Em memória às vítimas da Covid-19 no Brasil.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto da doença causada pelo novo coronavírus (Covid-19) constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. Em 11 de março de 2020, a Covid-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia (Organização Pan-americana de Saúde, 2020).
O contexto da pandemia da Covid-19 está relacionado à interação dos seres humanos com a natureza, na medida em que invadimos e destruímos nichos ecológicos importantes, criando modelos de produção animal e de trocas comerciais que amplificam a resistência e o contato com bactérias e vírus. A partir do atual modelo hegemônico de desenvolvimento capitalista, vão se dando as condições para a emergência de novas pandemias. A criação de ambientes propícios para as interações genéticas entre animais e seres humanos já gerou outras epidemias, como a da gripe suína e a da gripe aviária, que possuem estreita relação com o atual modo de produção do agronegócio capitalista (Andersen, Rambaut, Lipkin, 2020; Wallace, 2016).
Em um instigante artigo intitulado Nisun: a vingança do povo morcego e o que ele pode nos ensinar sobre o novo coronavírus, Lagrou (2020) faz uma análise a partir dos povos Huni Kuin do Acre e do Leste da floresta amazônica peruana, que compartilham, com muitos outros povos indígenas da região, uma filosofia de vida que atribui a maior parte das doenças ao fato de comermos animais. A autora faz um paralelo com outras epidemias recentes, como a malária, a Aids e a febre amarela, que foram resultado das interações entre a floresta e a cidade. As regras de dieta e de negociação em torno da caça apontam para um saber acumulado, por parte dos povos da floresta, sobre o potencial patogênico dos animais. Estes possuem seus próprios hábitos e habitats que precisam ser respeitados se quiserem que a caça não se vire contra o caçador (Lagrou, 2020). Nas palavras do autor,
As epidemias são também o resultado de uma relação extrativista das grandes cidades com as florestas. Elas surgem nas franjas das florestas ameaçadas, nos interstícios da fricção interespécie e de lá são rapidamente transportadas para o mundo inteiro através de caminhões, barcos e aviões. Elas podem ter sua origem na área intersticial entre a floresta e a cidade, a área rural do grande agronegócio alimentício, notória para o surgimento de novas gripes virulentas que podem virar pandemias (Lagrou, 2020).
Alguns autores também lançaram recentemente essa hipótese, apontando o agronegócio intensivo de criação de porcos como uma das origens da pandemia (Fiebrig, Bombardi e Nepomuceno, 2020). Existem mais perguntas do que respostas sobre esse contexto, que merece ser desvelado para que possamos atuar sobre os processos de determinação social da pandemia.
Além da superação das formas insustentáveis de produção de alimentos predominantes no atual modelo das grandes fazendas do agronegócio, a pandemia impõe a necessidade de resolver, com urgência, os desafios do saneamento para a totalidade da humanidade. A Terra possui 2,2 bilhões de pessoas sem acesso à água gerenciada de forma segura e 4,2 bilhões, ao saneamento adequado. A possível contenção do Covid-19 por meio do acesso a esses serviços por pessoas nas situações mais vulneráveis a doenças de transmissão feco-oral é uma das formas de se garantir o direito humano à água potável e ao saneamento (Heller, Mota e Greco, 2020).
Lavar as mãos é uma das ações mais eficazes de prevenção à Covid-19, segundo vários estudos da OMS (World Health Organization, 2020). Mas como seguir este procedimento onde a água não é garantida com a frequência adequada? Segundo Heller, Mota e Greco (2020), devido à atual falta de evidências sobre a relevância da transmissão fecal-oral do SARS-Cov-2, é necessária a realização de mais pesquisas aprofundadas para verificar o papel real das intervenções de água e saneamento na prevenção dessa via de transmissão. Entretanto, o papel-chave já reconhecido da água para lavar as mãos é mais do que suficiente para a priorização das intervenções de saneamento como controle da pandemia.
Mantendo nosso foco no campo da saúde e do ambiente, um outro aspecto importante está relacionado à exposição crônica à contaminação do ar, circunstância que pode ter contribuído para as altas taxas de mortalidade pela Covid-19 observadas em algumas regiões do mundo, conforme estudo de Ogen (2020). Estudos anteriores demonstraram que a exposição ao dióxido de nitrogênio causa inflamação nos pulmões, portanto é importante examinar se a presença de uma condição inflamatória inicial está associada à resposta do sistema imunológico ao coronavírus em termos do aumento da vulnerabilidade. Envenenar nosso ar pode significar envenenar nosso próprio corpo e, quando se experimenta um estresse respiratório crônico, a capacidade de se defender de infecções é diminuída, aumentando a vulnerabilidade à Covid-19 (Ogen, 2020).
No caso brasileiro, uma outra grande preocupação está na combinação entre a Covid-19 e a fumaça gerada pelas queimadas da Amazônia, que acontecem no período de seca da floresta (de maio a outubro). Esta pode ser catastrófica para moradores e hospitais da região. Neste período, o número de internações de crianças com doenças respiratórias dobra nas áreas mais afetadas pelo fogo (Fundação Oswaldo Cruz, 2019), gerando sobrecarga numa rede hospitalar que já está praticamente saturada em função da pandemia.
As populações do campo, da floresta e das águas (PCFA) são também um dos grupos mais vulneráveis e, ao mesmo tempo, possuem modos de vida determinantes para a sustentabilidade socioambiental de nosso planeta. As PCFA concentram altos índices de pobreza e analfabetismo, relacionados com as iniquidades na distribuição da riqueza existente no Brasil. Dentre as dificuldades de acesso às políticas públicas, destaca-se a falta de acesso à educação, ao transporte público, à comunicação, ao saneamento e aos serviços de saúde na medida adequada às necessidades em todos os seus níveis (Carneiro, Pessoa e Teixeira, 2017; Pessoa, Almeida e Carneiro, 2018). Essa vulnerabilidade faz com que a pandemia possa ter um grande impacto sobre a vida dessas populações.
No caso das populações indígenas, Rocha e Porto (2020) destacam que a situação pode ser ainda mais agravada devido à crescente fragilização das agências estatais que atuam nesses territórios, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e até mesmo a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. Esse processo tem sido denunciado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e outras organizações da sociedade civil, no sentido de indicar que há uma carência de pessoas, equipamentos de proteção individual e outros recursos para promover, mais efetivamente, o atendimento à população indígena, justo em um momento de emergência da pandemia (Ministério Público Federal, 2020; Nicacio, 2020).
A população indígena encontra-se ameaçada tanto pela Covid-19, quanto por distintas doenças presentes nos territórios, como a malária, ou ainda por outras intensificadas pela exposição a subprodutos do garimpo e da mineração, como a intoxicação crônica por mercúrio (Rocha e Porto, 2020).
As tragédias aqui apenas esboçadas não têm sido ignoradas por organizações da sociedade civil, o que pode estar apontando para a configuração de um campo de práticas de uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Gabinetes de crise em favelas (Ribeiro, 2020; Cannabrava, 2020), comitês populares (Coronavirus..., 2020), articulações solidárias, plataformas (Todo Mundo, 2020), observatórios acadêmico-populares (Observatório dos Impactos do Coronavírus nas Comunidades Pesqueiras, 2020), barreiras sanitárias populares (Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina, 2020) e portais de monitoramento participativo da doença na internet, como o ‘Quarentena indígena’ (Quarentena indígena, 2020) e o ‘Quilombos sem Covid-19’ (Observatório da Covid-19 nos Quilombos, 2020), são algumas das formas que, espontaneamente, têm surgido nas favelas e nos territórios de povos tradicionais para dar conta de enfrentar a Covid-19 num ambiente em que várias injustiças se combinam.
Inspirado na análise das quatro injustiças de Porto (2019), pode-se afirmar que a injustiça social está sendo amplificada pela perda de renda dos mais pobres; a injustiça sanitária também está se ampliando, uma vez que populações com dificuldades históricas de acesso aos serviços de saúde encontram instituições cada vez mais sobrecarregadas; a injustiça ambiental vem se aprofundando, pois os mais pobres permanecem com dificuldades de acesso à água, reproduzindo seu histórico de exclusão das políticas de saneamento ambiental, situação que dificultará o cumprimento das medidas básicas de higiene; e a injustiça cognitiva vem mostrando uma faceta perversa, já que estes mesmos contingentes populacionais não são vistos como sujeitos de sua própria história, ou seja, como sujeitos sociais que podem colaborar no planejamento das ações de saúde, por conhecerem a realidade e as dificuldades, de toda ordem, para a execução do isolamento físico.
Essas populações também possuem diversos saberes e inúmeras práticas desconsiderados pelas concepções e ações de vigilância e promoção da saúde. Na condição de camponeses(as) e agricultores(as), pescadores(as)s artesanais, indígenas e quilombolas, todos e todas são sujeitos fundamentais, tanto para a segurança e soberania alimentar nos campos e nas cidades, como para a manutenção da biodiversidade e sustentabilidade de diversos ecossistemas. Por isso, lutam pela vida e pelos seus sistemas de saberes, concepções de saúde e economias que funcionam em harmonia com a natureza. Diante das ameaças da Covid-19, é preciso desenvolver estratégias conceituais e metodológicas de ação sanitária que fortaleçam sua participação e qualifiquem os profissionais do SUS para o trabalho conjunto no nível territorial (Dutra, 2020).
Os serviços de saúde, principalmente do campo da vigilância, têm dificuldades de valorizar processos democráticos (Correa Filho, 2020). A supervalorização da técnica e de uma forma de ciência afastou esse campo da população. Nossa hipótese é que sua possibilidade de sucesso diante dessa pandemia, principalmente se considerarmos os grupos mais vulneráveis do campo, da floresta, das águas e das cidades, passa pela aproximação com a organizações populares, para se buscar juntos soluções para mitigar a epidemia nos territórios.
Algumas palavras-chave emergem das experiências, como ‘solidariedade’, ‘direitos humanos’, ‘articulação’ e ‘democratização’ de políticas públicas fortalecidas por processos de auto-organização.
Santos (2020) nos alerta que, nesse momento, temos que ser mais intelectuais de retaguarda do que de vanguarda, estando mais junto dos movimentos sociais e populares no aprendizado de como lidar com o atual momento. Temos lições na história, mas também vivemos uma conjuntura única sem precedentes, face ao grau de conexão e de circulação de pessoas e informações dos novos tempos. Temos que criar juntos saídas para essa pandemia, que, como muitos autores já disseram, expôs a insuficiência das políticas neoliberais e do mercado para o cuidado com a vida. Nesse momento, o mantra deixou de ser ‘tudo o que é do Estado é ruim’; e nunca se falou tanto da importância dos sistemas universais de saúde pública, de que salvar vidas é mais importante do que salvar a economia, do que quando estamos discutindo as medidas de isolamento físico (Rossi, 2020). Encaramos uma oportunidade histórica para mostrar claramente que os rumos do desenvolvimento no mundo estão nos levando para um beco sem saída, a exemplo dos impactos das mudanças climáticas sobre a vida na Terra a partir dos desequilíbrios gerados.
Temos que agir frente ao atual contexto sabendo que estará em disputa também um outro mundo pós-epidemia. Um processo pedagógico e dialógico de atuação frente à Covid-19 pela saúde com os grupos sociais e populares dos campos, das florestas, das águas e das cidades pode fortalecer o embrião de criação de algo novo e necessário para os tempos que virão. O crescimento ilimitado das economias lembra a metáfora de um carro acelerando sem freios na direção de um muro. Agora, o carro simplesmente está quase parando...vamos acelerar de novo ou derrubar os muros que nos separam para construir um mundo mais justo e solidário, que respeite os limites de nosso planeta?
Não temos uma receita. Existem alguns princípios inspiradores, já existentes nas diversas experiências realizadas no Brasil, que passam sobretudo pelo ‘pensar e fazer com’. Não teremos sucesso executando as ações de vigilância somente ‘para’ ou atuando ‘sobre’ as pessoas. Temos que criar métodos, estratégias, e iniciativas que possibilitem que essa vigilância sobre a saúde e o ambiente possa ser criada, uma vez que contribua para resolver os problemas e as necessidades de forma horizontal, participativa, técnica, democrática e cientificamente qualificada (Alves, 2013).
A vigilância popular da saúde não visa substituir o papel do Estado, mas ser a expressão da necessidade de uma maior participação da comunidade na vigilância, como está destacado na Política Nacional de Vigilância da Saúde (Brasil, 2018). Todavia, na atual conjuntura, em função de contextos políticos que estão invisibilizando o impacto da Covid-19 em grupos vulneráveis específicos, como indígenas, quilombolas, pescadores(as) ou moradores(as) de favelas, essa vigilância também pode emergir como um processo participativo de alerta e de chamado para a ação relacionado à garantia do direito à saúde e à defesa da vida.
Essa reflexão sobre a conjuntura é um chamado, um convite, para passarmos a construir juntos essa vigilância popular da saúde e do ambiente – na perspectiva da práxis – desafiando as estruturas cartoriais e tecnocráticas da vigilância em saúde convencional e abrindo pontes para um diálogo construtivo e crítico de ampliação de práticas e ações para mitigar os impactos da Covid-19, com forte componente participativo e democrático, frente a um desafio histórico que poderá marcar toda uma geração. Só poderemos fazer isso numa perspectiva solidária, crítica e emancipatória – e como atores e sujeitos de nossa própria história.