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AFIRMANDO UM ÉTHOS DE PESQUISADOR EM SAÚDE: PROCESSOS PARTICIPATIVOS DE RESTITUIÇÃO DE RESULTADOS DE PESQUISAS

AFFIRMING AN ETHOS OF HEALTH RESEARCHERS: PARTICIPATORY PROCESSES OF RESEARCH RESULTS RESTITUTION

AFIRMANDO UN ETHOS DE INVESTIGADOR EN SALUD: PROCEDIMIENTOS PARTICIPATIVOS DE RESTITUCIÓN DE RESULTADOS DE INVESTIGACIÓN

Resumo

Este estudo procurou abrir discussão metodológica nas pesquisas em saúde a partir de mal-estar provocado por diretriz dominante, para a qual há uma realidade pronta a ser desvendada, cabendo ao pesquisador acessá-la. Descrevemos um cultivo do processo investigativo por meio da devolutiva de resultados de pesquisa epidemiológica em hospitais públicos no Rio de Janeiro, entre 2010 e 2013. A devolutiva privilegiou o diálogo com trabalhadores da enfermagem segundo o conceito de restituição da análise institucional. Realizamos grupos de discussão de resultados e encontros de saúde do trabalhador de enfermagem, reunindo gestores e trabalhadores na pactuação de ações no campo da saúde do trabalhador. A participação desses atores transformou modos de pesquisar-intervir, considerando que práticas em saúde se fazem no encontro entre sujeitos. Mediante ferramentas comumente usadas para informação dos resultados, caminhamos da devolução meramente informativa à restituição participativa. Ao forjar de forma coletiva o processo de restituição, tensionamos pesquisas que tomam de forma dicotômica relações pesquisador-pesquisado, entendendo que metodologias e instrumentos surgem num processo de coengendramento. Tratou-se de transformar preocupações éticas dos pesquisadores em saúde em um éthos de pesquisador em saúde, segundo entendimento de que a pesquisa acontece no coletivo, que inclui pesquisadores e pesquisados na produção de um comum.

saúde do trabalhador; psicologia; restituição de resultados

Abstract

The article opens a methodological discussion on health research prompted by discomfort caused by dominant directrix for which there is a reality ready to be unveiled, and the expectation is that the researcher will access it. We describe a cultivation of an investigative process by means of the return of results of an epidemiological research in Rio de Janeiro, Brazil, between 2010 and 2013. The return prioritized dialogue with the nursing teams, framed by the concept of restitution, from French Institutional Analysis. We discussion groups on findings and meetings on nursing workers’ health that brought together hospital managers and workers to agree measures on worker’s health field. Participation by all stakeholders changed manners of researching and intervening, on the basis that health practices are produced in encounters among subjects. Drawing on tools commonly used only to report fin-dings, we walked from the merely informative return to participative restitution. In shaping the return process collectively, the intention was to challenge researches such as those that consider a dichotomy between researchers and researched, since we consider that methodologies and instruments arise in process of co-engenderment. In that respect, it comes to transform health researchers ’ ethical concerns into a health researchers’ ethos, from the understanding that research happens in the collective, which includes researchers and researched in the production of a common.

workers´ health; psychology, restitution of results

Resumen

El artículo abre una discusión metodológica en las investigaciones del área de la salud a partir del mal estar causado por la directriz dominante, existiendo una realidad preparada para ser revelada, cuyo acceso le compete al investigador. A través de la restitución de resultados, describimos el desarrollo del proceso investigativo hecho en Rio de Janeiro, Brasil, entre 2010 y 2013. Dicha restitución favoreció el diálogo con los trabajadores de enfermería a partir del concepto de restitución del Análisis Institucional Francés. Con el fin de establecer acciones en pro de los trabajadores, organizamos grupos de discusión de resultados y encuentros sobre la salud del trabajador de enfermería, reuniendo a los gestores de los hospitales y a los trabajadores. La participación de todos los actores transformó el método de investigación-intervención, teniendo en cuenta que las prácticas en el área de la salud se llevan a cabo entre sujetos. Hemos desarrollado resultados en el campo de la salud del trabajador a partir de las herramientas comúnmente utilizadas para la información de resultados. Al concebir colectivamente el proceso de restitución, realizamos investigaciones que toman, de forma dicotómica, relaciones tales como investigador-investigado, ya que entendemos que las metodologías y las herramientas surgen en el proceso de engendramiento conjunto. En este sentido, se trata de transformar las preocupaciones éticas de los investigadores de la salud, en un ethos del investigador de la salud, desde el entendimiento de que la investigación se lleva a cabo en el colectivo, que incluye a investigadores e investigado en la producción de un campo común.

salud del trabajador; psicología; restitución de resultados

Introdução

Este artigo nasce de uma discussão metodológica no âmbito das pesquisas em saúde, iniciada sem a pretensão de dizer a última palavra. Emergiu de inquietações advindas de nossa experiência no campo da saúde coletiva e, em especial, no nomeado campo de saúde do trabalhador. E também de um certo mal-estar provocado por uma diretriz dominante de pesquisa com viés positivista, que indica um modo hegemônico de pensamento marcado por uma visada segundo a qual há uma realidade pronta a ser pesquisada, cabendo ao pesquisador, apenas, a utilização de métodos e estratégias adequados para acessá-la.

A experiência do grupo de pesquisa Cronobiologia, Organização do Trabalho e Saúde, do Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde (LEAS), do Instituto Oswaldo Cruz (IOC)/Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é o nosso solo empírico. Há cerca de dez anos, as pesquisadoras desse grupo vêm construindo um caminho investigativo que busca indagar alguns estudos quantitativos e epidemiológicos que consideram a restituição/devolução de resultados de pesquisas como uma etapa, um momento estanque e pontual, em que, ao final das investigações, os pesquisadores ‘devolvem’, ‘restituem’, o conjunto de resultados obtidos ao longo do processo. Essa conduta está marcada por uma postulação binarista na qual pesquisadores e demais participantes envolvidos são tomados como entidades separadas, e o campo empírico parece conter uma verdade objetiva passível de ser encontrada e devolvida aos participantes, entendidos como objetos substancializados e espectadores alijados de um processo do qual, a nosso ver, também são autores e, portanto, de cuja criação participaram.

A devolutiva nos processos de pesquisa nesse grupo do LEAS toma outra direção: não é considerada como um ato de destinação localizada de dados produzidos, já que a restituição de resultados não é função precípua e exclusiva dos pesquisadores. Restituir o quê? Para quê? Para quem? A proposta é proceder a um cultivo do processo investigativo que viabilize e afirme a participação de todos os envolvidos na pesquisa em cada etapa do percurso, numa operação que transforma modos de pesquisar-intervir, abrindo novos cursos éticos por onde a vida pode se movimentar e se transformar.

O conjunto de estudos desenvolvido nesse grupo de pesquisa entende a devolutiva como uma dimensão importante em seus trabalhos e também como um momento de pesquisa, o que implica incluir atividades que tomam o diálogo e a participação dos trabalhadores como direção ética, fazendo dessa dimensão da pesquisa um campo problemático. Dessa forma, a restituição de resultados se atualiza como o que força a pensar sobre o lugar de pesquisador e objeto de pesquisa, sobre o processo de produção de conhecimento, sobre como tal processo efetivamente intervém em nosso viver. Conforme César e colaboradores (2016, p. 94), esse curso ético colapsa uma lógica de produção de conhecimento unilateral e de base representacional que desfaz o pesquisador como aquele que cumula e detém os resultados da pesquisa. Questiona os resultados como propriedade constituída por informação acabada, forçando a pensar que, na correlação com a pesquisa, determinados mundos são produzidos. Nessa direção, os dados não são coletados em uma realidade já posta; são produzidos no percurso da pesquisa.

Neste artigo, tratamos de uma dessas pesquisas que compõem os estudos do grupo, intitulada A restituição de resultados como proposta de pesquisa-intervenção em saúde do trabalhador: contribuições para a ampliação do poder de agir de profissionais de enfermagem de hospitais municipais do RJ (Pessanha, 2016PESSANHA, Joseane. A restituição de resultados como proposta de pesquisa-intervenção em saúde do trabalhador: contribuições para a ampliação do poder de agir de profissionais de enfermagem de hospitais municipais do Rio de Janeiro. 2016. 186f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2016.). A diretriz de análise foi a de tomar a devolutiva na sua dimensão processual, uma vez que não se restringiu a um momento ou a um pretenso ‘retorno ao campo’ para apresentar resultados.

Para contextualizar a pesquisa-intervenção aqui descrita, apresentamos uma breve linha do tempo que descreve as ações do grupo voltadas para a restituição de resultados de pesquisa. O grupo de pesquisa investiga a saúde do trabalhador de enfermagem de hospitais públicos com base em estudos quantitativos e qualitativos. Desde 2000, busca coadunar essas diferentes abordagens, construindo então um novo modo de pesquisar que extrapola aquele esperado das abordagens epidemiológicas tradicionais, que restringem a restituição a uma informação sobre os resultados produzidos numa pesquisa; mas não se configura, de forma estrita, no que propõem as pesquisas baseadas na análise institucional. A nosso ver, com essa pesquisa, fazemos uso de algumas ferramentas disponíveis na análise institucional para ampliar as possibilidades de uma pesquisa epidemiológica.

As primeiras investigações em saúde do trabalhador de enfermagem: de 2000 a 2004

Em 2000, o grupo realizou seu primeiro estudo (quantitativo, censitário) com profissionais de enfermagem de dois hospitais públicos, vinculados à Fiocruz, com base em questionário acerca de sua saúde, trabalho e vida. A regra estabelecida pelo grupo, no que se referia aos resultados das pesquisas, era, mediante um compromisso ético, devolver os resultados aos participantes, antes de iniciar uma nova etapa de produção dos dados. A partir, então, dos resultados dessa primeira investigação e de interesse do próprio grupo de pesquisa, a etapa seguinte de investigação foi acerca do sono desses profissionais, com o uso de um instrumento de avaliação do sono em 2001 e 2002. Seus resultados foram distribuídos em um fôlder genérico, que trazia informações sobre hábitos para melhoria da qualidade do sono, especialmente dos trabalhadores noturnos. Para aqueles que usaram o aparelho, o folheto ainda continha o gráfico demonstrativo do resultado obtido.

Entre 2003 e 2004, retornamos aos hospitais com a proposta de uma nova investigação acerca do uso do tempo desses profissionais. Partiu-se de uma abordagem quantitativa oriunda das ciências sociais, na qual os trabalhadores preenchiam uma espécie de diário das suas atividades ao longo das 24 horas, por cinco dias, no mínimo. Nesse momento, foi comum ouvirmos a avaliação por parte de alguns trabalhadores no sentido de participarem de uma pesquisa em saúde do trabalhador segundo a qual não ‘sentiam’ os resultados em melhorias de sua saúde no trabalho. Ao encontro dessa queixa, havia o incômodo de pesquisadoras do grupo no que se referia a possíveis contribuições da pesquisa para as relações saúde-trabalho. No caso da pesquisa sobre o uso do tempo, não cabia uma devolução de resultados individual e personalizada, pois seria a repetição do diário que os trabalhadores haviam preenchido. Em 2004, esses resultados foram devolvidos por meio de palestras realizadas pela equipe de pesquisa, apresentando os resultados gerais aos trabalhadores dos hospitais envolvidos.

Nesse cenário de queixa dos trabalhadores em sinergia com a preocupação de algumas pesquisadoras da equipe acerca de possíveis contribuições para as relações saúde-trabalho em enfermagem e mudanças nos métodos de devolução dos resultados, tomou-se o momento da devolução dos resultados como um momento forte de pesquisa, segundo o conceito de restituição dos resultados, oriundo da análise institucional. O grupo passou a desenvolver seu processo de pesquisar sem abandonar as abordagens epidemiológicas, mas utilizando os resultados destas não mais como dados encerrados em si, mas como ferramentas para trazer ao debate questões de saúde do trabalhador dos profissionais participantes da pesquisa, visando a mudanças em seu processo de trabalho e saúde.

A sinergia entre diferentes métodos de pesquisa para a saúde do trabalhador de enfermagem: nossas experiências de restituição de resultados

Entre 2006 e 2007 tivemos um estudo epidemiológico censitário nos dois hospitais da Fiocruz e em um hospital geral de grande porte. Com base nesse estudo tivemos as primeiras atividades de restituição de resultados (2007 a 2009), que se deram em dois desses hospitais mediante dinâmicas que envolviam a troca de saberes entre a equipe de pesquisa e as equipes de enfermagem (Pessanha, Silva e Rotenberg, 2013PESSANHA, Joseane; SILVA, Claudia O.; ROTENBERG, Lucia. Uma experiência de restituição de resultados em saúde do trabalhador. Ecos: Estudos Contemporâneos da Subjetividade, Campos dos Goytacazes, v. 3, n. 1, p. 33-44, 2013.). A partir dessa primeira restituição participativa, percebemos a importância de incluir atores que ocupavam papéis em outras instâncias da hierarquia nas devolutivas seguintes (gerentes, por exemplo), já que almejávamos por possíveis mudanças no cotidiano do trabalho e saúde em enfermagem.

Em 2010 e 2011, realizamos o estudo da saúde dos enfermeiros (ESE), que abordou as condições de saúde, trabalho e vida de enfermeiros(as) dos 18 maiores hospitais públicos do Rio de Janeiro (de esferas federal, estadual e municipal). Em todos esses hospitais realizamos a devolução dos resultados gerais por meio de folheto específico para cada hospital, além de palestras participativas naqueles que se interessaram pela atividade. Nos hospitais da esfera municipal, pudemos desenvolver um conjunto mais amplo de atividades de restituição, que constituiu o objeto de análise do estudo apresentado neste artigo.

A restituição de resultados como proposta de pesquisa-intervenção em saúde do trabalhador

A pesquisa-intervenção ora descrita decorreu de limitações observadas em relação à atividade de restituição participativa anterior no que concerne a mudanças efetivas nas condições de trabalho e saúde nos hospitais. Assim, convidamos para o diálogo os gerentes de enfermagem, gerentes dos hospitais e gerentes da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-Rio). Consideramos, dessa forma, a necessidade de estabelecer parcerias que pudessem favorecer mudanças no trabalho prescrito, e não pactuar alianças que desconsiderassem os trabalhadores. Nesse sentido, atuamos inspirados em práticas da ergonomia como os comitês de pilotagem, o que nos pareceu ainda mais relevante em se tratando de intervenção em hospital, ambiente no qual o peso da hierarquia é considerável (Silva, 1998SILVA, Claudia O. Trabalho e subjetividade no hospital geral. Psicologia: Ciência e Profissão, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 26-33, 1998.).

As ações incluíram atividades que privilegiavam o diálogo e a participação dos trabalhadores, segundo o conceito de restituição da análise institucional francesa. A restituição designa um compartilhamento de resultados visando à produção de novos resultados, vistos como dados em construção e que não se encerram com a etapa de coleta e análise unilateral pela equipe de pesquisa (Lourau, 1993LOURAU René. René Lourau na Uerj: análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: Uerj, 1993.). Dessa forma, é vista como um momento importante e tão relevante quanto os outros que compõem seus estudos, e se deu a partir, principalmente, de grupos de discussão de resultados instituídos como dispositivo de análise. Tais grupos se configuraram como método para restituição dos resultados da pesquisa epidemiológica “Estudo da saúde dos enfermeiros” (Griep et al., 2013GRIEP, Rosane H. et al. Enfermeiros dos grandes hospitais públicos no Rio de Janeiro: características sociodemográficas e relacionadas ao trabalho. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 66, n. esp., p. 151-157, 2013.). Reuniram diferentes atores relacionados ao processo de trabalho em enfermagem para discutir e propor ações em prol da saúde desses trabalhadores nos hospitais participantes das pesquisas. Buscou-se, nesse percurso, um exercício transversal que moveu e produziu direções do pesquisar em dois hospitais municipais do Rio de Janeiro.

Tivemos diferentes etapas de pesquisa nesses hospitais: a própria etapa epidemiológica “Estudo da saúde dos enfermeiros (ESE)”; a distribuição dos folhetos de resultados; palestras interativas com os trabalhadores da enfermagem; grupos de discussão de resultados; encontros de saúde do trabalhador de enfermagem. Todas as etapas desse processo encontram-se descritas com maior detalhamento na tese de doutorado de Pessanha (2016)PESSANHA, Joseane. A restituição de resultados como proposta de pesquisa-intervenção em saúde do trabalhador: contribuições para a ampliação do poder de agir de profissionais de enfermagem de hospitais municipais do Rio de Janeiro. 2016. 186f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2016..

Com relação às atividades de restituição dos resultados, a primeira etapa, de cunho informativo, foi a distribuição dos folhetos de resultados, que era o compromisso básico firmado entre a equipe de pesquisa e os hospitais, mediante uma postura ética de divulgação dos resultados com os participantes. Os folhetos continham resultados gerais sobre saúde, trabalho e condições socioeconômicas do grupo de enfermeiros de cada hospital e foram distribuídos em todos os plantões, prioritariamente aos enfermeiros.

Seguiam-se as palestras interativas, nas quais realizavam-se debates acerca da saúde dos trabalhadores de enfermagem, a partir dos resultados em conexão com o cotidiano desses trabalhadores. Durante as palestras interativas, buscamos iniciar o diálogo entre os saberes da academia e da experiência dos trabalhadores. Para tanto, utilizamos resultados do estudo da saúde dos enfermeiros (estudo epidemiológico do qual partimos para essa pesquisa-intervenção) e de investigações anteriores com toda a equipe de enfermagem (e não só enfermeiros, como no caso do ESE) – porque entendemos a participação dialógica de toda a equipe de enfermagem como essencial para quaisquer desdobramentos relacionados à saúde e ao trabalho em enfermagem. Além de marcarem uma etapa de transição entre as etapas informativa e participativa, essas palestras interativas serviram como um primeiro momento de integração dos demais profissionais de enfermagem às atividades de pesquisa, originalmente realizadas apenas com enfermeiros (questionário e distribuição de folhetos).

Em continuidade, tivemos os grupos de discussão de resultados, nos quais buscamos debater as relações saúde-trabalho dos profissionais de enfermagem dessas unidades com base nos resultados de pesquisas e do saber dos trabalhadores. Com os grupos, a partir principalmente dos resultados da pesquisa (resultados estatísticos, em formato de gráficos de pizza e tabelas, e falas oriundas das palestras interativas) e da vivência dos trabalhadores, apostamos na potência do debate entre os saberes da experiência e da academia como ferramenta para ampliação dos saberes e fazeres dos sujeitos envolvidos na pesquisa. Essas atividades incluíam a produção de um cartaz, que buscava sintetizar o que tinha sido discutido e seria posteriormente exposto nos encontros que reuniriam os hospitais municipais. Tivemos ainda um grupo com os gerentes dos hospitais nesses mesmos moldes, visando principalmente sensibilizá-los para os futuros encontros.

Em continuação aos grupos de discussão dos resultados, tivemos os encontros de saúde do trabalhador de enfermagem, que reuniram a equipe de pesquisa, os trabalhadores de enfermagem dos hospitais municipais envolvidos na pesquisa, os gerentes desses hospitais (seus diretores gerais e diretoras de enfermagem) e representantes da gerência da SMS-Rio, vinculados a instâncias parceiras da equipe de pesquisa para realização dessas atividades (Subsecretaria dos Hospitais de Urgência e Emergência; Subsecretaria de Vigilância Sanitária, em especial o Núcleo de Saúde do Trabalhador a ela vinculado; e Coordenadoria de Gestão de Pessoas).

Foram realizados dois encontros. No primeiro, tínhamos como meta a construção coletiva de propostas de ações, considerando a saúde e o trabalho. Para tanto, os atores envolvidos deveriam eleger um problema considerado relevante para a saúde no trabalho e que pudesse ser enfrentado mediante a pactuação entre os atores de um dado hospital, partindo do pressuposto de que “uma proposta construída coletivamente tem mais chances de dar certo”.5 5 Essa afirmação constava como título do cartaz produzido pelos grupos de cada hospital nesse primeiro encontro, que continha o problema eleito e sua respectiva proposta de solução. Dessa maneira, em cada hospital elegeram-se o(s) problema(s) e a(s) respectiva(s) ação(ões). No segundo encontro, buscamos acompanhar o encaminhamento (ou não) dessas propostas nos hospitais. Nesse encontro, as gerentes de enfermagem de cada hospital foram convidadas a apresentar aos participantes os encaminhamentos das ações previstas nas suas unidades hospitalares. As possíveis contribuições dessa pesquisa-intervenção para a ampliação do poder de agir dos trabalhadores de enfermagem foram analisadas no estudo de Pessanha (2016)PESSANHA, Joseane. A restituição de resultados como proposta de pesquisa-intervenção em saúde do trabalhador: contribuições para a ampliação do poder de agir de profissionais de enfermagem de hospitais municipais do Rio de Janeiro. 2016. 186f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2016..

Partilhando o pesquisar entre trabalhadores e pesquisadores: construindo o interesse pela restituição dos resultados

Durante toda a pesquisa tivemos o desafio de compartilhá-la com os trabalhadores, e não tomá-la como útil apenas para as pesquisadoras. Assim, outro aspecto mereceu destaque: as questões referentes à pesquisa não diziam respeito apenas aos pesquisadores, já que, assim procedendo, o que se anulava era o interesse dos participantes. “Como poderemos esperar constituir um saber interessante se não podemos encontrar a maneira como essas questões podem – ou não – interessar àqueles a que nos dirigimos?” (Despret, 2011DESPRET, Vinciane. Leitura etnopsicológica do segredo. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 23, n. 1, p. 5-28, jan./abr. 2011., p. 23).

Nessa direção, realizamos atividades anteriores às etapas previstas na pesquisa-intervenção, buscando também estimular a participação dos trabalhadores a partir da clareza das atividades e seus objetivos. Visitamos os setores do hospital, em plantões anteriores àquele no qual a atividade iria acontecer, para distribuição de cartazes de divulgação. Nessas ocasiões, explicávamos a atividade (programação e objetivo) àqueles trabalhadores que encontrávamos. Além dessas visitas, poucos minutos antes do início das atividades, realizávamos uma busca ativa para relembrar os trabalhadores, ou ainda divulgá-las para algum trabalhador que não tivesse tomado conhecimento.

Também chamávamos a atenção de que se tratava de atividades já acordadas com a gerência de enfermagem da unidade, que concordara em liberar aqueles que se interessassem em participar no seu horário de trabalho. Essas visitas eram feitas em todos os plantões e turnos, buscando encontrar o maior número de trabalhadores possível. Do mesmo modo, pensando em favorecer a participação dos interessados, as atividades aconteceram em todos os plantões e turnos, e seus locais e horários foram previamente acordados com os trabalhadores, considerando suas atividades de trabalho. Assim, as atividades de pesquisa aconteceram nos próprios hospitais, e a participação dos trabalhadores era prevista dentro do seu horário de trabalho.

Acreditamos que (i) a realização das atividades de pesquisa anteriores aos grupos, (ii) as atividades prévias a elas, especialmente a busca ativa de participantes imediatamente antes do início das atividades, e (iii) a parceria mais fortalecida com instâncias como a gerência de enfermagem, que também ajudavam na divulgação das atividades aos trabalhadores, favoreceram a presença e a participação deles. Ressaltamos ainda que era nossa preocupação favorecer uma relação de confiança entre trabalhadores e pesquisadoras. Dessa maneira, nos momentos de qualquer contato com os trabalhadores, atuamos com uma postura de humildade epistemológica, em coerência com as nossas bases teórico-metodológicas que não pressupunham uma relação de superioridade entre pesquisadores e pesquisados. Assim, ao considerar o percurso da pesquisa, a postura das pesquisadoras e a clareza dos objetivos das atividades propostas nos hospitais, acreditamos que pudemos contribuir para uma relação de confiança entre trabalhadores e pesquisadoras e consequente estreitamento da parceria, o que acreditamos ter favorecido a participação nas atividades da pesquisa.

Outros encaminhamentos da pesquisa nos permitiram perceber esse ‘éthos’ do pesquisar que entrelaça conhecer e fazer, pesquisar e intervir. Por exemplo: a realização do grupo de discussão dos resultados com os gerentes foi planejada a partir de uma conversa com os parceiros da SMS-Rio, na qual propusemos a realização dos encontros de saúde do trabalhador de enfermagem dos hospitais de urgência e emergência da SMS-Rio como continuidade das atividades previstas no processo de restituição dos resultados (Pessanha, 2016PESSANHA, Joseane. A restituição de resultados como proposta de pesquisa-intervenção em saúde do trabalhador: contribuições para a ampliação do poder de agir de profissionais de enfermagem de hospitais municipais do Rio de Janeiro. 2016. 186f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2016.). O titular da Coordenadoria de Gestão de Pessoas da secretaria avaliou, nessa ocasião, o quão relevante seria a realização de um grupo de discussão dos resultados com os gerentes de enfermagem e geral dos hospitais, principalmente para sensibilizá-los para as questões que buscaríamos discutir nesses encontros. Assim, além dos grupos com os trabalhadores da assistência em enfermagem dos hospitais, realizamos o grupo com os gerentes, nos quais discutiram-se (a partir dos folhetos de resultados de cada hospital e sua vivência) os principais problemas relacionados à saúde do trabalhador de enfermagem desses hospitais.

A nosso ver, essa modalidade de restituição, em especial a realização dos grupos, facultou aos pesquisadores e trabalhadores dos hospitais compartilhar e produzir conhecimento acerca da saúde do trabalhador de enfermagem nos hospitais escolhidos como campo empírico para a investigação e, então, ampliar os resultados obtidos com a etapa epidemiológica da análise sobre a saúde dos trabalhadores da enfermagem. Assim procedendo, a restituição de resultados teve outro estatuto: tornou-se o próprio campo problemático. E por quê? Porque a restituição de resultados deslocou-se do lugar que lhe é tradicionalmente concedido especialmente em pesquisas epidemiológicas, ou seja, uma etapa da pesquisa, atualizando-se como o que força a pensar. Logo, houve devolutiva durante todo o percurso da investigação, tomada na sua dimensão processual. “Há interferência nos pontos de vista, nas posturas, no surgir de sujeitos e mundos ao longo do processo investigativo, daí podermos afirmar que se trata de uma pesquisa-intervenção” (César et al., 2016CÉSAR, Janaína M. et al. A devolutiva como exercício ético-político do pesquisar. In: BARROS, Maria E. B.; CÉSAR, Janaína M.; HEBERT, Fabio (orgs.). Saúde e trabalho em educação: desafios do pesquisar. Vitória: Edufes, 2016. p. 175-200., p. 95).

Da ética em pesquisas em saúde ao éthos de pesquisador em saúde

Abre-se aqui um diálogo com as discussões atuais no campo da saúde coletiva, em que a preocupação com as questões éticas relacionadas à devolução dos resultados aos participantes se dá em outro patamar. Na obra Ethics and epidemiology, Smith e Schulte (2009)SMITH, Andrea; SCHULTE, Paul A. Ethical issues in the interaction with research subjects and the disclosure of results. In: CUGHLIN, Steven S.; BEAUCHAMP, Tom L.; WEED, Douglas L. (eds.). Ethics and Epidemiology. New York: Oxford Scholarship Online, 2009. p. 128-146. criticam a ausência da divulgação de resultados de estudos epidemiológicos, vista como obrigação ética em relação aos pesquisados, e de forma mais ampla à sociedade, incluindo as agências de fomento e instituições educacionais.

No Brasil, a devolução de resultados de estudos epidemiológicos voltados para aspectos clínicos, quando ocorre, geralmente se dá por meio de atividades de cunho educativo/instrutivo. Por exemplo: em estudo com pré-escolares de municípios baianos, a equipe de pesquisa informava às mães sobre a anemia nas crianças por meio de reuniões com a comunidade e palestras nas quais davam explicações sobre como prevenir a anemia (Assis et al., 1997ASSIS, Ana M. O. et al. Distribuição da anemia em pré-escolares do semiárido da Bahia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 237-244, 1997.). Em outra investigação, a equipe de pesquisa discutia com as mães interessadas a importância da vigilância alimentar e nutricional para o crescimento das crianças (Ribas et al., 1999RIBAS, Dulce L. B. et al. Saúde e estado nutricional infantil de uma população da região Centro-Oeste do Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 33, n. 4, p. 358-365, 1999.). Trata-se, em ambos os casos, de abordagens que buscam disponibilizar à população recomendações em benefício da saúde das crianças, com foco na identificação de problemas sem, contudo, ensejar discussões em direções transformadoras.

No campo das relações trabalho-saúde no Brasil, as experiências de devolução de resultados de pesquisas epidemiológicas também são raramente descritas. Em outros países, essa discussão vem sendo empreendida com maior intensidade,6 6 No contexto norte-americano, por exemplo, há uma vasta literatura sobre a devolução de resultados de estudos na área da saúde ocupacional. Bayer (1986) discute as relações entre a lei e a ética em situações que envolvem substâncias tóxicas com foco em grande polêmica que envolveu entidades ligadas à saúde e segurança no trabalho, sindicatos e empresas. O autor argumenta sobre o direito dos trabalhadores de conhecer a extensão dos riscos, descrevendo controvérsias que envolveram a comunicação ou não, formas de notificação e responsabilidade por transmitir aos trabalhadores os riscos decorrentes do trabalho. Para Fujishiro, Mobley e Lehman (2013), no cerne dessa discussão está a obrigação de informar aos trabalhadores sobre os riscos no trabalho não somente como medida de proteção à saúde, mas também como imperativo ético. tendo como cerne a concepção de que informar os trabalhadores sobre os riscos ocupacionais é um imperativo ético dos pesquisadores (Fujishiro, Mobley e Lehman, 2013FUJISHIRO, Kaori; MOBLEY, Amy; LEHMAN, Everett. Communicating risks after exposure has ended. New Solut, Lowell, v. 23, n. 2, p. 347-367, 2013.).

Cabe destacar, no entanto, que a informação aos trabalhadores sobre os resultados de pesquisas, embora necessária e relevante, não é suficiente para dar conta do caráter complexo e conflitivo do campo saúde do trabalhador, tal como desenvolvido no Brasil (Minayo-Gomez e Thedim-Costa, 1997MINAYO-GOMEZ, Carlos; THEDIM-COSTA, Sonia M. F. A construção do campo da saúde do trabalhador: percursos e dilemas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2 supl., p. 21-32, 1997.). A nosso ver, práticas que se restringem apenas à informação dos resultados, mais comuns no campo da saúde ocupacional, implicam desconsiderar os trabalhadores como sujeitos políticos, detentores de um saber transformador (Minayo-Gomez, 2011MINAYO-GOMEZ, Carlos. Introdução. Campo da saúde do trabalhador: trajetória, configuração e transformações. In: MINAYO-GOMEZ, Carlos; MACHADO, Jorge M. H.; PENA, Paulo G. L. (orgs.). Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011. p. 23-34.). Já as práticas de restituição como as que têm sido realizadas em nossas pesquisas são coerentes com as chamadas clínicas do trabalho, que “nos fornecem ferramentas para nos aproximar do saber-fazer produzido pelos trabalhadores em seu cotidiano de trabalho, ou seja, de como os trabalhadores não apenas adaptam-se ao trabalho, mas o criam e recriam permanentemente” (Silva e Ramminger, 2014SILVA, Claudia O.; RAMMINGER, Tatiana. O trabalho como operador de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 12, p. 4.751-4.758, dez. 2014., p. 4.751). Tais práticas nos pareceram mais afeitas ao campo da saúde do trabalhador, que tem como compromisso, além do diagnóstico das situações de trabalho e saúde, a sua transformação na linha da vigilância em saúde do trabalhador, tal como propõem Vasconcellos, Minayo-Gomez e Machado (2014)VASCONCELLOS, Luiz C. F.; MINAYO-GOMEZ, Carlos; MACHADO, Jorge M. H. Entre o definido e o por fazer na vigilância em saúde do trabalhador. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 12, p. 4.617-4.626, dez. 2014.. É essa capacidade de transformação que buscamos afirmar e exercitar por meio do processo de restituição empreendido.

Podemos pontuar que as experiências descritas neste artigo, segundo uma lógica diferenciada daquela majoritariamente adotada nessa modalidade de investigação, produziram efeitos em todo o grupo de pesquisa. Assim, ao longo de uma década, a busca por pesquisas-intervenção voltadas para a saúde do trabalhador reflete mudanças nas práticas de pesquisa nesse grupo. Com base em ferramentas como gráficos e tabelas, que comumente são usadas apenas para informação dos resultados obtidos, ousamos dizer que temos conseguido cultivar resultados no campo da saúde do trabalhador. Afirmamos isso ao passo que, sob influência das próprias devolutivas, o grupo tem modificado seu escopo no sentido da transição da coleta para a colheita e o cultivo dos dados, realizados a muitas mãos, de pesquisadores, trabalhadores e gerentes, e ao longo do processo de pesquisar. Percebemos, nesse grupo, movimentos no sentido de uma problematização, em suas ações, com relação aos possíveis modos de fazer pesquisas, considerando as suas potências. Podemos notar, então, um processo de construção em mão dupla, em que pesquisador e objeto de pesquisa se (re)criam mutuamente.

Ao forjar de forma coletiva esse modo de restituir resultados, tensionam-se pesquisas que tomam de forma dicotômica essa relação pesquisador-pesquisado, sujeito e objeto de pesquisa, apoiadas na crença de que existem condições adequadas que podem ser decifradas. Tal processo dicotômico produz alguns efeitos para os quais precisamos estar atentos. Um deles é tornar procedimentos, instrumentos e metodologias de pesquisa como pressupostos. O conhecer não teria relação com o modo como se conhece e tampouco com os personagens-atores-autores envolvidos na pesquisa. Entendemos que abordagens metodológicas, instrumentos e técnicas surgem de mundos em construção, num processo de coengendramento. Nesse sentido, pode-se dizer que se trata de transformar as preocupações éticas das pesquisas em saúde em um éthos de pesquisador em saúde.

Considerações finais

Na experiência descrita, a restituição dos resultados não foi reduzida a um momento do trabalho investigativo, mas entendida como cultivo de um modo de fazer pesquisa, afirmando-se como pesquisa participativa, como pesquisa-intervenção, como o desenvolvimento de um éthos de pesquisador, como um éthos do pesquisar. Tal procedimento acionou um exercício ético que implicou o acompanhamento constante dos efeitos produzidos na intervenção. E como nos dizem Passos e Benevides, a intervenção é o próprio plano em que se realiza um “mergulho na experiência que agencia sujeitos, objetos, teoria e prática num plano de produção denominado plano de coemergência” (Passos e Benevides, 2009aPASSOS, Eduardo; BENEVIDES, Regina. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (orgs.). Pistas do método cartográfico: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009a. p. 17-31., p. 17).

Com isso, acolheram-se os desafios de tomar, como orientação do pesquisar, não hipóteses ou verdades a priori acerca da realidade, tomada como sempre já dada, mas priorizou-se um saber que emerge do fazer e que, ao mesmo tempo, modifica esse fazer, buscando-se transformar para conhecer. Essa posição narrativa (Passos e Benevides, 2009bPASSOS, Eduardo; BENEVIDES, Regina. Por uma política da narratividade. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (orgs.). Pistas do método cartográfico: pesquisa intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009b. p. 150-171.), esse éthos de pesquisa, está necessariamente articulado com políticas de pesquisa, com políticas de saúde, uma vez que ao tomarmos essa posição estamos nos implicando politicamente. Portanto, estamos afirmando que essa direção metodológica não se reduz a um problema teórico, mas ganha o estatuto de problema político.

Entretanto, cabe destacar que não estamos afirmando que tal caminho esteja garantido ou que não dependa de um exercício de pensamento e análise. Discutir a inseparabilidade entre conhecer e fazer, pesquisar e intervir não assegura essa atitude. Não há salvo-conduto que nos garanta um modo de nos conduzir que não proceda a uma separação entre conhecer e transformar. Muitas vezes, em um momento ou outro da pesquisa, essa direção se confunde e podemos perder de vista essa dimensão processual, de forma que pesquisador e sujeitos de pesquisa são tratados de modos separados e sólidos, desvinculando o conhecer do transformar. Então, se não temos garantias, é necessário um persistente exercício de análise dos lugares ocupados ao longo do processo. Isso não pode ser tomado como erro, contradição ou desmerecimento. A restituição dos resultados de forma participativa constitui-se como estratégia para uma pesquisa de cunho processualista na afirmação desse éthos, na avaliação dos processos, no cultivo da experiência. Devolver os produtos ao seu processo de constituição é um procedimento importante quando buscamos transformar para conhecer uma realidade, pois pressupõe que não consideramos essa realidade como sempre já dada.

Mas por que seria importante essa direção do transformar para conhecer? Entendemos que, do contrário, as possibilidades de mudança se restringem bastante. Esse exercício que se tornou hegemônico em pesquisa, esse caminho que se impõe, com base em pesquisas com viés positivista, afirma um sujeito que já porta capacidade de conhecer. Então o que falta? Técnicas, metodologias e conhecimento já estão disponíveis, bastando acessá-los? A realidade está dada, dependendo apenas de tecnologias adequadas para apreendê-la? É só encontrar o caminho?

Transformar para conhecer implica fazer um outro exercício de análise. Conhecimento não se detém! Ele é construído. O que implica pensar mundo e sujeito como já dados? Na pesquisa realizada, foi possível perceber o quanto a restituição dos resultados a partir dessa posição narrativa possibilitou um exercício de avaliação das práticas de pesquisadores e trabalhadores da saúde, dos instrumentos e dispositivos utilizados. O encontro entre sujeitos e objeto da pesquisa nos impôs outro sentido para o rigor metodológico (Passos e Benevides, 2009bPASSOS, Eduardo; BENEVIDES, Regina. Por uma política da narratividade. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (orgs.). Pistas do método cartográfico: pesquisa intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009b. p. 150-171.), uma vez que nos forçou a pensar as condições de possibilidade de um exercício crítico-analítico. Fez-nos ver, ainda, o modo como essa experimentação indagou a problemática da restituição de resultados de pesquisa e o modo como tem sido tratada no âmbito das metodologias de pesquisa em saúde. Cabe lembrar também que as pesquisas em saúde apresentam um aspecto importante e singular que não pode ser desprezado: as práticas em saúde se fazem sempre no encontro entre sujeitos e, principalmente, no que se expressa nesse encontro. Entendemos que no trabalho em pesquisa os dados produzidos indicam maneiras de narrar, que indicam, reafirmamos, certo éthos.

Referências

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  • 5
    Essa afirmação constava como título do cartaz produzido pelos grupos de cada hospital nesse primeiro encontro, que continha o problema eleito e sua respectiva proposta de solução.
  • 6
    No contexto norte-americano, por exemplo, há uma vasta literatura sobre a devolução de resultados de estudos na área da saúde ocupacional. Bayer (1986)BAYER, Ronald. Notifying workers at risk: the politics of the right-to-know. American Journal of Public Health, Washington, v. 76, n. 11, p. 1.352-1.356, 1986. discute as relações entre a lei e a ética em situações que envolvem substâncias tóxicas com foco em grande polêmica que envolveu entidades ligadas à saúde e segurança no trabalho, sindicatos e empresas. O autor argumenta sobre o direito dos trabalhadores de conhecer a extensão dos riscos, descrevendo controvérsias que envolveram a comunicação ou não, formas de notificação e responsabilidade por transmitir aos trabalhadores os riscos decorrentes do trabalho. Para Fujishiro, Mobley e Lehman (2013)FUJISHIRO, Kaori; MOBLEY, Amy; LEHMAN, Everett. Communicating risks after exposure has ended. New Solut, Lowell, v. 23, n. 2, p. 347-367, 2013., no cerne dessa discussão está a obrigação de informar aos trabalhadores sobre os riscos no trabalho não somente como medida de proteção à saúde, mas também como imperativo ético.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Ago 2018
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2016
  • Aceito
    20 Dez 2016
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