionada com o mercado de trabalho, já que a formação profissional continua ainda orientada para o exercício liberal da profissão, a despeito da expansão das vagas para cirurgiõesdentistas no Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos anos (Morita, Haddad e Araújo, 2010). O interesse pelo serviço público basicamente continua secundário, considerado menos importante e de menor status.

O enfoque das mudanças curriculares visando a um perfil de profissional generalista (Brasil, 2002) está presente no discurso de alguns entrevistados, mas de forma bastante contraditória, especialmente nos cursos em que as atuais reformas curriculares são mais superficiais.

Oitenta por cento dos alunos vão fazer PSF depois de formados, que é o que tá salvando os empregos. É a salvação. Mas os mais interessados começam também a fazer uma pósgraduação e depois deixam o PSF (Observação 2, curso público).

A manutenção do perfil de profissional liberal está, portanto, influenciada por um conjunto de fatores que abarcam as questões do trabalho em odontologia, o estereótipo da profissão e as cobranças sociais que dele provêm, os modelos profissionais que operam no processo de socialização profissional, a formação dos atuais docentes e as preferências e valores dos estudantes. Também é preciso considerar a preocupação dos docentes em proteger a demanda de clientes da prática privada e a demanda de estudantes para os seus cursos de pósgraduação como mais um fator que contribui para a valorização da prática liberal em odontologia.

O objetivo da escola é atender um paciente perfil SUS, sabe? E não de um paciente que tenha condições de pagar, porque nós não queremos que a escola seja a principal concorrente do nosso aluno, do egresso que vai para o mercado de trabalho (Entrevista, professor 2, curso privado).

Muitos professores ensinam a gente, que a gente tem que saber cobrar (...) existe uma preocupação muito grande em ganhar dinheiro (grupo focal de estudantes, curso público).

A gente quer mesmo dar essa educação continuada para os nossos alunos, poder oferecer isso aqui na escola. Ter uma fidelização em relação ao processo formativo pelo menos até nível de especialização (Entrevista, professor 2, curso privado).

É evidente o conflito de interesses entre as diretrizes curriculares nacionais (Brasil, 2002), que orientam para a formação generalista do estudante, e as demandas dos cursos de pósgraduação no sentido contrário – ao da formação especializada, uma vez que são os mesmos docentes que assumem ambas as (e contraditórias) tarefas. O desafio aqui exige maturidade e ética de todo o corpo docente, mas principalmente das lideranças formais das escolas, de modo a não permitir que interesses coletivos e socialmente relevantes fiquem submetidos a interesses particulares. A formação deve pautarse na realidade socioeconômica e cultural do país, dirigindo a atuação do egresso para a transformação da realidade em benefício da sociedade (Brasil, 2002). Outro desafio necessário à dimensão ética da formação profissional inclui uma preparação mais realista dos acadêmicos para a atuação no mercado de trabalho, já que características do passado ainda são adotadas como referência no processo de socialização profissional em odontologia.

Imagens e posições de poder na dinâmica das relações

Existem posições hierárquicas e de gestão bastante delimitadas nas faculdades: são as chefias, direções e coordenações. São os centros de gestão do processo, identificados como 'poderes institucionalizados', uma modalidade de poder mais facilmente visível e atribuído. Mas o poder, como um modo de ação de alguns sobre outros e de ação sobre sua própria ação, não é algo que se possui, mas que se exerce por meio das relações, em todos os lugares, em todos os campos, de forma multidirecional e não apenas centralizada (Foulcalt, 1995). Assim, as disciplinas academicamente mais valorizadas e as disciplinas/especialidades que possuem os cursos de pós-graduação na mesma faculdade exercem maior poder no ambiente de formação profissional.

Na perspectiva de entendimento do poder por seu funcionamento mais micro, relacional e capilar, podese perceber dinâmicas de gestão que buscam 'compartilhamentos do poder', na verdade relacionados a estratégias que visam à participação. Desse modo, a imagem de poder, ainda centrado, fixo, unidirecional, atributo e posse de uns, se mistura ao discurso já bem incorporado da participação e democratização. Isso pode ser percebido em um dos cursos em que sua reestruturação incluiu estratégias tais como a definição de subcoordenadorias do curso, coordenadores de disciplinas, líderes de áreas, colegiado de representantes de salas, tutores, comissão interna de avaliação e associação docente, em vez de apenas ter a direção e a coordenadoria tradicional. A inclusão de mais pessoas no compartilhamento desse poder instituído tende a favorecer um maior diálogo entre os envolvidos, chamando à responsabilidade e ao compromisso um número maior de lideranças (Ceccim e Feuerwerker, 2004), não só de professores como também de estudantes. Em um ambiente de mais frequentes oportunidades de trocas, de maior democracia, a reflexão ética ganha um espaço privilegiado de exercício.

Mas o poder no ambiente acadêmico ainda é muito identificado como objeto de posse ou atributo de alguém, o que pode ser evidenciado quando os estudantes, pelo pagamento direto das mensalidades do curso à faculdade, sentem-se em uma circunstância especial – na posição e status de cliente – a ponto de se colocarem (e serem percebidos) nas relações como dominantes.

O aluno é uma força, sim, é uma força importante numa universidade particular. Se você enfrentar um aluno numa sala, bater de frente, você pode ter certeza que na avaliação você vai se dar mal, entendeu? (...) Eu vou bater numa tecla: de um professor mais autônomo. Pelo medo de ser mandado embora, muita gente não se posiciona (Entrevista, professor 4, curso privado).

Outra forma de identificação do poder que se revela no processo de socialização profissional é o prestígio, que é uma forma de reconhecimento de superioridade, trazendo consigo o exercício do poder, o qual pode ser manejado de duas maneiras totalmente distintas: por meio do carisma, resultando em admiração, estima, veneração; e por meio da cobrança, resultando em temor, medo, obediência. Tanto a admiração quanto o temor frequentemente são expressos usandose o mesmo termo: 'respeito', porém, com conotações diferenciadas. Como se o respeito consequente da admiração fosse o 'respeito positivo', e o consequente do temor, 'o negativo'. Embora o respeito seja um valor em si e, portanto, sempre positivo, diferenciálo pode ser útil para entendermos algumas situações percebidas nos cursos. Significa dizer que os professores com maior prestígio se sentem na posição de exercer maior poder, o que fazem cobrando maior empenho e desempenho de seus estudantes:

De acordo com a importância do professor dentro da sociedade, ele fica mais conhecido, e obviamente isso (...) se reveste na necessidade de ele cobrar mais aqui dentro, pelo fato de ele ser um cara vencedor (...) que tá no topo da profissão odontológica (Entrevista, professor 1, curso público).

Temor e admiração se misturam no sentimento de respeito que os estudantes sentem – o que alude a um paternalismo na relação professor-estudante, como se a admiração justificasse a inflexibilidade e as cobranças que consideram excessivas. Para muitos, tais cobranças são demasiado pesadas e geram um dia a dia exaustivo. Mas ao mesmo tempo consideram que ao término dessa 'maratona' serão vitoriosos e merecedores do título de terem se formado em uma boa faculdade.

A gente não tem tempo pra fazer nada. A gente tem que ter qualidade de vida.

Às vezes a gente fica com a autoestima meio baixa aqui.

Eles querem que a gente seja muito responsável com tudo que a gente faz, que bote a faculdade em primeiro lugar na sua vida.

Mas é por esse tipo de coisa que a nossa faculdade é uma das melhores (Grupo focal de estudantes, curso público).

Considerações finais

A socialização profissional é um processo de educação moral, interativo e multidirecional entre socializandos e socializadores – estudantes, professores e seus cursos. Nesse processo, a moral profissional age como o sistema de referência e de avaliação da realidade que permite ao futuro profissional construir sua identidade, por pertencimento e relação. Em outras palavras, os valores básicos da profissão, seu reconhecimento e importância são vivenciados e assumidos pelos estudantes a ponto de formarem sua própria identidade, o que muito se deve às 'lições' do currículo oculto.

Os modelos profissionais predominantes na odontologia podem ser (ainda) descritos como o do cirurgião-dentista focado no trabalho clínico-especializado, despolitizado e alheio ao seu entorno social, e o do professor-pesquisador, também focado nas especialidades odontológicas e pouco comprometido com as questões que ultrapassam os tradicionais enfoques da odontologia. O fortalecimento de um modelo profissional socialmente mais consciente e empenhado continua sendo, dessa forma, um desafio à formação profissional mais ética e cidadã, capaz de contribuir para a elevação da qualidade de vida da população. Nesse sentido, entendese o que se tornou conhecido na área da saúde como o 'quadrilátero para a formação em saúde: ensino, gestão, atenção e controle social' como um referencial balizador do compromisso da formação profissional de responder às necessidades sociais por saúde da população e do sistema de saúde, baseandose nos princípios da integralidade da atenção e da educação permanente.

Ao conhecermos os modelos profissionais mais evidentes nos cursos de odontologia, buscamos na verdade identificar quais valores esses modelos enfatizam, porque esses são os valores que estarão mais presentes na vivência acadêmica, tomando parte da formação ética. Não que essa influência seja diretamente determinante, pois a identidade construída já na socialização primária contém visões particulares que podem ou não favorecer o compartilhamento dos valores mais fortes no processo de socialização profissional; mas objetivar os valores legitimizados no ambiente acadêmico é uma maneira de evidenciar questões intrinsecamente relacionadas à dimensão ética profissional.

Do mesmo modo, conhecer as expectativas dos estudantes e a sua preparação para a atuação no mercado profissional, entender as diversas formas de exercício de poder que interagem nos relacionamentos interpessoais e como o fazem, como se articulam, é avançar na compreensão da complexidade de fatores que compõem o currículo vivido e que conformam a dimensão ética em pauta.

Retomando a questão das visões do poder e das práticas democráticas no ambiente acadêmico, se a sua gestão costuma ser centralizada, é de se esperar que a relação de poder que o estudante aprende a estabelecer também seja a de um poder autoritário. Em sua vivência acadêmica, é com o sujeito de sua aprendizagem – o paciente da clínica – que o estudante estabelece uma relação entre diferentes, entre desiguais, como indica a questão ainda presente do uso da roupa branca, símbolo de status e de 'respeito'.

Todas essas questões estão diretamente relacionadas à dimensão ética da formação profissional. E se dentre as intenções das mudanças curriculares está a formação de um perfil de egresso efetivamente adequado à sociedade na qual atuará, tornase imprescindível que os elementos que compõem o currículo oculto de nossos cursos sejam visibilizados e incluídos na pauta dos colegiados docentes comprometidos com a educação integral do ser humano e com a transformação de nossa realidade social.

Colaboradores

Mirelle Finkler idealizou a pesquisa, coletou e analisou os dados e redigiu o trabalho. João Carlos Caetano e Flávia Regina Souza Ramos orientaram a pesquisa e aprovaram a redação final do artigo.

Notas

Recebido em 27/04/2012

Aprovado em 21/08/2013

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  • TURATO, Egberto R. Tratado de metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis: Vozes, 2003.
  • 1
    Pesquisa realizada com bolsa Capes de Doutorado com Estágio no Exterior, resultante de tese, sem conflitos de interesses.
  • 2
    Para conhecer em detalhes a metodologia e os resultados dessa etapa da pesquisa, consultar Finkler et al. (2011a).
  • 3
    Os documentos analisados foram os projetos político-pedagógicos, as ementas disciplinares e a antiga e a nova grade curricular de cada um dos dois cursos selecionados. Os dados coletados abarcavam: os conceitos de odontologia, saúde, saúde bucal, educação, multidisciplinaridade e ética; o histórico de reformulações do currículo, a visibilidade das diretrizes curriculares, o direcionamento pelo e para o SUS, a integração do curso com o SUS, a importância da saúde coletiva e o envolvimento com o Pró-Saúde; as formas previstas para o desenvolvimento das competências de âmbito político, de reflexão, crítica e autonomia, bem como a educação moral dos estudantes, humanística e cultural; as inovações em termos de organização curricular, de metodologias e interatividade; a integração ensino-serviço; a capacitação dos docentes e sua percepção sobre responsabilidade pela formação ética dos estudantes; e, quanto às disciplinas relacionadas à ética, seus objetivos, valores, ementas, marcos referenciais, conteúdos programáticos, metodologias de ensino-aprendizagem e de avaliação e bibliografia.
  • 4
    Neste artigo, Faz-se um recorte dos resultados da pesquisa ao se apresentar e discutir uma categoria temática composta por três subcategorias: modelos profissionais, mercado de trabalho e poder.
  • Endereço para correspondência:
    Servidão Feliciano Martins Vieira, 138, apartamento 402, Itacorubi
    CEP 88034-130, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Ago 2014

    Histórico

    • Recebido
      27 Abr 2012
    • Aceito
      21 Ago 2013
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