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Os múltiplos caminhos da privatização da saúde na América Latina

LUZURIAGA, Maria J.. Privados de la salud: las políticas políticas de privatización de los sistemas de salud en Argentina, Brasil, Chile y Colombia. São Paulo: Hucitec, 2018. 384

O livro Privados de la salud: las políticas de privatización de los sistemas de salud en Argentina, Brasil, Chile y Colombia, publicado pela Hucitec em 2018, de autoria de Maria José Luzuriaga, é uma análise comparada de políticas de saúde que toma o dinâmico e contraditório processo de privatização da assistência em países selecionados da América Latina como objeto central.

Ao proceder a sua análise, a autora não recorre a modelos apriorísticos e homogeneizadores baseados nos desenvolvimentos teóricos do welfare pós-1945, mas coloca em perspectiva, tanto quanto possível, a complexidade das relações políticas e institucionais entre agentes públicos e privados, eventualmente envolvidos na constituição de uma ‘política das políticas’ com resultante privatista, segregacionista ou concentradora de recursos.

Por este motivo, a leitura atenta da primeira parte da obra é um passo imprescindível para que os dados sobre os países selecionados dispostos na segunda parte possam ser adequadamente interpretados e os limites e possibilidades da análise apresentada na terceira parte possam ser compreendidos.

Um breve capítulo introdutório apresenta as justificativas do estudo e deixa evidente a validade da hipótese de trabalho apresentada, que assume uma perspectiva comparada em que é possível visualizar padrões e articulações não alcançáveis por um estudo de caso individual, avançando além das explicações locais.

De fato, não seria possível levar adiante uma investigação desta natureza caso se tomasse a dimensão pública e a dimensão privada dos sistemas de saúde como compartimentos impermeáveis nos quais se produzem realidades paralelas e dicotômicas. O arsenal teórico e conceitual de autores como Paul Starr (1982)STARR, Paul. The social transformation of american medicine: the rise of a sovereign profession and the making of a vast industry. Cambridge: Basic Books, 1982., Hans Maarse (2004)MAARSE, Hans. The changing balance between public and private in health care: an introduction. In: MAARSE, Hans. Privatization in European healthcare: a comparative analysis in eight countries. MAARSSEN: Elsevier gezondheldszorg, 2004. p. 15-32., Maureen Mackintosh (2016)MACKINTOSH, Maureen et al. What is the private sector? Understanding private provision in the health systems of low-income and middle-income countries. The Lancet, v. 388, n. 10.044, p. 596-605, 2016. e especialmente Theodore Marmor (1983)MARMOR, Theodore R. Rethinking national health insurance. In: MARMOR, Theodore R. Political analysis and American medical care: essays. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. p. 187-206. é apresentado como referência fundamental para que o leitor possa transitar com segurança pela zona nebulosa da fronteira entre o público e o privado na assistência.

A pesada carga ideológica presente nos debates sobre o tema, especialmente desde os anos 1990, solicita um esforço adicional, levado adiante pela autora, no desenvolvimento de definições instrumentais mais precisas sobre a natureza das práticas privatistas, seu lugar na assistência, e sobre as mudanças operadas no interior das instituições públicas em decorrência dos processos em curso.

A opção de analisar os processos de privatização segundo uma abordagem pragmática, que contemple simultaneamente diferentes perspectivas, permite a delimitação de um quadro mais completo que, não obstante, comporta variações, ou seja, trata-se de um elenco múltiplo e sincrônico de processos privatizantes nos quais é possível visualizar matizes e contradições, avanços e retrocessos condicionados pela ação política.

A primeira parte da obra se completa com um capítulo que explora a natureza das organizações que comercializam planos e seguros de saúde nos países selecionados e com um capítulo final que trata dos limites do uso de tipologias para o estudo comparado de sistemas ou de políticas de saúde.

A autora deixa claro que, assim como não é possível tratar dos processos privatizantes desde de uma definição única e totalizante, também para tratar especificamente dos esquemas de intermediação assistencial existentes, não é suficiente a aplicação de uma matriz teórica unificada. Entretanto, considera válido atribuir lugar de destaque à miríade de esquemas de intermediação assistencial privativa existentes, tomados como proxy dos processos privatizantes, dado o seu papel estratégico na disseminação da lógica de modulação do acesso mediante a capacidade de pagamento do usuário, não importando a forma de conveniência adotada pelas organizações atuantes.

Quanto ao capítulo dedicado aos limites no uso de tipologias clássicas para o estudo de políticas e sistemas de saúde, há um elenco variado de referências críticas como Theodore Marmor, Claus Wendt, Clare Bambra e Ben Fine que são colocadas em perspectiva.

Entre as principais limitações relacionadas com o uso acrítico, em países periféricos, de tipologias eurocêntricas/weberianas baseadas no grau de desmercantilização da força de trabalho, ou outras, baseadas na tríade cobertura, financiamento e propriedade da estrutura de serviços, formuladas no âmbito da escala de relações comerciais ampliadas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a autora aponta como ponto crítico o problema do grau de comparabilidade entre os objetos selecionados.

Além disso, aponta que a vinculação de determinado sistema a um tipo ideal, segundo critérios organizacionais e financeiros mais amplos, pode servir como uma barreira cognitiva que impede a análise da dinâmica de mudanças observadas em tempo real e os avanços e retrocessos de políticas específicas. No limite, há o risco de induzir que um determinado rótulo permaneça por tempo indeterminado, ainda que não seja mais apropriado.

O risco de submissão acrítica a algum tipo de imperialismo conceitual eurocêntrico é grande na periferia do sistema e, não raro, pode levar a um descasamento entre a informação empírica disponível e os seus elementos de sustentação teórica.

A segunda parte da obra apresenta os dados de países selecionados, coligidos segundo os parâmetros apresentados pela autora no início de cada um dos capítulos.

O capítulo dedicado à Argentina analisa os processos de privatização naquele país com base no estudo de duas políticas públicas: a Ley de competencia entre obras sociales – decreto n. 9 de 1993 de Libre elección de Obras Sociales e a Ley n. 26.282 de 2011 que regula as empresas de medicina pré-paga (EMP).

No que se refere ao anunciado objetivo de incremento da competição entre as Obras Sociales, como vetor para melhoria na oferta de serviços, a autora aponta a existência de um consenso sobre o fracasso desta tese. Ao contrário, o que se verificou foi um aumento nas desigualdades de acesso, assim como um aumento na participação do setor privado por meio das empresas de medicina pré-paga no ambiente da seguridade social, resultando na perda parcial do caráter solidário original das Obras Sociales. Quanto à análise dos efeitos da Ley n. 26.282 de 2011, que regula as EMPs, os resultados são inconclusivos, embora haja indícios de reincidência de inconformidades flagrantes não alcançadas pela fiscalização.

O capítulo que trata do Brasil analisa três políticas conexas importantes, e eventualmente contraditórias, praticadas entre a década de 1980 e 2015: a criação do Sistema Único de Saúde (SUS); a Lei Federal 9.656/1998 que trata de planos e seguros de saúde; e as mudanças na Lei Orgânica da Saúde, que permitiram a participação de capital estrangeiro na assistência.

A análise aponta que a extinção do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e o correspondente aumento do poder político do Ministério da Saúde como gestor federal do SUS ampliaram o grau de integração de diversas políticas públicas de assistência, mas não alteraram de forma substantiva o padrão de articulação público-privada vigente de modo a impor limites ao avanço dos esquemas empresariais de intermediação assistencial, nem à abertura do espaço de transações da saúde como locus de acumulação para o capital, representado por fundos transnacionais financeirizados desde os anos 2000.

O caso do Chile é emblemático e tem sido amplamente discutido no meio acadêmico, dada a radicalidade das mudanças políticas praticadas desde o golpe de 1973 e o forte viés ideológico privatizante imposto naquele país. Após mais de quatro décadas, entretanto, é possível identificar a presença de algum revisionismo pragmático no conjunto das políticas analisadas.

A autora analisa cinco políticas públicas: 1) descentralização e regionalização do sistema de saúde; 2) criação das Instituciones de Salud Previsional (ISAPRES); 3) reforma Garantias Explícitas de Salud (GES) ou reforma da reforma; 4) sentença do Tribunal Constitucional de 2010 sobre a inconstitucionalidade da tabela ISAPRES e 5) proposta de reforma da comissão criada pela Presidência em 2014.

Assim como o Chile nas décadas passadas, também a Colômbia tornou-se referência na década de 1990, com a virtual universalização da cobertura promovida pelo Sistema de Seguridad Social Integral. O modelo colombiano de privatização se expandiu por meio do estímulo à atividade de intermediação assistencial financiada pelo orçamento público, e a instância judicial tornou-se recurso recorrente para solução de conflitos provocados pelas exclusões de cobertura dos pacotes pré-estabelecidos de oferta. Isto justifica o estudo da sentença T-760 de 2008, elaborada pela corte constitucional ao lado da mencionada Ley 100 de 1993, e de sua atualização promovida pela Ley Estatutaria de Salud n. 1751, aprovada em 2015.

Por fim, a terceira parte da obra apresenta uma análise, necessariamente provisória, mas que efetivamente ilumina um cenário marcado pela nebulosidade característica da interface na qual se dá a apropriação do público pelo privado. Tratar os processos privatizantes como um vetor, um direcionamento que conforma novos padrões de articulação público/privado sem um ponto de origem ou um destino finalístico específico é uma chave possível para a superação de modelos determinísticos de descrição da realidade nos quais não há espaço para a ação política consequente.

Com todos os limites que se possa atribuir a um estudo desta natureza, que seleciona aspectos relevantes de um processo multifacetado e dinâmico, deixando de fora outros tantos, o que se obtém ao final é um saldo positivo na coleção robusta de dados apresentados, no desenvolvimento teórico e no ajuste da precisão conceitual que trata de múltiplos processos privatizantes incidentes sobre formações sociais distintas, ainda que situadas na mesma região.

Referências

  • STARR, Paul. The social transformation of american medicine: the rise of a sovereign profession and the making of a vast industry. Cambridge: Basic Books, 1982.
  • MAARSE, Hans. The changing balance between public and private in health care: an introduction. In: MAARSE, Hans. Privatization in European healthcare: a comparative analysis in eight countries. MAARSSEN: Elsevier gezondheldszorg, 2004. p. 15-32.
  • MACKINTOSH, Maureen et al. What is the private sector? Understanding private provision in the health systems of low-income and middle-income countries. The Lancet, v. 388, n. 10.044, p. 596-605, 2016.
  • MARMOR, Theodore R. Rethinking national health insurance. In: MARMOR, Theodore R. Political analysis and American medical care: essays. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. p. 187-206.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2020
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