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CAMINHOS DA CONSCIÊNCIA PARA SI NO MOVIMENTO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA: NOTAS INICIAIS À LUZ DE MARX E LUKÁCS

PATHWAYS TOWARDS AWARENESS OF ONESELF IN THE BRAZILIAN PSYCHIATRIC REFORM MOVEMENT: EARLY NOTES IN THE LIGHT OF MARX AND LUKÁCS

CAMINOS DE LA CONCIENCIA PARA SÍ EN EL MOVIMIENTO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEÑA: NOTAS INICIALES A LA LUZ DE MARX Y LUKÁCS

Resumo

O presente texto tem por objetivo contribuir com reflexões analíticas acerca da constituição da consciência e da alienação no contexto do movimento de reforma psiquiátrica brasileira, apontando as particularidades desse processo na sociedade capitalista. Busca apresentar elementos iniciais que problematizem a direção política e social que vem sendo construída e consolidada pelo movimento de reforma psiquiátrica, que não se pauta na transformação da ordem societária e limita-se, por isso, à conquista da emancipação política. Parte-se da hipótese de que é fundamental localizar a importância e a contribuição do materialismo histórico dialético na análise não apenas da conjuntura, mas pautá-lo nas ações cotidianas e na busca de uma consciência crítica a fim de se construir uma nova ordem societária.

Palavras-chave
reforma psiquiátrica; consciência; alienação

Abstract

This paper aims to contribute with analytical reflections on awareness and alienation in the context of the Brazilian psychiatric reform movement, pointing out the peculiarities of this process in a capitalist society. It seeks to present initial elements that problematize the political and social direction that is being built and consolidated by the psychiatric reform movement, which does not rely on transforming societal order and, as such, is limited to attaining political emancipation. It starts with the hypothesis that it is essential to locate the importance and contribution of the dialectical historical materialism in analyzing not only the context, but to guide it in everyday actions and in the search for critical awareness in order to build a new social order.

Keywords
psychiatric reform; awareness; alienation

Resumen

Este trabajo tiene como objetivo contribuir a las reflexiones analíticas sobre la constitución de la conciencia y la alienación en el contexto del movimiento de reforma psiquiátrica brasileña, señalando las peculiaridades de este proceso en la sociedad capitalista. Busca presentar elementos iniciales que problematicen la dirección política y social que está siendo construida y consolidada por el movimiento de reforma psiquiátrica, que no se orienta en la transformación del orden societario y se limita, por ello, a la conquista de la emancipación política. Se parte de la hipótesis de que es fundamental localizar la importancia y la contribución del materialismo histórico dialéctico en el análisis no sólo de la coyuntura, sino orientarlo en las acciones cotidianas y en la búsqueda de una conciencia crítica, con el fin de construir un nuevo orden societario.

Palabras clave
reforma psiquiátrica; conciencia; alienación

Introdução

Inquietações advindas da reflexão sobre o processo de consolidação da reforma psiquiátrica brasileira, no atual cenário, constituem a pesquisa de doutoramento que se encontra em curso. Ao analisar os movimentos históricos da luta antimanicomial, identificam-se inúmeras dificuldades vivenciadas pelos sujeitos em suas práticas cotidianas e problematizam-se os princípios e posturas desse projeto coletivo. Indaga-se em que medida esse projeto está limitado a mudanças legislativas que não têm como objetivo a verdadeira liberdade: a emancipação humana.

De acordo com Ferreira (2007)FERREIRA, Gina. Desinstitucionalização e integralidade: um estudo do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil. In: GULJOR, Ana P.; GOMES, Aluisio; MATTOS, Ruben A. de. Desinstitucionalização na saúde mental: contribuições para estudos avaliativos. Rio de Janeiro: Cepesc: IMS/Abrasco, 2007. p. 209-224., a reforma psiquiátrica brasileira (RPB) teve seu percurso inicial na década de 1970, durante o período da ditadura militar, momento em que a internação era o modelo principal de intervenção. Ocorreram inúmeros questionamentos, por parte de profissionais do campo, principalmente em relação à centralidade do cuidado estar pautada no modelo biomédico e suas formas de controle por vias medicamentosas, além da violação dos direitos humanos. que era muito comum nos hospitais psiquiátricos e ficava encoberta no cenário da ditadura.

Nesse período, movimentos sociais lideravam a pauta de reivindicações políticas, sociais e culturais. A RPB se constituiu juntamente com o processo de redemocratização do país. O movimento de reforma psiquiátrica, a partir da influência italiana, buscava transformar o paradigma manicomial, propondo um ‘outro lugar' social ao sujeito em sofrimento psíquico e a construção de uma nova noção do cuidado em saúde mental.

De acordo com Alves e Guljor (2004ALVES, Domingos S.; GULJOR, Ana P. O cuidado em saúde mental. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben A. de. Cuidados: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec; Abrasco, 2004. p. 221-240., p. 227), esse novo modelo de cuidado baseia-se em algumas premissas fundadoras: Liberdade: negação do isolamento – o sujeito deve operar suas escolhas; Integralidade: em negação à seleção – o deslocamento da doença enquanto centralizador do conjunto de fatores da vida; Enfrentamento do problema e do risco social – ampliação do olhar sobre a rede em que o sujeito se insere; e o Conceito do direito sobre a noção do reparo.

Tais premissas vão direcionar as ações e estratégias adotadas na RPB e pautar as regulamentações conquistadas pelo movimento. Tem-se um projeto coletivo que aparentemente está vinculado a um projeto de sociedade, com o seguinte lema: ‘Por uma sociedade sem manicômios'.

Assim, torna-se necessário que os sujeitos conheçam e apreendam os princípios que os regem, já que

vivenciam em todas as suas expressões os dilemas e as potencialidades de um coletivo. No entanto, esta não é uma tarefa simples. Ao contrário, tais sujeitos não estão imunes aos efeitos alienadores do fetichismo e da reificação presentes na sociedade burguesa (Ortiz, 2012ORTIZ, Fátima S. G. Sobre o processo de formação da consciência: limites e potencialidades para a afirmação de projetos coletivos. Revista EM PAUTA da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 29, p. 17-34, 2012., p. 18).

O presente texto, com base em uma reflexão teórica pautada no materialismo histórico dialético, tem por objetivo contribuir com notas iniciais acerca do processo de constituição de consciência e da luta pela emancipação humana no movimento de reforma psiquiátrica, apontando seus limites. Propõe-se a evidenciar a necessidade de um aprofundamento da consciência crítica e da transformação de práticas, para que seja possível construir-se uma nova ordem societária sem qualquer discriminação e exploração e sem a propriedade privada dos meios de produção.

Trabalho e reprodução social

Com base na obra de Marx e de seus fundamentos teóricos compreendemos que as relações que os homens estabelecem entre si para produzirem e se reproduzirem são intermediadas pelo processo de produção. Logo, a produção é uma atividade social determinada historicamente por um modelo de produção, o capitalismo (Marx, 2008MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 47).

No processo de produção capitalista, as condições materiais da existência humana e o estabelecimento das relações sociais ocorrem historicamente de forma determinada, perpetuando o modelo hegemônico de produção. Nesse sentido, não é apenas a forma de transformação das coisas materiais que é moldada, mas as ideias, os valores, as representações, ou seja, um modo de ser e de existir é estabelecido pelas condições materiais, sendo encobertos nesse processo os antagonismos que permeiam as relações.

No capitalismo, o trabalho, que é resultado do processo de transformação da natureza, que advém de uma dada necessidade ontológica, é apropriado e torna-se mercadoria à qual é atribuída uma certa valoração. Dessa forma, o trabalho humano fica encoberto, e o que assume forma é a relação social dos produtos do trabalho. “A igualdade dos trabalhos humanos fica disfarçada sob a forma de igualdade dos produtos do trabalho como valores” (Marx, 2011MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1, v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011., p. 94).

Tem-se a valorização das coisas e a desvalorização dos homens nas relações de produção, em que o trabalhador é desapropriado do resultado do seu trabalho, não mais se identificando com ele. Aliena-se não só do produto, mas de todo o processo de trabalho. Essa alienação dá-se já na entrada do processo de trabalho, pois o trabalhador tem a liberdade de vender a sua mão de obra ao empregador, entretanto, não apenas o trabalhador, mas tudo está submetido ao patrão.

O trabalho no capitalismo vai realizar o oposto do que deveria promover: negar a vida ao invés de afirmá-la. O homem negará o ser genérico e as suas relações, promovendo o estranhamento em relação aos outros homens. As relações com os objetos passam a ser mais valorizadas do que as relações humanas. Tem-se assim o que Marx denominou de coisificação das relações ou reificação (Netto, 1981NETTO, José Paulo. Capitalismo e reificação. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981.).

Portanto, através do trabalho alienado, desapossado, o operário gera a relação de um homem estranho ao trabalho, e estando fora dele, com esse trabalho. A relação do operário com o trabalho gera a relação do capitalista – ou como se queira chamar ao senhor de trabalho – com este. A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado, a consequência necessária do trabalho desapossado, da relação exterior do operário com a Natureza e consigo próprio. A propriedade privada resulta, portanto, por análise a partir do conceito de trabalho desapossado, i.e., do homem desapossado do trabalho alienado, da vida alienada, do homem alienado (Netto, 2012NETTO, José Paulo. (Org.) O leitor de Marx.São Paulo: Cortez, 2012., p. 104, grifos do autor).

A transformação da matéria e do trabalho humano não ocorre sem a transformação subjetiva do sujeito, e é nesse processo do trabalho alienado que a “universalidade da forma mercantil condiciona, portanto, tanto sob o aspecto objetivo quanto sob o subjetivo, uma abstração do trabalho humano que se objetiva nas mercadorias” (Lukács, 2012LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2012., p. 200). Ou seja, o homem naturaliza esse processo e reproduz nas múltiplas interfaces das relações sociais as opressões estabelecidas pelo sistema capitalista.

O trabalho não se realiza sem a capacidade teleológica do homem, ou seja, sem a projeção ideal de finalidades e dos meios para a sua efetivação, sem um determinado grau de cooperação, de certas formas sociais de comunicação, tal como linguagemarticulada, sem um nível de conhecimento e de domínio sobre a natureza, entre outros aspectos (Barroco, 2010BARROCO, Maria L. S. Ética: fundamentos sócio-históricos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010., p. 24).

A liberdade de escolhas do ser genérico é negada pela propriedade privada e pelo processo de trabalho, em que as escolhas que ele teria são condicionadas pelos interesses privados da classe dominante e pelo modo de produção. “Assim, o processo histórico de constituição do homem (…) revela o processo de formação de sua consciência” (Ortiz, 2012ORTIZ, Fátima S. G. Sobre o processo de formação da consciência: limites e potencialidades para a afirmação de projetos coletivos. Revista EM PAUTA da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 29, p. 17-34, 2012., p. 22).

De acordo com Iasi (2011IASI, Mauro L. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 12-13), o processo de consciência não é dado, é algo que se constitui. “Cada indivíduo vive sua própria superação particular, transita em certas concepções de mundo até outras, vive subjetivamente a trama de relações que compõe a base material de sua concepção de mundo.” A partir de uma análise de manifestações particulares, é que, para o autor, é possível encontrar uma linha universal para a consciência de classe.

Ao longo de sua vida, o homem vai-se afirmando como ser consciente, e é no cotidiano que ocorre a apropriação dos valores e das concepções de mundo (geralmente vinculadas à concepção dominante e hegemônica). Tais valores são incorporados pelo sujeito como se fossem suas verdades e às quais ele aderiu espontaneamente. Segundo Ortiz (2012ORTIZ, Fátima S. G. Sobre o processo de formação da consciência: limites e potencialidades para a afirmação de projetos coletivos. Revista EM PAUTA da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 29, p. 17-34, 2012., p. 22-23), “a naturalização e moralização dos processos sociais residem exatamente neste processo de adesão ‘voluntária' dos sujeitos, que reproduzem posturas e ações sem conhecer seus fundamentos”.

Logo, não é algo simples romper com a organização valorativa capitalista, já que todos estamos submetidos à lógica valorativa de pensar, de agir, de relacionar-se, de trabalhar e de viver. A apreensão desse modelo dá-se sem questionamento, ou seja, de forma alienada. Portanto, “a alienação -fenômeno que no capitalismo se amplia - atua no sentido de ratificar tais conteúdos, embaraçando a consciência verdadeiramente humana” (Ortiz, 2012ORTIZ, Fátima S. G. Sobre o processo de formação da consciência: limites e potencialidades para a afirmação de projetos coletivos. Revista EM PAUTA da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 29, p. 17-34, 2012., p. 24).

Consciência e alienação

O marxismo busca reconhecer as verdadeiras forças que se constituem no processo histórico da formação da consciência dos homens. Ocorre nas relações sociais a naturalização das leis, das formas de comportamento, do processo produtivo, como se fosse uma força da natureza e, portanto, não passível de transformação.

De acordo com Iasi (2011IASI, Mauro L. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 14), “inicialmente, a consciência seria o processo de representação mental (subjetiva) de uma realidade concreta e externa (objetiva), formada neste momento através de seu vínculo de inserção imediata (percepção)”. A interiorização da realidade externa dá-se claramente no processo de objetivação das relações sociais e da relação com a natureza.

Essas interiorizações dos valores ocorrem inicialmente a partir das relações primárias, ou seja, com a família. E vão se expandir: com o grupo social, com as instituições educacionais, com a mídia e demais formas de socialização. Contudo, o indivíduo tem em sua formação normas, valores e relações que considera imutáveis, naturais e verdadeiros, passando a reproduzi-las em seu cotidiano. “Assim, formada essa primeira manifestação da consciência, o indivíduo passa a compreender o mundo a partir do vínculo imediato e particularizado, generalizando-o. Tomando parte pelo todo, a consciência expressa-se como alienação” (Iasi, 2011IASI, Mauro L. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 20).

A primeira consciência, que é a alienação, será influenciada pelos valores estabelecidos pela classe dominante, que vão garantir a reprodução universal de sua visão de mundo e de suas perspectivas ideológicas por meio do processo de trabalho e da reprodução das relações. Nesse sentido, o trabalhador partilha com a classe dominante os valores que o submetem à dominação.

Vale destacar que no capitalismo a alienação tende a particularizar-se. O trabalho assume a reprodução de alienações que se aprofundam e vão se expandir para outras esferas: moral, política, religião, a arte e a ciência. Além disso, ocorre a cisão entre a espécie e o indivíduo, em que os sujeitos não se reconhecem na espécie já que possuem uma visão fragmentada.

Em todos, os aspectos da vida cotidiana, em que o trabalhador individual parece imaginar-se como sujeito de sua própria vida, o imediatismo da sua existência destrói-lhe essa ilusão. Força-se a reconhecer que a satisfação mais elementar das suas necessidades, seu próprio consumo individual permanece um aspecto da produção e reprodução do capital, quer ocorra dentro ou fora da oficina, da fábrica etc., dentro ou fora do processo de trabalho, exatamente como a limpeza da máquina, passa durante o processo de trabalho ou de uma pausa (Lukács, 2012LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2012., p. 335-336).

Vivenciando o trabalho alienado, o homem aliena-se não só da espécie, mas também de sua própria atividade. O produto de seu trabalho é estranho para ele. E por não lhe pertencer, promove a fetichização. “O trabalho transforma-se, deixa de ser a ação da vida para se converter num ‘meio de vida'. Ele trabalha para o outro, contrafeito, o trabalho não gera prazer, é a atividade imposta que gera sofrimento e aflição” (Iasi, 2011IASI, Mauro L. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 21-22). Nesse momento aliena-se de si próprio, o que Iasi denomina de autoalienação.

Tal fenômeno vai promover a reificação dos espaços privados, reproduzindo a relação entre mercadorias e coisas e não mais entre seres humanos. As relações humanas acabam reconhecidas por sua valoração e tratadas como mercadorias. “Por ter se tornado ‘coisa', o homem do capitalismo é aquele cuja finalidade da vida é ter dinheiro progressivamente. Apenas o dinheiro lhe confere poder e reconhecimento perante os outros homens, daí a sua necessidade quase que orgânica” (Ortiz, 2012ORTIZ, Fátima S. G. Sobre o processo de formação da consciência: limites e potencialidades para a afirmação de projetos coletivos. Revista EM PAUTA da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 29, p. 17-34, 2012., p. 29).

Consciência em si: uma transição necessária

A consciência em si desenvolve-se a partir do momento em que o sujeito experimenta uma crise ideológica decorrente de uma opressão, e busca sem sucesso uma saída individual para enfrentá-la, pois só é possível superá-la coletivamente, geralmente por meio da participação em movimentos sociais. Essa crise é a revolta, que em si mesma “não é capaz de desvelar as contradições que atravessam os processos sociais, fortalecendo, via de regra, as saídas individuais e pontuais para o enfrentamento desse conjunto de questões” (Ortiz, 2012ORTIZ, Fátima S. G. Sobre o processo de formação da consciência: limites e potencialidades para a afirmação de projetos coletivos. Revista EM PAUTA da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Rio de Janeiro, v. 10, n. 29, p. 17-34, 2012., p. 30).

Entretanto, essa consciência não é suficiente para transformar a ordem societária vigente. “O processo de negação de uma parte da ideologia pela vivência particular das contradições do modo de produção, em que pese toda a sua importância, não vai destruir as relações anteriormente interiorizadas e seus valores correspondentes de uma só vez” (Iasi, 2011IASI, Mauro L. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 30-31). Logo, reconhecer as opressões não é suficiente para superar o modo de produção capitalista, é necessário que o proletariado se assuma como classe – se veja como trabalhador –, afirme a existência do capitalismo – através do reconhecimento da classe – e busque ao mesmo tempo a negação do sistema.

Nesse momento a classe manifesta-se com consciência e indignação em relação à sua submissão ao capital e contra a classe dominante, criando estratégias de mobilização e reivindicação. Entretanto, esse é um dos passos para o trânsito da consciência em si: a consciência revolucionária.

(…) em sua luta revolucionária, não basta o proletariado assumir-se enquanto classe (consciência de si), mas é necessário se assumir para além de si mesmo (consciência para si). Conceber-se não apenas como um grupo particular com interesses próprios dentro da ordem capitalista, mas também se colocar diante da tarefa histórica da superação dessa ordem. A verdadeira consciência de classe é fruto dessa dupla negação: num primeiro momento, o proletariado nega o capitalismo assumindo sua posição de classe, para depois negar-se a si próprio enquanto classe, assumindo a luta de toda a sociedade por sua emancipação contra o capital (Iasi, 2011IASI, Mauro L. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 32).

Portanto, a consciência revolucionária é um processo de abandono dos interesses individuais para enxergar algo além do privado, para acreditar no coletivo como resposta a essa necessidade de transformação. Daí, a importância de mudar a consciência, tornando-a livre de alienação para uma afirmação de uma nova ordem societária.

O movimento de reforma psiquiátrica e a consciência revolucionária

A concepção de Reforma Psiquiátrica se apresenta, (…) como um processo de transformação estrutural da visão da sociedade sobre a loucura que abarca não apenas o modelo de cuidado, mas também nas noções sobre a condição social desse sujeito em sofrimento. Deste modo, compreendemos a Reforma como um processo que abarca dimensões diversas que se imbricam numa teia de inter-relações, permitindo-nos caracterizá-la a partir na noção de Rotelli (2001) de processo social complexo. A expressão utilizada pelo autor se insere em nossa discussão, de modo a permitir o entendimento da Reforma Psiquiátrica como em movimento (Amarante e Guljor, 2005AMARANTE, Paulo; GULJOR, Ana P. Reforma psiquiátrica e desinstitucionalização: a (re)construção da demanda no corpo social. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben A. de. A construção social da demanda: direito à saúde; trabalho em equipe e participação e espaços público. Rio de Janeiro: IMS/ Uerj/Cepesc/Abrasco, 2005. p. 65-76., p. 68).

Partindo da premissa que a RPB está em movimento, apontamos as quatro dimensões identificadas por Amarante e Guljor (2005)AMARANTE, Paulo; GULJOR, Ana P. Reforma psiquiátrica e desinstitucionalização: a (re)construção da demanda no corpo social. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben A. de. A construção social da demanda: direito à saúde; trabalho em equipe e participação e espaços público. Rio de Janeiro: IMS/ Uerj/Cepesc/Abrasco, 2005. p. 65-76.. São elas: teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política e sociocultural. Contudo, neste estudo o destaque será dado apenas às dimensões jurídico-política e sociocultural.

A dimensão jurídico-política busca a mudança do modelo manicomial instalado e perpetuado na sociedade. Tem seu pontapé inicial em 1989 com o projeto de lei n. 3.657 do deputado federal Paulo Delgado, do Partido dos Trabalhadores, de Minas Gerais, que propôs a extinção gradativa dos manicômios e a substituição destes por serviços territoriais. O projeto sofreu 11 emendas, tramitando na Câmara por 12 anos e, finalmente, foi aprovado em abril de 2001. Essa lei dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos psiquiátricos e redireciona o modelo assistencial, garantindo a assistência, psicológica, social, médica, ocupacional e de lazer. A lei n. 10.216/01 ficou conhecida como a Lei Nacional da Reforma Psiquiátrica, que substituiu a legislação de 1934 que existia para proteger os ‘doentes mentais'. Além dela, inúmeras portarias federais e outras de âmbito estadual foram promulgadas no Brasil.

Para Amarante (2009AMARANTE, Paulo. Reforma psiquiátrica e epistemologia. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, v. 1, n. 1, jan./abr. 2009., p. 2) “a dimensão jurídico-política rediscute e redefine as relações civis em torno da cidadania, de direitos humanos e sociais”. Tal afirmação não aprofunda a análise sobre essa dimensão, restringindo-a apenas à efetivação de legislações que promovam os direitos das pessoas em sofrimento psíquico na sociedade capitalista. A RPB apregoa determinada liberdade que está fundamentada nos direitos humanos e que vão garantir o direito à propriedade privada. Nesse sentido é que, de acordo com Marx, as legislações vão determinar a liberdade de cada indivíduo para a sociedade e para o Estado, ou seja, limitando-se apenas à emancipação política. Tem-se aí um dos obstáculos à RPB: o direito do indivíduo limitado a si mesmo. Ou seja, a busca da transformação estrutural não ocorre, pois as reivindicações dão-se em torno da esfera do acordo com o capital, e não da mudança do modelo societário, ajustando-se à política dos direitos que podem ser ‘concedidos' e viabilizados na ordem capitalista.

Em relação à dimensão sociocultural, compreende-se que a RPB busca desconstruir através dessa dimensão os valores hegemônicos ditados pelo modo de produção e reprodução da vida social. Entretanto, há limites em relação aos discursos assumidos, pois inexiste uma análise crítica acerca da totalidade da sociedade, identificando que os valores que determinam o lugar social da loucura são gerenciados pelas ideias capitalistas.

Essa dimensão enfrenta limites impostos pela lógica capitalista e restringe-se a reivindicar apenas a emancipação política, já que os valores da sociedade estão centrados nas relações privadas. Cabe assinalar que Marx, no livro Sobre a questão judaica, faz uma crítica feroz a Bruno Bauer.2 2 A crítica destruidora de Marx responde a artigos escritos por Bauer, filósofo hegeliano, que defendiam, em seu posicionamento contrário aos judeus, o Estado Cristão. Para maior aprofundamento buscar Marx (2010). Marx assinala que os judeus, no Estado Cristão, não deveriam abrir mão de suas crenças para exercerem seus direitos e deveres de cidadãos. O Estado é que deveria ser laico e possibilitar a emancipação política de todos os indivíduos independentemente da sua religião, nascimento, ocupação, habitação etc.

No caso das pessoas em sofrimento psíquico, elas não devem ser aprisionadas e isoladas devido às suas experiências subjetivas. Devem, sim, ter suas diferenças respeitadas e reconhecidas na sociedade. Entretanto, os princípios da propriedade privada moldam as relações sociais de acordo com os interesses econômicos e de classe que a envolvem. Logo, o diferente pode não ser bem aceito em uma sociedade que exige determinados comportamentos moldados com base nos valores dominantes.

É nesse caminho que a RPB entra em choque com suas próprias reivindicações. Ela questiona a centralidade da doença e começa a enxergar o indivíduo como sujeito de direitos, contudo o enquadra na lógica estabelecida pela sociedade. Ou seja, o indivíduo precisa trabalhar, consumir, ter lazer, ter uma família, ou melhor, ele deve apropriar-se de todas as ‘propriedades privadas' que o tornam um cidadão ‘normal'.

Nessa lógica, torna-se imprescindível o reconhecimento da emancipação política como estratégia para a transformação da imagem social das pessoas em sofrimento psíquico. Segundo Amarante (2007AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 2007., p. 69-70), “trata-se de uma luta pela inclusão de novos sujeitos de direito e de novos direitos para os sujeitos em sofrimento psíquico”. Ou seja, nesse caso o Estado deixa de ter suas ações manicomiais e promove a cidadania aos sujeitos em sofrimento psíquico, permitindo que os direitos humanos possam lhes ser oferecidos e, assim, viabilizar o reconhecimento da cidadania e a promoção da emancipação política.

O que se quer problematizar é que a fragmentação das lutas promove a fragilização e a limitação da organização da classe trabalhadora, impossibilitando a consciência para si. Os movimentos limitam-se à análise da conjuntura com base em suas demandas e calendário de lutas, deixando de dialogar e de construir uma pauta única de enfrentamento: a busca pela emancipação humana. Ou seja, mesmo com a desconstrução do pensamento manicomial em relação ao cuidado e ao ‘lugar social' estabelecido para a pessoa em sofrimento psíquico, permanecem ainda as diferenças e opressões de classe.

A liberdade proposta como premissa do movimento não pode restringir-se à negação do isolamento. Ela deve ser construída pela gênese da liberdade das escolhas: “a liberdade, para Marx, não consiste apenas na consciência da liberdade ou das escolhas, mas na existência de alternativas e na possibilidade concreta de escolha entre elas” (Barroco, 2010BARROCO, Maria L. S. Ética: fundamentos sócio-históricos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010., p. 26).

O lema ‘Por uma sociedade sem manicômios' deve ser ampliado, já que na sociedade capitalista, de acordo com os processos históricos, tem-se a recriação de novos formatos de manicômios, tanto em ações direcionadas pelas políticas públicas como na criação de valores e na padronização de comportamentos.

Como proposta para pensarmos novos direcionamentos para o movimento, sinaliza-se que são necessárias a instrumentalização e a educação política dos usuários, familiares, profissionais e de todos aqueles que compõem esta luta. O desconhecimento da real luta política possibilita a reificação das relações, ou seja, volta-se a tratar a doença como produto, apenas com uma nova roupagem, e recriam-se outras formas de opressão.

Uma das questões abordadas ao longo da pesquisa de mestrado e agora na elaboração da tese de doutorado diz respeito à transferência de responsabilidade do cuidado da pessoa em sofrimento psíquico para a família e especialmente para as mulheres. A política de saúde mental é implementada ao mesmo tempo em que o modelo neoliberal estabelece-se na realidade brasileira, o que influencia e firma as várias fragilidades, já que a ação do Estado hoje é direcionada para a maximização do mercado e a redução das ações e investimentos para as políticas públicas.

Com isso, tem-se o sucateamento da rede de saúde e, assim, dos serviços de saúde mental. Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) que deveriam ser os serviços de gerenciamento do território não conseguem executar suas ações, já que a precarização os alcançou. O discurso passa a ser direcionado para a família, que deve assumir o lugar do cuidado e o retorno do convívio à sociedade, sem qualquer suporte. Recriam-se novas formas de opressões com um discurso de democratização, liberdade e direitos humanos.

É necessária a mudança das consciências, sair do âmbito da revolta e caminhar para a superação e transformação da sociedade, já que os fundamentos da desigualdade estão na propriedade privada dos meios de produção e da riqueza.

Portanto, a transformação das consciências não está além da luta política e da materialidade onde esta se insere. É ao mesmo tempo um produto da transformação material da sociedade e um meio político de alcançar tal transformação (Iasi, 2011IASI, Mauro L. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 43).

Considerações finais

Procurou-se apresentar neste ensaio, de forma breve, o processo de consciência e sua formação, que não se dá naturalmente, mas que se constitui enquanto processo. Cabe destacar que esse processo, de acordo com Iasi (2011IASI, Mauro L. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.), não ocorre da mesma forma com todos, obedecendo às particularidades dos sujeitos.

Para Ortiz, um

traço que acompanha a todos os sujeitos reside no fato de que os conteúdos valorativos que estes apreendem ao longo da vida pelos diversos processos de socialização estão fundamenta-dos no modo de ser e pensar dominante de uma dada época histórica (2012, p. 32-33).

Os sujeitos acreditam que os seus valores e ideias são naturais e não reconhe-cem que são resultados da produção de um dado modelo de produção e de pensamento hegemônico.

Logo, o movimento da RPB não está isento dessa determinação, já que é constituído de seres humanos, em que cada um tem sua particularidade e consciência formadas pela mesma lógica dominante. Identificar e fortalecer ações que promovam a consciência de um projeto societário que supere o capitalismo é fundamental para aqueles que participam da luta antimanicomial, mas muito mais para toda a classe trabalhadora. Assim, deixa-se uma convocação aos militantes da reforma psiquiátrica que partilham do entendimento de que é necessário superar o projeto societário excludente e burguês e constituir uma sociedade igualitária e sem exploração de classes.

  • 2
    A crítica destruidora de Marx responde a artigos escritos por Bauer, filósofo hegeliano, que defendiam, em seu posicionamento contrário aos judeus, o Estado Cristão. Para maior aprofundamento buscar Marx (2010)MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Editora Boitempo, 2010..

Referências

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  • AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 2007.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2015

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2013
  • Aceito
    12 Jun 2014
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