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AGENTES DE COMBATE ÀS ENDEMIAS: CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES PROFISSIONAIS NO CONTROLE DA DENGUE

ENDEMIC COMBAT AGENTS: CONSTRUCTION OF PROFESSIONAL IDENTITIES IN THE CONTROL OF DENGUE

AGENTES DE COMBATE A LAS ENDEMIAS: CONSTRUCCIÓN DE IDENTIDADES PROFESIONALES EN EL CONTROL DEL DENGUE

Resumo

O estudo aqui apresentado objetivou compreender como são construídas as identidades profissionais do agente de combate às endemias. Esse trabalhador tem papel estratégico na prevenção e no controle das arboviroses como dengue, chikungunya, zika e febre amarela, que constituem problemas graves de saúde pública no Brasil. A pesquisa fundamentou-se nos conceitos de qualificação e identidade profissional, referenciados pela sociologia do trabalho. Tratou-se de um estudo analítico, realizado entre 2014 e 2017, de abordagem qualitativa, realizado a partir de grupos focais, com trinta agentes de combate às endemias de um distrito sanitário de Contagem, Minas Gerais. Os dados foram analisados segundo os pressupostos da análise de conteúdo. A maioria dos agentes era mulher e com ensino médio completo. Os resultados apontaram que há um desconhecimento, por parte dos agentes, sobre o protocolo de execução de suas atividades de trabalho e dos conteúdos técnicos referentes à dengue. O processo ensino-aprendizagem ocorre por meio da oralidade e de processos de trabalho não formais. O não recebimento de crachás apresentou-se como um problema de identidade. Concluiu-se que as identidades profissionais dos agentes foram construídas e reconstruídas sem uma sólida formação profissional e em condições precárias de trabalho. O reconhecimento, como aspecto da identidade, ocorre no plano afetivo e não somente nos processos de trabalho.

agentes de combate às endemias; formação profissional em saúde; identidade profissional; dengue

Abstract

The aim of the present study was to understand how the professional identities of the endemic combat agents are built. The endemic combat agent has a strategic role in the prevention and control of arboviruses such as dengue, chikungunya, zika, and yellow fever, which are serious public health problems in Brazil. The research was based on the concepts of qualification and professional identity, referenced by the sociology of work. This was an analytical study, conducted between 2014 and 2017, with a qualitative approach, carried out from focus groups, with 30 endemic combat agents from a sanitary district in Contagem (state of Minas Gerais). The data were analyzed according to the assumptions of the content analysis. Most of the agents were women and had completed high school. The results pointed out that there is a lack of knowledge on the part of the agents about the protocol for the execution of their work activities and about the technical contents related to dengue. The teaching-learning process occurs orally and through non-formal work processes. Failure to receive badges presented itself as an identity problem. It was concluded that the professional identities of the agents were built and rebuilt without a solid professional training and in precarious work conditions. Recognition, as an aspect of identity, occurs on the affective plane and not only in the work processes.

endemic combat agents; health professional education; professional identity; dengue

Resumen

El estudio aquí presentado tuvo como objetivo comprender como son construidas las identidades profesionales del agente de combate a las endemias. Ese trabajador tiene un papel estratégico en la prevención y control de las arbovirosis como dngue, chikunguña, zika y fiebre amarilla, que constituyen problemas graves de salud pública en Brasil. La encuesta se fundamentó en los conceptos de calificación e identidad profesional, referenciados por la sociología del trabajo. Se trató de un estudio analítico, realizado entre 2014 y 2017, de abordaje cualitativo, realizado a partir de grupos focales, con treinta agentes de combate a las endemias de un distrito sanitario de Contagem (Minas Gerais). Los datos fueron analizados según los presupuestos de análisis de contenido. La mayoría de los agentes eran mujer y con enseñanza secundaria completa. Los resultados apuntaron que hay un desconocimiento, por parte de los agentes, sobre el protocolo de ejecución de sus actividades de trabajo y de los contenidos técnicos referentes al dengue. El proceso enseñanza-aprendizaje ocurre por medio de la oralidad y de procesos de trabajo no formales. El no recibimiento de credenciales se presentó como un problema de identidad. Se concluyó que las identidades profesionales de los agentes fueron construidas y reconstruidas sin una sólida formación profesional y en condiciones precarias de trabajo. El reconocimiento, como aspecto de la identidad, se realiza en el plano afectivo y no solamente en los procesos de trabajo.

agentes de combate a las endemias; formación profesional en salud; identidad profesional; dengue

Introdução

A dengue e outras arboviroses, como chikungunya, zika e febre amarela, constituem hoje problemas graves de saúde pública no Brasil. Cada qual com seus processos históricos, sociais e epidemiológicos distintos, impõem grandes desafios sociais e de saúde nos territórios onde estão presentes. Transmitidas pelo mesmo vetor, o Aedes aegypti , desde o início do século XX elas apresentam ampla distribuição no território nacional.

As atividades de prevenção e controle das arboviroses no Brasil vêm sendo baseadas na estratégia de gestão integrada, nas quais os atores centrais são o agente de combate às endemias (ACE) e o agente comunitário de saúde (ACS). No caso específico da dengue, em 2002 o Ministério da Saúde lançou o Programa Nacional de Controle da Dengue (PNCD), que incorporou os princípios da gestão integrada, fundamentando-se em alguns aspectos essenciais, com destaque para a integração das ações de controle da dengue na atenção básica, na tentativa da melhoria de cobertura, qualidade e regularidade do trabalho de campo no combate ao vetor. A integração é a base conceitual das Diretrizes Nacionais para a Prevenção e Controle de Epidemias de Dengue, com destaque para as ações em conjunto do ACE e do ACS ( Pessoa et al., 2016PESSOA, João P. M. et al. Controle da dengue: os consensos produzidos por agentes de combate às endemias e agentes comunitários de saúde sobre as ações integradas. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 21, n. 8, p. 2.329-2.338, 2016. ; Brasil, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Programa Nacional de Controle da Dengue . Brasília: Fundação Nacional de Saúde, 2002. , 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Diretrizes nacionais para prevenção e controle de epidemias de dengue. Brasília: Ministério da Saúde, 2009, 160 p. (Série A. Normas e Manuais Técnicos). ).

Apesar de os discursos das normativas e portarias ressaltarem a importância desse trabalhador para a implantação e o desenvolvimento do trabalho dentro da Estratégia Saúde da Família, é patente sua desvalorização. Poucos estudos se debruçam sobre a questão da identidade e da formação do ACE. Ele é reconhecido e designado por diversas nomenclaturas: agente de endemias, guarda de endemias, agente de controle de endemias, guarda sanitário, agente de vigilância em saúde, agente de saneamento, técnico de vigilância em saúde, técnico de saneamento, dentre outras. Os agentes de combate às endemias caracterizam-se por apresentarem uma variabilidade de contratos de trabalho, marcados por diferentes vínculos institucionais, municipal ou federal, com regimes de trabalho diferenciados. Além disso, há diferenças marcantes de escolaridade – nível fundamental, nível médio, nível superior – desempenhando as mesmas funções, com qualificação precária e sentimento generalizado de que eles não são reconhecidos ( Fernandes, 2015FERNANDES, Valcler R. Agentes comunitários de saúde e agentes de endemias: elementos para a caracterização do trabalho e desafios para a valorização dos trabalhadores. 2015. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/audiencias-publicas/audiencia-publica-2015/aud-18-06/apresentacao-valcler-fernandes>. Acesso em: 15 maio 2016.
http://www2.camara.leg.br/atividade-legi...
).

Reis (2016)REIS, José R. F. “É o doutor que vem aí!”: guardas sanitários, relações de trabalho e formação de identidade (décadas de 1930 e 1940). Revista Brasileira de História , São Paulo, v. 36, n. 71, p. 57-79, 2016. , além de apontar questões relativas às suas identidades profissionais, reforça a necessidade de mais estudos sobre os agentes de saúde. O autor afirma que

(...) paira certo silêncio na historiografia da saúde brasileira sobre tais personagens, mencionados sempre, mas pouco estudados na sua dimensão de trabalhadores da saúde com interesses e identidades coletivos, particularidades profissionais face ao exercício de um mesmo ofício e possível sentimento de pertencimento diante de um conjunto de valores, práticas e saberes comuns ( Reis, 2016REIS, José R. F. “É o doutor que vem aí!”: guardas sanitários, relações de trabalho e formação de identidade (décadas de 1930 e 1940). Revista Brasileira de História , São Paulo, v. 36, n. 71, p. 57-79, 2016. , p. 59).

No âmbito das políticas de saúde e na tentativa de superar esse desafio, o Ministério da Saúde publicou em 2011 e, posteriormente, em 2017, em versão atualizada e em dois volumes, o livro Técnico em vigilância em saúde : diretrizes e orientações para a formação ( Gondim, 2017GONDIM, Grácia M. M. (org.) Técnico de vigilância em saúde: contexto e identidade. v. 1 e 2. Rio de Janeiro: EPSJV, 2017. ). Este documento destaca alguns dos principais obstáculos dos processos de formação desses profissionais, tais como: desarticulação dos processos e programas de trabalho; fragmentação da área da vigilância em saúde; divisão de recursos estratégicos nos planos da organização e operacionalização; e a não priorização de alguns pilares da vigilância em saúde, como a multidisciplinaridade, a transversalidade e sua complexidade ( Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Técnico em vigilância em saúde: diretrizes e orientações para a formação. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. 72 p. (Série A. Normas e Manuais Técnicos). ; Gondim, 2017GONDIM, Grácia M. M. (org.) Técnico de vigilância em saúde: contexto e identidade. v. 1 e 2. Rio de Janeiro: EPSJV, 2017. ).

Esse último ponto pode gerar outros problemas para a organização e a qualidade dos serviços prestados por essa área, com consequências nocivas para a qualificação dos trabalhadores da vigilância e a estruturação das equipes. Algumas delas podem se expressar na alta concentração de trabalhadores qualificados – com formação superior – em capitais e municípios de grande porte e na falta de qualificação específica dos trabalhadores nas equipes de vigilância em saúde em pequenos municípios ( Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Técnico em vigilância em saúde: diretrizes e orientações para a formação. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. 72 p. (Série A. Normas e Manuais Técnicos). ).

No estudo que originou este artigo, o foco é dado ao agente de combate às endemias no contexto da dengue. Procurou-se discutir a possível construção de sua identidade profissional, relacionando-a com seu processo de trabalho, sua formação profissional, além de outros fatores que configuram as identidades profissionais.

Qualificação e identidade profissional: conceitos em interlocução com a formação profissional

Os termos ‘formação profissional’ e ‘qualificação profissional’, na literatura já produzida, apresentam um caráter polissêmico. No âmbito da formação profissional, estão inseridos sentidos e concepções diversos sobre a qualificação profissional. Para Catanni (1997)CATANNI, Antonio D. Trabalho e tecnologia : dicionário crítico. Petrópolis: Vozes, 1997. , a formação profissional, na sua acepção mais abrangente,

Designa todos os processos educativos que permitam ao indivíduo adquirir e desenvolver conhecimentos teóricos, técnicos e operacionais relacionados à produção de bens e serviços, quer esses processos sejam desenvolvidos nas escolas ou nas empresas (...). A Formação Profissional é uma expressão recente, criada para designar processos históricos que digam respeito à capacitação para e no trabalho, portanto à relação permanente entre o trabalhador e o processo de trabalho ( Catanni, 1997CATANNI, Antonio D. Trabalho e tecnologia : dicionário crítico. Petrópolis: Vozes, 1997. , p. 94-95).

A reflexão acerca da identidade profissional desenvolvida tem como referência teórica a sociologia do trabalho, seu representante precípuo é o sociólogo Claude Dubar (1999DUBAR, Claude. A sociologia do trabalho frente à qualificação e à competência. Educação & Sociedade , Campinas, v. 19, n. 64, p. 87-103, abr. 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301998000300004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 11 maio 2017.
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, 2005DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005. , 2012DUBAR, Claude. A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização profissional. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, v. 42, n. 146, p. 351-367, ago. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742012000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 4 abr. 2017.
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). Ele defende que a identidade não é construída sozinha e sim socialmente. Esse processo se inicia na infância e é reconstruído ao longo da vida. Portanto, a identidade não se configura como apenas um processo individual, subjetivo e isolado.

O conceito de identidade citado perpassa pela sua articulação com o mundo do trabalho – no caso, com as identidades profissionais, porque a centralidade do trabalho, na perspectiva ontológica moderna, é compreendida como a constituição do ser. Assim, quem você é implica o que você faz. Para Dubar (1999)DUBAR, Claude. A sociologia do trabalho frente à qualificação e à competência. Educação & Sociedade , Campinas, v. 19, n. 64, p. 87-103, abr. 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301998000300004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 11 maio 2017.
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, a identidade profissional resulta do diálogo entre as trajetórias individuais, o mundo do trabalho e os sistemas formativos. Portanto, a identidade profissional não se restringe somente ao espaço de trabalho; transita entre processos/negociações objetivas e subjetivas, individuais e coletivas.

As concepções de educação profissional de trabalhadores de nível médio e fundamental da saúde são estruturadas pelas concepções de saúde e de sociedade, na relação entre trabalho e educação. Vieira (2007)VIEIRA, Mônica. Trabalho, qualificação e a construção social de identidades profissionais nas organizações públicas de saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 243-260, 2007. , ao discutir a problemática da identidade profissional dos trabalhadores de nível médio no contexto da gestão em saúde, relaciona a construção dessa identidade com o sentido do trabalho. Para a autora, “as identidades profissionais são as formas socialmente construídas pelos indivíduos de se reconhecerem uns aos outros no campo do trabalho e emprego” ( Vieira, 2007VIEIRA, Mônica. Trabalho, qualificação e a construção social de identidades profissionais nas organizações públicas de saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 243-260, 2007. , p. 247). O trabalho nesses termos surge “como importante para o reconhecimento de si, como espaço de conversas, um campo de problemas, de incertezas e de múltiplas implicações” ( Vieira, 2007VIEIRA, Mônica. Trabalho, qualificação e a construção social de identidades profissionais nas organizações públicas de saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 243-260, 2007. , p. 247).

Assim, é nos espaços de trabalho e de formação que se inserem as noções de reconhecimento de si e de reconhecimento pelo outro. Essas formas de reconhecimento no mundo do trabalho relacionam-se também com a ‘legitimação dos saberes’ no processo de construção da identidade profissional ( Franzoi, 2006FRANZOI, Naira L. Entre a formação e o trabalho: trajetórias e identidades profissionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006. ).

Nesses termos, ressalta-se que o conceito de identidade profissional aqui adotado é discutido a partir de um diálogo com o conceito de qualificação profissional. Este pode ser compreendido como uma concepção que não se restringe apenas à formação escolar, mas como aquela que a considera como relação social. Para a qualificação do trabalhador devem-se abordar condições sociais, políticas, econômicas e culturais.

O conceito se amplia por incorporar diversos fatores que permeiam a ideia de qualificação do trabalho e do trabalhador, tais como: a própria escolaridade; a identidade profissional; o status da profissão; a regulamentação da área e da profissão; a capacidade de organização política dos trabalhadores, entre outros fatores que pertencem ao mundo do trabalho e da vida. Assim, é possível estreitar reflexões sobre o conceito de qualificação e identidade profissional. Para Batistella (2013)BATISTELLA, Carlos E. C. Qualificação e identidade profissional dos trabalhadores técnicos da vigilância em saúde: entre ruínas, fronteiras e projetos. In: MOROSINI, Márcia V. G. et al. (org.). Trabalhadores técnicos da saúde: aspectos da qualificação profissional no SUS. Rio de Janeiro: EPSJV, 2013, p. 361-390. ,

A construção e o compartilhamento de saberes, capacidades, valores e condutas mediadas pela qualificação do trabalho convergem para um processo de cons-trução social de identidades. Por meio da análise dos processos de qualificação, pode-se investigar, por exemplo, o impacto das políticas de organização e gestão do processo de trabalho na subjetividade e nas formas de identificação dos trabalhadores ( Batistella, 2013BATISTELLA, Carlos E. C. Qualificação e identidade profissional dos trabalhadores técnicos da vigilância em saúde: entre ruínas, fronteiras e projetos. In: MOROSINI, Márcia V. G. et al. (org.). Trabalhadores técnicos da saúde: aspectos da qualificação profissional no SUS. Rio de Janeiro: EPSJV, 2013, p. 361-390. , p. 373).

Em outro estudo, Batistella afirma que estar atento à questão da identidade profissional é fundamental para a formulação de políticas no setor saúde, pois “seu desenvolvimento favorece o trabalho em equipe, a humanização da atenção e o compromisso ético-político dos trabalhadores com o Sistema Único de Saúde e com a saúde da população” (Batistella, 2009, p. 20). O autor reitera que no contexto da identidade profissional a formação é considerada como um ‘lócus privilegiado’ de construção dessa identidade.

Dessa forma, a identidade profissional é construída socialmente mediante o reconhecimento de si e pelo outro. Partindo dessa premissa, é importante buscar a compreensão de como se configura essa construção dos ACEs com base na relação entre conhecimento, formação e identidade que se estabelece no reconhecimento de si, no interior do grupo profissional e também no reconhecimento do outro, de acordo com a legitimação dos seus saberes, seu desempenho no trabalho perante a gestão e a capacidade de resposta às demandas da população sobre os agravos causados pela dengue e por outras arboviroses, como zika, chikungunya etc.

Percursos de agentes de saúde em territórios endêmicos

O estudo teve abordagem qualitativa analítica e foi realizado em 2016. Participaram todos os trinta ACEs da equipe de zoonoses que atuam em um distrito sanitário pertencente ao município de Contagem, em Minas Gerais.

Nesse distrito, o setor de zoonoses organiza-se em cinco equipes com média de oito agentes de combate às endemias. Cada equipe conta ainda com um supervisor de campo, e todos são coordenados por um veterinário. A pesquisa foi realizada com cinco grupos focais (GFs) com seis ACEs, em média, por grupo. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aprovado pelo Conselho de Ética do Instituto René Rachou/Fiocruz Minas.

Para a realização dos grupos focais (GF), com o objetivo de analisar os processos de construção de identidades dos ACEs, apresentaram-se aos participantes alguns temas relacionados à compreensão das vivências dos agentes associados a sua formação, acesso e utilização das redes sociais e outras fontes de informação on line , além de suas práticas e rotina de trabalho para a discussão. Tais temas não foram apresentados como perguntas e sim como eixos norteadores para o debate.

Os dados obtidos nos grupos focais foram analisados com base na técnica da análise de conteúdo ( Bardin, 2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo . Lisboa: Edições 70, 2011. ; Franco, 2012FRANCO, Maria L. Análise de conteúdo . 4. ed. Brasília: Liber Livro, 2012. ; Minayo, 2013MINAYO, Maria C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2013. ). De acordo com Minayo (2013)MINAYO, Maria C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2013. , a análise de conteúdo temática se configura como a identificação de temas que denotam os valores de referência e modelos de comportamentos presentes no discurso e pode ser organizada com base nos seguintes passos: pré-análise – leitura flutuante, constituição de corpus , formulação de hipóteses e objetivos; exploração do material – codificação/categorização; tratamento dos resultados e interpretação.

No sentido de respeitar o sigilo de pesquisa acordado no TCLE, no decorrer do texto os agentes foram identificados como ACE e cada um recebeu uma numeração (ex.: ACE1, ACE8, ACE20).

Os dados da pesquisa empírica foram analisados com base na relação entre qualificação e identidade profissional ( Machado, 1996MACHADO, Lucília R. S. Qualificação do trabalho e relações sociais. In: FIDALGO, Fernando S. (org.). Gestão do trabalho e formação do trabalhador . Belo Horizonte: Movimento de Cultura Marxista, 1996. p.13. ; Batistella, 2009BATISTELLA, Carlos E. C. Tensões na constituição de identidades profissionais a partir do currículo: análise de uma proposta de formação profissional na área de vigilância em saúde. 2009. 255f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Vigilância em Saúde) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2009. , 2013BATISTELLA, Carlos E. C. Qualificação e identidade profissional dos trabalhadores técnicos da vigilância em saúde: entre ruínas, fronteiras e projetos. In: MOROSINI, Márcia V. G. et al. (org.). Trabalhadores técnicos da saúde: aspectos da qualificação profissional no SUS. Rio de Janeiro: EPSJV, 2013, p. 361-390. ; Franzoi, 2006FRANZOI, Naira L. Entre a formação e o trabalho: trajetórias e identidades profissionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006. ; Dubar, 1999DUBAR, Claude. A sociologia do trabalho frente à qualificação e à competência. Educação & Sociedade , Campinas, v. 19, n. 64, p. 87-103, abr. 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301998000300004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 11 maio 2017.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, 2005DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005. , 2012DUBAR, Claude. A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização profissional. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, v. 42, n. 146, p. 351-367, ago. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742012000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 4 abr. 2017.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Vieira, 2007VIEIRA, Mônica. Trabalho, qualificação e a construção social de identidades profissionais nas organizações públicas de saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 243-260, 2007. ). Nesse sentido, geraram-se três categorias de análise: trajetória de formação no contexto da dengue; reconhecimento pelo outro; e reconhecimento de si.

A pesquisa aqui apresentada contém resultados parciais de uma tese de doutorado, cujo projeto foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto René Rachou/Fundação Oswaldo Cruz, com o número CAAE: 50521315.7.0000.5091. Obteve financiamento parcial do Fundo Newton/British Council e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Construindo identidades possíveis

Dos ACEs que participaram dos grupos focais, 77% eram do sexo feminino, 80% com idades entre 30 e 49 anos, e 60% possuíam o ensino médio completo. Dos que já tinham cursado o ensino superior, apenas um o fez na área da saúde. Havia entre eles uma diferenciação significativa do tempo de trabalho na função: os considerados novatos, com menos de um ano de experiência; e aqueles mais antigos, com até 17 anos exercendo a função de ACE em Contagem.

Percebeu-se, no decorrer do tempo, que um lento processo de estruturação da categoria do ACE tem se verificado no país. Em 2016, a categoria profissional dos ACEs foi incluída no código 5151-40 da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), pautada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. A ocupação integra a família 5151, ‘Trabalhadores em serviços de promoção e apoio à saúde’ ( Brasil, 2015BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Classificação Brasileira de Ocupações . Brasília: Ministério do Trabalho e Emprego, 2015. ), juntamente com agente comunitário de saúde, atendente de enfermagem, parteira leiga, visitador sanitário, agente indígena de saúde, agente indígena de saneamento e socorrista. Esse fato contribui de forma significativa para a profissionalização da categoria e, consequentemente, para o processo de construção de sua identidade.

Também ocorreu a promulgação da lei n. 11.350/2006 ( Brasil, 2006BRASIL. Presidência da República. Lei n. 11.350, de 5 de outubro de 2006. Regulamenta as atividades e formas de contratação dos agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil , Brasília, DF, Seção 1, p. 1, 6 out. 2006. ), que instituiu a regulamentação do trabalho desses agentes, a exigência de um curso introdutório, a contratação por seleção pública simplificada e a determinação de um piso salarial, instituído tempos depois, quando então foi promulgada a lei n. 13.342/2014 ( Brasil, 2014BRASIL. Lei n. 12.994, de 17 de junho de 2014. Institui piso salarial profissional nacional e diretrizes para o plano de carreira dos Agentes Comunitários de Saúde e dos Agentes de Combate às Endemias. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil , Brasília, DF, 18 jun. 2014. ).

Tanto na CBO quanto nas leis citadas, não há uma exigência de formação técnica para o exercício da função do ACE. O requisito explicitado nesses documentos é o de conclusão do ensino fundamental. Além do já indicado aqui e em decorrência da histórica fragmentação da área da vigilância, a carreira do ACE acaba por se estruturar também de forma fragmentada.

Os aspectos apresentados são apenas alguns dos diversificados e complexos elementos que configuram os processos identitários do ACE. Esses elementos tramitam no âmbito das políticas de saúde e de educação profissional, destinadas a esses agentes, além dos processos de trabalho nas práticas do cotidiano.

Nesse contexto, apresenta-se a seguir uma análise da construção de identidade dos ACEs com base em categorias definidas previamente, relacionadas aos objetivos da pesquisa, bem como em seu referencial teórico.

Trajetória de formação no contexto da dengue: o aprendizado via ‘telefone sem fio’

Ao se compreender que a formação profissional é central na construção das identidades, essa temática foi incluída nos grupos focais como questão inicial para o debate, buscando entender a relação dos ACEs e os saberes necessários sobre a dengue para o exercício de sua função.

Conforme a lei n. 11.350/2006, os ACEs, ao ingressarem no cargo, deveriam passar por um curso introdutório para exercer a função ( Brasil, 2006BRASIL. Presidência da República. Lei n. 11.350, de 5 de outubro de 2006. Regulamenta as atividades e formas de contratação dos agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil , Brasília, DF, Seção 1, p. 1, 6 out. 2006. ). Entretanto, a realidade identificada no distrito apresentou outro quadro. Os agentes desconheciam a prescrição mínima de suas atividades, do protocolo de ações e de suas responsabilidades. A maioria dos agentes não recebeu um curso de formação inicial consistente. Sabe-se que essa formação é indispensável para entender o processo de trabalho, além de proporcionar certa coesão de trabalho entre os agentes e entre as equipes. Vieira (2007)VIEIRA, Mônica. Trabalho, qualificação e a construção social de identidades profissionais nas organizações públicas de saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 243-260, 2007. reforça a importância da formação na construção das identidades dos trabalhadores, ao afirmar que “a profissão se torna reconhecida, portanto, a partir do momento em que possui um corpo de conhecimento próprio, adquirido com o treinamento formal, tendo sua prática regida por regras sistematizadas” ( Vieira, 2007VIEIRA, Mônica. Trabalho, qualificação e a construção social de identidades profissionais nas organizações públicas de saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 243-260, 2007. , p. 247). Os depoimentos dos ACEs demonstraram a exígua ou inexistente formação inicial:

Quando eu entrei, eu passei por uma palestra, porque foram horas, não foram dias (...) não chamo de curso porque não abrange nada, mais assunto de RH[recursos humanos] (ACE3).

Na prática, o que ocorre, segundo o relato dos ACEs, é uma espécie de formação via ‘telefone sem fio’ ou um processo de ensino-aprendizagem realizado por meio da oralidade e processos de trabalho não formal. Essa estratégia de aprendizagem das práticas de trabalho foi identificada em todas as falas dos ACEs. Os agentes reforçaram que aprenderam fazendo, e são treinados pelos colegas mais antigos. Entretanto, ressaltaram que sempre permanecia a dúvida, quando assumiam a condição de instrutores, sobre estarem ensinando errado e, portanto, se haviam ‘aprendido errado’.

Como não havia um perfil do cargo, com atribuições do processo de trabalho dos ACEs, a produção do conhecimento ocorria dos mais velhos para os novatos, com a experiência repassada informalmente. Em todas as equipes houve um consenso de que a forma de ‘treinar’ poderia gerar conflito por divergência de conteúdo ou de interpretação, porque “cada um ensina de um jeito” (ACE4).

Entretanto, identificou-se nos grupos pesquisados que alguns receberam diferentes tipos de formação. De acordo com a fala dos ACEs com mais tempo no serviço, ocorreu a formação inicial. Mesmo com variações na duração dos cursos, os conteúdos demonstravam maior consistência. O tempo de ‘treinamento’ introdutório, quando ocorria, podia variar de um dia até quatro meses. “Passou de quatro meses para uma semana e depois dois dias” (ACE6). Os que trabalhavam há mais tempo tiveram uma formação com os trabalhadores que foram cedidos pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Torres (2009)TORRES, Raquel. Agentes de combate a endemias: a construção de uma identidade sólida e a formação ampla em vigilância são desafios dessa categoria. Revista Poli: Saúde, Educação e Trabalho, Rio de Janeiro, n. 3, p. 16-17, 2009. lembra que em 1999, quando a vigilância foi descentralizada, a Funasa ficou responsável por “capacitar e ceder aos estados e municípios seus 26 mil agentes, conhecidos como guardas sanitários, supervisores, guardas de endemias ou mata-mosquitos” ( Torres, 2009TORRES, Raquel. Agentes de combate a endemias: a construção de uma identidade sólida e a formação ampla em vigilância são desafios dessa categoria. Revista Poli: Saúde, Educação e Trabalho, Rio de Janeiro, n. 3, p. 16-17, 2009. , p. 17). Após o processo de descentralização da vigilância, as secretarias estaduais e municipais de saúde é que ficaram responsáveis pela formação inicial dos ACEs. Entretanto, as diretrizes para a formação do agente de vigilância em saúde, por exemplo, foram definidas pela Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde ( Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Técnico em vigilância em saúde: diretrizes e orientações para a formação. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. 72 p. (Série A. Normas e Manuais Técnicos). ).

Os agentes que passaram por cursos de formação relataram:

Eu acho que foi um curso de quatro meses. Eles são da Funasa. Eles deram treinamento pra gente (ACE8).

Quando eu entrei eu posso dizer que nós tivemos até um treinamento bem superficial. Nós tivemos uma semana de curso, então foi assim dado um curso mesmo. Hoje, eu vejo que tá bem pobre, tá bem deficiente (ACE9).

Batistella afirma que os trabalhadores da Funasa que atuavam nessa formação ofereciam cursos restritos, com técnicas específicas para cada doença, entre elas a dengue. Segundo ele, “eram feitos treinamentos de curta duração, respaldados por guias ou cartilhas elaborados dentro da própria Funasa” (entrevista concedida a Torres, 2009TORRES, Raquel. Agentes de combate a endemias: a construção de uma identidade sólida e a formação ampla em vigilância são desafios dessa categoria. Revista Poli: Saúde, Educação e Trabalho, Rio de Janeiro, n. 3, p. 16-17, 2009. , p. 17).

Nos debates ocorridos com as equipes de ACE sobre a formação na temática da dengue, foi coincidente a avaliação de que os cursos ou palestras que receberam não eram consistentes. Os agentes não tiveram acesso aos conteúdos técnicos sobre a dengue. À medida que os diferentes sorotipos da dengue e as arboviroses foram surgindo no Brasil, não houve os correspondentes e necessários cursos de atualização para os ACEs. Portanto, o que se aprendeu sobre a dengue, segundo os agentes pesquisados, ocorreu na prática cotidiana de trabalho.

No período de ápice da epidemia do vírus zika em nosso país, artigo de Fonseca (2016)FONSECA, Angélica F. Sobre o trabalho e a formação de agentes de saúde em tempos de zika. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 237-239, 2016. destacou a fragilidade da formação dos agentes de saúde, no complexo contexto que marca a relação entre as arboviroses e seus determinantes. A autora afirma que as estratégias adotadas têm sido “treinamentos breves, focalizados em problemas e intervenções pontuais que não conseguem – porque não podem – superar a ausência de uma formação mais sólida” ( Fonseca, 2016FONSECA, Angélica F. Sobre o trabalho e a formação de agentes de saúde em tempos de zika. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 237-239, 2016. , p. 237). O relato de um dos ACEs reforça a afirmação da autora:

Nós entramos há mais ou menos dez meses atrás e foi na época, né, que começou a zika, a chikungunya. Aí o morador imagina que eu tô visitando a sua casa e você não tem essa informação toda. Você ouviu falar: “Nossa, menina, eu ouvi falar que a chikungunya mata”, e aí? Você pode não saber, mas quando eu te dou uma resposta que eu tenho dúvida, você percebe que eu tô em dúvida, e como é que vou ter essa segurança se não me foi passado nada? É esse treinamento que falta, é esse suporte (ACE9).

Observou-se, com base nas análises das falas dos ACEs e na literatura ( Vieira, 2007VIEIRA, Mônica. Trabalho, qualificação e a construção social de identidades profissionais nas organizações públicas de saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 243-260, 2007. ; Batistella, 2009BATISTELLA, Carlos E. C. Tensões na constituição de identidades profissionais a partir do currículo: análise de uma proposta de formação profissional na área de vigilância em saúde. 2009. 255f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Vigilância em Saúde) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2009. , 2013BATISTELLA, Carlos E. C. Qualificação e identidade profissional dos trabalhadores técnicos da vigilância em saúde: entre ruínas, fronteiras e projetos. In: MOROSINI, Márcia V. G. et al. (org.). Trabalhadores técnicos da saúde: aspectos da qualificação profissional no SUS. Rio de Janeiro: EPSJV, 2013, p. 361-390. ; Franzoi, 2006FRANZOI, Naira L. Entre a formação e o trabalho: trajetórias e identidades profissionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006. ; Dubar, 1999DUBAR, Claude. A sociologia do trabalho frente à qualificação e à competência. Educação & Sociedade , Campinas, v. 19, n. 64, p. 87-103, abr. 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301998000300004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 11 maio 2017.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, 2005DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ), que a precariedade na formação e, consequentemente, a dificuldade na legitimação de seus saberes traduzem um processo individualizado de aquisição de conhecimentos, os quais são adquiridos e construídos apenas no plano do senso comum, no processo cotidiano de trabalho. Percebeu-se assim, no contexto da formação inicial para o exercício da função de ACE, a construção de uma identidade fluida desses trabalhadores.

Nesse sentido, fica a questão: é possível trabalhar sem um mínimo de referência prescritiva e identitária, sem formação específica e ainda contribuir para o controle das arboviroses nessas condições precárias?

Reconhecimento pelo outro: o ACE e suas ‘mil e uma utilidades’

No imaginário da população, o trabalho do ACE se restringe a fiscalizar e eliminar os focos do Aedes aegypti , como um mero ‘mata-mosquito’ ( Torres, 2009TORRES, Raquel. Agentes de combate a endemias: a construção de uma identidade sólida e a formação ampla em vigilância são desafios dessa categoria. Revista Poli: Saúde, Educação e Trabalho, Rio de Janeiro, n. 3, p. 16-17, 2009. ).

Como os agentes trabalham com várias zoonoses e não têm qualificação técnica para atuar nessa área – não se consideram preparados para lidar com o público –, o reconhecimento de seu trabalho, por parte da população, fica comprometido.

O consenso geral identificado na pesquisa ficou expresso na fala: “a gente orienta sobre tudo, não é só sobre dengue, então nosso serviço não é dengue: é rato, leishmaniose...” (ACE2). Ou ainda: “Para mim, quando eu vim trabalhar aqui, a gente ia trabalhar só com dengue. Aí depois tinha que assinar, tinha que tirar sangue dos cachorros que tão ( sic ) com leishmaniose” (ACE6).

No momento em que a questão da identidade, em seu aspecto do reconhecimento pelo outro, foi debatida com os ACEs nos GFs, afloraram questões relacionadas a sua formação e demandas da sociedade, significativas para a análise da construção de suas identidades profissionais.

Os próprios ACEs têm consciência da fragilidade de sua formação e se sentem desmotivados. De acordo com Vieira (2007)VIEIRA, Mônica. Trabalho, qualificação e a construção social de identidades profissionais nas organizações públicas de saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 243-260, 2007. , é necessário que o trabalhador participe de processos institucionalizados de formação e qualificação, para que seus saberes sejam legitimados. Como consequência, pode haver um reconhecimento pelo outro desses saberes e do próprio processo de trabalho.

Os moradores da região adstrita ao trabalho dos ACEs reconhecem esses agentes como fonte de esclarecimento para questões relativas às zoonoses, mas também para outras ligadas às demais vigilâncias. Os depoimentos dos agentes nos GFs foram significativos no sentimento que eles nutrem de frustração. Eles relataram uma intensa demanda por parte da população: “Nós somos para-raios; muitos vêm para cima de nós” (ACE10). Essa forte demanda associada à falta de formação inicial e continuada e à pressão por parte da gestão para o cumprimento de metas, além de precárias condições de trabalho, produz nos agentes uma constante sensação de estar sempre “enxugando gelo” (ACE11). No entendimento dos agentes, essa pressão também termina por comprometer a qualidade do seu trabalho.

Nesse sentido, os casos não solucionados por esses agentes acabam por impactar negativamente o reconhecimento de seu trabalho pela população. O discurso de outro ACE destacou o sentimento de impotência e frustração:

O próprio morador de lá fala: “Ah, todo dia vocês vêm e vocês não resolvem nada.” Então a gente sente às vezes até impotente. Tem horas que eu me sinto impotente numa situação desta. Aí fica tipo que a gente que não conseguiu resolver, como se nós não tivéssemos aquela possibilidade de resolver aquele problema. Entendeu? (ACE5).

Fonseca reconhece essa incapacidade ao afirmar que, em decorrência do retrocesso na qualificação dessa categoria, “os ‘trabalhadores de campo’ se mostram pouco habilitados a exercer o conjunto amplo e complexo de atividades que lhes são atribuídas” (Fonseca, 2016, p. 238). Assim, as faltas de processos formativos institucionalizados geram uma baixa autoestima nos ACEs, e esta se reflete na sociedade: “Por que a gente é tão menosprezado, né...? Pela população, pela gestão e pelo pessoal da saúde...?” (ACE11) Esta fala representa o sentimento que os ACEs foram incorporando em suas identidades profissionais, desenvolvendo um processo de desmotivação cíclico e crônico. Nesse sentido, um frágil reconhecimento profissional e social pode ser traduzido na manifestação:

Então muita gente vê a gente andando e fala assim: “Nossa, eu quero trabalhar na dengue, na dengue é bom demais porque, ó, as pessoas só ficam andando.” Muita gente passa e grita assim: “Ê, morcego”, porque eles acham que a gente não faz nada. Eles acham que a gente fica na rua, só andando (ACE11).

Na compreensão de Dubar (2012)DUBAR, Claude. A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização profissional. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, v. 42, n. 146, p. 351-367, ago. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742012000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 4 abr. 2017.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, para que o trabalho seja concebido em seu sentido positivo, é necessário que ele seja exercido mediante atividades “criadoras de algo de si”. O autor afirma que essas atividades, independentemente do nome que recebem, ‘ofícios’, ‘vocações’ ou ‘profissões’, “não se reduzem à troca econômica de um gasto de energia por um salário, mas possuem uma dimensão simbólica em termos de realização de si e de reconhecimento social” ( Dubar, 2012DUBAR, Claude. A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização profissional. Cadernos de Pesquisa , São Paulo, v. 42, n. 146, p. 351-367, ago. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742012000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 4 abr. 2017.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 354).

Assim, ao buscar atender às demandas do processo de trabalho e da população, sem a devida qualificação, o ACE vai estruturando sua identidade profissional em bases fluidas e aleatórias, comprometendo seu status e, portanto, seu reconhecimento por si e pelo outro.

Reconhecimento de si: identidade sem crachá no cotidiano dos ACEs

Se eu me reconheço como um profissional da saúde? Eu me reconheço. Se eu sou reconhecida, eu não sei. Mas eu sou uma profissional da saúde (ACE6) .

A noção de pertencimento encontra-se no cerne das formações identitárias. Significa considerar a identificação das pessoas com o seu trabalho, relacionando-a sempre com o reconhecimento pelo outro, não sendo possível analisar as identidades para si ou pelo outro de forma isolada. Por se tratar de uma construção social e, portanto, coletiva, deve-se ter em vista que a identidade profissional é constituída pelos dois polos, de modo relacional. Assim, considerando-se esse aspecto relacional, o pertencimento vincula-se ao plano subjetivo da identidade para si.

Nesse sentido, uma das questões apresentadas nos GFs foi a de identificar o nome pelo qual os ACEs eram reconhecidos pela população local. Em todos os grupos, os agentes alegaram que, de forma geral, no caso das mulheres, eram chamados de ‘meninas da dengue’ ou ‘dengosas’. Em relação aos homens, ‘rapazes da dengue’. Em outro estudo realizado no mesmo território,

Chamou atenção a grande variedade de terminologias utilizadas para nomear os ACE. Em muitas situações e num mesmo documento, eles eram citados sob diferentes termos, tais como: Agente de Combate às Endemias, Agente de Endemias, Agente de Controle de Endemias, Agente de Saúde, Agente de Saúde Pública, Agente Sanitário, Agente Estatal, Agente Público, Agente da Vigilância Epidemiológica ( Evangelista, Flisch e Pimenta, 2017EVANGELISTA, Janete G.; FLISCH, Tácia Maria P.; PIMENTA, Denise N. A formação dos agentes de combate às endemias no contexto da dengue: análise documental das políticas de saúde. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde , Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, 2017. Disponível em: <https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/1219>. Acesso em: 5 jun. 2017.
https://www.reciis.icict.fiocruz.br/inde...
, p. 8).

Entretanto, houve pouco interesse por parte dos agentes nessa questão. Em todos os debates sobre a temática da nomenclatura local, da identidade, os ACEs direcionaram suas falas para as questões relacionadas ao pertencimento à área da saúde: “Eu me considero da saúde, porque estou ajudando a prevenção, orientando, informando, na prevenção” (ACE11); e para a identificação por meio de crachá: “Faz cinco anos que eu não tenho crachá” (ACE15). Assim, os dois temas foram destacados para análise das identidades para si.

Na percepção dos ACEs, em sua maioria eles consideram que desempenham um trabalho importante, principalmente no campo da educação em saúde. Eles se sentem, portanto, como pertencentes ao setor saúde do município de Contagem. Parte dos agentes estudados confirmou essa compreensão de importância e pertencimento em seus depoimentos:

A gente tem um trabalho importante que é de prevenção da saúde (sic), entendeu? Antes de a doença chegar ao morador, qualquer doença, assim que ele precisar procurar alguma unidade de saúde que em nosso país tá bem precária, a gente tem de intervir antes, a gente tenta prevenir antes de remediar, entendeu? (ACE16).

No caso ser uma promoção de saúde, uma... se resguardando algumas coisas voltadas à saúde. Não só a dengue, mas outros tipos de doença também, então isso é voltado à saúde, sim. Acredito que sou da saúde (ACE17).

O nosso trabalho é preventivo e educativo, não é? (ACE18).

Mesmo reconhecendo a importância do seu trabalho na saúde, os ACEs problematizaram esse reconhecimento com a falta de infraestrutura, a precariedade do vínculo de trabalho e também com as diferenças existentes em relação aos trabalhadores efetivos da saúde do município (até mesmo em relação aos ACSs). Surgiram, nesses termos, comparações com outros municípios de Minas Gerais, principalmente Belo Horizonte. Na percepção dos ACEs, faltam para eles direitos como periculosidade e redução de carga horária e benefícios, como um bom plano de saúde e auxílio-alimentação. É o que se pode observar no seguinte relato:

Eu me reconheço, mas eu acho que nós somos muito discriminados dentro da saúde, até mesmo dentro da unidade, até mesmo pelos agentes comunitários. Até eles, porque lá no bairro onde eu moro o posto de saúde de lá é de saúde da família, e os próprios agentes de lá, eles olham para a gente que é agente de endemia já com a cara assim, como se eles fossem superiores, e até dentro da unidade mesmo a gente é discriminado – eu, pelo menos, me sinto. Parece que a gente fica no nosso canto para cá excluído (ACE19).

Há um sentimento de não reconhecimento pelo outro. Eles compreendem que nem os trabalhadores da saúde nem a gestão do distrito os consideram como pertencentes à mesma categoria profissional.

O morador acha: “Ah, você não faz nada. As pessoas da prefeitura ganham di-nheiro fácil.” E quem tá lá na prefeitura, quem tá lá em cima, acha a mesma coisa. Porque nós não temos valor. Eu sinto como se a gente não tivesse valor, mesmo sabendo que nosso trabalho é importante, mesmo eu saindo da minha casa, com todo problema, eu chego, pego a minha bolsa e, na rua, ali a minha cabeça muda, ali eu já estou focada naquele serviço, estou conhecendo pessoas, conversando com pessoas e levando informação. Então eu acho meu serviço muito importante, mesmo que eles não valorizem. Não tem um muito obrigado, você fez mais do que sua obrigação mesmo, entendeu? (ACE22).

Nas discussões sobre a identidade, os ACEs retomaram a temática da formação, destacando que também nessa seara havia diferenças no tratamento entre eles e os trabalhadores efetivos da saúde. “O município promove algumas palestras, alguns encontros que por mais que a temática do dia não seja sobre a dengue, sobre, né, as zoonoses, mas nós fazemos parte. Quando a gente fica sabendo, já aconteceu” (ACE18).

Como foi mencionado neste artigo, já existe desde 2010 uma recomendação do Ministério da Saúde quanto à incorporação do ACE nas equipes de saúde da família, na atenção básica ( Brasil, 2010BRASIL. Portaria n. 1.007, de 4 maio de 2010. Define critérios para regulamentar a incorporação do agente de combate às endemias (ACE), ou dos agentes que desempenham essas atividades, mas com outras denominações, na atenção primária à saúde para fortalecer as ações de vigilância em saúde junto às equipes de saúde da família. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2010/prt1007_04_05_2010.html>. Acesso em: 20 fev. 2017.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
). Entretanto, em Contagem, essa ação na época da pesquisa de campo não havia sido implantada. Com base em observações in loco e nas falas dos ACEs, houve a construção das salas destinadas às zoonoses nas novas unidades básicas de saúde do município. Surge, então, o questionamento: e no cotidiano, como seriam o uso dessa sala, sua estrutura e a integração propriamente dita? A realidade desses agentes pode ser retratada na fala: “É aquela questão: estamos juntos com a saúde, só que não somos reconhecidos de tal maneira” (ACE25).

Há ainda aqueles que não se reconhecem como trabalhadores da saúde. Percebe-se que o vínculo com o trabalho ou o pertencimento acontece mediante uma relação afetiva ou por necessidade de sobrevivência, de emprego.

Quando eu entrei, vou falar com sinceridade, eu detestava esse serviço. Eu aguentei porque eu estava precisando mesmo. Mas sabe que com o tempo você começa a pegar a rua, a se acostumar com as pessoas e tudo. Tanto é que hoje o meu sonho é fazer uma faculdade, fazer um serviço social. Porque eu tomei amor por esse serviço, mas porque eu gosto mesmo daquilo que eu faço. Mas se for olhar pelas pessoas e tudo, pela consideração, eu acho um descaso (ACE28).

Franzoi, ao relacionar o reconhecimento pelo outro com o reconhecimento para si, afirma que este último “implica a sua identificação com a atividade que desempenha, e é o que faz com o que o indivíduo queira nela permanecer, ou ao contrário, na ausência de identificação com ela, queira desempenhar outra atividade” (Franzoi, 2006, p. 50).

O reconhecimento de si está vinculado ao plano subjetivo das trajetórias individuais. Nos GFs, foram identificadas falas do tipo “às vezes eu tenho amor ao que eu faço, às vezes eu tenho raiva” (ACE19). Ou ainda: “Mas o conversar com a pessoa, a pessoa te receber bem, te tratar como ser humano. Nossa, gente, ‘vocês precisam de uma água? Vocês andam tanto, pode sentar’, reconhecer o que você faz, sabe, é muito gostoso, muito legal” (ACE8).

Compreende-se, portanto, que, na busca por uma identidade profissional fundada em relações mais estáveis, o reconhecimento de si ocorre também no plano afetivo, não somente nos processos de trabalho. Assim, nessa batalha cotidiana do reconhecimento e não reconhecimento, do amar e odiar, do pertencer ou não, é que vai se construindo a formação identitária do ACE.

O fato de a maioria dos agentes não possuir crachá tornou-se relevante nos debates realizados em todos os GFs. No entendimento dos ACEs, a questão da identidade com seu trabalho está estreitamente ligada à posse e ao uso do crachá.

Acho que o primeiro contato que você tem com o morador, você encontra a primeira dificuldade. Posso falar aqui pelo menos no caso de nós três novatos, que a gente depois de dez meses a gente ainda não tem o crachá pra identificar que a gente é realmente o agente da dengue ou se é qualquer um que tá entrando na casa do morador (ACE15).

Se não há uma forma de se apresentar perante a população, não há identificação. Eles revelaram, portanto, um sentimento de ‘não identificados’ ou ‘quase invisíveis’ no contexto do setor saúde na interface direta com a população. Como é possível observar a seguir:

Eu acho o cúmulo do absurdo, eu estar aqui há quatro anos e nunca ter pegado o crachá. Já mandei inúmeras fotos para lá, muitas, já... A última vez tirou todo mundo em conjunto para fazer os crachás, e até hoje... E eu já recebi várias recusas por não ter o crachá. Igual o Júnior falou, a gente mesmo estando com o uniforme completo, muitas das vezes você não ter um crachá para apresentar... (ACE17).

Os ACEs expressaram diversas questões relacionadas ao uso do crachá. Uma das dificuldades diz respeito às discussões pertinentes ao gênero:

Eu, por ser homem, eu tenho muita dificuldade às vezes, por quê? “Ah, não vou deixar, eu estou sozinha em casa, não vou deixar um homem entrar na minha casa.” Aí é aquela questão: “Você tem crachá?” Eu tenho nove meses, já tirei foto há seis e até hoje o meu crachá não chegou. Aí as pessoas pedem: “Mostra a identidade”. Tudo bem, por mais que eu esteja com uniforme completo (ACE15).

O mesmo agente incluiu, em suas preocupações com a falta de crachá, o problema da segurança:

Uma das coisas que mais me deixa chateado nessa questão, de como eu sou visto pela população, é às vezes um morador chegar na sua porta, principalmente no bairro, e falar assim: “É, roubaram um monte de uniformes das zoonoses, eu não sei se você é bandido, como é que vou deixar você entrar dentro da minha própria casa?” É doído, né? Você sair da sua casa, nesse sol quente, trabalhando aí, e você ouvir isso de um morador, sendo que você está ali para fazer o seu trabalho (ACE15).

Os agentes destacaram ainda, nas discussões em grupo, questões relativas à gestão do distrito sobre o processo de trabalho das equipes. Eles entendem que as contínuas mudanças nas áreas de abrangência dificultam a identificação, por parte da população, e a criação de vínculos necessários para a confiança, a segurança e, consequentemente, para o controle da dengue. Nesse bojo, surge também a questão do cumprimento das metas, porque o quantitativo dessas metas é estabelecido com base em imóveis abertos visitados. Assim, sem crachá, há um aumento significativo de recusas, o que acaba por comprometer o alcance diário dessas metas.

Nos trechos a seguir, os ACEs expressaram essas contradições entre metas e falta de condições de trabalho, como o não fornecimento de crachás.

Das vezes em que eu recebi recusa nas empresas. A maioria de empresas que a gente vai, eu fiz questão de colocar no meu boletim lá, que estava tendo recusa por falta de crachá. Porque eu falei, é o melhor que eu faço para eles estar vendo, porque é um absurdo realmente a gente tá na rua o dia todo e não ter um crachá de identificação e ser confundida com uma qualquer, né? Às vezes ser barrada de entrar por causa de um crachá. Pelo amor de Deus, né? É difícil (ACE27).

Hoje mesmo, uma senhora perguntou: “Mês passado veio outro, agora hoje é você?” (ACE29).

Essas questões pautadas pelos ACEs demonstram o quanto os processos de identificação, de reconhecimento de si – vividos por eles –, dificultam a construção de identidades profissionais mais estáveis. Dessa forma, a negociação que ocorre entre o que eu penso que sou (reconhecimento de si) e o que os outros pensam que sou (reconhecimento pelo outro) se configura entre acomodações e negações que geram as identidades possíveis dos trabalhadores.

Conclusões

No caso dos ACEs participantes do estudo aqui apresentado, suas identidades profissionais foram construídas e reconstruídas em um distrito endêmico no contexto da dengue. Foram se constituindo em precárias condições de trabalho, sem crachá, com um aprendizado via ‘telefone sem fio’ e, portanto, sem uma formação profissional inicial e continuada necessária à sua prática de trabalho – formação essa estruturante do reconhecimento de si e do reconhecimento pelos outros, ou seja, das identidades.

Em suas ‘mil e uma utilidades’, os ACEs permanecem na luta cotidiana para orientar a população local, em prol da prevenção e do controle das arboviroses endêmicas, atuais e as que porventura ainda hão de surgir. Como as epidemias são cíclicas e recorrentes, esses agentes se sentem extremamente frustrados e, em consequência, ‘enxugando gelo’.

Com base nesses múltiplos fatores, concluiu-se que as identidades construídas pelos agentes são aquelas alicerçadas no vínculo afetivo com os moradores e com o trabalho, na necessidade de emprego e no desejo de contribuir para o controle da dengue.

Referências

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  • BATISTELLA, Carlos E. C. Qualificação e identidade profissional dos trabalhadores técnicos da vigilância em saúde: entre ruínas, fronteiras e projetos. In: MOROSINI, Márcia V. G. et al. (org.). Trabalhadores técnicos da saúde: aspectos da qualificação profissional no SUS. Rio de Janeiro: EPSJV, 2013, p. 361-390.
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  • BRASIL. Presidência da República. Lei n. 11.350, de 5 de outubro de 2006. Regulamenta as atividades e formas de contratação dos agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil , Brasília, DF, Seção 1, p. 1, 6 out. 2006.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2018
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2018
  • Aceito
    03 Ago 2018
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