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A RUPTURA SOCIAL INFANTOJUVENIL E SUA INFERÊNCIA NAS REPRESENTAÇÕES DE CONSELHEIROS TUTELARES

THE YOUTH SOCIAL RUPTURE AND ITS INFERENCE IN THE REPRESENTATIONS OF TUTELARY COUNSELORS

LA RUPTURA SOCIAL INFANTIL-JUVENIL Y SU INFERENCIA EN LAS REPRESENTACIONES DE CONSEJEROS TUTELARES

Resumo

Este estudo qualitativo introduz o tema das representações de conselheiros tutelares com o objetivo de ampliar a compreensão do universo desses atores sociais e conhecer as suas implicações sobre a dinâmica do seu processo de trabalho. O estudo foi realizado no município de Coronel Vivida, Paraná, no ano de 2013. Para a coleta de dados foi utilizado questionário semiestruturado e entrevista informal, e o material foi tratado pela técnica de análise do Discurso do Sujeito Coletivo. Os resultados mostram que as percepções dos conselheiros tutelares transcorreram pelo reconhecimento de alguns aspectos terminantes e inerentes à sua práxis, como a impotência diante dos perturbadores cenários sociais a que são expostos, adjudicada à restrição do alcance de sua atuação vinculada a entraves estruturais das redes vigentes de proteção social e à baixa adesão da população ao seu processo de trabalho. Evidenciam também uma satisfação arraigada nos desdobramentos laborais concluídos e naqueles que inferem positivamente sobre a violência infanto-juvenil. Esse contentamento, por sua vez, é considerado combustível para o desenvolvimento de suas competências profissionais. As considerações apreendidas no presente estudo ratificam a presença de gradações relevantes, inerentes ao processo relacional do conselheiro tutelar em seu ambiente de trabalho, corroborando o reconhecimento de parâmetros norteadores da relação intersubjetiva conselheiro tutelar e práxis social.

Palavras-chave
violência; criança; adolescente; relações comunidade–instituição

Abstract

This qualitative study introduces the theme of the tutelary counselors' representations to broaden the understanding of these social players' universe and to get to know their implications regarding the dynamics of their work process. The study was conducted in the city of Coronel Vivida, in the state of Paraná, Brazil, in 2013. A semi-structured questionnaire and an informal interview were used to collect the data, and the material was treated using the Collective Subject Discourse analysis technique. The results show that the tutelary counselors' perceptions went through the recognition of a few peremptory aspects inherent to their practice, such as impotence in the face of the disturbing social scenarios to which they are exposed, along with the restriction of the scope of their action linked to structural barriers in the existing social protection networks, in addition to the population's low levels of adherence to their work process. They also reveal a deep-seated satisfaction in the developments of work they have done and that which has a positive impact on juvenile violence; this satisfaction, in turn, is considered as fuel for the development of their professional skills. The considerations this study captured confirm the presence of relevant gradations inherent in the relational process of the tutelary counselors in their work environment, supporting the recognition of the guiding parameters of the intersubjective relationship between the tutelary counselor and the social praxis.

Keywords
violence; child; teen; community-institution relations

Resumen

Este estudio cualitativo introduce el tema de las representaciones de consejeros tutelares con el objetivo de ampliar la comprensión del universo de estos actores sociales y conocer sus implicaciones sobre la dinámica de su proceso de trabajo. El estudio se realizó en el municipio de Coronel Vivida, en el estado de Paraná, Brasil, en el año de 2013. Para la recolección de los datos se utilizó un cuestionario semiestructurado y entrevista informal, y el material se trató mediante la técnica de análisis del Discurso del Sujeto Colectivo. Los resultados muestran que las percepciones de los consejeros tutelares transcurrieron por el reconocimiento de algunos aspectos terminantes e inherentes a su praxis, como la impotencia frente a los perturbadores escenarios sociales a que están expuestos, atribuida a la restricción del alcance de su actuación vinculada a obstáculos estructurales de las redes vigentes de protección social y a la escasa adhesión de la población a su proceso de trabajo. Ponen de manifiesto también una satisfacción arraigada en los desdoblamientos laborales concluidos y en aquellos que infieren positivamente sobre la violencia infantil-juvenil, y esta satisfacción, a su vez, se considera combustible para el desarrollo de sus competencias profesionales. Las consideraciones aprendidas en el presente estudio ratifican la presencia de graduaciones relevantes, inherentes al proceso de relación del consejero tutelar en su ambiente de trabajo, corroborando el reconocimiento de parámetros orientadores de la relación intersubjetiva consejero tutelar y praxis social.

Palabras clave
violencia; niño; adolescente; relaciones comunidad–institución

Introdução

Os Conselhos Tutelares são órgãos autônomos, de caráter permanente, não jurisdicionais, nomeados pela sociedade para zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, configurando-se como espaço de notificação ou de reconhecimento de violação ou ameaça de direito (Bazon, 2008BAZON, Mariana R. Violências contra crianças e adolescentes: análise de quatro anos de notificações feitas ao Conselho Tutelar na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 323–332, 2008.; Faleiros e Faleiros, 2008FALEIROS, Vicente P.; FALEIROS, Eva S. Escola que protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação, 2008. p. 98.) e ainda de promoção da qualidade de vida, por meio da sensibilização da família, da sociedade e do governo no sentido do cumprimento de sua responsabilidade social.

Para cumprir com eficácia a sua missão social, o Conselho Tutelar, por meio dos conselheiros tutelares, propõe-se a executar as atribuições que lhe foram confiadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990BRASIL. Ministério da Justiça. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul.1990. Retificado em 27 set. 1990. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 17 nov. 2013.
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069...
). Esse estatuto consiste em política de resposta e responsabilização pública por meio de legislação específica que regulamenta o paradigma da proteção integral de crianças e adolescentes, considerando-se os aspectos jurídicos, da atenção biopsicossocial e dos direitos fundamentais.

Considerando-o em sentido amplo, o processo de trabalho dos conselheiros tutelares se norteia por estruturas internas individuais, oriundas de suas trajetórias de vida, as quais orientam toda a prática, seus objetos de trabalho e suas finalidades. Sobre essa conjuntura, interessa aqui apreender aquilo que habita as concepções de conselheiros e como eles compreendem as inúmeras demandas a que são expostos. Faz-se então alusão ao conceito das representações sociais, extraídas de um conjunto de valores compartilhados que sustentam um conjunto de crenças e que operam como guia de ação, interferindo e dirigindo decisões e atos no espaço social (Jodelet, 2001JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, Denise (org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 17–44.).

Ante o exposto, é fundamental a análise de subsídios qualitativos oriundos de um Conselho Tutelar, análise que pode produzir um importante cenário de conhecimento e inferência das contingências de vida de crianças e adolescentes (Bazon, 2008BAZON, Mariana R. Violências contra crianças e adolescentes: análise de quatro anos de notificações feitas ao Conselho Tutelar na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 323–332, 2008.), fornecendo dados valiosos a gestores públicos e à sociedade civil.

Ciente da relevância de estudos que acarretem avanços no conhecimento do processo de trabalho de conselheiros tutelares, a pesquisa buscou apreender os significados subjetivos e as práticas desses atores diante de rupturas sociais6 6 O termo ruptura social surge na literatura ora associado à perspectiva da exclusão como fragilização e quebra de laços sociais, ora como negação da própria identificação como ser social e humano. A primeira acepção foi considerada por este estudo. no contexto de seu universo de atuação profissional.

Metodologia

A pesquisa que deu origem a este artigo tem caráter exploratório e qualitativo, uma vez que ele possibilita maior aproximação com o cotidiano e promove o alcance e a compreensão dos significados e experiências vivenciadas por diferentes sujeitos. Foram enfocadas as redes de significados construídas no contexto de um Conselho Tutelar, envolvendo-as em ideias associadas a núcleos temáticos explicativos de sua representação sobre o processo de trabalho. O estudo foi realizado em 2013 com os cinco conselheiros tutelares em exercício no município de Coronel Vivida, localizado no sudoeste do estado do Paraná, após os entrevistados serem informados do objetivo do estudo, aceitarem participar e assinarem o termo de consentimento livre e esclarecido.

As informações de interesse para o estudo foram coletadas inicialmente por meio de um questionário semiestruturado visando à obtenção de informações sociodemográficas básicas. Em seguida, os elementos de interesse para o estudo foram apreendidos por meio da técnica de entrevista em grupo focal (Merton, Fiske e Kendall, 1956MERTON, Robert; FISKE, Marjorie; KENDALL, Patrícia. The Focused Interview. Nova York: Free Press, 1956.). Essa etapa permitiu o livre discurso, ao mesmo tempo em que foi praticado o delineamento da conversa, mantendo-a sintonizada com os objetivos da pesquisa. Inicialmente, foi definido um grupo focal, com a totalidade dos sujeitos (n = 5), considerando-se a possibilidade de desenvolvimento posterior de outros. Contudo, no transcorrer da pesquisa, esse grupo se mostrou suficiente, uma vez que o material empírico obtido permitiu traçar um quadro compreensivo da questão investigada.

Essa etapa foi conduzida por um único pesquisador, o qual discorreu sobre funcionamento do grupo, voluntariedade, confidencialidade e não identificação dos participantes, e solicitou consentimento para a gravação. Com duração de aproximadamente 90 minutos, utilizou-se o critério de saturação para o encerramento da gravação (Veiga e Gondim, 2001VEIGA, Luciana; GONDIM, Sônia M. G. A utilização de métodos qualitativos na ciência política e no marketing político. Opinião Pública, Campinas, v. 2, n. 1, p. 1–15, 2001.).

Os discursos foram gravados e, posteriormente, transcritos. A sede do único Conselho Tutelar municipal foi o local sugerido pelos conselheiros para o alcance desses subsídios.

As informações sociodemográficas coletadas foram expostas de maneira descritiva simples e os dados resultantes do diálogo, analisados à luz da técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) (Lefèvre e Lefèvre, 2006LEFÈVRE, Fernando; LEFÈVRE, Ana M. C. O sujeito coletivo que fala. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 10, n. 20, p. 517–524, 2006.).

Após leitura flutuante e atenta do material colhido, foi feita a sistematização dos discursos obtidos, agrupando-os em unidades de significado a partir das perguntas norteadoras: a) Que sentimentos o seu trabalho como conselheiro(a) tutelar já despertou em você?; b) O que é realmente a violência contra crianças e adolescentes e o que poderia ser feito para evitá-la?; c) Em sua opinião, qual o reflexo do trabalho do conselheiro tutelar na sociedade?. Posteriormente, foi possível estabelecer núcleos de sentido principais (ideias centrais) e discursos representativos de cada categoria de análise. O material coletado foi discutido com o auxílio de referencial teórico.

Este trabalho teve aprovação do Conselho de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Paulista (CEP/Unesp), de acordo com o protocolo n. 00645/2010, conforme resolução n. 196/1996, do Conselho Nacional de Saúde, que normatiza e regulamenta as pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil.

Resultados e discussão

Do total de entrevistados, três pertenciam ao gênero feminino e dois ao gênero masculino, e todos exerciam a função de conselheiro há mais de dois anos. A média etária dos participantes foi de 36 anos e a escolaridade declarada, em sua maioria, ensino médio completo.

Em seguida, expõem-se as temáticas extraídas, as ideias centrais e os discursos resultantes da análise, bem como a discussão com base no referencial teórico.

  • Questão 1: Que sentimentos o seu trabalho como conselheiro(a) tutelar já despertou em você?

Ideia Central - Desvendando um emaranhado de emoções

DSC - Eu me sinto impotente… Há casos em que você fica de mãos e pés atados, principalmente quando se trata de criança pequena… É uma violência contra alguém que não se defende, não fala, não grita, não corre! Isso dá uma agonia, dá sim… E muita dor e revolta também. Mas o pior desgosto é quando você vê que a família não tem vontade de se reestruturar, de melhorar, de auxiliar o Conselho… Ela não se interessa por nada, não colabora mesmo! A gente se empenha e parece que o trabalho está sendo em vão, aquela angústia de tentar ajudar e ver que está sozinho… É bem difícil.

Vivenciar situações de sofrimento alheio, em especial de indivíduos com autonomia reduzida, pode despertar sentimentos como impotência, tristeza, angústia e sofrimento, como acima relatado. O estudo realizado por Garanhani et al. (2008)GARANHANI, Mara L. et al. O trabalho de enfermagem em unidade de terapia intensiva: significados para técnicos de enfermagem. Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool Drogas, Ribeirão Preto, v. 4, n. 2, p. 1–15, 2008. com enfermeiros de unidades de terapia intensiva verificou também sentimentos de fracasso e impotência, principalmente diante de circunstâncias de elevada gravidade do paciente com baixa inferência de sua atuação profissional.

Pesquisas relatam ainda que, ao trabalharem frequentemente com a dor e o sofrimento alheio, os profissionais passam a ser acometidos pelos mais diversos sentimentos e esses aumentam proporcionalmente na medida em que suas expectativas nos planos afetivo, social e político não são contempladas (Medeiros et al., 2006MEDEIROS, Soraya M. et al. Condições de trabalho e enfermagem: a transversalidade do sofrimento no cotidiano. Revista Eletrônica de Enfermagem, Goiânia, v. 8, n. 2, p. 233–240, 2006.) e que o uso de suas habilidades laborais não alcança a efetividade esperada.

O sofrimento fica ainda mais evidente para os entrevistados quando a família, núcleo básico de formação da criança e responsável pelos cuidados e pela socialização na infância (Algeri, 2005ALGERI, Simone. A violência infantil na perspectiva do enfermeiro: uma questão de saúde e educação. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 26, n. 3, p. 308–315, 2005.), não demonstra interesse em transformar a sua condição de vida. A ruptura de um cenário desejável a respeito do que seria idealmente o papel familiar parece revelar um distanciamento de conselheiros tutelares quanto ao seu processo cotidiano de (re)estruturação familiar, devido a inconsistências de concepções dos próprios membros das famílias (Bergamo e Bazon, 2011BERGAMO, Lilian P. D.; BAZON, Mariana R. Experiências infantis e risco de abuso físico: mecanismos envolvidos na repetição da violência. Psicologia Reflexiva e Crítica, Porto Alegre, v. 24, n. 4, p. 710–719, 2011.). Essa dissociação concorreria ainda para aumentar o risco de violência, uma vez que fragiliza o desenvolvimento de estratégias de intervenção no enfrentamento do problema e de ações preventivas para o adequado desenvolvimento e a integração social de crianças e adolescentes (Milner et al., 2010MILNER, Joel S. et al. Do trauma symptoms mediate the relationship between childhood physical abuse and adult child abuse risk?. Child Abuse & Neglect, v. 34, p. 332–344, 2010.).

A ausência de apoio familiar no enfrentamento da violência, além de afetar o próprio indivíduo, pode ser um ponto de partida para que a criança ou o adolescente apresentem comportamento violento no exercício do controle social em suas relações interpessoais (Morrison e Biehl, 2000MORRISON, Andrew R.; BIEHL, María L. A família ameaçada: violência nas Américas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.), aumentando a probabilidade de perpetuação e exacerbação dessa violência.

Ideia Central - A satisfação por meio do trabalho concluído

DSC - É gratificante quando a gente consegue realizar um trabalho, conseguiu iniciar, dar continuidade e terminar. A adoção de uma criança, a colocação de uma criança em família, uma pessoa que acha o filho, uma criança que consegue encontrar o pai… Então, você vê a alegria na própria criança por ter encontrado o pai, a alegria que nós temos é essa.

A possibilidade de oportunizar atenção integral às necessidades dos sujeitos abarcados por rupturas sociais vem sendo apontada como fator de satisfação no trabalho em diversas áreas (Garanhani et al., 2008GARANHANI, Mara L. et al. O trabalho de enfermagem em unidade de terapia intensiva: significados para técnicos de enfermagem. Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool Drogas, Ribeirão Preto, v. 4, n. 2, p. 1–15, 2008.; Cavanagh, 1992CAVANAGH, Stephen J. Job satisfaction of nursing staff working in hospitals. Journal of Advanced Nursing, Newland, v. 17, n. 6, p. 704–711, 1992.), fato também revelado pelos trabalhadores deste estudo.

De acordo com Galavote et al. (2013)GALAVOTE, Heletícia S. et al. Alegrias e tristezas no cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde: cenários de paixões e afetamentos. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 17, n. 46, p. 575–586, 2013., a busca por determinado objetivo caracteriza-se, per se, como agente central da condição do sentir-se motivado dentro do seu campo de trabalho. A motivação, por sua vez, desempenha um importante papel na determinação do nível de realização dos sujeitos, impulsionando-os para o uso de suas aptidões e influindo positivamente na consecução de seus objetivos.

Ideia Central - Percepções acerca dos enfrentamentos profissionais

DSC - Você tem que estar preparado para tudo… Você tem que cuidar, saber o que se fala, o que não se fala, com quem você fala. Tem notícias, denúncias (…) que são falsas, você nunca sabe o que vai encontrar. Às vezes você pensa que não é nada, e é uma situação bem mais complicada; às vezes você pensa que é uma situação complicada, e não é nada, é qualquer coisinha corriqueira. É, para ser conselheiro, tem que ter muito jogo de cintura mesmo, para não agir de maneira errada.

O complexo cenário de trabalho dos conselheiros tutelares parece incitar uma amalgamação de víveres circulantes, fruto da multiplicidade de relações, os quais se mostram diretamente incorporados ao seu contexto de atuação e imprimem a ele alto grau de subjetividade. A imprevisibilidade da forma e o grau de complexidade das ocorrências que incidem no Conselho exprimem aos conselheiros determinados enfrentamentos, como evidencia esse discurso.

Para Fernandes (2011)FERNANDES, Isabel M. R. Os medos dos enfermeiros em situação de doença própria. Revista de Enfermagem Referência, Coimbra, v. 3, n. 3, p. 57–65, 2011., toda a existência do ser humano e o agir perante ele próprio, os outros e o mundo são condicionados por alguma espécie de confronto interno. Muitos destes confrontos são baseados, essencialmente, na dificuldade que o indivíduo apresenta para lidar com as situações, especificamente com a suposta ideia da incapacidade de resolução das mesmas (Fernandes, 2011FERNANDES, Isabel M. R. Os medos dos enfermeiros em situação de doença própria. Revista de Enfermagem Referência, Coimbra, v. 3, n. 3, p. 57–65, 2011.), da inadequação no agir e do despreparo para suas atuações futuras (Koury, 2009KOURY, Mauro G. P. O que é medo? Um adentrar no imaginário dos habitantes da cidade de João Pessoa, Paraíba. Psicologia & Sociedade, Florianópolis v. 21, n. 3, p. 402–410, 2009.).

Outra questão que habita o imaginário dos entrevistados é a ausência de controle diante do desconhecido e, ainda, uma possível exposição negativa proveniente do delatado. Esses resultados corroboram os achados de diferentes autores (Fernandes, 2011FERNANDES, Isabel M. R. Os medos dos enfermeiros em situação de doença própria. Revista de Enfermagem Referência, Coimbra, v. 3, n. 3, p. 57–65, 2011.; Koury, 2009KOURY, Mauro G. P. O que é medo? Um adentrar no imaginário dos habitantes da cidade de João Pessoa, Paraíba. Psicologia & Sociedade, Florianópolis v. 21, n. 3, p. 402–410, 2009.), os quais igualmente pontuam a existência do medo do desconhecido nas mais diferentes circunstâncias, relacionando-a com a sensação da ausência de poder.

Ideia Central – Desenvolvendo couraças emocionais

DSC - No começo, eu tinha muita vontade de agir mais pelo coração do que pela razão, só que na prática não dá! A gente nunca pode usar a emoção, você tem que deixar o sentimento em casa. Se eu me deixasse agir pelo sentimento, acabaria levando muita criança para casa, mas nem tudo que a emoção às vezes diz é o correto; por dentro da lei é o mais justo.

O discurso indica que os trabalhadores, ao se familiarizarem com casos de violência, acabam desenvolvendo uma espécie de defesa diante da dor e do sofrimento imputados por sua prática laboral, manifestando, muitas vezes, uma condição de distanciamento emocional. A tentativa de um manejo considerado mais adequado por parte do trabalhador é também relatada em outros estudos (Souza e Souza et al., 2013SOUZA E SOUZA, Luis P. et al. A morte e o processo de morrer: sentimentos manifestados por enfermeiros. Enfermería Global, Murcia, n. 32, p. 230–237, 2013.; Garanhani et al., 2008GARANHANI, Mara L. et al. O trabalho de enfermagem em unidade de terapia intensiva: significados para técnicos de enfermagem. Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool Drogas, Ribeirão Preto, v. 4, n. 2, p. 1–15, 2008.).

Em estudo realizado com enfermeiros (Souza e Souza et al., 2013SOUZA E SOUZA, Luis P. et al. A morte e o processo de morrer: sentimentos manifestados por enfermeiros. Enfermería Global, Murcia, n. 32, p. 230–237, 2013.), observou-se ser o sofrimento decorrente de arcabouços emocionais internos diretamente ligados a valores pessoais e à história de vida. Além disso, a exposição a situações laborais de grande intensidade parece instigar as potencialidades humanas para uma atuação diferenciada, em meio ao prazer e ao sofrimento (Garanhani et al., 2008GARANHANI, Mara L. et al. O trabalho de enfermagem em unidade de terapia intensiva: significados para técnicos de enfermagem. Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool Drogas, Ribeirão Preto, v. 4, n. 2, p. 1–15, 2008.). Assim sendo, tornam-se importantes tais distanciamentos, a fim de evitar prejuízos nos aspectos psicológicos e emocionais (Souza e Souza et al., 2013SOUZA E SOUZA, Luis P. et al. A morte e o processo de morrer: sentimentos manifestados por enfermeiros. Enfermería Global, Murcia, n. 32, p. 230–237, 2013.).

  • Questão 2: O que é realmente a violência contra a criança e o adolescente e o que poderia ser feito para evitá-la?

Ideia Central - Entendimento acerca da violência

DSC - Tudo o que você faz contra a criança é violência: a física, a psíquica, a sexual… A agressão física acaba deixando a criança marcada: ela fica com trauma, tanto psicológico quanto físico. Tem o abandono também: as crianças sofrem pelo abandono e negligência dos pais. Essa é uma violência que a gente considera bastante grave no nosso meio, porque o abandono desestrutura o menor! Mas a violência sexual é a que mais traumatiza a criança. E quando o abuso sexual é em família, pelo padrasto, o próprio pai ou o irmão, é mais difícil, porque a vítima nunca fala. A criança não fala por medo, porque ela sabe que é ali onde ela vive, o meio dela é aquele. Ela tem medo de sofrer represália da família, e a própria mãe acoberta a agressão do pai. Ela tem medo, se sente ameaçada, mas não fala!

A violência infantojuvenil é todo ato ou omissão capaz de causar algum dano e implica a negação do direito de crianças e adolescentes serem tratados como sujeitos em condições especiais de crescimento e desenvolvimento (Brasil, 1997BRASIL. Violência contra a criança e o adolescente: proposta preliminar de prevenção e assistência à violência doméstica. Brasília: Ministério da Saúde, 1997. 24 p.).

Como observado no discurso, é comum a utilização de distintas classificações para a violência, no entanto, na vivência cotidiana, verifica-se que elas não são excludentes e sim cumulativas, visto que um ato violento pode estimular diversas outras formas de agressão (Faleiros e Faleiros, 2008FALEIROS, Vicente P.; FALEIROS, Eva S. Escola que protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação, 2008. p. 98.; Habigzang et al., 2005HABIGZANG, Luísa F. et al. Abuso sexual infantil e dinâmica familiar: aspectos observados em processos jurídicos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 21, n. 3, p. 341–348, 2005.).

Dos tipos de violência existentes, Minayo (2001)MINAYO, Maria C. S. Violência contra crianças e adolescentes: questão social, questão de saúde. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 1, n. 2, p. 91–102, 2001. ressalta que desde os primórdios da humanidade a sociedade considera o abandono como a mais importante agressão praticada contra a criança e o adolescente. Contudo, as situações que envolvem a violência sexual são as que mais os afetam, trazendo consequências graves para o seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e social, principalmente em casos de abuso intrafamiliar, por causa do rompimento da relação de confiança e do vínculo afetivo (McElvaney, Greene e Hogan, 2013; Habigzang et al., 2005HABIGZANG, Luísa F. et al. Abuso sexual infantil e dinâmica familiar: aspectos observados em processos jurídicos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 21, n. 3, p. 341–348, 2005.). Essa tese, defendida por vários autores, é endossada na percepção dos conselheiros.

Sendo ainda a violência contra crianças e adolescentes praticada por diferentes atores, em espaços e estratos sociais distintos (Minayo, 2001MINAYO, Maria C. S. Violência contra crianças e adolescentes: questão social, questão de saúde. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 1, n. 2, p. 91–102, 2001.), frequentemente o ambiente familiar surge como lugar provável e privilegiado para o desenvolvimento dessas práticas (Deb e Modak, 2010DEB, Sibnath; MODAK, Subhasis. Prevalence of violence against children in families in Tripura and its relationship with socio-economic factors. Journal of Injury Violence Research, Kermanshah, v. 2, n. 1, p. 5–18, 2010.; Habigzang et al., 2005HABIGZANG, Luísa F. et al. Abuso sexual infantil e dinâmica familiar: aspectos observados em processos jurídicos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 21, n. 3, p. 341–348, 2005.). Observa-se que, por se tratar de condutas condicionadas por pessoas que exercem alguma relação de poder, superioridade ou autoridade sobre a criança ou adolescente, as vítimas, em decorrência do medo, vergonha, sentimento de culpa ou de aviltamento e submissão acabam silenciando e acobertando o violentador (McElvaney, Greene e Hogan, 2013McELVANEY, Rosaleen; GREENE, Sheila; HOGAN, Diane. To tell or not to tell? Factors influencing young people’s informal disclosures of child sexual abuse. Journal of Interpersonal Violence, Washington, 27 nov. 2013. Disponível em: <http://jiv.sagepub.com/content/early/2013/11/25/0886260513506281.full.pdf>. Acesso em: 2 dez. 2013.
http://jiv.sagepub.com/content/early/201...
; Faleiros e Faleiros, 2008FALEIROS, Vicente P.; FALEIROS, Eva S. Escola que protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação, 2008. p. 98.). Essa afirmativa também está implícita na percepção dos entrevistados.

Ideia Central - O suporte de uma rede de vigilância

DSC - Tinha que se fazer um trabalho mais de prevenção, começar desde a equipe de saúde até a escola, todo mundo agindo em conjunto, porque eles têm mais contato com as famílias. Não envolveria só o Conselho, envolveria a rede toda, os outros órgãos de proteção ao adolescente. Porque o Conselho vai só até certa altura, e se a rede não funcionar, se parar em algum lugar, não vai adiantar o Conselho correr, a saúde correr, a escola correr… Se algum órgão falha, (…) foi-se todo o trabalho! Então você depende mesmo que a rede funcione, que os encaminhamentos sejam desenrolados, que seja feita a proteção do menor mesmo…

Dados nacionais recentes apontam que cerca de 40% do universo infantojuvenil declarou já ter sofrido algum tipo de violência (Brasil, [2013]BRASIL. Datasus. Violência doméstica, sexual e/ou outras violências (Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan). Brasília: Ministério da Saúde, [2013]. Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinannet/cnv/violebr.def>. Acesso em: 17 nov. 2013.
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
), sendo, na maioria dos casos, os pais, parentes ou conhecidos apontados como agressores ativos (Brasil, [2013]BRASIL. Datasus. Violência doméstica, sexual e/ou outras violências (Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan). Brasília: Ministério da Saúde, [2013]. Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinannet/cnv/violebr.def>. Acesso em: 17 nov. 2013.
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
; Deb e Modak, 2010DEB, Sibnath; MODAK, Subhasis. Prevalence of violence against children in families in Tripura and its relationship with socio-economic factors. Journal of Injury Violence Research, Kermanshah, v. 2, n. 1, p. 5–18, 2010.; Faleiros e Faleiros, 2008FALEIROS, Vicente P.; FALEIROS, Eva S. Escola que protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação, 2008. p. 98.; Minayo, 2001MINAYO, Maria C. S. Violência contra crianças e adolescentes: questão social, questão de saúde. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 1, n. 2, p. 91–102, 2001.). As estatísticas revelam então não ser mais possível ignorar a presença da violência no cotidiano de milhares de crianças e adolescentes, fato que demanda a concretização de propostas e ações articuladas, intersetoriais e interdisciplinares para o seu enfrentamento (Lopes e Malfitano, 2006LOPES, Roseli E.; MALFITANO, Ana P. S. Ação social e intersetorialidade: relato de uma experiência na interface entre saúde, educação e cultura. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 10, n. 20, p. 505–515, 2006.).

A articulação efetiva entre todos os órgãos que compõem a rede de atenção a crianças e adolescentes é considerada, também pelos conselheiros, uma das principais estratégias de cuidado e proteção às vítimas de violência (Faleiros e Faleiros, 2008FALEIROS, Vicente P.; FALEIROS, Eva S. Escola que protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação, 2008. p. 98.). Os entrevistados evidenciam ainda a relevância de um trabalho intenso de prevenção iniciado em escolas e centros de saúde, uma vez que esses são locais de alta proximidade com a criança e seu núcleo familiar.

Dessa forma, seja a partir de ações específicas ou da articulação intersetorial, revela-se fundamental a associação de esforços na direção da construção e garantia dos direitos sociais e humanos (Minayo, 2001MINAYO, Maria C. S. Violência contra crianças e adolescentes: questão social, questão de saúde. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 1, n. 2, p. 91–102, 2001.), entendidos como um dever ético e uma responsabilidade social.

  • Questão 3: Na sua opinião, qual o reflexo do trabalho do(a) conselheiro(a) tutelar na sociedade?

Ideia Central - O alcance no episódio da violência

DSC - A partir do momento em que a gente começa a trabalhar com a criança, percebe que muda bastante coisa, na família e até na criança na escola; a maneira da criança agir muda, tudo muda. Elas ganham confiança na gente! A maioria delas, depois que a gente começa a acompanhar, começa a contar as coisas de verdade para nós. Elas ganham segurança e a gente acaba descobrindo e entendendo mais as coisas pelas quais elas passam.

Lopes e Malfitano (2006)LOPES, Roseli E.; MALFITANO, Ana P. S. Ação social e intersetorialidade: relato de uma experiência na interface entre saúde, educação e cultura. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 10, n. 20, p. 505–515, 2006. apostam na convivência, na atividade e no estreitamento das relações humanas como elementos-chave para a aproximação, o vínculo e o estabelecimento do trabalho com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. O discurso dos conselheiros corrobora a afirmação de que o elo da proximidade e da confiança é essencial para o processo de produção do cuidado, potencializado pelo binômio fala-escuta, meio fundamental de acesso à subjetividade da vítima (McElvaney, Greene e Hogan, 2013McELVANEY, Rosaleen; GREENE, Sheila; HOGAN, Diane. To tell or not to tell? Factors influencing young people’s informal disclosures of child sexual abuse. Journal of Interpersonal Violence, Washington, 27 nov. 2013. Disponível em: <http://jiv.sagepub.com/content/early/2013/11/25/0886260513506281.full.pdf>. Acesso em: 2 dez. 2013.
http://jiv.sagepub.com/content/early/201...
).

A escuta implica um processo ativo de condução do sujeito à produção de suas próprias respostas e o reconhecimento do caminho para o seu fortalecimento pessoal. Souza et al. (2003)SOUZA, Edinilsa R. et al. Análise temporal da mortalidade por causas externas no Brasil: décadas de 80 e 90. In: MINAYO, Maria C. S; SOUZA, Edinilsa R. (org.). Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. p. 83–108. afirmam que, em muitas situações, a vítima necessita apenas ser escutada para que possa ordenar e organizar a sua própria experiência. E mesmo que a solução para os seus problemas pareça distante ou até impossível, o mero falar traz a ela um alívio imediato.

Dessa forma, na atenção à criança ou ao adolescente vítima de violência, é recomendável uma abordagem de escuta, orientação e observação cuidadosa, capaz de promover o estabelecimento de vínculos de respeito, confiança, empatia e credibilidade, os quais facilitarão o planejamento das ações e a adesão dos sujeitos (Ferreira, 2005FERREIRA, Ana L. Acompanhamento de crianças vítimas de violência: desafios para o pediatra. Jornal de Pediatria, Rio de Janeiro, v. 81, n. 5, supl., p. 173–180, 2005.; Cocco, Silva e Jahn, 2010COCCO, Marta; SILVA, Ethel B.; JAHN, Alice C. Abordagem dos profissionais de saúde em instituições hospitalares a crianças e adolescentes vítimas de violência. Revista Eletrônica de Enfermagem, Goiânia, v. 12, n. 3, p. 491–472, 2010.).

Ideia Central - A diversidade de atitude das famílias

DSC - A princípio eles [a família] têm medo da gente: a primeira abordagem é difícil, tem que conversar muito para depois conseguir ganhar a confiança deles. Alguns têm mais resistência, cada família tem uma reação diferente. Há alguns que têm respeito, outros já ficam meio de lado, uns dão atenção e demonstram confiança, mas tem aqueles que nem querem receber a gente em casa.

Segundo Medeiros et al. (2006)MEDEIROS, Soraya M. et al. Condições de trabalho e enfermagem: a transversalidade do sofrimento no cotidiano. Revista Eletrônica de Enfermagem, Goiânia, v. 8, n. 2, p. 233–240, 2006., as diferentes condutas expostas pelas famílias são comuns, uma vez que distintas reações são intrínsecas a cada ser humano, ainda que ante uma mesma exposição. Considerando-se também que os próprios familiares, muitas vezes, constituem o protagonismo da violência infantil, o Conselho pode representar forte ameaça à composição do núcleo familiar e aos supostos benefícios atrelados a ele.

Outra questão a ser considerada são as incertezas e a desconfiança de muitos cidadãos nas políticas nacionais de proteção e em sua resolubilidade (Bazon, 2008BAZON, Mariana R. Violências contra crianças e adolescentes: análise de quatro anos de notificações feitas ao Conselho Tutelar na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 323–332, 2008.). Essa representação negativa faz os familiares apresentarem resistência inicial aos serviços prestados pelos órgãos de apoio à criança e ao adolescente, derivando em dificuldades de aceitabilidade e participação (Sauret et al., 2011SAURET, Gerard V. et al. Representações de profissionais da saúde sobre famílias com violência. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 11, n. 3, p. 265–273, 2011.), e, ainda, prejudicando e tornando mais difícil o trabalho dos conselheiros tutelares, justamente pela necessidade de ter que desconstruir essa imagem negativa pré-concebida pelas famílias sobre o seu serviço (Sauret et al., 2011SAURET, Gerard V. et al. Representações de profissionais da saúde sobre famílias com violência. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 11, n. 3, p. 265–273, 2011.).

Apesar dos esforços no sentido da moralização dos órgãos públicos brasileiros, admite-se que a maneira como as pessoas vivem e percebem a vida ocorre por meio de uma visão plural e cultural, a qual consiste em valores, crenças e visões de mundo situados em um tempo e espaço social.

Ideia Central - Inversão e distorção do papel social

DSC - A população acha que o Conselho Tutelar tem que tomar conta da situação, e geralmente não é assim! Cuidar do filho não é função nossa, a responsabilidade é dos pais, mas a maioria pensa que a gente veio para estragar… Os professores acham que o ECA veio para atrapalhar o serviço deles, para tirar a autoridade deles e dos próprios pais. Mas o Conselho veio para proteger, para defender a criança, nós não somos polícia da criança, nós não usamos farda, nem arma, nós estamos para proteger. O povo ainda não entendeu o que é o Conselho Tutelar, não sabe qual a sua verdadeira função. Eles não veem o que a gente faz, o que deixa de fazer, e não se interessam em saber também.

Dentre as inovações incorporadas ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 2010BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Construindo a Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e o Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 2011–2010. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.), estão alguns princípios que visam nortear a intervenção estatal no núcleo familiar. A responsabilidade parental, por exemplo, que busca impulsionar os pais a assumirem seus deveres para com a criança e o adolescente, e a prevalência da família, que fomenta medidas que os mantenham em sua família natural ou extensa ou que os reintegrem a ela, constituem, segundo os conselheiros, princípios com significação distorcida. As falas apreendidas expõem que os diferentes sujeitos da ação social frequentemente interpretam as ações dos conselheiros tutelares como fontes de empecilho e desmoralização perante crianças e adolescentes, e não como agentes de socialização familiar.

Trata-se aqui, também, de um emaranhado de crenças e valores socialmente arraigados, o qual, de certa forma, ainda legitima o direito da posse parental e do caráter arbitrário, autoritário e violento dos pais. Esse processo educativo histórico tem sido considerado, em todos os tempos, um instrumento válido de socialização infanto-juvenil, sendo, portanto, resposta comum e automática a desobediências e rebeldias em distintos espaços sociais (Faleiros e Faleiros, 2008FALEIROS, Vicente P.; FALEIROS, Eva S. Escola que protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação, 2008. p. 98.; Minayo, 2001MINAYO, Maria C. S. Violência contra crianças e adolescentes: questão social, questão de saúde. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 1, n. 2, p. 91–102, 2001.).

Vale ressaltar que o exercício dessa pedagogia perversa de submissão de crianças e adolescentes para a resolução de conflitos, em âmbito físico ou psicológico, vem sendo sistematicamente enfrentado por políticas públicas nacionais e internacionais. A Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes (Brasil, 2010BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Construindo a Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e o Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 2011–2010. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990BRASIL. Ministério da Justiça. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul.1990. Retificado em 27 set. 1990. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 17 nov. 2013.
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), que refletem premissas de convenções internacionais sobre os direitos da criança (Fundo das Nações Unidas para a Infância, s.d. e Organização das Nações Unidas, 1959ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração dos direitos da criança. Adotada pela Assembleia das Nações Unidas de 20 de novembro de 1959. Genebra: ONU, 1959.), são exemplos de políticas que asseguram que crianças e adolescentes tenham seus direitos humanos integralmente cumpridos, respeitados e protegidos.

Considerações finais

As concepções dos entrevistados explicitam o reconhecimento de alguns aspectos terminantes e inerentes à sua práxis, como a impotência ante os perturbadores cenários sociais a que são cotidianamente expostos, pela restrição do alcance de sua atuação, vinculada à escassez e à ineficácia das redes vigentes de proteção social, e, ainda, pela baixa adesão da população ao seu processo de trabalho. As percepções expostas evidenciaram também uma satisfação arraigada a desdobramentos laborais considerados concluídos e aos que interferem positivamente na violência infantojuvenil.

Essas considerações de conselheiros tutelares alertam sobre a necessidade de se observarem, prioritariamente, os instrumentos de proteção, prevenção e atenção integral a crianças e adolescentes vítimas de violência, sem a pretensão de uma formulação única, mas, apenas, de contribuir para o reconhecimento de parâmetros que norteiem a relação intersubjetiva entre o conselheiro tutelar e a sua práxis.

Diante do reconhecido papel atribuído aos conselheiros tutelares no sistema de atenção à infância e à juventude no Brasil, e na garantia de direitos de crianças e adolescentes, sugere-se o desenvolvimento de pesquisas com outras fontes metodológicas a fim de originar novos subsídios capazes de fomentar a estruturação e o fortalecimento das práticas desenvolvidas por esses atores sociais.

Notas

  • 6
    O termo ruptura social surge na literatura ora associado à perspectiva da exclusão como fragilização e quebra de laços sociais, ora como negação da própria identificação como ser social e humano. A primeira acepção foi considerada por este estudo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2016
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2014
  • Aceito
    22 Jun 2015
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