Introdução
O século XX assistiu ao surgimento e à consolidação do modelo biomédico, hegemônico nas práticas, incorporado ao dia a dia dos profissionais da área (Aleixo, 2002), ao imaginário da população (Stralen et al., 2008) e legitimado nas instituições de ensino superior (Werneck, 2008). É reconhecida a importância da grande expansão das indústrias de medicamentos e de materiais médico-hospitalares, permitindo inúmeras possibilidades terapêuticas. Todavia, esses benefícios apresentam um custo excessivamente alto, mesmo para nações desenvolvidas (Aleixo, 2002), agravando o fosso existente na sociedade entre indivíduos que podem ou não pagar pela saúde. Esse modelo tem sido considerado ineficaz quanto ao impacto na qualidade de vida e saúde das populações e na otimização dos serviços. Assim, a prática clínica baseada nesse modelo acarreta fracassos no cuidado, considerando, sobretudo, a incapacidade do profissional de saúde em reconhecer a subjetividade de quem demanda por saúde (Guedes, Nogueira e Camargo Jr., 2006).
Tal situação suscitou questionamentos econômicos e éticos, culminando com os debates de Alma-Ata, quando a atenção primária à saúde (APS) foi concebida como um conjunto de valores e princípios para o desenvolvimento e organização dos serviços de saúde, bem como de abordagens voltadas para as prioridades e para os determinantes fundamentais no setor (Chan, 2008).
As ações propostas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) têm como eixo orientador a APS e buscam efetivar a saúde como um bem acessível, constituindo-se em um instrumento de equidade e de justiça social, por meio de ações que busquem a integralidade (Brasil, 2006).
Como princípio ordenador do SUS, a integralidade já havia sido apontada na Constituição da República (Brasil, 1988) e posteriormente na lein. 8.080, de 1990, definida como o “conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema” (Brasil, 1990).
Embora não exista uma hierarquia de importância entre os princípios ordenadores do SUS, observa-se intensa produção científica em torno do princípio da integralidade com base em diferentes enfoques (Camargo Jr. et al., 2008; Santos e Assis, 2006; Pinheiro, Ferla e Silva Júnior, 2007; Tesser e Luz, 2008; Machado et al., 2007), possivelmente em razão de suas potencialidades em disparar reflexões e atitudes que contribuem para o aprimoramento do setor. Observa-se, contudo, que essa forte presença de trabalhos abordando a integralidade pouco relaciona esse princípio do SUS às ações de saúde bucal.
A inclusão da saúde bucal na Estratégia Saúde da Família pode ser considerada um passo rumo à integralidade das ações (Brasil, 2000), permitindo o esforço de uma equipe ante os determinantes sociais do processo saúde-doença, embora ainda não permita o acesso ao conjunto da população a tratamentos clínicos com maior grau de complexidade.
Questiona-se, no entanto, como a integralidade é abordada no cotidiano da saúde bucal, não se imaginando que as ações nessa área da saúde tenham que responder à totalidade dos sentidos da integralidade, o que seria um exercício utópico. Mas importa conhecer o que a literatura tem publicado sobre o tema integralidade e saúde bucal, possibilitando reflexões e atitudes necessárias.
O objetivo deste trabalho foi realizar uma revisão integrativa sobre a integralidade e a saúde bucal, visando identificar como esse conteúdo tem sido abordado e assim contribuir para a melhor compreensão dessa interface.
Metodologia
Este artigo propõe uma revisão integrativa, 1 caracterizada por selecionar publicações que possibilitem a síntese do estado do conhecimento de determinado assunto e apontar lacunas do conhecimento que precisam ser preenchidas com novos estudos (Beyea e Nicoll, 1998). A pergunta norteadora da presente revisão integrativa foi: ‘como a literatura tem abordado o princípio da integralidade na saúde bucal?’.
Foram analisados documentos oficiais e trabalhos acadêmicos (teses, dissertações, monografias e publicações em periódicos) publicados a partir de 2004, ano de lançamento das Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal (Brasil, 2004). Utilizaram-se as palavras-chave ‘integralidade saúde bucal’, ‘integralidade odontologia’, ‘integralidade’ (filtro saúde bucal), integrality oral health’ e ‘comprehensiveness oral health’.
A busca pelos documentos oficiais se deu a partir do site do Ministério da Saúde (www.saude.gov.br), no link ‘Brasil Sorridente’, onde foi possível o acesso à documentação oficial para essa área específica.
A busca pelos trabalhos acadêmicos ocorreu pela Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) (http://regional.bvsalud.org/php/index.php). Foram selecionados trabalhos acadêmicos, em língua portuguesa ou inglesa, nas bases Medical Literature Analysis and Retrieval Sistem Online (Medline), Scientific Electronic Library Online (SciELO), Biblioteca Brasileira de Odontologia (BBO) e Literatura Latino-Americana e do Caribe de Ciências da Saúde (Lilacs), considerando a presença dos descritores em qualquer lugar do trabalho.
O passo seguinte caracterizou-se pela leitura dos títulos e resumos dos trabalhos obtidos, tomando por base a presença de conteúdo especificamente voltado para o tema integralidade na saúde bucal, objetivando-se nesse momento realizar uma seleção final do material obtido na busca. Os artigos selecionados foram buscados na íntegra, on-line, nas bases pesquisadas; quando não disponibilizados, foram solicitados aos autores.
A análise do material selecionado processou-se com base nos sentidos da integralidade (Mattos, 2009): prática profissional como uma resposta à atitude cada vez mais fragmentária dos profissionais de saúde num sistema que privilegia as especialidades; organização dos serviços, correspondendo à crítica da dissociação entre as práticas de saúde pública e práticas assistenciais, já que o impacto positivo sobre a saúde da população não é alcançado exclusivamente no plano da assistência; políticas públicas específicas, desenhadas para responder a um determinado problema de saúde, ou aos problemas de saúde que afligem certo grupo populacional específico.
As análises feitas foram complementadas com comentários que objetivam descrever limitações nos trabalhos lidos, em face do conhecimento atual sobre a integralidade. A apresentação dos resultados e discussão aconteceu de forma descritiva e com o auxílio de uma tabela, possibilitando ao leitor uma visão da presente revisão integrativa e seu objetivo: descrever a maneira como a literatura aborda o princípio da integralidade na atenção à saúde bucal.
Tabela 1 Distribuição dos tipos de publicação analisados de acordo com os sentidos da integralidade contemplados, 2012
Tipo de publicação | Total avaliado | Sentidos da integralidade contemplados | ||
---|---|---|---|---|
Prática profissional | Organização dos serviços | Políticas públicas | ||
Documentos oficiais | 2 | 2 | 2 | 2 |
Publicações em periódicos | 23 | 9 | 8 | 6 |
Monografias, dissertações e teses | 14 | 4 | 2 | 8 |
Fonte: Os autores.
Resultados e discussão
Entre os oito documentos oficiais localizados, seis foram excluídos por não apresentarem conteúdo ligado à integralidade na saúde bucal, permanecendo duas publicações para a análise: o relatório final da 3ª Conferência Nacional de Saúde Bucal (Brasil, 2005) e as Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal (Brasil, 2004).
Na busca realizada na BVS, 146 trabalhos acadêmicos foram inicialmente localizados. Quarenta e seis contemplaram os critérios de seleção estabelecidos; destes, 35 foram identificados no unitermo ‘integralidade saúde bucal’ e 11 no unitermo ‘integralidade odontologia’ (27 publicações em periódicos e 19 teses, dissertações ou monografias). Após a leitura de títulos e resumos, permaneceram 37 trabalhos acadêmicos, dos quais 23 publicações em periódicos e 14 teses, dissertações ou monografias.
A Tabela 1 apresenta os resultados observados no conteúdo dos trabalhos acadêmicos e documentos após a análise segundo o referencial proposto (Mattos, 2009).
Com relação ao primeiro sentido da integralidade, ligado à prática profissional, os conteúdos relatados nos documentos oficiais apontam a necessidade de que os profissionais tenham uma visão ampliada da saúde, incluindo as suas diferentes formas de produção e a percepção dos usuários a partir de sua totalidade biopsicossocial (Brasil, 2004). Eles devem incenivar a participação cidadã, por meio do controle social. Os caminhos possíveis para o entendimento (e posterior prática) da integralidade devem ser a educação ou a qualificação permanente (Brasil, 2005).
A leitura dos periódicos e demais trabalhos acadêmicos indica que posturas profissionais diferenciadas, como escuta atenta, recepção humanizada do usuário com respostas adequadas, responsabilizando-se, gerando vínculo, humanização, cuidado e acolhimento, podem contribuir para a construção da integralidade (Lopes, 2007).
A postura profissional é relacionada à atuação interdisciplinar, possibilitando que se intervenha em complexas situações da saúde – desde diabéticos e portadores de hanseníase até portadores de síndrome de Down, de paralisia cerebral e pacientes hospitalizados incapacitados de realizar seu autocuidado em saúde bucal – a partir do trabalho em equipe (Santos e Assis, 2006; Oliveira et al., 2008; Costa, Costa e Pereira, 2007; Schneid et al., 2007; Bello, Casotti e Souza, 2010; Fonseca et al., 2010; Silva et al., 2010; Silva, 2006; Cortela, 2009). No entanto, a integração entre os profissionais da saúde bucal e os de outras áreas e mesmo entre níveis de atenção é classificada como incipiente, o que prejudica a conquista da integralidade (Farias e Sampaio, 2010; Freire, 2011).
A integralidade requer uma relação democrática entre quem produz e quem consome o serviço na perspectiva do atendimento às necessidades sociais. Trabalho coletivo e trabalhador coletivo devem construir relações mais democráticas no espaço do trabalho em saúde. O resultado – o trabalho total – é necessário à constituição da integralidade, não apenas a soma dos trabalhos parciais (Bonfada et al., 2012). No entanto, as práticas de trabalho na saúde bucal são pouco permeáveis a relações democráticas e dialógicas entre diferentes trabalhadores envolvidos e a população.
Em relação ao segundo sentido da integralidade, ligado à organização dos serviços, há uma grande preocupação em conciliar diferentes ações – frequentemente os documentos oficiais citam a necessidade da promoção e prevenção com ações de assistência. A complexidade envolvida na saúde requer diferentes conhecimentos para seu enfrentamento, possibilitando a construção de novas práticas coletivas em saúde (Brasil, 2004, 2005).
Serviços de saúde e profissionais devem compreender o contexto das pessoas e identificar as necessidades assistenciais, de prevenção e de promoção da saúde. Uma possibilidade de operacionalização dessa necessidade está na clínica ampliada, que tem como eixo norteador a integralidade (Bonfada et al., 2012). No entanto, os conceitos da clínica ampliada são pouco debatidos nos trabalhos analisados.
As abordagens encontradas em relação à intersetorialidade também são incipientes. A integralidade, para ser contemplada, não depende apenas do espaço dos serviços, mas também da articulação entre estes e as ações intersetoriais. Para isso, a gestão pública necessita de inovação e de processos dinâmicos, possibilitando práticas amistosas à integralidade (Pinheiro, Ferla e Silva Júnior, 2007).
Em relação aos periódicos e demais trabalhos acadêmicos, observou-se a correlação entre a integralidade e a necessidade de diferentes níveis de atenção, indicando a necessidade de ampliação dos procedimentos para dar conta das demandas expressas pelos usuários (Maciel e Kornis, 2006; Chagas, Nuto e Andrade, 2008; Souza e Chaves, 2010; Cunha et al., 2011; Contarato, 2011; Munkeviz, 2009), principalmente em razão das dificuldades enfrentadas para tratamento especializado (Munkeviz e Pelicioni, 2010).
Essa ampliação, contudo, deve ser cuidadosamente planejada, já que a instalação de centros de especialidades odontológicas em cidades com atenção primária não estruturada pode levar ao atendimento da livre demanda e de procedimentos básicos nas clínicas de especialidades, impossibilitando a integralidade (Chaves et al., 2010). Deve-se repensar os vínculos empregatícios, muitas vezes precários e levando a uma rotatividade dos trabalhadores, pois o resultado pode ser o comprometimento do acolhimento, vínculo e integralidade (Farias e Sampaio, 2010).
Como ponto positivo dos demais trabalhos acadêmicos, é apontada a preocupação em prover retorno para o serviço de saúde bucal onde foi realizada a pesquisa, incluindo recomendações para o corpo clínico e gestores (Munkeviz, 2009).
Quanto ao terceiro sentido proposto para a integralidade, ligado à formulação de políticas, os dois documentos oficiais indicam a necessidade de políticas específicas, voltadas para as necessidades de média e alta complexidades em odontologia, ou voltadas aos problemas de saúde que afligem certo grupo populacional específico (Brasil, 2004, 2005), como os indígenas (Alves-Filho e Ribeiro, 2005). A formulação de políticas avança quando é citada a necessidade de se construir um modelo de financiamento flexível, com ênfase no aumento do Piso de Atenção Básica, o PAB, variável, objetivando mais recursos para a atenção integral (Brasil, 2005).
No entanto, aspectos importantes na formulação de políticas amistosas à integralidade não são abordados nos documentos. Sabe-se da importância de práticas democráticas de gestão. Espera-se que os diferentes tipos de conhecimento no trabalho em saúde – epidemiologia, ciências biomédicas, ciências humanas e políticas – possam contribuir para a assistência e estratégias mais eficientes para enfrentar os problemas de saúde da população, incluindo os desafios da integralidade (Pinheiro, Ferla e Silva Júnior, 2007), mas essa tendência não é verificada nos documentos.
Já no caso dos periódicos, observa-se que apresentam conteúdo mais reduzido em comparação com o apresentado pelos documentos oficiais. Grande ênfase é dada pela integralidade a partir da formação acadêmica, como nas clínicas integradas de ensino (Miguel et al., 2006), ou a partir da relação da homeopatia com a integralidade (Lock-Neckel, Carmignan e Crepaldi, 2010). Essa mesma preocupação com a formação acadêmica é vista em alguns trabalhos acadêmicos (Ferreira et al., 2005, 2006; Moysés, 2005; Pimenta, 2005).
A residência multiprofissional pode se contrapor à formação profissional hegemônica que incentiva cada vez mais a superespecialização na saúde, embora persistam entraves junto à corporação médica (Ferreira, Varga e Silva, 2009; Dallegrave e Kruse, 2009). A saúde bucal pode (e deve) ser integrada a outros conteúdos, não somente aqueles ligados a disciplinas biomédicas, mas também a disciplinas políticas e sociais, para que seja alcançada a integralidade (Queiroz et al., 2010).
Os demais trabalhos acadêmicos trazem reflexões sobre a integralidade na APS (Narvai, 2005) e a questão da integralidade no cuidado em saúde bucal como uma novidade a ser encarada por dentistas, haja vista que o trabalho em saúde bucal é historicamente fragmentado (Botazzo, 2005).
Considerações finais
A interface entre a integralidade e a saúde bucal não apresenta numeroso material para leitura e análise, significando uma lacuna a ser preenchida. O ponto de corte para a inclusão dos trabalhos – o ano de 2004 – não ajuda a explicar essa lacuna, já que as publicações disponíveis anteriores a esse ano eram ainda menos numerosas. Observa-se, no entanto, uma tendência a um aumento no número de publicações, em especial de artigos científicos, a partir de 2010. Aparentemente, a preocupação da saúde bucal em dedicar pesquisas que abordem a integralidade é recente. No entanto, proporcionalmente pode ser considerado um processo rápido. A organização sistematizada das práticas em saúde bucal é também recente. A produção científica, além de refletir um estado ainda inicial dessa organização, é um exercício ao qual só atualmente mais pesquisadores estão se lançando.
Em comum entre todas as referências, pode ser apontado o fato de que existe certo consenso nas práticas profissionais baseadas em equipe, embora não fique claro de que forma deve ser o trabalho em equipe em direção à integralidade. Algumas referências indicam a necessidade de ‘trabalho em equipe’; outras, de ‘atuação multiprofissional’, ‘atuação interdisciplinar’ e outras ‘transversalidades’. Apesar de serem termos que indiquem diferentes modos de relacionamento profissional no processo de trabalho, apresentam significados distintos. A integralidade na prática é sempre uma construção local, com limites e possibilidades de cada equipe, dos recursos disponíveis, da atuação dos gestores ou das cobranças dos usuários. Talvez por esse motivo não tenha sido observada unanimidade entre os autores para as diferentes modalidades de arranjo profissional.
Também é possível apontar a coincidência do tema ensino entre as duas categorias analisadas, documentos oficiais e trabalhos acadêmicos. A graduação marcantemente biomédica ainda é um entrave para uma visão mais integral dos sujeitos. Embora a formação acadêmica por si só não seja responsável por profissionais capacitados para uma prática integral (o mercado e a própria população contribuem para escolhas fragmentadas), as instituições de ensino superior não devem ser omissas nesse aspecto.
Existe uma grande agenda para futuros estudos envolvendo a integralidade e a saúde bucal. Não obstante a integralidade tenha sido abordada com frequência a partir da formação profissional, espera-se que esse tema seja objeto de maiores e mais profundas reflexões, pois as instituições de ensino superior desempenham papel muito importante na formação de profissionais de saúde, mais integrais e preparados para os desafios que a saúde pública enfrenta. A escassez de abordagens entre a integralidade na saúde bucal e ações intersetoriais é outro alerta para futuras publicações, pois sabe-se que políticas públicas que contemplam aspectos pertinentes além do setor saúde são importantes para a real mudança do modelo assistencial. Por fim, mas sem a intenção de esgotar as inúmeras possibilidades de abordagem entre a integralidade e a saúde bucal, estudos podem ser conduzidos mediante análises que avaliem o papel da gestão nesse contexto, pois é inegável a importância das instâncias decisórias de poder na definição (ou não) de políticas que ajudem a construir (ou não) a integralidade no cotidiano dos serviços de saúde bucal.
O material analisado aborda a integralidade por meio dos diferentes sentidos atribuídos para a integralidade (Mattos, 2009). Posturas profissionais diferenciadas, o modo como os serviços de saúde são organizados e políticas específicas são conteúdos presentes nos diversos trabalhos selecionados. A ideia de integralidade esteve fortemente ligada aos seus dispositivos (acolhimento, vínculo, responsabilização), à formação acadêmica, ao trabalho em equipe (embora não tenha ficado clara a forma de relacionamento entre profissionais no processo de trabalho) e à necessidade de diferentes níveis de assistência.