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Pandemia e a necessidade de humanizar o humano

Já podemos afirmar que a pandemia da Covid-19 (coronavirus disease-19) se apresenta como um marco na sociabilidade contemporânea, aguçando, ainda mais, as contradições entre a ‘economia’ e a ‘vida’ intrínsecas à forma societária e, em particular, à formação social brasileira. Neste contexto, expressam-se, com contundência, os efeitos pungentes da flexibilização de vínculos laborais, do encolhimento de direitos sociais, da superexploração e da precarização das condições de trabalho, de um lado; e, de outro lado, da permanência de condições sanitárias inadequadas, das situações de moradia inapropriadas, da destruição ambiental de efeitos nefastos imprevisíveis e do subfinanciamento e da privatização do Sistema Único de Saúde. Acrescentam-se a este cenário o rebaixamento dos horizontes políticos, dificultando o desenvolvimento de soluções emergenciais que, de fato, apresentem um caminho para o conjunto da sociedade brasileira.

Coloca-se, portanto, a necessidade histórica de construir, agora em novo patamar, a humanização humana nas dimensões do trabalho, da educação e da saúde, nos termos da linha editorial da revista.

A par deste quadro trágico, em se tratando de um editorial, cumpre apresentar uma renovação em nossa publicação, com a inauguração da seção intitulada Notas de Conjuntura, compostas por textos de autores convidados, mantendo-se o processo de avaliação duplo cego por pareceristas. A criação da seção já havia sido planejada em período anterior à emergência da pandemia e da adoção do sistema de fast track pela Fundação Oswaldo Cruz, mas, como não poderia deixar de ser, a temática básica, possivelmente ainda por alguns números, orbitará em torno da Covid-19.

A miríade de abordagens e enfoques sobre esta temática busca não só manter uma coerência com a multidisciplinaridade do periódico, mas também reunir instrumentos para compreender, academicamente, a complexidade do momento, cujo enfrentamento só poderá ocorrer se analisarmos a totalidade da vida social. Uma característica une e unirá todas estas intervenções: a identificação dos limites da atual sociabilidade no que tange ao pleno desenvolvimento emancipatório das dimensões do trabalho, da educação e da saúde. A pandemia expõe tais limites em uma feição avassaladora, amolando tragicamente o fio da navalha analítica. Não poderia, portanto, haver momento mais oportuno para nos lançarmos na abertura desta nova seção da revista.

Também não poderíamos deixar de tratar das questões que, em particular, devem ser pautadas para os periódicos científicos. Uma primeira diz respeito à relação entre as ciências – tradicional e genericamente divididas entre duras, biológicas e sociais-humanas. As propostas de intervenção sobre a pandemia, inclusive as emergenciais, têm exigido a mobilização de todas as ciências, sempre respeitando as especificidades de cada campo científico. Este desafio não se configura como algo fácil, nem de solução imediata, mas talvez exija requalificar os campos científicos e seus meios de circulação, disseminação e discussão do conhecimento.

A segunda questão nos parece até mais contundente: repensar o campo científico em um momento em que, pelo menos para uma parte da população, a ciência parece ocupar o centro do palco e recuperar legitimidade. Não deixa de ser uma notícia alvissareira, uma vez que, na era de pós-verdades e de desfinanciamento das pesquisas, em que certezas cabais errôneas imperam, o conhecimento objetivo, refutável e analítico, como é o caso do científico, fica fragilizado. Neste aspecto, parece-nos que devemos dobrar a aposta, pretendendo reconstruir a importância, sim, da ciência. Entretanto, esta ciência renovada deveria escapar dos positivismos, das verdades absolutas e do poder sobre o social; traços que, em última instância, também podem contribuir para o quadro de desigualdade e para a reafirmação da forma social tal como ela se apresenta. Implicaria ainda questionar a produtividade quantitativa, a meritocracia e a competitividade hegemônicas como bases da avaliação da qualidade do conhecimento científico (Gouveia, 2016GOUVEIA, Fábio C. A altmetria e a interface entre a ciência e a sociedade. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 643-645, dez. 2016. DOI: 10.1590/1981-7746-sip00126.; Contribuições..., 2020CONTRIBUIÇÕES ao debate sobre a avaliação da produção científica no Brasil. Trabalho Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18, n.1, Editorial, p. 1-5, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00244.). A construção deste campo democrático – entendido como socialmente referenciado e coletivamente consensuado – se mostra mais do que nunca urgente, exigindo um amplo debate e uma organização articulada de vários setores da sociedade.

Tratando-se de uma revista dirigida também para a reflexão sobre educação integral e formação humana, não poderíamos findar este editorial sem apontar que a produção de um sentido para os acontecimentos e os desdobramentos gerados e aprofundados pela pandemia não passarão apenas pela ciência, mesmo que nos termos rejuvenescidos acima delineados. A busca de sentido para o contexto histórico-social e a imaginação de uma nova sociedade se impõem para além dos limites da produção científica, encontrando na arte e, em particular, na literatura, uma memória que oferece um largo campo de discussões e estranhamentos (Assim a literatura..., 2020ASSIM A LITERATURA narrou as pandemias. Entrevistadora: Maira Mathias. Entrevistado: Marcelo Reis de Mello. Outras Palavras: Jornalismo de Profundidade e Pós-Capitalismo, 14 maio 2020. Podcast. Disponível em: <https://outraspalavras.net/podcasts/assim-a-literatura-narrou-as-pandemias/>. Acesso em: 15 maio 2020.
https://outraspalavras.net/podcasts/assi...
).

Talvez, no futuro, na arqueologia da vida social produzida sob e sobre este momento, irá se revelar um lugar comum (Willsher, 2020WILLSHER, Kim. Albert Camus novel The Plague leads surge of pestilence fiction. The Guardian, Reino Unido, 28 mar. 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/books/2020/mar/28/albert-camus-novel-the-plague-la-peste-pestilence-fiction-coronavirus-lockdown>. Acesso em: 15 maio 2020.
https://www.theguardian.com/books/2020/m...
): o retorno à literatura de Camus (2009), em A Peste. Sem desejar imprimir uma funcionalidade simplista à arte literária, não podemos nos furtar de registrar que, neste livro em específico, sociabilidade, saúde, economia e política se misturam na alegoria pintada sobre a cidade de Oran pelo autor franco-argelino, apontando a inexorabilidade de construir laços de coletividade e solidariedade, sobretudo quando os véus da aparente normalidade social são rasgados sem piedade.

Referências

  • ASSIM A LITERATURA narrou as pandemias. Entrevistadora: Maira Mathias. Entrevistado: Marcelo Reis de Mello. Outras Palavras: Jornalismo de Profundidade e Pós-Capitalismo, 14 maio 2020. Podcast. Disponível em: <https://outraspalavras.net/podcasts/assim-a-literatura-narrou-as-pandemias/> Acesso em: 15 maio 2020.
    » https://outraspalavras.net/podcasts/assim-a-literatura-narrou-as-pandemias/>
  • CONTRIBUIÇÕES ao debate sobre a avaliação da produção científica no Brasil. Trabalho Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18, n.1, Editorial, p. 1-5, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00244.
  • GOUVEIA, Fábio C. A altmetria e a interface entre a ciência e a sociedade. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 643-645, dez. 2016. DOI: 10.1590/1981-7746-sip00126.
  • WILLSHER, Kim. Albert Camus novel The Plague leads surge of pestilence fiction. The Guardian, Reino Unido, 28 mar. 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/books/2020/mar/28/albert-camus-novel-the-plague-la-peste-pestilence-fiction-coronavirus-lockdown> Acesso em: 15 maio 2020.
    » https://www.theguardian.com/books/2020/mar/28/albert-camus-novel-the-plague-la-peste-pestilence-fiction-coronavirus-lockdown>

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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