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PROCESSOS DE APRENDIZAGEM DE ADULTOS NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE

LEARNING PROCESSES OF ADULTS IN PROFESSIONAL TRAINING IN HEALTH

PROCESOS DE APRENDIZAJE DE ADULTOS EN LA EDUCACIÓN PROFESIONAL EN SALUD

Resumo

O estudo tem por objetivo problematizar os processos de aprendizagem de adultos trabalhadores na educação profissional em saúde. Considerando-se que a formação do trabalhador da saúde deve ampliar o horizonte dos alunos para além da biomedicina, tomam-se como referência os estudos de Kastrup sobre cognição inventiva. Estes estudos nos ajudam a pensar uma formação distinta daquela centrada em conteúdos e técnicas. A pesquisa foi desenvolvida com base em análise de documentos produzidos por alunos e professores do Curso de Técnico de Agente Comunitário de Saúde no Rio de Janeiro em 2017. Também são analisadas entrevistas com alunos. As análises mostraram como diferentes estratégias pedagógicas favoreceram a formação de sujeitos-trabalhadores sensíveis e comprometidos com a construção de práticas de saúde que não se constituem apenas no saber biomédico. Percebeu-se que o trabalho realizado possibilitou que os alunos problematizassem as relações entre educação, cultura e saúde, e, com isso, colocassem em questão suas práticas de saúde já naturalizadas. Estas experiências criaram a possibilidade de os alunos ‘não serem mais os mesmos’ e se fortalecerem na construção de um Sistema Único de Saúde e uma sociedade diversos.

educação profissional em saúde; formação de agentes comunitários de saúde; aprendizagem de adultos; cognição inventiva

Abstract

The present study has the goal of questio-ning the learning processes of adult workers in professional training in health. Considering that the training of health workers should expand the horizons of the students beyond biomedicine, we take as reference the studies by Kastrup on inventive cognition. These studies help us conceive a training that is different from the training focused on content and techniques. The research was developed based on an analysis of documents written by students and teachers of the Community Health Worker Technical Course in Rio de Janeiro, Brazil, in 2017. The interviews performed with the students were also analyzed. The analyses show how different pedagogical strategies favor the training of individuals-workers who are sensible of and engaged with the development of health practices that are not only established within biomedical knowledge. We noticed that the work performed made it possible for the students to question the relationships among education, culture and health, and, therefore, question their already ingrained health practices. These experiences opened the possibility for the students “to no longer be who they were” and strengthen themselves in the development of a diverse Unified Health System (Sistema Único de Saúde, in Portuguese) and a diverse society.

professional training in health; community health worker training; adult learning; inventive cognition

Resumen

El estudio tiene como objetivo problematizar los procesos de aprendizaje de adultos trabajadores en la educación profesional en salud. Considerando que la formación del trabajador de la salud debe ampliar el horizonte de los alumnos más allá de la biomedicina, se toman como referencia los estudios de Kastrup sobre cognición inventiva. Estos estudios nos ayudan a pensar en una formación distinta de aquella centrada en contenidos y técnicas. La investigación se desarrolló con base en análisis de documentos elaborados por alumnos y profesores de la Carrera de Técnico de Agente Comunitario de Salud en Rio de Janeiro, Brasil, en el 2017. También se analizan entrevistas con alumnos. Los análisis mostraron cómo diferentes estrategias pedagógicas favorecieron la formación de sujetos-trabajadores sensibles y comprometidos con la construcción de prácticas de salud que no sólo se constituyen por el saber biomédico. Se observó que el trabajo realizado posibilitó que los alumnos problematizasen las relaciones entre educación, cultura y salud, y, de esta manera, cuestionasen sus prácticas de salud ya naturalizadas. Estas experiencias hicieron posible que los alumnos ‘nunca más fuesen los mismos’ y que se fortalecieran en la construcción de un Sistema Único de Salud y una sociedad diversos.

Estrategia Salud de la Familia; agentes comunitarios de salud; síndrome de inmunodeficiencia adquirida; acogida

Introdução

A Rede de Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (RET-SUS) tem por responsabilidade a formação de trabalhadores de nível médio. Destina-se, sobretudo, à formação técnica daqueles que já atuam nos serviços públicos de saúde. Portanto, um dos desafios enfrentados nesta formação é o de pensar a questão da educação e aprendizagem de adultos trabalhadores, tendo em vista as demandas apresentadas na sua atuação profissional com a população.

Os alunos que chegam às Escolas Técnicas e Centros Formadores do Sistema Único de Saúde (SUS), em geral, pertencem às classes populares e, embora muitos deles tenham frequentado de forma integral a Educação Básica, o fizeram com interrupções e sem a garantia de acesso a um ensino de qualidade. Para alguns destes adultos, tanto a finalização do Ensino Fundamental, quanto do Ensino Médio, não ocorreu na idade prevista.

Ao realizarmos o levantamento dos estudos que abordam a aprendizagem de adultos trabalhadores de classes populares, identificamos um vasto campo de investigação a ser desenvolvido. O debate sobre a educação de jovens e adultos, que vem se ampliando no país, reconhece, já há algum tempo, a necessidade de se levar em conta as especificidades deste público, e, consequentemente, as peculiaridades da organização escolar, da formação de professores e da proposta curricular referentes à educação destes alunos (Ribeiro, 1999RIBEIRO, Vera M. A formação de educadores e a constituição da educação de jovens e adultos como campo pedagógico. Educação e Sociedade, Campinas, SP, v. 20, n. 68, p. 184-201, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010173301999000300010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 1 set. 2016.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Assim, tem-se incluído, paulatinamente, sobretudo em relação à modalidade de ensino Educação de Jovens e Adultos (EJA), a questão do ensino-aprendizagem daqueles que não tiveram oportunidade de percorrer o caminho regular de ensino.

Tomando por base a formação profissional de trabalhadores da saúde, no que se refere à educação de adultos, observamos que não há um acúmulo expressivo de reflexão sobre o tema do ensino-aprendizagem, e é sobre esta questão que pretendemos nos debruçar neste artigo. O objetivo da presente investigação é problematizar os processos de aprendizagem na formação técnica em saúde de adultos trabalhadores com base na concepção de cognição inventiva.

Para tanto, vamos nos deter na reflexão sobre uma experiência educativa com Agentes Comunitários de Saúde (ACS) realizada na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), na cidade do Rio de Janeiro, que integra a RET-SUS. Vale dizer que, no caso específico da formação técnica de ACS, identificamos um conjunto de pesquisas sobre o assunto (Pereira et al., 2016PEREIRA, Ingrid D. F. et al. Princípios pedagógicos e relações entre teoria e prática na formação de agentes comunitários de saúde. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 377-397, ago. 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tes/v14n2/1678-1007-tes-1981-7746-sol00010.pdf>. Acesso em: 3 out. 2017.
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; Bornstein et al., 2014BORNSTEIN, Vera J. et al. Desafios e perspectivas da Educação Popular em Saúde na constituição da práxis do Agente Comunitário de Saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, SP, v. 18, p. 1327-1339, 2014.; Lopes, Durão e Carvalho, 2011LOPES, Marcia R.; DURÃO, Anna V.; CARVALHO, Valéria. A disputa sobre os sentidos do trabalho e da formação dos agentes comunitários de saúde. In: VIEIRA, Monica; DURÃO, Anna V.; LOPES, Marcia R. (Org.). Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2011. p. 161-202.; Morosini, 2010MOROSINI, Marcia V. Educação e trabalho em disputa no SUS: a política de formação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2010. e Mialhe, 2001MIALHE, Fabio. L. (Org.) O agente comunitário de saúde: Práticas educativas. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.). Nenhuma delas, entretanto, se detém sobre o tema da aprendizagem.

Algumas considerações sobre a formação de trabalhadores para a saúde

O SUS tem como desafio a reorganização da atenção em saúde no Brasil, cujo norte é a promoção de saúde e a ruptura com a lógica puramente curativa e biomédica que até hoje é hegemônica no sistema público de saúde brasileiro. Busca voltar-se não somente para o acolhimento e assistência a queixas de adoecimentos e agravos; o SUS tem entre seus objetivos a construção de uma atenção regionalizada que leva em conta a realidade e a cultura de cada território, e como uma de suas propostas o desenvolvimento de ações de prevenção e promoção de saúde.

Ao entender saúde como uma concepção ampla, esta proposta envolve a discussão crítica dos determinantes sociais da saúde e trabalhos intersetoriais que vão muito além da assistência de indivíduos doentes nos serviços de saúde. Evidentemente, este não é um desafio fácil. A perspectiva de redirecionar as práticas de saúde com base na noção de promoção de saúde envolve, dentre outros aspectos, uma concepção diferente do trabalho em saúde e, é claro, a formação de um outro profissional da área.

Como nos aponta Czeresnia (2003CZERESNIA, Dina. O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: CZERESNIA, Dina; FREITAS, Carlos M. (Org.) Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. p. 39-53., p. 41):

Uma primeira questão é a de a saúde pública se definir como responsável pela promoção da saúde enquanto suas práticas se organizam em torno de conceitos de doença. Outra questão é que suas práticas tendem a não levar em conta a distância entre conceito de doença – construção mental – e o adoecer – experiência da vida – produzindo-se a ‘substituição’ de um pelo outro.

Neste sentido, a discussão sobre a formação do trabalhador da saúde deve ter como ponto fundamental ampliar o horizonte dos alunos para além do discurso biomédico e seus parâmetros científicos; deve tomar como um de seus objetivos principais alargar o entendimento do trabalho em saúde para além dos protocolos e das técnicas previstas na assistência ao enfermo, incluindo possibilidades de construção de relações diferentes com o ambiente, os sujeitos e a vida.

Os processos de ensino-aprendizagem de adultos a partir da abordagem da cognição inventiva

Nossa discussão sobre processos formativos de adultos tem por referência os estudos de Kastrup (2007)KASTRUP, Virgínia. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. sobre cognição inventiva, cuja discussão escapa de uma formação centrada no ensino de conteúdos e técnicas próprias do saber biomédico.

A formulação desta visão de cognição é construída no diálogo com Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. Volume 1., Bergson (1979)BERGSON, Henry. A evolução criadora. São Paulo: Abril Cultural, 1979. e Varela (2003)VARELA, Francisco. O reencantamento do concreto. São Paulo: Hucitec Educ., 2003. p. 71-86. (Cadernos de subjetividade)., dentre outros autores. Nesta perspectiva, diferentemente do que se costuma supor quando se pensam processos cognitivos, a construção do conhecimento estaria intrinsecamente relacionada ao sujeito que está envolvido no ato de conhecer: aquele que conhece e aquilo que é conhecido – a mente e o mundo – não são concebidos como partes separadas do processo (Varela, Thompson e Rosch, 2003VARELA, Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor. A mente incorporada: ciências cognitivas e experiência humana. Porto Alegre: Artmed, 2003.). Assim, a aprendizagem não se limita a um esforço intelectual de adaptação em relação ao que o mundo apresenta, ela exige cultivo, disciplina em estabelecer uma constante relação com o mundo, e implica, portanto, uma corporificação do conhecimento.

A aprendizagem é, então, compreendida como a própria produção de subjetividade, quando aquele que aprende experimenta novas situações que o transformam de maneira imprevisível e ao mesmo tempo aciona mecanismos de sedimentação de conhecimentos. Nesta perspectiva, os processos de ensino-aprendizagem podem ser entendidos como uma complexa rede em que mais do que transmitir informações, propaga-se a experiência. É o que propõe Kastrup (2005KASTRUP, Virgínia. Ensinar e aprender: falando de tubos, potes e redes. Boletim Arte na Escola, São Paulo, n. 40, dez. 2005. Disponível em: <http://artenaescola.org.br/sala-de-leitura/artigos/ artigo.php?id=69347&>. Acesso em: 13 fev. 2014.
http://artenaescola.org.br/sala-de-leitu...
, p. 2):

A rede é uma figura heterogênea, composta de pessoas e coisas, de experiências e práticas, linguísticas e não linguísticas. Não há via de mão única. As trocas se dão em múltiplas direções, envolvendo diversos atores, formais e informais.

Propõe-se então uma abordagem dos processos cognitivos que evita as concepções de conhecimento como assimilação de dados do mundo: “Nossa intenção é desviar inteiramente desta geografia lógica do interno versus externo, abordando a cognição não como recuperação ou projeção, mas como ação incorporada” (Varela, Thompson e Rosch, 2003, p. 177).

É também desta perspectiva, que Dias (2011)DIAS, Rosimeri O. Deslocamentos na formação de professores: aprendizagem de adultos, experiências e políticas cognitivas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011. nos auxilia a estabelecer relações entre a cognição inventiva e o ensino-aprendizagem de adultos. A autora questiona as formas hegemônicas, que, baseadas em um modelo ideal de adulto, disseminam ideias equivocadas do ‘adulto-perfeição’, ‘adulto-maduro’ e ‘adulto-experiência-acumulada’. São abordagens que, segundo ela, “não singularizam, nem complexificam as relações do adulto no mundo” (Dias, 2011DIAS, Rosimeri O. Deslocamentos na formação de professores: aprendizagem de adultos, experiências e políticas cognitivas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011., p. 79).

A autora destaca o caráter adaptativo dos estudos sobre o adulto. Estes, quando discutem a formação profissional no contexto atual de transformações tecnológicas capitalistas, pautam-se pela “lógica do solucionador de problemas novos com êxito” (Dias, 2011DIAS, Rosimeri O. Deslocamentos na formação de professores: aprendizagem de adultos, experiências e políticas cognitivas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011., p. 83). Refere-se à educação permanente como concepção educativa que busca adequar um modelo de adulto e de formação às exigências atuais do mercado.

Com base perspectiva da cognição inventiva, Dias (2011DIAS, Rosimeri O. Deslocamentos na formação de professores: aprendizagem de adultos, experiências e políticas cognitivas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011., p. 84) propõe “pensar o adulto como obra aberta, vinculado à experiência e marcado pela descontinuidade”. As propostas de obra aberta e de descontinuidade buscam romper com a tendência a pensar o desenvolvimento segundo as noções de previsibilidade e linearidade. A ideia de fazer uma experiência é “deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela” (Larrosa apud Dias, 2011DIAS, Rosimeri O. Deslocamentos na formação de professores: aprendizagem de adultos, experiências e políticas cognitivas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011., p. 103), o que se diferencia da concepção idealizada de um ‘adulto completo’ com uma ‘experiência acumulada’.

As abordagens de Kastrup (2007KASTRUP, Virgínia. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.; 2010) e de Dias (2011)DIAS, Rosimeri O. Deslocamentos na formação de professores: aprendizagem de adultos, experiências e políticas cognitivas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011. nos ajudam a pensar a vida adulta segundo seu inacabamento e a associar este olhar com a compreensão da aprendizagem, na cognição inventiva, em função de movimentos de constante reinvenção.

Esta discussão compreende, também, as relações entre aprendizagem e atenção de forma distinta da que estamos habituados e se constitui em outra pista para pensarmos os processos de ensino-aprendizagem com adultos. Comumente o ‘prestar atenção’ é compreendido como um dos principais pré-requisitos para que o conhecimento seja construído. Espera-se que o aluno detenha-se em sua tarefa e foque sua atenção para captar determinadas informações. Ao ampliar a compreensão das relações entre aprendizagem e atenção, Kastrup (2004)KASTRUP, Virgínia. A aprendizagem da atenção na cognição inventiva. Psicologia e Sociedade, Minas Gerais, v. 16, n. 3, set./dez. 2004. identifica também uma atenção aberta e concentrada, disponível ao que pode surgir, sem se prender aos padrões dos pensamentos e posturas habituais. Suspende-se, então, o que a autora chama de atitude recognitiva, isto é, uma postura de mera apreensão de conteúdos apresentados pelo professor. É esta suspensão que vai possibilitar que processos inventivos se manifestem, ao se deixarem afetar pelo não previsto. As associações, os pensamentos difusos, que surgem durante uma atividade educativa, e que são comumente compreendidos como distração, relacionam-se a este tipo de atenção concentrada e aberta, e pode gerar uma postura propícia à aprendizagem inventiva (Kastrup, 2012).

Kastrup (2001)KASTRUP, Virgínia. Aprendizagem, arte e invenção. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 1, p.17-27, jan./jun. 2001. relaciona a aprendizagem com a situação de um viajante em terra estrangeira. Os desafios com os quais o viajante se depara perturbam a maneira até então usual de lidar com o cotidiano. Esta perturbação, denominada por Varela, Thompson e Rosch (2003) de breakdown, é uma ruptura na experiência cognitiva. E é esta ruptura que instiga a busca por novas formas de viver. Ao mesmo tempo, é possível que este viajante, no seu retorno, experimente um estranhamento em relação ao seu lugar de origem, até então familiar. Dessa forma, a aprendizagem se dá mediante uma condição perturbadora, identificada por quem aprende como tal. “A aprendizagem começa quando não reconhecemos, mas, ao contrário, estranhamos, problematizamos” (Kastrup, 2001KASTRUP, Virgínia. Aprendizagem, arte e invenção. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 1, p.17-27, jan./jun. 2001., p. 18) e transformamos nossas formas de se relacionar com o mundo.

Caberia então às práticas escolares construírem um ambiente que acolhesse também as situações que suscitam estranhamento nos alunos. Mais do que um estudante vigilante, voltado apenas para o desempenho e para apreensão de técnicas, interessa-nos favorecer a formação do estudante sensível e curioso que valoriza a problematização e a experiência.

Como nos lembram Passos, Kastrup e Escóssia (2010PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. Posfácio: sobre a formação do cartógrafo e o problema das políticas cognitivas. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP,Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da(Org.) Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 201-205., p. 203), “Não se chega à cognição inventiva por adesão teórica, mas por práticas cognitivas efetivas e encarnadas”. Fazemos então, a seguir, um exercício de reflexão neste sentido, discutindo atividades educativas desenvolvidas com ACSs durante sua formação técnica.

Procedimentos metodológicos

Este estudo tem como pano de fundo o Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde (CTACS) desenvolvido pela EPSJV que integra a RET-SUS.

Buscando trazer para a discussão elementos da aprendizagem que não se reduzem à recognição, e valorizar uma concepção de formação em saúde que se estende para além da concepção biomédica, a investigação se debruçou mais especificamente sobre determinadas atividades, compreendidas como estratégias pedagógicas alternativas às empregadas usualmente no processo de escolarização tradicional.

Estas atividades desenvolvidas no CTACS não têm como foco a assimilação de algum conteúdo específico. Têm por objetivo propiciar o contato dos estudantes com espaços e linguagens diferentes dos habituais e favorecer a reflexão sobre as relações entre saúde, educação e cultura. Além disso, é, também, intuito da proposta destas atividades possibilitar a desnaturalização de demarcações sociais, comumente encontradas nas grandes cidades, que fazem com que muitos equipamentos urbanos, mesmo que de uso gratuito, sejam pouco frequentados pelas classes populares. Entre estas atividades encontramos oficinas e debates em torno de temas atuais, visitas a museus, parques, centros culturais, construções históricas etc.

O estudo referente aos registros destas atividades foi o ponto de partida para a elaboração desta investigação. Assim, toda a pesquisa foi desenvolvida por meio de uma análise documental que envolveu dois tipos de materiais.

O primeiro conjunto de documentos refere à formação dos ACSs produzidos tanto pela coordenação do CTACS quanto por seus professores e alunos. Inclui documentos atas de reunião de professores e de conselhos de classe e registros sobre as atividades pedagógicas alternativas produzidos por docentes e alunos (relatórios docentes e trabalhos discentes)1 1 O material analisado neste artigo refere-se sobretudo às atividades realizadas no eixo Educação e Saúde, no eixo Trabalho e na Oficina de Cultura. .

O segundo conjunto é análise de entrevistas de discentes do CTACS (Morel, 2017MOREL, Cristina M. T. M. Aprendizagem de adultos: estudo a partir de uma experiência educativa com Agentes Comunitários de Saúde. 2017. 185 f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Faculdade de Educação, UERJ, Rio de Janeiro, 2017.).

Todo este material é discutido a partir de indagações sobre o processo de aprendizagem e os efeitos do curso sobre os alunos. Toma-se por base a proposta de formação em saúde já exposta, bem como os conceitos de breakdown e cognição inventiva, propostos por Kastrup, também apresentados anteriormente.

Vale ressaltar que o estudo foi realizado considerando os desafios encontrados no cotidiano do CTACS da ESPJV. Assim, evidentemente, toda a discussão desenvolvida neste trabalho é atravessada por diferentes olhares e afetos que se construíram neste processo, do qual participamos da coordenação e somos também professoras de alguns eixos temáticos.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da EPSJV/Fiocruz, parecer n. 1.625.324. Todos os entrevistados assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

Reflexões sobre a experiência de formação

O Curso Técnico de Agentes Comunitários

O CTACS oferece formação a trabalhadores que já desempenhem a função de ACS no sistema público de saúde. Estes trabalhadores têm como principal pré-requisito para integrarem as equipes da Estratégia Saúde da Família ser morador da região atendida. Eles são oriundos, em geral, de áreas populares dos municípios onde trabalham e recebem baixa remuneração. Embora os alunos do curso possuam o ensino médio completo, eles tiveram, em sua maioria, uma escolarização precária, e uma formação profissional frágil e fragmentada, construída basicamente pelo próprio exercício profissional.

O curso, com duração de dois anos e quatro meses, está estruturado em três etapas formativas organizadas por eixos curriculares e outras estratégias pedagógicas como as oficinas de leitura e de cultura. Seguindo os princípios propostos pela EPSJV, para além da formação técnica stricto sensu, o curso visa o desenvolvimento dos sujeitos, com a ampliação da capacidade de análise crítica e de intervenção na sua realidade. Assim, alarga-se o desafio da formação para além de processos de aprendizagem de técnicas a serem aplicadas no cotidiano do trabalho. É ponto fundamental para o andamento do curso, a construção de um espaço pedagógico em que a formação esteja atrelada à criação de novos olhares e valores e a constituição de novos territórios de atuação e de luta para estes trabalhadores-alunos (Pereira et al., 2016PEREIRA, Ingrid D. F. et al. Princípios pedagógicos e relações entre teoria e prática na formação de agentes comunitários de saúde. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 377-397, ago. 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tes/v14n2/1678-1007-tes-1981-7746-sol00010.pdf>. Acesso em: 3 out. 2017.
http://www.scielo.br/pdf/tes/v14n2/1678-...
)

Processos de aprendizagem

Sem ignorar ou diminuir a importância do aprendizado do conhecimento e das técnicas científicas, temos como proposta, neste momento, observar a construção de processos de aprendizagem inventiva na vida adulta, que julgamos fundamentais para o desenvolvimento dos trabalhadores da saúde que, usualmente, se formam pela RET-SUS.

Assim, as análises desenvolvidas a seguir tomam como base, em especial, atividades realizadas com os alunos mediante a discussão de temas atuais e visitas a espaços culturais, como o Instituto Moreira Salles2 2 O Instituto Moreira Salles é uma instituição cultural, de iniciativa privada, que abrange áreas como fotografia, cinema, música, literatura e iconografia. À época da visita dos alunos, apresentava a exposição “Modernidades fotográficas: 1940-1964”. e o Museu do Amanhã3 3 O Museu do Amanhã, construído no contexto do projeto de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro, aborda arte e ciências, baseando-se, sobretudo, na comunicação digital. Este museu é uma iniciativa municipal, com apoio de instituições privadas. , ambos no Rio de Janeiro.

Muitas vezes sem conteúdo específico para ser trabalhado, mas visando propiciar e debater experiências diferentes com base em preocupações do curso, estas atividades dispararam diversos processos e aprendizagens nos alunos que são o foco deste trabalho. É possível afirmar que o acompanhamento dos alunos e as estratégias empregadas no curso nos permitiram uma aproximação das questões referentes ao ensino-aprendizagem de adultos trabalhadores por meio de outra perspectiva que não a assimilação de informações, acercando-nos dos processos de construção subjetiva subjacentes a elas. Investe-se, aqui, menos na formatação de um estudante segundo um modelo pronto de adulto-egresso e mais na propulsão de sentimentos e reflexões – de movimentos de reinvenção de adultos continuamente inacabadosEm uma visita a uma exposição fotográfica, por exemplo, os alunos tiveram contato com mediadores que realizaram uma roda de conversa sobre o sentido de cultura. Eles também propuseram a utilização de formas vazadas que instigou os alunos a mirar o entorno com esta espécie de moldura, que manuseavam escolhendo o que olhar e como olhar.

Nesta perspectiva, gerou-se uma postura de observação da própria observação, que se propagou durante toda a visita. Os mediadores instigaram os alunos a perceberem os diferentes olhares dos fotógrafos, além de pensarem no sentido daquelas fotografias para si mesmos. A beleza das imagens, que retratavam de forma digna estratos da população brasileira, como negros e índios, que em muitas ocasiões são desvalorizados, teve um efeito importante sobre os alunos. Alguns deles ficaram impactados e orgulhosos ao verem as casas de palafitas de seu bairro retratadas em um espaço valorizado, como o que visitamos.

Ver o que é familiar abordado em outro espaço e segundo um olhar diverso cria um distanciamento, e um interesse, que pode ser um caminho para aprendizagens. Uma referência de Freire (1982)FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982. a sua experiência nos Círculos de Cultura de São Tomé e Príncipe, na África, estabelece também esta relação entre distanciamento e aprendizagem. O autor nos conta a surpresa dos alfabetizandos ao constatarem que a imagem usada durante este Círculo de Cultura era a mesma que viam pela janela, isto é, Monte Mário, seu povoado. Nas palavras do autor: “No Círculo de Cultura, naquela tarde, estavam tendo uma experiência diferente: ‘rompiam’ a sua ‘intimidade’ estreita com Monte Mário e punham-se diante do pequeno mundo da sua cotidianidade como sujeitos observadores” (Freire, 1982FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982., p. 81). O distanciamento, o ‘rompimento com a intimidade’, ao suscitar um estranhamento, possibilita aprendizagens.

Nesta mesma perspectiva, a visita guiada à exposição, ao permitir constatar que o que vemos depende da forma como vemos, possibilitou esta condição de estranhamento, que podemos associar ao conceito de breakdown referido anteriormente.

A vivência de situações que se afastam de seu cotidiano coloca novos enquadres nas cenas e paisagens do dia a dia, abrindo possibilidades de novas análises. Estes momentos, aliados a diferentes discussões em sala de aula, permitiram também a ampliação das perguntas e das formas de examinar distintas situações passadas nos serviços de saúde.

Percebemos este processo claramente em outra passagem na mesma atividade. Ao término da visita à exposição fotográfica, a mediadora indagou aos alunos sobre suas impressões. Um aluno associou a experiência vivida na exposição com as visitas domiciliares que realiza como ACS, quando “cada porta que se abre na visita é uma imagem diferente que se vê”. Uma aluna observou que “trabalhar com saúde não é só trabalhar com doença”, e que a ida à exposição a ajudou a compreender a importância do acesso a espaços culturais para o bem-estar dos usuários do SUS com quem trabalha (Morel, 2017MOREL, Cristina M. T. M. Aprendizagem de adultos: estudo a partir de uma experiência educativa com Agentes Comunitários de Saúde. 2017. 185 f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Faculdade de Educação, UERJ, Rio de Janeiro, 2017.).

Pode-se afirmar que esta atividade permitiu que os ACSs experimentassem situações de aprendizagem. Para tanto, a atuação dos mediadores suscitou nos visitantes, não uma atitude recognitiva, mas uma postura de atenção concentrada e aberta, permitindo que vivenciassem uma experiência estética. Sobre a relação entre cognição inventiva e experiência estética, Kastrup (2010KASTRUP, Virgínia. Experiência estética para uma Aprendizagem Inventiva: notas sobre a acessibilidade de pessoas cegas a museus. Informática na Educação: teoria & prática, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 38-45, jul./dez. 2010.KASTRUP, Virgínia. Conversando sobre políticas cognitivas e formação inventiva. In: DIAS, Rosimeri O. Formação inventiva de professores. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012. p. 52-60., p. 41) afirma que “a experiência estética é uma experiência de breakdown, no sentido em que ela nos desloca e nos força a pensar”. Este tipo de experiência é compreendido não somente como aquele propiciado pela vivência artística, mas por qualquer situação vivida “como uma experiência especial, que faz com que a vida não se apresente como uma corrente homogênea e uniforme de fatos banais” (Kastrup, 2010KASTRUP, Virgínia. Experiência estética para uma Aprendizagem Inventiva: notas sobre a acessibilidade de pessoas cegas a museus. Informática na Educação: teoria & prática, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 38-45, jul./dez. 2010.KASTRUP, Virgínia. Conversando sobre políticas cognitivas e formação inventiva. In: DIAS, Rosimeri O. Formação inventiva de professores. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012. p. 52-60., p. 39). A experiência estética pode se apresentar então ao visitante de uma exposição, a um viajante em terras estrangeiras, ou mesmo ao aluno em sua aprendizagem inventiva.

Depois desta visita, em sala de aula, foram apresentadas aos alunos formas vazadas, semelhantes àquelas usadas na atividade no museu. A proposta era de que, para realizarem a avaliação de um dos eixos do curso, olhassem, através destas formas, para um mural com palavras e imagens referentes aos temas trabalhados. Uma aluna brincou de fotografar as colegas segurando as formas vazadas, o que criou um efeito interessante de formas dentro de formas. O manuseio deste material potencializou o que já vinham experimentando na visita. Foi um momento significativo, em que vivências (como poder brincar com as imagens, valorizar a beleza, poder divertir-se, sentir-se valorizado) misturavam-se, e possibilitavam aos alunos pensarem também de maneira diferente sobre seu trabalho e sua vida. Kastrup (2001KASTRUP, Virgínia. Aprendizagem, arte e invenção. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 1, p.17-27, jan./jun. 2001., p. 20) afirma: “Quando somos tocados pelo signo, pela diferença, temos uma experiência de problematização, de invenção de problema. Só a partir daí ocorre a busca de solução e de sentido”.

A experiência estética, vivida na visita à exposição fotográfica e prolongada em sala de aula, possibilitou aos alunos a abertura para novas compreensões sobre si. Kastrup (2005KASTRUP, Virgínia. Ensinar e aprender: falando de tubos, potes e redes. Boletim Arte na Escola, São Paulo, n. 40, dez. 2005. Disponível em: <http://artenaescola.org.br/sala-de-leitura/artigos/ artigo.php?id=69347&>. Acesso em: 13 fev. 2014.
http://artenaescola.org.br/sala-de-leitu...
, p. 193), ao discutir os conceitos de atenção a si e produção de subjetividade a partir de uma oficina de cerâmica para pessoas com deficiência visual, observa que: “[...] as práticas artísticas, como as experiências estéticas, acionam processos de cognição inventiva e de produção de subjetividade, engendrando domínios cognitivos e novos territórios existenciais.”.

Pensar a formação de trabalhadores da saúde por meio de estratégias pedagógicas alternativas, e com base na perspectiva da cognição inventiva, oferece pistas para se lidar com os desafios da prática pedagógica. Nos debates entre os professores nos conselhos de classe, pudemos identificar como, em geral, o processo de apropriação pelos alunos de discussões trazidas pelo curso se constrói muito em função de situações vividas, o que, por vezes, torna difícil favorecer a reconstituição da experiência considerando os conceitos abordados em aula. Entretanto, em visitas a espaços da cidade que normalmente os alunos não frequentam – como a descrita, ou em atividades e debates que trazem para dentro da escola ‘outros mundos’ – é possível perceber uma ampliação das referências utilizadas para a reflexão pelos estudantes.

Este processo propicia a irrupção de análises menos circunscritas ao contexto das experiências pessoais imediatas, possibilita o questionamento de formas de relação e práticas naturalizadas no espaço de trabalho. O relato sobre a visita do Museu do Amanhã traz a discussão desenvolvida com os alunos sobre sua visão do Museu e seu mundo tecnológico. A partir da experiência proporcionada pela interação com diferentes linguagens ‘informatizadas’, os alunos constataram como o acúmulo de informações deixa pouco registro. Quando estimulados a analisarem mais detidamente esta visita em comparação com outras, eles problematizaram o sentido do uso da tecnologia e quanto o acúmulo de informações dificultava aproveitar as experiências. Ao ampliarem o debate, puderam refletir sobre o uso da tecnologia em seu trabalho e como este uso, muitas vezes, retira os agentes da atividade mais próxima dos usuários e os coloca mais focados na produção de dados – seja no interior da unidade, seja nas visitas domiciliares com a proposta de utilização de tablets.

As vivências de estranhamento e a sensibilização para ouvir e perceber coisas diferentes do que se está acostumado provocam rupturas e problematizações do cotidiano e propiciam a (re)construção de relações com o trabalho, com o ambiente e com as pessoas. O investimento neste processo nos parece favorecer, assim, a desnaturalização, não só dos modos de andar a vida, mas também das condições que os constrangem – ponto fundamental de processos de aprendizagem tal como os entendemos. Ponto fundamental, também, para pensarmos na formação de trabalhadores da saúde menos presos à normatização biomédica, mais sensíveis às condições e aos processos de adoecimento dos usuários e mais abertos à construção conjunta de olhares e ações que favoreçam a promoção da saúde no território/serviço onde trabalham.

Vemos isso na fala de uma aluna da Oficina de Cultura:

Quando você fica encantado com algo novo, e este algo é muito bom, você tem vontade de falar pra muita gente e as pessoas acabam querendo viver aquilo que foi bom pra você e foi isto que aconteceu com a Oficina de Cultura para mim.

A aluna que fez este comentário conta que inicialmente não entendia o sentido das atividades culturais para sua formação, mas que em determinado momento passou a compreendê-lo: “Quando ele [o professor] levou a gente pra rua... aí eu pá (sic)... Já entendi! As pessoas ficam doentes e não sabem o benefício que o Rio de Janeiro tem para trazer isso [saúde]”. Esta aluna relata que incentivou as pessoas com quem trabalha a realizar passeios culturais no centro da cidade, e que passou a fazê-los com a família também (Morel, 2017MOREL, Cristina M. T. M. Aprendizagem de adultos: estudo a partir de uma experiência educativa com Agentes Comunitários de Saúde. 2017. 185 f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Faculdade de Educação, UERJ, Rio de Janeiro, 2017.).

Ainda no relato da Oficina de Cultura, vemos como outra estudante pôde, com base nas das vivências propiciadas pelas atividades culturais, fazer a seguinte reflexão sobre sua atuação como ACS:

A cultura nos faz entender as diferentes etnias, costumes, cenários, entre outras coisas, e transportando isto para o meu trabalho será de grande valia, pois posso ter um olhar diferenciado e entender alguns motivos quando o que fazemos não dá certo, talvez seja porque o outro tem uma visão diferente da minha, o que não quer dizer que é errado, provavelmente a bagagem que ele carrega é diferente.

Uma outra aluna coloca em seu relatório sobre a visita à exposição fotográfica apresentada anteriormente:

O eixo Educação e Saúde nos mostrou que nós precisamos ter um olhar diferente sobre nossos cadastrados. Nos mostrou que nós temos que ter um olhar diferente sobre certos assuntos, pensamento e opiniões. A guia nos fez fazer várias reflexões. Ler e ver várias histórias com as fotos e pensar como os fotógrafos.

Recorrendo novamente à analogia entre a situação do viajante e a condição de aprendiz, volta-se a lembrar que:

Só quando alguma interação nos tira do óbvio – por exemplo, ao sermos bruscamente transportados a um meio cultural diferente – e nos permitimos refletir, é que nos damos conta da imensa quantidade de relações que tomamos como garantidas [...] A tradição é, ao mesmo tempo que uma maneira de ver e atuar, uma maneira de ocultar. (Maturana e Varela apud Kastrup, 2007KASTRUP, Virgínia. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 177)

Outro ponto a ser ressaltado sobre estes processos é a maneira como os alunos puderam estabelecer as relações entre educação, cultura e saúde, interligadas às reflexões sobre sua própria condição de vida. A constatação de que existe um universo cultural, com equipamentos gratuitos, aos quais a população mais pobre tem pouco acesso em função das ‘barreiras sociais’, possibilitou pensar sobre limites e possibilidades da sua condição social. Uma aluna observou que pouco aproveita dos espaços culturais da cidade, não porque não queira, mas porque não há oportunidades iguais para todos. Ela explicou que mora longe do lazer, que é caro pagar o transporte e que não tem com quem deixar os filhos. Nos fins de semana tem que cuidar da casa, porque não tem quem a ajude. Ao mesmo tempo, a aluna expressou o desejo de romper com estas barreiras, organizando-se para levar as pessoas com quem trabalha nestes espaços, bem como ir com a própria família. Ela escreve em seu trabalho:

Vejo que vivo em uma comunidade que tem muros ‘invisíveis’, mas que podem ser derrubados através do saber, dos questionamentos, e aos poucos poderemos acessar este ‘mundo’ que está ao meu (nosso) alcance, mas que é preciso me jogar para acessá-lo.

Poder identificar o acesso aos espaços culturais como um direito a ser conquistado, e relacionar este movimento de mudança à ampliação do conhecimento (embora saibamos que não é só o conhecimento que transforma as condições sociais), assinala um jeito distinto de se olhar.

Identificamos também que as atividades analisadas trazem a possibilidade de valorização de outros saberes e habilidades que não os circunscritos pela ciência. Ao comparar a visita ao Museu do Amanhã com as visitas aos prédios históricos e também com a conversa com moradores que passaram por processos de despejo em função das obras para os grandes eventos no Rio de Janeiro, registradas no relatório sobre esta visita, foi possível, por exemplo, observar como a troca de experiências com quem viveu pode trazer mais aprendizado do que o acesso a enorme quantidade de informações e efeitos tecnológicos trazidos pelo museu.

Percebemos este processo, também, ao vermos os alunos valorizarem o contato com diferentes linguagens artísticas e quando, em conversas sobre as visitas, eles têm a possibilidade de reconhecerem-se como possuidores de conhecimentos que interessam aos outros e que podem, portanto, ser socializados. Vemos isto, claramente, no relato sobre a visita ao Instituto Moreira Salles, quando se registra que diante de uma fotografia que apresentava um ritual de umbanda, a aluna, adepta desta religião, pôde explicar, à mediadora e aos colegas, detalhes desta imagem, como, o motivo pelo qual as pessoas retratadas tinham as cabeças raspadas. Nestes contextos, os estudantes saem mais facilmente da postura de ouvintes, para também assumirem o papel de quem tem conhecimentos a expor.

Considerações finais

Nossas análises permitiram perceber diferentes movimentos dos alunos que apontam para um processo de aprendizagem que vai além da recognição. Uma série de atividades desenvolvidas durante o curso contribuiu para esta postura de ‘ver diferente’, de construir práticas diversas e se construir a partir apoiado em afetamentos produzidos pelas vivências proporcionadas pela formação.

Ao discutirmos os processos de aprendizagem dos ACSs no CTACS, nos detivemos um pouco mais na compreensão do uso de diferentes estratégias pedagógicas que disparam processos daquilo que entendemos por aprendizagem inventiva dos alunos. Estas podem ser compreendidas como dispositivos. O conceito de dispositivo foi originariamente apresentado por Foucault (1979FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 1-14., p. 244) da seguinte maneira:

[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos dos dispositivos. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos.

Na interpretação de Kastrup e Barros (2010KASTRUP, Virgínia; BARROS, Regina B. Movimentos-funções do dispositivo na prática da cartografia. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virginia; ESCÓSSIA, Liliana da (Org.) Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2010. p. 76-91., p. 90), dispositivos, como uma oficina de práticas artísticas ou como o trabalho clínico, possibilitam processos de criação.

O que caracteriza um dispositivo é sua capacidade de irrupção naquilo que se encontra bloqueado para a criação, é seu teor de liberdade em se desfazer dos códigos, que dão a tudo o mesmo sentido. O dispositivo tensiona, para outro lugar, provoca outros agenciamentos.

No campo da educação, é possível pensar as estratégias curriculares como dispositivos, que podem tanto mobilizar experiências de transformação quanto de assujeitamento. Ao investirmos na noção de um aluno adulto em construção e nos processos de breakdown propiciados pelo contato com ‘outros mundos’, buscamos construir uma nova lógica para a formação de trabalhadores e, mais especificamente, para a formação de trabalhadores para o SUS.

Seguramente que os efeitos produzidos nos alunos por estas diferentes estratégias pedagógicas não se dão de forma homogênea. Há alunos que demonstram interesse, que participam, comentam, e há também os aparentemente alheios aos processos. Além disto, não há um padrão único de participação: há alunos que têm desembaraço para se expressar oralmente durante a aula; há os que pouco falam em aula, mas que por escrito demonstram estar acompanhando e elaborando o que é abordado durante o curso. E há, também, os efeitos que não são expressos de imediato pelos alunos, e aqueles sobre os quais nem o professor nem o pesquisador terão acesso. Entretanto, nossas análises nos mostram como foram produzidos diferentes disparadores de reflexão e reconfiguração de sentidos – processos essenciais se pensarmos na formação dos trabalhadores do SUS. Tão importante quanto a assimilação dos conteúdos técnicos, esta formação precisa produzir sujeitos-trabalhadores sensíveis e comprometidos com a construção de práticas de saúde que não se constituem apenas em conhecimentos técnico-científicos.

A aprendizagem, compreendida como processo de produção de subjetividade, aponta para a transformação operada naquele que aprende: “Toda aprendizagem inventiva é crítica, no sentido de que concerne aos limites e envolve sua transposição, impedindo o sujeito de continuar sendo sempre o mesmo” (Kastrup, 2001KASTRUP, Virgínia. Aprendizagem, arte e invenção. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 1, p.17-27, jan./jun. 2001., p. 24). As estratégias pedagógicas anteriormente exploradas, entendidas aqui como dispositivos pedagógicos, mobilizaram nos alunos posturas que favorecem o questionamento da sua condição de vida e de suas práticas profissionais. O trabalho realizado possibilitou que os alunos problematizassem as relações entre educação, cultura e saúde, e as maneiras de promover práticas de saúde. Pode-se afirmar que estas experiências, além de tantas outras que fogem ao nosso controle precisar, criaram a possibilidade de os alunos ‘não serem mais os mesmos’ e se fortalecerem na construção de um SUS e uma sociedade diversos.

Referências

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  • VARELA, Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor. A mente incorporada: ciências cognitivas e experiência humana. Porto Alegre: Artmed, 2003.
  • 1
    O material analisado neste artigo refere-se sobretudo às atividades realizadas no eixo Educação e Saúde, no eixo Trabalho e na Oficina de Cultura.
  • 2
    O Instituto Moreira Salles é uma instituição cultural, de iniciativa privada, que abrange áreas como fotografia, cinema, música, literatura e iconografia. À época da visita dos alunos, apresentava a exposição “Modernidades fotográficas: 1940-1964”.
  • 3
    O Museu do Amanhã, construído no contexto do projeto de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro, aborda arte e ciências, baseando-se, sobretudo, na comunicação digital. Este museu é uma iniciativa municipal, com apoio de instituições privadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2018
  • Aceito
    11 Jul 2018
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