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Reforma psiquiátrica: estratégias para resistir ao desmonte

As medidas tomadas pelo governo federal a partir de 2016, no governo Temer, e aprofundadas nos primeiros meses do governo Bolsonaro, e seu impacto em alguns indicadores da política de saúde mental, permitem afirmar que está em curso um processo acelerado de desmonte dos avanços alcançados pela reforma psiquiátrica. Com todas as marchas e contramarchas de um processo complexo, que envolve gestão pública, mobilização social e mudança cultural, a reforma da atenção em saúde mental no Brasil apresentava uma linha relativamente firme e contínua de progresso, desde a década de 1980. É a primeira vez, em cerca de 35 anos, que visivelmente marchamos para trás.

Reforma psiquiátrica, um processo em construção

Resumindo esta longa história. Os anos 1980 se iniciaram com a crise financeira do INAMPS, e com a revelação (que, a rigor, não surpreendeu ninguém) de que os leitos psiquiátricos tiveram um crescimento explosivo durante os governos militares, e não tinham nenhuma forma de controle técnico, sendo responsáveis pelo maior gasto em internações do sistema. Ao lado disso, mais de um terço da população era excluída da cidadania previdenciária, e tinha acesso apenas aos enormes e semiabandonados asilos públicos federais e estaduais. Com exceção de raros serviços ambulatoriais do mesmo INAMPS ou de algumas universidades públicas, o atendimento psiquiátrico para os não-ricos se restringia às internações, configurando uma monocultura hospitalar. Como não havia sistema universal de saúde, a reforma psiquiátrica embrenhou-se em duas sendas vigorosas, mas autolimitadas: a humanização dos grandes asilos públicos (ao lado da crítica à privatização do sofrimento que o estado autoritário realizava através da 'indústria da loucura') e uma incipiente ambulatorização do cuidado em saúde mental.

A Constituinte de 1988 construiu o pacto social e institucional que permitiu os grandes avanços da década de 1990. A reforma psiquiátrica avançava agora com o arcabouço de um sistema universal de saúde, e sob as premissas éticas dos direitos de cidadania. O novo modelo de atenção foi debatido com a sociedade nos anos 1990, e resultou na lei n. 10.216 em 2001. O lema 'sociedade sem manicômios', adotado pelo movimento social em 1987, funcionava como um norte ético seguro para as mudanças estruturais da gestão pública, que foram a marca da década seguinte: redução dos leitos de hospital especializado, criação de serviços na comunidade, ampliação radical do acesso ao tratamento, abertura das fronteiras de atendimento na atenção primária e na intersetorialidade. Até 2015, a ampliação do acesso ao cuidado, tanto para transtornos mentais graves e persistentes como para transtornos mentais menos graves (e cada vez mais frequentes), seguiu uma linha regular de incremento de serviços e transformação de processos de trabalho.

Sobre as transformações dos processos de trabalho, além da incorporação programática da intersetorialidade (a partir da IV Conferência Nacional de Saúde Mental - Intersetorial, de 2010), os desafios de construir o cuidado no dia a dia do território (e não mais sob a rígida configuração ergonômica e arquitetônica do trinômio institucional emergência-ambulatório-hospital) passaram a constituir o conteúdo principal das pesquisas e reflexões do agora chamado de 'campo da atenção psicossocial'. Uma mudança paradigmática em processo de construção. Importa lembrar que, antes da reforma psiquiátrica, temas como saúde mental de crianças e adolescentes e problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas estavam fora da política de saúde mental (Couto, Delgado, 2019COUTO, Maria Cristina V.; DELGADO, Pedro Gabriel G. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 17-40, 2015. Disponível em: <http://www.psi.puc-rio.br/site/images/psi_puc/publicacoes/Psicologia_Clinica_27-1.pdf>. Acesso em: mar. 2019.
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) e da saúde pública (Brasil, 2003BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. A política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Textos Básicos. 2003. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_atencao_alcool_drogas.pdf>.Acesso em: 18 mar. 2019.
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).

O desmantelamento em marcha

Este processo foi interrompido a partir de 2016, com medidas tomadas pelo governo Temer e continuadas no governo Bolsonaro (há uma continuidade evidente na área da saúde e de outras políticas sociais entre os dois governos, instaurados a partir de uma ruptura democrática). A primeira medida é a Emenda Constitucional (EC) 95, que já vem produzindo consequências de desconstrução do Sistema Único de Saúde (SUS) e das políticas intersetoriais (assistência social e educação, principalmente), com impactos imediatos no campo da saúde mental. Os resultados da agenda neoliberal imediatamente impactam a saúde pública e indicadores de bem-estar e qualidade de vida: o desemprego no início de 2016 era cerca de 5,5%, e atingiu 12,5% no primeiro trimestre de Bolsonaro. É desnecessário recordar a vastíssima literatura que há mais de 100 anos correlaciona desemprego e sofrimento mental, atingindo paroxismos que alteram índices de suicídio (como recentemente na Grécia, alguns anos depois da crise de 2008).

Entre 2016 e 2019, o governo federal tomou as seguintes medidas: 1) modificou a PNAB - Política Nacional de Atenção Básica, alterando os parâmetros populacionais e dispensando a obrigatoriedade da presença do agente comunitário de saúde nas equipes de saúde da família, com consequências imediatas de descaracterização e fragilização da atenção básica; 2) ampliou o financiamento dos hospitais psiquiátricos, concedendo reajuste acima de 60% no valor das diárias; 3) reduziu o cadastramento de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em proporção ainda imprecisa, uma vez que o Ministério da Saúde deixou de fornecer os dados sobre a rede de serviços de saúde mental; 4) ampliou o financiamento para mais 12 mil vagas em Comunidades Terapêuticas; 5) restaurou a centralidade do hospital psiquiátrico, em norma já publicada, e recomendou a não utilização da palavra 'substitutivo' para designar qualquer serviço de saúde mental (embora seja medida esdrúxula do ponto de vista da gestão, tem uma intenção simbólica clara, de negar a mudança de modelo de atenção); 6) recriou o hospital-dia, um arcaísmo assistencial, vinculado aos hospitais psiquiátricos, sem definir sua finalidade, em evidente reforço ao modelo desterritorializado; e 7) recriou o ambulatório de especialidade, igualmente sem referência territorial.

Em fevereiro de 2019, o Ministério da Saúde do governo Bolsonaro divulgou uma 'Nota Técnica' (NT) destinada a "esclarecer aspectos da nova política de saúde mental" (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Nota Técnica 11/2019. Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes na Política Nacional sobre Drogas. Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. 2019. Disponível em:<https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2019/02/11_23_14_123_Nota_Te%CC%81cnica_no.11_2019_Esclarecimentos_sobre_as_mudanc%CC%A7as_da_Politica_de_Sau%CC%81de_Mental.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2019.
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). Reafirmando a continuidade da gestão desde Temer, e assinada pelo mesmo coordenador, o documento apontou as mudanças realizadas na direção da política. Além da crítica genérica sobre a 'ideologia' presente na política de saúde mental (reproduzindo a retórica ideológica 'anti-ideologia' do governo Bolsonaro), substituída por uma visão 'científica', alguns pontos devem ser destacados, pois representam uma medida direta de desconstrução da reforma psiquiátrica: reforço do papel estratégico do hospital psiquiátrico; ênfase na internação de crianças e adolescentes; ênfase em métodos biológicos de tratamento, como a eletroconvulsoterapia; disjunção entre a saúde mental e a política de álcool e outras drogas; e condenação das estratégias de redução de danos.

A política de álcool e outras drogas passa à gestão do superministério da Cidadania, que incorpora Desenvolvimento Social, Cultura e Esporte, cujo titular, oriundo do governo Temer, expressa uma clara política de apoio às comunidades terapêuticas e contra a estratégia de redução de danos.

Pensando e praticando a resistência ao desmonte da reforma

A reforma psiquiátrica é uma construção lenta e sólida, mas está sob risco. Há bons motivos para acreditar que a resistência ao desmonte é possível, e será exitosa. Para isso, é preciso levar em conta alguns pontos. Primeiro, esta é a pior crise da democracia brasileira, desde o golpe de 1964, e representa uma ruptura do pacto democrático e social celebrado com a Constituição de 1988. O neoliberalismo autoritário que tomou o poder do Estado tem sustentações sólidas nas forças armadas, nas corporações de mídia, em parte da opinião pública, em parte das organizações religiosas, no judiciário, no governo dos Estados Unidos, na inflexão conservadora que domina parte do planeta neste momento. Privatização do Estado, desmonte do projeto de bem-estar social, pauperização, concentração de renda, punitivismo, cerceamento de liberdades individuais, acirramento do ódio e da desigualdade, são componentes do contexto trágico que estamos vivendo. A resistência deve partir de uma consciência aguda do momento político. Depois da defesa da democracia, combater a fragilização do SUS (o "SUS mínimo" proclamado pelo Ministro da Saúde) é tarefa da resistência. No campo da atenção psicossocial, há um vasto movimento de luta, formado por dezenas de milhares de profissionais diretamente implicados nos serviços, aliados a estudantes, usuários e familiares. A trincheira da resistência está nos serviços territoriais.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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