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EQUIPES DE ATENÇÃO PRIMÁRIA: DIFICULDADES NO CUIDADO DE PESSOAS COM DOENÇAS CRÔNICAS NÃO TRANSMISSÍVEIS

PRIMARY CARE TEAMS: DIFFICULTIES IN CARING FOR PEOPLE WITH CHRONIC DISEASES

EQUIPOS DE ATENCIÓN PRIMARIA: DIFICULTADES EN EL CUIDADO DE PERSONAS CON ENFERMEDADES CRÓNICAS NO TRANSMISIBLES

Resumo

Este estudo teve como objetivo conhecer a percepção de pessoas com doenças crônicas não transmissíveis sobre sua saúde, doença e cuidado, bem como analisar as práticas das equipes de atenção primária com esses pacientes. Tratou-se de uma pesquisa descritivo-exploratória, com abordagem qualitativa, desenvolvida em 2014 no município de Sapucaia do Sul, Rio Grande do Sul. A coleta de dados foi feita por meio de entrevista semiestruturada e discussão focal. A análise interpretativa baseou-se na hermenêutica. Os resultados retrataram o desestímulo em aderir à dieta e a insatisfação com as práticas de acompanhamento e com a rede de atenção. A consideração das dimensões culturais, simbólicas e sociais pode ajudar a repensar as propostas de dieta, e o planejamento dos serviços e a educação permanente abrem possibilidades para as melhorias no cuidado.

Palavras-chave
doença crônica; Estratégia Saúde da Família; atenção à saúde

Abstract

This study aimed to know the perception of people with chronic non communicable diseases on their health, illness and care, as well as to analyze the practices of the primary care teams with these patients. It was a descriptive and exploratory research project using a qualitative approach, and was carried out in 2014 in the city of Sapucaia do Sul, state of Rio Grande do Sul, Brazil. Data collection was made through semi-structured interviews and focus discussions. The interpretative analysis was based on hermeneutics. The results portrayed a disincentive to adhere to the prescribed diet and dissatisfaction with both the monitoring practices and the care network. Considering the cultural, symbolic, and social dimensions may help rethink proposed diets and service planning, and continuing education opens up possibilities for improvements in care.

Keywords
chronic disease; Family Health Strategy; health care

Resumen

Este estudio tuvo como objetivo conocer la percepción de las personas con enfermedades crónicas no transmisibles acerca de su salud, su enfermedad y su atención, y para analizar las prácticas de los equipos de atención primaria con estos pacientes. Se trató de una investigación descriptiva y exploratoria, con un enfoque cualitativo, desarrollada en 2014 en el municipio de Sapucaia do Sul, estado de Río Grande do Sul, Brasil. La recolección de datos se realizó mediante entrevista semiestructurada y discusión focal. El análisis interpretativo se basó en la hermenéutica. Los resultados reflejaron la falta de estímulo para adherir a la dieta y la insatisfacción con las prácticas de seguimiento y con la red de atención. La consideración de las dimensiones culturales, simbólicas y sociales puede ayudar a reconsiderar las propuestas de dieta, y la planificación de los servicios y la educación permanente plantean posibilidades para las mejoras en el cuidado.

Palabras clave
enfermedad crónica; Estrategia Salud de la Familia; atención de la salud

Introdução

O envelhecimento, a urbanização, as mudanças sociais e econômicas e a globalização impactaram o modo de viver, trabalhar e se alimentar da população. Como consequência, tem crescido o número das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs). Globalmente, quatro fatores de risco comportamentais estão por trás de mais de dois terços de todos os novos casos: dieta pouco saudável, tabagismo, sedentarismo e uso nocivo de álcool (Beaglehole et al., 2011BEAGLEHOLE, Robert et al. Priority actions for the non-communicable disease crisis. The Lancet, v. 9.775, n. 377, p. 1.438-1.447, 2011.).

As doenças crônicas são um importante problema de saúde, ocasionando 68% das mortes no mundo. Destas, 40% são consideradas prematuras, ocorrendo antes dos 70 anos. Às DCNTs se atribuem 80% das consultas em atenção primária e 60% das internações hospitalares. Elas são, atualmente, a maior causa de incapacidade (Duncan et al., 2012DUNCAN, Bruce B. et al. Doenças crônicas não transmissíveis no Brasil: prioridade para enfrentamento e investigação. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 46, p. 126-134, 2012.).

O desenvolvimento de DCNTs é complexo, tornando necessárias ações que não apenas foquem o indivíduo, mas que também levem em consideração os aspectos sociais, econômicos e culturais do problema. A negligência quanto às mudanças do estilo de vida faz com que aproximadamente 50% das pessoas com DCNTs não obtenham melhoras no contexto da doença (Opas, 2003ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE (OPAS). Doenças crônico-degenerativas e obesidade: estratégia mundial sobre alimentação saudável, atividade física e saúde. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2003. Disponível em: <www.opas.org.br/sistema/arquivos/d_cronic.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2014.
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).

A prevenção das DCNTs e de seus fatores de risco é fundamental para se evitar o crescimento dessas doenças e suas graves consequências para a qualidade de vida, pois, além de causar mortes, elas geram efeitos econômicos adversos para as famílias e as comunidades, assim como para o sistema de saúde, pois este ainda está baseado no modelo do cuidado a eventos agudos. Os sistemas de atenção à saúde precisam responder às condições agudas, mas necessitam principalmente estar preparados para atender às DCNTs (Mendes, 2012MENDES, Eugênio V. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da Estratégia da Saúde da Família. Brasília: Opas, 2012. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cuidado_condicoes_atencao_primaria_saude.pdf>. Acesso em: 27 dez. 2016.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
).

Silva, Cotta e Rosa (2013)SILVA, Luciana S.; COTTA, Rosângela M. M.; ROSA, Carla O. B. Estratégias de promoção da saúde e prevenção primária para enfrentamento das doenças crônicas: revisão sistemática. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 34, n. 5, p. 343-350, 2013. realizaram uma revisão sistemática tendo como foco a análise da produção científica sobre as estratégias de promoção da saúde e prevenção no combate às DCNTs em todo o mundo. No intuito de contemplar toda a produção científica, incluíram trabalhos publicados desde a década de 1970. Os resultados dessa revisão evidenciam que vários projetos de intervenção populacional foram desenvolvidos com o objetivo de promover mudanças comportamentais que reduzissem fatores de risco para DCNTs. Entretanto, é notória a ausência de novos projetos e estratégias de grande impacto para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis na atualidade.

No Brasil, o Ministério da Saúde, preocupado com a atual situação no setor, criou o Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) no Brasil 2011-2022 (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das DCNT no Brasil, 2011-2022. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2011. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/plano_acoes_enfrent_dcnt_2011.pdf>. Acesso em: 6 jan. 2017.
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). Esse plano visa preparar o país para enfrentar as doenças crônicas não transmissíveis nos próximos dez anos e tem o objetivo de promover o desenvolvimento e a implantação de políticas públicas efetivas, integradas, sustentáveis e baseadas em evidências para a prevenção e o controle das DCNTs e de seus fatores de risco (Malta, Neto e Silva-Junior, 2011MALTA, Deborah C.; NETO, Otaliba L. M.; SILVA-JUNIOR, Jarbas B. Apresentação do plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis no Brasil, 2011 a 2022. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, v. 20, n. 4, p. 425-438, 2011.).

Em meio às diferentes possibilidades experimentadas no âmbito da reorganização dos serviços de saúde, a Estratégia Saúde da Família (ESF) vem se consolidando como eixo reestruturante da atenção primária, colaborando para a produção do cuidado perante o estabelecimento do vínculo entre a comunidade e a equipe de saúde, por meio da escuta e da participação do usuário no planejamento e nas intervenções das ações realizadas, apropriando-se do uso de tecnologias em saúde que contribuam para a autonomia da pessoa (Nery et al., 2011NERY, Adriana A. et al. Saúde da família: visão dos usuários. Revista Enfermagem Uerj, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 397-402, 2011.).

Diante disso, o objetivo deste trabalho foi conhecer a percepção de pessoas com DCNTs sobre sua saúde, sua doença e seu cuidado, bem como analisar as práticas longitudinais oferecidas pelos profissionais a essas pessoas, cobertas pela ESF do município de Sapucaia do Sul, no estado do Rio Grande do Sul.

Aspectos metodológicos

A pesquisa foi do tipo qualitativa, descritivo-exploratória, desenvolvida no município de Sapucaia do Sul, no Rio Grande do Sul, no segundo semestre de 2014. A escolha do município deu-se não apenas por ele dispor de uma rede de atenção primária estruturada e organizada, mas também por ter introduzido a figura do apoiador institucional como agente de mediação entre a atenção e a gestão.

O município localiza-se na região metropolitana de Porto Alegre. Segundo o censo de 2010, Sapucaia do Sul tinha uma população de 130.957 pessoas, em uma área de unidade territorial de 58,309 quilômetros quadrados (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2010INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo demográfico 2010. Disponível em: <http://ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?lang=&codmun=432000&search=rio-grande-do-sul|sapucaia-do-sul|infograficos:-dados-gerais-do-municipio>. Acesso em: 27 dez. 2016.
http://ibge.gov.br/cidadesat/painel/pain...
). Conforme dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Consultas: equipes. Competência: 04/2012. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <http://cnes2.datasus.gov.br/Lista_Tot_Equipes.asp>. Acesso em: 27 dez. 2016.
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), no munícipio existem 12 equipes de ESF, um Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) e uma equipe de atenção domiciliar registrados (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Consultas: equipes. Competência: 04/2012. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <http://cnes2.datasus.gov.br/Lista_Tot_Equipes.asp>. Acesso em: 27 dez. 2016.
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).

Para o desenvolvimento da pesquisa, a Secretaria Municipal de Saúde indicou quatro equipes da ESF, tendo como critério de seleção uma equipe de cada uma das regiões de saúde. Os membros dessas equipes fizeram parte do universo empírico. Cada equipe indicou uma pessoa com DCNT, tendo como critério de escolha a presença de hipertensão arterial sistêmica (HAS) ou de diabetes mellitus (DM) e a indicação de pessoas de ambos os sexos. A opção pela abordagem da HAS e do DM deveu-se às seguintes características das duas doenças: fatores de risco, importância do tratamento não medicamentoso, cronicidade, complicações, ocorrência geralmente assintomática, difícil adesão ao tratamento e necessidade de controle rigoroso para evitar complicações, além de ambas serem doenças de alta prevalência (Brasil, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Manual da hipertensão arterial e diabetes mellitus. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. Disponível em: <www.ebah.com.br/content/ABAAAArxEAF/manual-hipertensao-arterial-diabetes-mellitus>. Acesso em: 6 jan. 2017.
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).

A coleta de dados desenvolveu-se em duas etapas. A primeira consistiu na realização de entrevistas semiestruturadas com as pessoas com DCNTs. A entrevista foi realizada na casa da pessoa, em dias e horários acordados entre os participantes, durando aproximadamente sessenta minutos e tendo como foco para as questões norteadoras: a descoberta da DCNT, as mudanças após a descoberta da doença, a busca pelo cuidado e a relação com a equipe da ESF.

Na segunda etapa, após a transcrição e a pré-análise das entrevistas, realizaram-se grupos focais com os membros das quatro equipes da ESF, tendo presentes elementos que apareceram nas entrevistas e como questão central as práticas das equipes no cuidado longitudinal das pessoas com DCNTs. A discussão focal foi realizada nas próprias unidades, durante o momento da reunião da equipe, com a participação de aproximadamente dez profissionais, entre os quais constavam médico, dentista, enfermeiro, técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde e profissionais do Nasf.

O tempo para cada discussão focal foi de aproximadamente noventa minutos, tendo como questões norteadoras: o modo como é realizada a atenção em saúde à pessoa com DCNT, as práticas longitudinais utilizadas pela equipe, adesão/não adesão ao tratamento, a relação da equipe com as pessoas com DCNTs e os problemas enfrentados por essas pessoas na rede de atenção à saúde do município.

A análise do material coletado, depois da transcrição, seguiu a perspectiva da hermenêutica dialética, na qual a realidade a ser estudada é interpretada numa contínua interação entre as partes e o todo dessa realidade. Nesse caso, as partes são os atores e as ações do processo de cuidado da pessoa com DCNT em sua relação com o todo que é o trabalho da atenção básica, caracterizado pela longitudinalidade. Essa interpretação é dialética, porque aponta para as contradições e os conflitos presentes nas práticas do cuidado longitudinal (Minayo, 2002MINAYO, Maria C. S. A hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: MINAYO, Maria C. S.; DESLANDES, Suely F. (orgs.). Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002. p. 83-107.). Depois de repetidas leituras das transcrições, os resultados emergiram, tendo presentes os objetivos da pesquisa.

Na apresentação dos resultados, as falas foram referidas pelas seguintes abreviaturas: GF1, 2, 3 e 4 (grupo focal com as equipes de saúde) e E1, 2, 3 e 4 (pessoas entrevistadas com DCNTs). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), com base na resolução n. 117, de 23 de agosto de 2013, por estar de acordo com as diretrizes éticas da resolução n. 466/2014.

Dificuldades nos cuidados da doença crônica na atenção primária à saúde

A análise do material coletado apontou para três aspectos básicos que incidem sobre esse tema: dificuldades advindas da falta do vínculo; da prática de resposta à demanda; e da desresponsabilização pelo usuário diante dos entraves na rede.

Dificuldades advindas da falta de vínculo

Uma das perguntas da entrevista para as pessoas com DCNTs era quanto ao cuidado prestado pelas equipes. Em um primeiro momento, os entrevistados responderam que o cuidado envolvia o comparecimento às consultas e a orientação de um estilo de vida saudável. Alegaram não ter dificuldade em aderir ao tratamento porque, segundo eles, poderiam controlar a doença com medicação, exercícios físicos e dieta, como referido nesta fala de um entrevistado: “Vai controlando com os remédios, com bastantes exercícios, comida com pouco sal, poucas gorduras, bastante verdura, carne mais magra” (E1).

Contudo, ao longo das entrevistas, algumas contradições surgiram, pois eles responderam que não existiam problemas em seguir as orientações, mas afirmaram dificuldades para manter uma adesão contínua, especialmente quando o assunto era dieta. Existia, em geral, uma distância entre aquilo que o usuário imaginava como o ideal e pensava que o profissional iria exigir-lhe quanto à alimentação e o que realmente acontecia no seu cotidiano alimentar. Por isso, Baldissera e colaboradores (2008)BALDISSERA, Vanessa D. A. et al. Mudanças vivenciadas por hipertensos após o diagnóstico da doença. Revista do Instituto de Ciências da Saúde, São Paulo, v. 26, n. 3, p. 304-309, 2008. dizem que existe uma dicotomia entre percepção e seguimento: a mudança na dieta é algo que se percebe como necessária, mas ela não acontece na prática das pessoas. As falas dos entrevistados demonstraram que o não seguimento da dieta era influenciado por dois elementos: a tradição de cardápio alimentar da família e a sensação de desconforto na convivência social devido à limitação quanto a determinados alimentos.

A HAS e o DM causam forte impacto na rotina. Nos relatos das pessoas com DCNTs, observou-se que a tradição familiar estava fortemente presente, como se observou na fala de um entrevistado: “Quando eu morava na casa dos meus pais, a mãe sempre fazia a comida forte de sal, linguiça e mortadela, eu comia muito” (E3). Por isso, a dieta prescrita pelos profissionais de saúde era considerada pelos entrevistados como insossa e pouco apetitosa, como referido por um entrevistado: “Me chamou atenção na dieta da doutora que eu podia comer só três grãos (sic) de uva. Eu disse: ‘Três grãozinhos (sic) de uva, pelo amor de Deus!’ Eu sempre gostei muito de uva, eu nunca segui essa dieta” (E4).

Barsaglini (2008)BARSAGLINI, Reni A. Análise socioantropológica da vivência do diabetes. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 26, n. 12, p. 563-577, 2008. ressalta que os hábitos decorrem de padrões de comportamento aprendidos ao longo do processo de socialização primária e são adquiridos em casa. No entanto, esses padrões, considerados normais para as pessoas com DCNTs, são vistos pelos profissionais como errados, porque diferem do padrão recomendado, o qual acaba burlado pelas pessoas, já que são aqueles hábitos primários os que servem de parâmetro para as práticas alimentares.

Os resultados mostraram que o fato de ter de realizar uma alimentação diferenciada dos demais pode provocar uma sensação de desconforto no ambiente de convivência social, conforme referiu o entrevistado: “Domingo, tem aquele churrasco, mas pra mim tem que ser aquela carne bem magrinha, não como mais por prazer” (E3). Esse desconforto ocorre por ocasião da alimentação em datas especiais e comemorativas, marcadas por refeições compartilhadas e diferenciadas da alimentação cotidiana, constituindo-se em ocasiões em que a comida, além de saciar a fome, nutre simbolicamente os elos e as obrigações familiares (Canesqui e Garcia, 2005CANESQUI, Ana M.; GARCIA, Rosa W. D. Uma introdução à reflexão sobre a abordagem sociocultural da alimentação. In: CANESQUI, Ana M.; GARCIA, Rosa W. D. (orgs.). Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. p. 9-18.). A não consideração desse aspecto simbólico da alimentação pelos profissionais ao prescreverem uma dieta é uma das causas do seu não seguimento e ineficácia.

A dificuldade das pessoas com DCNTs em seguir o tratamento também foi um problema referido pelas equipes da ESF. Embora necessária, a adesão ao tratamento não é um comportamento fácil de adquirir. Os profissionais da saúde são unânimes em afirmar que a maioria das pessoas não segue a dieta recomendada, como apareceu nesta fala: “É muito presente o hábito alimentar desregrado. Eles já chegam na unidade falando: ‘Eu exagerei no açúcar, na farinha’” (GF4).

As falas das equipes indicaram que o não seguimento da dieta era também influenciado por um terceiro elemento: a facilidade de acesso a alimentos calóricos industrialmente produzidos. Assim se expressaram:

Quando a gente vai ao mercado, tem refrigerantes aos montes, no caixa só tem balinha, bolachinhas, e todos esses produtos têm muito açúcar, gordura e sal, e isso acaba influenciando na vida diária dessas pessoas e influenciando também nos resultados dos exames (GF3).

É mais fácil comprar um salgadinho do que fazer uma alimentação correta (GF4).

O imaginário social alimentar criado pelo marketing é um terceiro elemento importante ao se pensar numa reeducação alimentar, além da tradição familiar e da alimentação como fator de convivência social. Assim, a dificuldade no seguimento da dieta estava presente tanto no discurso dos profissionais quanto no das pessoas com DCNTs, embora o seguimento da dieta adquirisse significados diferentes para ambos os grupos. Segundo Barsaglini (2008)BARSAGLINI, Reni A. Análise socioantropológica da vivência do diabetes. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 26, n. 12, p. 563-577, 2008., se para os primeiros há uma preocupação com o seguimento das prescrições médicas e dietéticas, os últimos norteiam-se por questões práticas e simbólicas referidas aos contextos culturais, sociais e familiares, que os incitam a promover ajustes nos padrões das prescrições, viabilizando um sentir-se bem em relação ao enfrentamento do adoecimento e buscando uma qualidade de vida integral que englobe, além dos aspectos físicos, dimensões psíquicas e simbólicas.

Ao se conhecer a realidade das pessoas com DCNTs e analisar as práticas longitudinais oferecidas pelas equipes, são referidos vários fatores que dificultam o não seguimento da dieta. Campos (2003)CAMPOS, Rosana O. Planejamento e razão instrumental: entre paredes e minotauros. In: CAMPOS, Rosana O. (org.). O planejamento no labirinto: uma viagem hermenêutica. São Paulo: Hucitec, 2003. p. 57-84. assinala que a dificuldade do acompanhamento longitudinal passa pela falta de uma relação mais próxima das pessoas com a equipe. Sem a criação de vínculo, é difícil para os profissionais desenvolverem ações educativas que motivem a mudança de comportamentos alimentares.

No local de pesquisa, não foi apontada diretamente essa falta de relação mais próxima com os usuários, mas ao se analisarem as práticas dos profissionais no acompanhamento longitudinal das pessoas com DCNTs, ficou clara a falta do vínculo, demonstrada na própria fala do usuário: “A médica me xinga, porque eu não me cuido” (E4); e na dos profissionais: “Mas daí quando já não adianta mais aí eu brigo, eu chamo atenção” (GF2). A reação do profissional em xingar e brigar demonstrou que não existe vínculo.

Dificuldades advindas da prática de resposta à demanda

Nesse tópico, verificou-se que as atividades coletivas de promoção e prevenção da saúde das equipes estavam organizadas em atividades semanais, realizadas por diferentes profissionais. As práticas educativas consistiam, principalmente, na realização de grupos temáticos, nos quais eram discutidos conteúdos específicos como reeducação alimentar e atividades físicas, e de grupos não temáticos, denominados de grupo de vida saudável e ação para crônicos. Os profissionais relataram:

A ação para crônicos é justamente para orientar o estilo de vida e prevenção de outros fatores de risco (GF3).

Tem o grupo de atividades físicas e um grupo de saúde da coluna que envolve exercícios também (GF1).

Ao longo das discussões dos grupos focais, foi possível perceber que as atividades coletivas restringiam-se, na verdade, à realização da aferição da pressão arterial, à verificação da glicemia e a orientações gerais de saúde, por meio de palestras, apresentação de vídeos e cartazes, como apareceu nestas falas dos profissionais:

No dia do grupo tem verificação de pressão, HGT [hemoglicoteste], depois tem apresentação de slides (GF4).

Esses grupos normalmente envolvem palestras e vídeos animados (GF3).

Os cartazes foram confeccionados pra explicar as causas da hipertensão, da diabetes e quais são suas consequências (GF2).

Como indicado nessas últimas falas, o processo utilizado nas atividades coletivas das equipes pesquisadas baseava-se em metodologias tradicionais de transmissão do conhecimento e não em um acompanhamento personalizado. Essas metodologias não se mostravam efetivas, e as próprias equipes se davam conta disso: “Os grupos têm pouca adesão, tu explica [sic], aí vira as costas, eles voltam a comer, a beber, a fumar.” Essa realidade se confirmou no relato das próprias pessoas com DCNTs, conforme o depoimento a seguir, mostrando a desmotivação de uma das entrevistadas: “Eles convidam pra ir participar, dão orientação, vem nutricionista, tem grupo de caminhada, mas eu relaxo muito em ir, eu acabo não indo, não dá vontade de ir” (E4). Esses depoimentos, tanto de profissionais quanto de usuários, apontaram para a insatisfação quanto às metodologias propostas pelos profissionais para o enfrentamento das DCNTs, devido à sua ineficácia.

Outro ponto crítico desse enfrentamento, referido pelos profissionais, foi a demanda: “É muita gente, fica difícil, queremos criar outras estratégias, mas é difícil” (GF2). Diante da demanda excessiva, os profissionais, nas consultas, apenas renovavam as receitas, sem maiores questionamentos sobre o prosseguimento e as dificuldades no tratamento, isto é, sem um acompanhamento personalizado, como apareceu na seguinte fala:

A pessoa foi diagnosticada que ela tem doença crônica, então ela recebe uma receita branca do medicamento contínuo que ela tem que utilizar para o tratamento, daí encerrou-se os seis meses, ela vem aqui e renova, não tem essa intervenção de parar, de ver como está o paciente, a quanto anda o tratamento dele (GF4).

Os próprios profissionais tinham consciência da realização ineficiente da consulta, e transpareceu a necessidade de se superar uma prática como resposta à demanda por procedimentos. Mais do que isso, tratava-se do propósito de recuperação da relação profissional-usuário, a fim de estabelecer vínculo que possibilitasse essas ações além da demanda.

As consultas, mesmo quando realizadas com mais tempo, estavam centradas em modelos prescritivos e autoritários, dizendo o que a pessoa precisava fazer, como se observou no seguinte relato: “A gente tenta sensibilizar as pessoas, falar, orientar, mas daí quando já não adianta mais aí eu brigo, eu chamo atenção” (GF2). Essa falta de uma relação mais próxima no acompanhamento se expressou também nas falas das pessoas com DCNTs: “A doutora me deu uma folha, com tudo que eu podia comer, mas eu nunca segui” (E3). A tensão experimentada quanto à falta de efeitos no enfrentamento da doença levava o profissional a responsabilizar o usuário por essa ineficácia, demonstrando a dificuldade de se estabelecer vínculo e se promoverem ações além da demanda.

O trabalho cotidiano das equipes, por se caracterizar pela longitudinalidade, dependia de mudanças no comportamento das pessoas com DCNTs por meio de práticas educativas. Mas a efetividade de práticas inovadoras, não desenvolvidas apenas como resposta à demanda, depende do vínculo que se cria entre a equipe e o usuário, indispensável para motivá-lo a assumir mudanças no seu estilo de vida. Como essas mudanças muitas vezes não aconteciam, os profissionais tendiam a utilizar discursos de ‘culpabilização’, desresponsabilizando a equipe e considerando o adoecimento como ‘falta de cuidado’ (GF2), por não se levar uma vida saudável nos moldes do estilo de vida recomendado pelas equipes, como apareceu na próxima fala: “Tem um paciente diabético que perdeu o pé e foi por culpa exclusiva dele e ele sabe disso, porque não foi por falta de orientação, de prevenção e de cuidado da equipe” (GF3). Os profissionais esperavam um comportamento correto das pessoas com condições crônicas, caso contrário, eram rotulados como “difíceis para se lidar” (GF4). Mas a dificuldade de lidar com esses casos vinha da dificuldade de se estabelecer vínculo, base para poder propor ações educativas de mudanças comportamentais, inovadoras em relação a uma prática pautada simplesmente pela demanda.

O fato de as pessoas com DCNTs serem consideradas “complicadas” (GF1) desmotivava as equipes a ajudá-las a transpor as barreiras que impediam a melhora do autocuidado. Nas palavras de um profissional:

A gente investe nos pacientes em educação, em orientação, e não adianta, se tenta várias formas para melhorar a adesão, mas não se tem sucesso e daí se fica frustrado, porque são poucos os que se consegue um resultado positivo (GF3).

Essa sensação criava um círculo vicioso, pois a falta de efeitos quanto à melhoria dos agravos das DCNTs levava os profissionais à desmotivação para investir nessas pessoas, impedindo a busca de meios inovadores e mais efetivos de educação em saúde. A dificuldade para buscar ações educativas mais efetivas e inovadoras tinha a sua base nesse círculo vicioso, cujo núcleo era a dificuldade de criar vínculo, base para poder investir no e motivar o usuário.

Dificuldades para se responsabilizar pelo usuário diante dos entraves na rede

Além da dificuldade do vínculo e da demanda, os entraves da rede de atenção à saúde eram um complicador a mais na produção do cuidado longitudinal. Teoricamente, as redes de atenção são propostas de uma forma perfeita na linha de cuidado da pessoa com DCNT; entretanto, no cotidiano, elas encontram dificuldades que ‘travam’ o seu fluxo assistencial, pois a pessoa não tem garantida a ‘integralidade do seu cuidado’ (Carnut e Faquim, 2014CARNUT, Leonardo; FAQUIM, Juliana P. S. Redes de atenção à saúde: conhecimentos fundamentais para o técnico em saúde bucal. Journal of Management & Primary Health Care, Olinda, v. 5, n. 1, p. 114-124, 2014.). As equipes e os entrevistados expressaram alguns problemas que aconteciam na prática da configuração das redes de atenção do município.

Uma queixa recorrente dos entrevistados foi a falta de medicação na rede básica de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Diante dessa dificuldade, muitos precisavam comprar o remédio, o que na realidade dessas pessoas tornava-se algo difícil, devido à situação financeira, como declarou o entrevistado: “É difícil encontrar, vai lá nunca tem remédio, tem que ir comprar, tirar dinheiro do bolso, gasto muito mais que cem reais, não é fácil” (E4). Nas equipes da ESF, essa falta de medicação foi comentada como um fator que pode resultar em abandono do tratamento: “Não tem medicação para dispensar para todos os pacientes; se não tem na farmácia popular, eles ficam sem tomar” (GF4).

Diante da falta de medicação, a equipe assumia uma posição espectadora, não reconhecendo o direito do usuário porque se desresponsabilizava pela situação: se não havia o remédio, eles ficavam sem tomar, abandonando o tratamento. Parece que isso não era um problema para os profissionais; apenas constatavam o fato. Quando existe vínculo, existe responsabilização.

As dificuldades de acesso a consultas médicas especializadas foram motivos enunciados pelas pessoas com DCNTs para procurarem serviços de saúde fora do SUS, como apareceu na próxima fala:

Demora muito as consultas com os especialistas. Tu vais lá, marca e demora mais que três meses. Duas vezes eu já tive que pagar médico particular, mas paguei por necessidade, porque no meu caso não dava para esperar (E2).

Ao discutir com as equipes sobre a demora no atendimento com especialistas, os profissionais responderam:

Ah, eu ultimamente faço uma coisa que não é muito agradável; eu digo para eles irem naquele JJ [clínica médica particular], que é uns cinquenta reais (GF4).

A pessoa quer se curar, mas se o sistema não ajuda, tu acabas dando uma opção de particular, que é cinquenta, sessenta pilas (GF3).

Essa ação dos profissionais desresponsabilizava a equipe, impedindo que ocorresse o vínculo. Dessa forma, a prática das equipes acabava perdendo a credibilidade, na ótica das pessoas com DCNTs, por falta de resolutividade, não lhes prestando um atendimento vinculado, integrado e humanizado.

As equipes assumiam a responsabilidade de que suas ações fossem resolutivas - o que incluía a criação de mecanismos capazes de proteger as pessoas com DCNTs contra gastos com consultas médicas particulares e a peregrinação por vários serviços de saúde. A situação referida pelos entrevistados demonstrou que o encaminhamento não era resolutivo, pois o seu atendimento não era efetivado, demonstrando falhas na rede de atenção à saúde. A tendência a dar ‘um jeitinho’ para resolver o problema por fora do sistema público impedia que essa dificuldade fosse discutida e enfrentada por usuários e profissionais, acionando o controle social.

Mudanças nas práticas das equipes de atenção primária

Os resultados demonstraram que as três dificuldades do cuidado longitudinal de pessoas com DCNTs estão inter-relacionadas, pois a falta de vínculo dificulta motivar para ações educativas efetivas na mudança de comportamentos que vão além da pura resposta à demanda, assim como enfrentar com o controle social os entraves do acompanhamento do usuário na rede de atenção. Essas dificuldades desmotivam e desresponsabilizam os profissionais no acompanhamento longitudinal dos usuários.

Um exemplo concreto dessa situação é o seguimento da dieta, correlacionado a três elementos: tradição familiar de alimentação, sensação de desconforto no ambiente de convivência social e facilidade de acesso a alimentos calóricos industrializados. Tendo presente que esses elementos incidem fortemente na questão da dieta, os profissionais precisam tomá-los como um desafio para a educação de hábitos saudáveis. Isso exige práticas inovadoras de motivação para esses hábitos, que só poderão acontecer se existir vínculo com o usuário. Entretanto, observou-se que os profissionais utilizavam metodologias tradicionais de transmissão do conhecimento centradas em modelos prescritivos e autoritários que impediam um acompanhamento personalizado. Os profissionais demonstraram insatisfação quanto aos resultados de sua prática - em particular, naquelas relativas à alimentação. Entretanto, não foi possível vislumbrar a busca de novas maneiras de se fazer educação em saúde.

De acordo com Pimentel e colaboradores (2013)PIMENTEL, Viviane R. M. et al. Alimentação e nutrição no contexto da atenção básica e da promoção da saúde. Demetra: Alimentação, Nutrição & Saúde, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 487-498, 2013., pensar em uma alimentação saudável no âmbito da atenção básica vai além das escolhas individuais. As equipes da ESF precisam atentar para o fato de que os hábitos alimentares são o resultado de múltiplas relações entre o biológico, o simbólico e o sociocultural. Para tanto, será necessário superar o paradigma que considera o espaço da doença como lugar para o enfrentamento das DCNTs – e assumir a promoção da saúde como paradigma de atuação e agente de transformação dos estilos de vida pela atuação da potência dos indivíduos que ative a sua qualidade e plenitude de vida. Tal panorama só será possível mediante um acompanhamento personalizado do usuário, pautado pelo vínculo com o profissional.

Os resultados deste estudo corroboraram os achados de Salci e colaboradores (2013)SALCI, Maria A. et al. Educação em saúde e suas perspectivas teóricas: algumas reflexões. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 22, n. 1, p. 224-230, 2013. em relação à prática das equipes de atenção primária. Destaca-se que a prática dos profissionais da saúde ainda encontra-se focada na doença e que a educação em saúde, como um instrumento de promoção da saúde, vem sendo realizada com a utilização de abordagens educativas tradicionais, em que a cultura não é tomada como referência. Nesse sentido, é imprescindível desenvolver um processo educativo que parta do reconhecimento dessa realidade cultural, possibilitando que tais abordagens construam um novo conhecimento – o que requer uma concepção pedagógica em que o diálogo e o respeito pelo outro sejam o referencial de atuação dos profissionais da saúde.

Alves e Aerts (2011)ALVES, Gehysa G.; AERTS, Denise. As práticas educativas em saúde e a Estratégia Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 319-325, 2011. afirmam que o cuidado consiste em não reproduzir a lógica que responsabiliza individualmente o sujeito pela sua DCNT, invertendo e reformulando os processos de educação em saúde, centrados em palestras prescritivas, conforme citado pelas equipes – como se apenas o profissional de saúde tivesse voz e soubesse como é possível enfrentar o problema, em processos educativos dialogados que construam metas pactuadas com as pessoas.

As equipes relataram que a grande demanda de usuários no serviço e a pouca participação das pessoas com DCNTs as impediam de criar e propor ações educativas inovadoras, reduzindo a educação em saúde a práticas prescritivas e autoritárias que desvinculavam as pessoas de seu contexto de vida. Para construir uma prática inovadora que vá além da demanda por procedimentos e proponha ações educativas que motivem a mudança de comportamento, é indispensável o estabelecimento de vínculo.

De acordo com Teixeira e colaboradores (2013)TEIXEIRA, Clotilde et al. O vínculo entre usuários e equipes em duas unidades de saúde da família em um município do estado do Rio de Janeiro. Revista de APS, Juiz de Fora, v. 16, n. 4, p. 444-454, 2013., a criação de vínculo entre a equipe e a comunidade promove uma relação de confiança e respeito que garante maior qualidade do serviço prestado. Seguindo essa lógica, a unidade de saúde da família passaria a organizar a sua demanda de acordo com as necessidades e prioridades, e não estaria somente atrelada à ordem de chegada e à transcrição de receitas, evitando-se, na medida do possível, filas desnecessárias e perda de tempo.

Nesse sentido, torna-se importante também introduzir a questão da educação permanente em saúde. Stroschein e Zocche (2011)STROSCHEIN, Karina A.; ZOCCHE, Denise A. A. Educação permanente nos serviços de saúde: um estudo sobre as experiências realizadas no Brasil. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 505-519, nov. 2011., por meio de uma revisão integrativa, analisaram seis experiências de educação permanente nos serviços de saúde no Brasil e verificaram que são poucas aquelas que apresentam aderência ao conceito de educação permanente. Cabe, assim, aos profissionais da saúde o compromisso de interrogar os problemas do processo de trabalho juntamente com os usuários e os gestores.

Outra questão intimamente relacionada às práticas educativas é a necessidade do planejamento dessas práticas como uma exigência da própria educação permanente. Denota-se que os achados deste estudo corroboraram os resultados da pesquisa de Andrade e colaboradores (2013)ANDRADE, Ana C. V. et al. Planejamento das ações educativas pela equipe multiprofissional da Estratégia Saúde da Família. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 439-449, 2013., que analisou como são planejadas as ações de educação em saúde pelas equipes da ESF pertencentes a uma regional de saúde de Santa Catarina. Evidenciaram-se muitas dificuldades para planejar e desenvolver as ações educativas. Entre elas, estão: adesão da comunidade, falta de recursos materiais e falta de apoio por parte dos gestores do município.

Assim, é necessário ter em mente que o planejamento das práticas dos serviços de saúde converge para a resolutividade, trazendo respostas concretas e efetivas para as necessidades da população, não apenas elaborando atividades que respondam a um figurino preestabelecido. O planejamento do atendimento a grupos de pessoas com DM e HAS deve ter como objetivo não tanto a programação de determinadas atividades, mas a resolutividade delas sobre a saúde dessas pessoas e o impacto das ações planejadas sobre os indicadores de saúde da população. Nesse sentido, a resolutividade dependerá não tanto das atividades, mas do engajamento e da presença da subjetividade dessas pessoas nas atividades.

A efetividade da atenção primária depende também do acesso a consultas e procedimentos disponíveis na rede de atenção à saúde. As equipes e as pessoas com DCNTs vivem cotidianamente problemas e entraves com os serviços da rede. Por exemplo, na consulta de uma pessoa com HAS, acompanhada pela equipe, aparece a necessidade de saber se ela tem risco de doença cardíaca, pois apresenta histórico na família. O médico precisa encaminhá-la a um serviço especializado. Porém, como a média de espera para uma consulta com especialista pela rede no local da pesquisa é de três meses, a pessoa é encaminhada, muitas vezes, pela própria equipe, a uma clínica médica particular, como solução de emergência – o que dificulta o sistema de referência e contrarreferência, pois a clínica particular não sabe do itinerário de tratamento do usuário, já que não o acompanha longitudinalmente.

A solução buscada pelas equipes fora do sistema público fere o direito constitucional à saúde, impede o alcance da integralidade do atendimento, interrompe o vínculo e o cuidado longitudinal, perpetuando a ineficiência da rede, porque não permite a sua discussão e o enfrentamento pelo controle social. A deficiência no planejamento participativo e regionalizado no local de estudo pode representar um fator que colabora para as dificuldades de acesso a serviços especializados na rede de atenção à saúde.

Barbiani e colaboradores (2014)BARBIANI, Rosangela et al. A produção científica sobre acesso no âmbito do Sistema Único de Saúde do Brasil: avanços, limites e desafios. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 23, n. 3, p. 855-868, 2014. analisaram pesquisas qualitativas e relatos de experiências publicados de 2002 a 2011 e identificaram que limites ao acesso ocorrem em todos os níveis de atenção, desde a porta de entrada até os serviços especializados e de alta complexidade, em geral associados às relações de acolhimento e vínculo. Conformam uma visão panorâmica dos desacertos do sistema, de seus desafios, das expectativas dos usuários, como também das contradições de ambos, isto é, do sistema e dos usuários.

Considerações finais

O desenvolvimento do estudo aqui apresentado permitiu identificar dificuldades quanto ao vínculo, à demanda e aos entraves na rede como limitadores de um cuidado longitudinal mais efetivo e resolutivo. A pesquisa mostrou que os profissionais estavam insatisfeitos quanto às práticas de acompanhamento, baseadas num modelo prescritivo e autoritário de propostas de comportamentos para o controle das DCNTs. A assunção desse modelo demonstrou a falta de vínculo com o usuário para motivar esses comportamentos. Tal abordagem desprovida de vínculo não alcança os efeitos desejados, por reduzir a situação do usuário a uma patologia a ser enfrentada e não focar o cuidado na promoção da saúde. Essas dificuldades ainda estão acrescidas pelos problemas e entraves com os serviços da rede de atenção à saúde do município, o que dificulta o acesso a medicamentos necessários e o encaminhamento para a consulta de especialidades.

Nesse contexto, é fundamental que essas dificuldades não sejam resolvidas com soluções ‘quebra-galhos’ fora do sistema, que desresponsabilizam e quebram o vínculo, mas discutidas e pactuadas pela gestão, equipe e usuários, para que o cuidado longitudinal possa acontecer. Destaca-se a importância do planejamento dos serviços de saúde por meio da capacitação e do comprometimento das equipes nos processos de educação permanente.

Por fim, o trabalho sugeriu a necessidade de se desenvolverem mais estudos que analisem o cuidado longitudinal das pessoas com doenças crônicas não transmissíveis, pois este é um dos principais desafios do sistema de saúde nos próximos anos, permitindo, assim, identificar os ‘nós’ críticos que dificultam a qualidade da assistência e a melhoria de vida para milhões de pessoas com DCNTs no Brasil.

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    Este artigo é resultado da dissertação de mestrado intitulada As práticas das equipes de atenção primária no cuidado longitudinal de pessoas com doenças crônicas não transmissíveis (Silocchi, 2014SILOCCHI, Cassiane. A prática de equipes de atenção primária no cuidado longitudinal de pessoas com doenças crônicas não transmissíveis. 67 fls. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, 2014. Disponível em: <www.repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/UNISINOS/4284/Cassiane%20Silocchi.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 6 jan. 2017.
    www.repositorio.jesuita.org.br/bitstream...
    ), apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unisinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul em 2014.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2017
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2016
  • Aceito
    25 Ago 2016
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