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O pesadelo macabro da Covid-19 no Brasil: entre negacionismos e desvarios

COVID-19 macabre nightmare in Brazil: between denials and ravings

La pesadilla macabra de Covid-19 en Brasil: entre negaciones y desvaríos

Resumo

O texto discute as dificuldades para o enfrentamento do Covid-19 suscitadas pelo discurso e pelas ações defendidas por parte do governo federal. Em contraste com os governantes de países que obtiveram e00279111resultados eficazes no controle da pandemia, representantes do governo brasileiro, entre os quais se destaca o Presidente da República, vêm continuamente a público desqualificar tanto os riscos, quanto a adoção das medidas de prevenção fundamentadas cientificamente, em especial o isolamento social, defendendo, em seu lugar, a denominada ‘imunidade de rebanho’. O argumento reiterado é que existe uma oposição entre a preservação da economia e da vida, sendo prioritária a primeira. Tais manifestações vêm acompanhadas de constrangimentos para que governos estaduais e municipais possam efetivar ações de prevenção localmente definidas. Essa postura expressa o desprezo pela vida humana e uma aguda desconsideração com a população socialmente mais vulnerável, que, em países com desigualdades crônicas, como Brasil, sofrem os efeitos mais graves de uma epidemia.

direito à saúde; política de saúde; Covid-19

Abstract

The text discusses the difficulties to face COVID-19 raised by the speech and the actions defended by the federal government. In contrast to the governments of countries that have achieved effective results in controlling the pandemic, representatives of the Brazilian government, among which the President of the Republic stands out, are continually disqualify publicly both risks and the adoption of scientifically based prevention measures, in particular social isolation, defending, in its place, the so-called ‘herd immunity’. The reiterated argument is that there is an opposition between the preservation of the economy and life, the former being a priority. Such manifestations are accompanied by constraints on state and municipal governments in carrying out locally defined preventive measures. This attitude expresses contempt for human life and an acute disregard for the socially most vulnerable population, which, in countries with chronic inequalities, such as Brazil, suffer the most serious effects of an epidemic.

right to health; health politics; COVID-19

Resumen

El texto discute las dificultades para enfrentar el Covid-19 ocasionadas por el discurso y las acciones defendidas por el gobierno federal. A diferencia de los gobiernos de los países que han logrado resultados efectivos en el control de la pandemia, los representantes del gobierno brasileño, entre los que se destaca el Presidente de la República, continuamente hace declaraciones públicas en las que descalifica tanto los riesgos como la adopción de medidas de prevención con base científica, especialmente el aislamiento social, defendiendo, en su lugar, la llamada ‘inmunidad colectiva’. El argumento reiterado es que existe una oposición entre la preservación de la economía y la vida, siendo la primera opción una prioridad. Dichas manifestaciones son acompañadas de limitaciones para que los gobiernos estatales y municipales puedan llevar a cabo acciones de prevención definidas localmente. Esta actitud expresa el desprecio por la vida humana y una profunda falta de respeto a la población más vulnerable, que, en países con desigualdades crónicas, como Brasil, sufren los efectos más graves de una epidemia.

derecho a la salud; política de salud; Covid-19

Pesadelo é um sonho de angústia. Macabro, contam os linguistas, é uma expressão que teria origem em uma dança, da Idade Média, “na qual se representava a Morte arrastando consigo pessoas de todas as idades e condições” (Macabro, 2001MACABRO. In: FERREIRA, Aurélio B. H. Novo Aurélio do Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 1.244., p. 1.244).

Utilizo pesadelo macabro para qualificar o que aconteceria no Brasil caso prevalecesse, para enfrentar a atual pandemia, a perspectiva defendida pelo presidente Jair Bolsonaro (COVID-19..., 2020COVID-19 in Brazil “SoWhat?”. Editorial. The Lancet, London, v. 395, n. 10.235, p. 1.461, 9 maio 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31095-3.
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). Felizmente, parte significativa da sociedade e suas instituições, não somente as científicas, têm aposto resistência ativa ao desvario sinistro do presidente, de seus ministros e sequazes. Muitos governos municipais e estaduais, setores da mídia, de partidos políticos e do judiciário pautam-se em medidas cientificamente baseadas, em encontro aos esforços de organizações científicas que mobilizam pelo fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS).

Com o pretexto de defender a economia e o emprego, Jair Bolsonaro vem se opondo – com palavras e gestos – a toda e qualquer forma de isolamento social (Burki, 2020BURKI, Talha. COVID-19 in Latin America. The Lancet Infectious Diseases, London, v. 20, n. 5, maio 2020, p. 547-548. DOI: https://doi.org/10.1016/S1473-3099(20)30303-0.
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) principal estratégia utilizada na quase totalidade dos países que sofrem os efeitos da pandemia. As várias formas de quarentena não objetivam somente proteger o sistema de saúde de uma avalanche de casos graves, conforme tem-se feito acreditar. O isolamento social tem o propósito de controlar o contágio, ou seja, tem efeito direto sobre o número de contaminados, diminuindo a necessidade de internações e as mortes por Covid-19.(Barreto et al, 2020BARRETO, Mauricio L. et al. O que é urgente e necessário para subsidiar as políticas de enfrentamento da pandemia de COVID-19 no Brasil? Revista Brasileira de Epidemiologia, Rio de Janeiro, v. 23, e200032, 2020. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200032.
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; Garcia e Duarte, 2020GARCIA, Leila P.; DUARTE, Elisete. Intervenções não farmacológicas para o enfrentamento à epidemia da COVID-19 no Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, v. 29, n. 2, e2020222, 2020. DOI: 10.5123/S1679-49742020000200009.
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).

O presidente da república já repetiu, várias vezes, que as mortes serão inevitáveis e que as pessoas deverão aceitar passivamente essa fatalidade. A insistência com que vem repetindo esse desatino – como uma fatalidade – indica que Bolsonaro é dominado pela pulsão de morte. Seu apego às armas e à violência são sintomas de um caráter perverso, insensível diante do sofrimento humano. Para compreender a posição negacionista do presidente diante da pandemia, é fundamental também considerar outro traço forte em sua personalidade – o egocentrismo exacerbado – que se revela na fixação em um projeto pessoal e familiar de poder.

Entretanto, dissimulando essa faceta obscura, Bolsonaro tem utilizado um argumento público, supostamente racional, que o justificaria perante a nação ao mesmo tempo em que nos convenceria da necessidade de nos submetermos à fúria da Covid-19. Trata-se da ideia da ‘imunização de rebanho’, a ‘teoria’ de pé-quebrado sobre a qual se assenta seu discurso encobridor, além das mentiras, sem qualquer confirmação empírica.

Alguém, algum áulico disposto a se trair ética e cientificamente, soprou-lhe este fenômeno constatado pela Saúde Pública, mas que não se aplica ao caso da pandemia. O termo rebanho já indica o caráter antissocial e anti-humanitário dessa concepção, cuja aplicação à epidemia de corona vírus só pode ser classificada como extravagante e absurda. Com base nesse referencial, o presidente e seu novo ministro da saúde vêm repetindo que a epidemia somente seria controlada quando, pelo menos, setenta por cento das pessoas fossem contaminadas pelo vírus.

Tal fenômeno somente poderia acontecer por meio de vacinação em massa da população, o que não é possível já que a vacina ainda não foi desenvolvida, muito menos produzida em larga escala. Diante de tal impossibilidade, Bolsonaro e outros negacionistas propõem que a convivência social habitual faça esse trabalho macabro. Em resumo, para esse pensamento não se deveria colocar empecilho ao contágio!

Esse argumento é falacioso porque ignora o fato de que os países que saíram, ou estão em processo de saída, da epidemia, todos eles, tiveram apenas três ou quatro por cento de suas populações contaminadas pelo vírus. Foi justamente o isolamento social que impediu porcentagens de contágio mais elevadas. China, Nova Zelândia, Holanda, entre outros, nenhum desses países teve uma taxa de infestação sequer perto dos tais setenta por cento defendidos pela ideia de ‘imunização de rebanho’. Mentem, portanto, as autoridades brasileiras.

A suspensão quase que total de novos casos dependerá da vacina. Enquanto ainda não a temos disponível, estes países recorrem à prática da vigilância epidemiológica: identificação de novos casos (pela clínica e testagem), seguido pelo rastreamento dos casos e dos comunicantes e, finalmente, pelo bloqueio da transmissão. Em relação ao coronavírus, isso implica o isolamento dos casos e comunicantes, a investigação de familiares, escolas ou locais de trabalho. Como há infectados assintomáticos, são necessários outros cuidados preventivos, como o uso de máscaras e medidas de higiene recomendadas para a população, em particular a lavagem correta e frequente das mãos, e o uso de equipamentos de proteção individual pelos trabalhadores de saúde.

Portanto, é falso o argumento de que deixar o ‘rebanho se contaminar’ é condição sine que non para controlar a epidemia. Há, no entanto, também as consequências desastrosas, trágicas, caso essa estratégia fosse aplicada. Baseados em estudos sobre a experiência de outros países, verificou-se que, em geral, dez por cento dos infectados têm doença grave, necessitando de internação em leitos gerais e em UTI. Sabe-se que quarenta a cinquenta por cento desses casos graves irão a óbito. Morrerão!

Vejamos algumas previsões caso a proposta do livre contágio fosse adotada no Brasil, supondo que se atingisse uma contaminação de setenta por cento da população. Isto redundaria em 140 milhões de doentes em todas as formas. Sabe-se que dificilmente o esforço de Bolsonaro e do vírus conseguiriam tal grau de infestação, por mais malignos que sejam. Entretanto, suponhamos que com a suspensão do isolamento social chegássemos a vinte, ou trinta, ou quarenta milhões de infectados. Bem, dez por cento de 140 milhões, implicaria 14 milhões de casos graves e, pasmem, 7 milhões de mortes! Vinte milhões de doentes redundariam em um milhão de pessoas mortas! Um milhão de caixões!

Quem seriam essas vítimas? Aquelas pessoas mais expostas ao contágio social e, ainda, as mais vulneráveis. Moradores da periferia e dos subúrbios, pessoas em privação de liberdade e asilamento, pessoas dependentes do transporte púbico, trabalhadores que lidam com outras pessoas – comerciários, autônomos, profissionais de saúde – enfim, a maioria da população brasileira. Tendo em vista a desigualdade crônica do nosso país, a pandemia tende a vitimar os mais pobres, dentre os quais os afrodescentes são a maioria.

É sinistro, macabro, anti-humanitário, antiético, advogar por uma política com estas consequências.

Há, contudo, um terceiro elemento muito nocivo na forma de Bolsonaro e do governo federal atuarem frente à pandemia. Na prática, além de se oporem ao isolamento, vêm dificultando, em várias situações até mesmo boicotando, o enfrentamento da pandemia pelo SUS, pela sociedade, pelos estados e municípios do país (Conselho Nacional de Saúde, 2020CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Carta aberta: CNS em defesa da vida, da democracia e do SUS. 29 abr. 2020. Disponível em: < https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1140-carta-aberta-do-conselho-nacional-de-saude-em-defesa-da-vida-da-democracia-e-do-sus >. Acesso em: 06 maio 2020.
https://conselho.saude.gov.br/ultimas-no...
). O presidente da república conseguiu paralisar o Ministério da Saúde que não está exercendo o papel que lhe cabe, como gestor federal do SUS, de coordenação do esforço para controlar a epidemia. Ao revés, dificulta repasses orçamentários para a rede de estados e municípios, não auxilia a aquisição de testes e equipamentos, por vezes, atrapalha, além de enfraquecer as diretrizes para o isolamento social. Até os hospitais federais do Rio de Janeiro tiveram que ser constrangidos pelo judiciário a reconhecer que havia uma epidemia grave.

As medidas de apoio econômico e social à população desempregada e impedida de trabalhar e às pequenas empresas tardam bastante e têm sido implementadas, quando o são, com bastante vagareza e dificuldades de operacionalização.

Para revertemos essa situação danosa, urge pensarmos estratégias para dar eficiência à resistência e ao controle da pandemia. Para isto, há algumas questões sobre as quais não poderemos nos calar:

Apesar da abundância de evidências sobre a inconveniência sanitária, humana e social da aposta de Jair Bolsonaro e de seus asseclas, por que motivo ele ainda logra apoio de parcela significativa da sociedade?

Por que a população brasileira ainda está dividida sobre a necessidade de se manter em quarentena?

Por que, segundo inquéritos realizados no final de abril de 2020, o presidente da república perdeu, em torno, de onze por cento de apoio entre universitários e pessoas com renda superior a cinco salários mínimos, mas teve seu apoio acrescido em oito por cento entre os que ganham menos de dois salários mínimos e entre aqueles com apenas o ensino fundamental, ou seja, entre os mais vulneráveis, os mais explorados, os mais sofridos?

Por que milhões ainda se identificam com a figura autoritária e demagógica de Jair Bolsonaro, com sua pulsão de morte, com seu ódio, com seu apego a mentiras? E isto quando fica cada vez mais claro seu desapego aos trabalhadores, seu desprezo aos mais pobres, às mulheres.

Por que os críticos, os humanistas etecetera não conseguimos nos comunicar com a sociedade, gerando reflexão e dúvida, sobre o fato de que, a depender de Bolsonaro, teremos um, dois, três... milhões de mortos?

Enquanto fazemos circular essas e outras perguntas, devemos continuar com a resistência, com ações locais, profissionais, institucionais e políticas para defender o SUS, o apoio social aos desempregados e, o mais relevante, perseverarmos na luta por uma sociedade reformulada segundo as diretrizes da solidariedade, dos direitos sociais e da democracia.

Referências

  • Financiamento Não há.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2020
  • Aceito
    08 Maio 2020
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