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Sobre o trabalho e a formação de agentes de saúde em tempos de zika

Uma emergência em saúde pública, como a associação entre o vírus zika e a microcefalia, constitui uma situação em que o pensamento científico, a lógica da gestão em saúde e o senso comum tendem a se aliar em torno de uma ideia geral: é preciso reunir todos os esforços possíveis para enfrentar a expansão do problema e suas consequências mais graves e imediatas. Diante desse imperativo, suspendem-se críticas e adiam-se reflexões e ações políticas que, nesse contexto, são vistas como digressões da resposta rápida e pragmática.

Entretanto, exatamente por sua gravidade, essas situações não podem ser desperdiçadas como provocações de análises com desdobramentos mais perenes sobre as questões estruturais que impõem tanto as condições para a eclosão de uma epidemia quanto explicam a capacidade limitada para lidar com seus efeitos. É nesse sentido que recuperar as concepções de determinação social do processo saúde-doença torna-se oportuno e necessário.

Particularmente em relação à tripla epidemia zika-dengue-chikungunya, o procedimento básico é destacar a vilania do Aedes aegypti e a responsabilização da população – o que se expressa hegemonicamente nas campanhas de ‘educação em saúde'. Em grau elevado, essas campanhas têm como efeito apagar a falência das políticas públicas intersetoriais e a centralidade da dinâmica econômica e social, ao enfatizarem mensagens de individualização tanto do risco quanto do controle de seus fatores.

Contribui para o obscurecimento da determinação social da doença a simulação de que estamos diante de uma novidade, quando o Aedes e seu potencial de transmissão é conhecido na saúde pública desde o início do século XX. Mais recentemente, acompanhamos sua presença assídua no noticiário sobre dengue ano a ano após a década de 1990. Esse procedimento – tratar o vírus zika como um fenômeno surpreendente – conduz a um segundo plano a abordagem dos problemas relacionados às condições de vida que estão vinculados às principais causas da epidemia, dentre eles aqueles derivados da carência de saneamento, como o abastecimento de água e a coleta de resíduos para a população pobre.

Tais problemas, ao contrário de constituírem aspectos novos, são componentes históricos no quadro sanitário brasileiro, agravado em função do aprofundamento dos problemas socioambientais oriundos de processos precários de urbanização em ritmo acelerado e irrefletido, inclusive no contexto dos grandes empreendimentos e dos processos migratórios a ele vinculados.

Entretanto, o conjunto de questões estruturais envolvidas nessa dinâmica do processo saúde-doença, para as quais gostaríamos de chamar atenção, em particular, associa-se à formação e ao trabalho em saúde e, mais particularmente, a um trabalho e uma formação socialmente pouco valorizada: a dos agentes de saúde, sejam os agentes comunitários, sejam os agentes de endemias.

Tão logo as informações mais preocupantes sobre a epidemia de microcefalia-zika foram se difundindo e ante a necessidade de tornar visível a ação pública, noticiaram-se importantes movimentos em duas pontas do sistema de saúde: na área da pesquisa e nas ações diretas nos territórios. Agentes comunitários de saúde e agentes de controle de endemias, que já integravam com destaque o programa de controle da dengue, criado em 2002, ressurgem em cena, acompanhados de militares, em uma convocação nacional a fim de atuar sobretudo no controle de focos do Aedes aegypti e na detecção de situações clínicas que mereceriam atenção particular, ainda que de encaminhamento incerto.

Parte desse esforço de mobilização é acompanhado de um dispositivo que tem se tornado cada vez mais estável na construção do perfil da qualificação profissional desses agentes de saúde: os treinamentos breves, focalizados em problemas e intervenções pontuais que não conseguem – porque não podem – superar a ausência de uma formação mais sólida. O que entendemos como uma ‘solidez' seria representado pela formação em nível técnico, política continuamente fragilizada nas agendas governamentais, tanto no plano federal quanto no municipal. Essa dispersão das políticas de formação se agrava com a precarização dos vínculos, via terceirização, que torna ainda mais improvável o investimento em uma formação prolongada e que supõe uma relação de trabalho não provisória.

Uma das resultantes dessa regressão no processo de qualificação desses trabalhadores é que, em um momento como o das epidemias atuais, surge a leitura de que os ‘trabalhadores de campo' se mostram pouco habilitados a exercer o conjunto amplo e complexo de atividades que lhe são atribuídas (que incorporam desde a orientação individual sobre sinais e sintomas até o manejo de questões ambientais, além da mobilização comunitária).

Além disso, problemas conhecidos na dinâmica do trabalho no Sistema Único de Saúde, como a baixa integração do agente de controle de endemias nas equipes de atenção básica ou a dificuldade de constituir um trabalho em equipe que promova autonomia profissional, são recuperados, menos para problematizar essas situações e mais para justificar os obstáculos que se interpõem nesse ‘combate às epidemias'.

Em relação à formação, especificamente no que diz respeito ao vírus zika, entender, por exemplo, os benefícios e sobretudo os riscos, a curto e médio prazo, do uso de tecnologias – tais como a modificação genética de mosquito e o uso de larvicidas e do fumacê, que equivocadamente continua sendo apresentado como uma alternativa – passa por entender processos sociais e biológicos. Tal compreensão, pelo trabalhador da saúde, demanda mais do que palestras: demanda um compromisso com a educação profissional em saúde. Esse não é um compromisso que se sustente a partir de uma perspectiva tática, dominada pela ideia de urgência que atravessa nosso imaginário quando o tema é saúde e, mais ainda, quando se estabelece como horizonte apenas o controle de uma ou duas doenças.

Afirmamos aqui que a formação que proporciona um entendimento mais consistente das bases sociais e biológicas que estão na conformação de problemas de saúde tem conexão direta com as possibilidades de intervir sobre eles em uma dimensão operacional e imediata, mas também em dimensões que dialoguem com suas causas histórico-sociais.

Por fim, a atual situação talvez constitua também uma oportunidade de romper com esse ciclo de reprodução do discurso de controle biologicista, que, através de agentes de saúde e meios de comunicação, chegam aos territórios e contribuem para retardar posições politicamente mais críticas e, portanto, mais capazes de lidar com a tripla epidemia e com outras futuras epidemias que, embora ainda não sejam plenamente conhecidas, já estão anunciadas.

Angélica Ferreira Fonseca
Editora científica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016
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