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Astana reacende disputas sobre o significado da Atenção Primária à Saúde

Dois termos são frequentemente associados aos efeitos mais imediatos da Conferência de Alma-Ata: inspiração e orientação. Com base nesta percepção, questionamos: o que inspira a Conferência Global sobre Atenção Primária à Saúde (APS), realizada em outubro de 2018, em Astana, no Cazaquistão? O que a orienta, qual o sentido que pretende imprimir aos sistemas de saúde, com fundamento nas revisões sobre a Atenção Primária à Saúde (APS)?

São questionamentos que partem do princípio de que os processos históricos mais gerais, bem como os específicos do campo da saúde irão efetivamente resultar em mudanças nos sistemas de saúde. A Conferência de Astana deve ser pensada como um evento político que recoloca em cena tensões sobre os sentidos da APS, reconhecida como estratégia fundamental, eficaz e efetiva, para o alcance de melhores níveis de saúde. Pode-se dizer que o reconhecimento tanto dos avanços concretamente alcançados pelos países quanto da distância entre o potencial e o realizado foram bases para recompor o compromisso em torno da APS. Essa é uma clara inspiração.

Entretanto, é na disputa de sentidos (Cueto, 2018CUETO, Marcos. O legado de Alma-Ata, 40 anos depois (Editorial). Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 845-848, set.-dez. 2018 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462018000300845&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 2 jan. 2019
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) que se vislumbra a configuração de diferentes orientações para o planejamento das políticas de saúde, território de concretização das inspirações e aspirações. Para nos aproximarmos desse cenário, é possível considerar não apenas a Declaração de Astana, mas também os diversos materiais – vídeos com entrevistas, apresentação de painéis, falas mais destacadas, posicionamento expressos em documentos paralelamente divulgados – que compuseram a discussão na conferência (WHO/ Unicef, 2018World Health Organization (WHO); United Nations Children’s Fund (UNICEF). Global Conference on primary health care. Astana, 2018. Disponível em: <https://www.who.int/primary-health/conference-phc>. Acesso em: 9 jan. 2018.
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; PHM, 2018People’s Health Movement (PHM). Alternative Civil Society Astana Statement on Primary Health Care. Astana, 2018. Disponível em: <http://phmovement.org/alternative-civil-society-astana-declaration-on-primary-health-care/>. Acesso em: 2 jan. 2019.
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) e que permanecerão alimentando o debate cujos desdobramentos incluem, por exemplo, a forma como a APS será valorizada e sua conexão com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a Agenda 2030, além de eventos de caráter técnico e político como a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em que a APS será objeto central.

Desde a chamada da conferência, é possível distinguir a articulação de temas que condensam as divergências mais profundas em torno da ideia de Cobertura Universal de Saúde (em inglês, Universal Health Coverage-UHC). Pensada a partir de uma perspectiva alinhada com a normatividade neoliberal, a UHC se estabelece como uma orientação em conflito direto com a ideia de determinantes sociais de saúde. Nesse sentido, orienta para uma APS que se desvia do conceito ampliado de saúde, sustentando-se na clássica e nunca plenamente ultrapassada compreensão de saúde como ausência de doença. Neste caso, ‘acesso’ restringe-se aos serviços e ações de saúde e não a níveis mais elevados de qualidade de vida. Num contexto em que a racionalidade economicista prevalece, a UHC facilmente se converte em renovação da lógica da APS seletiva.

A ênfase e a frequência com que algumas ideias se apresentam, igualmente revelam as entrelinhas dessa tensão entre os sentidos. No ideário da APS abrangente, intersetorialidade e multissetorialidade nos orientam para ações políticas que ratificam a complexidade do processo saúde-doença em decorrência da qual é necessário intervir em outros níveis da vida social, onde se situam determinantes da saúde. Em Astana, sem necessariamente confrontar essa ideia, a multissetorialidade foi frequentemente empregada para referir-se à importância do setor privado. Por essa vertente, pode-se depreender como orientação prioritária a incorporação do setor privado na APS. A responsabilidade do Estado com a saúde como direito humano perde nitidez, e a ideia das ‘escolhas de governo’ ganha foco.

Integradas a esse debate, as ideias de responsabilização e autoria merecem uma reflexão. Ainda que seja possível uma interpretação mais favorável e próxima à concepção de participação social, na declaração de Astana, no item ‘empoderar indivíduos e comunidades’, a visão de produção de saúde expressa no texto assume traços individualizantes. Em vez de agregar a capacidade popular de compreender suas necessidades de saúde e desenhar encaminhamentos, o texto pode ser lido como uma orientação para a transferência de responsabilidade. Tal ideia, não raro, se associa à culpabilização das pessoas pela precariedade de suas condições de vida e saúde, o que historicamente se dá por meio da negação das iniquidades sociais e do compromisso político em ultrapassá-las.

Um olhar crítico e, em certa medida, preocupante sobre a conferência de Astana não nos leva a desconsiderá-la como um marco no processo de luta por sentidos que fortaleçam o caráter público e universal da saúde. Ao incorporar posições com sentidos conflitantes e interesses de improvável conciliação, a declaração de Astana elucida indefinições e portanto nos indica a persistência desses espaços de disputa.

Torna-se essencial apostar na mudança de consciência dos povos sobre a importância de defender e reivindicar coletivamente a saúde como direito. Desse movimento fazem parte os trabalhadores da saúde, que, ao longo das quatro décadas pós-Alma-Ata, foram formados e vivenciaram seu exercício profissional em relação direta e cotidiana com as pessoas nos territórios, consolidando um entendimento sobre o valor da APS na construção de formas de atender necessidades de saúde e oferecer cuidados compatíveis com a dignidade humana.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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