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A uberização do trabalho em saúde: expansão no contexto da pandemia de Covid-19

The uberization of health work: expansion in the context of the COVID-19 pandemic

La uberización del trabajo en salud: expansión en el contexto de la pandemia de Covid-19

Resumo

Trata-se de um estudo teórico com o objetivo de avaliar o papel da telemedicina (e similares) no processo de trabalho em saúde, com ênfase no contexto particular da pandemia de Covid-19 e suas relações com processos de uberização. Foi realizada uma pesquisa bibliográfica no âmbito da sociologia do trabalho de viés marxista, a fim de precisar os processos estruturais que produzem essa determinada forma de organizar o trabalho em saúde. Posteriormente, analisaram-se documentos legais e notícias sobre a conjuntura da pandemia, com vistas a descrever como a telemedicina se situa nesse contexto e, em seguida, submetê-la ao crivo da teoria social de Marx. Constatou-se que essa forma de organizar o trabalho em saúde consiste em uma via de precarização do trabalho, ora chamada de uberização, desenvolvida sob a mediação subordinadora das plataformas digitais aos interesses do capital, em convergência com o modelo biomédico.

Palavras-chave:
Covid-19; telemedicina; precarização do trabalho; trabalho em saúde; uberização

Abstract

This is a theoretical study with the aim of evaluating the role of telemedicine (and similar) in the health work process, with emphasis on the particular context of the COVID-19 pandemic and its relationship with uberization processes. A bibliographical research was carried out within the scope of the sociology of work with a Marxist bias, in order to specify the structural processes that produce this particular way of organizing health work. Subsequently, legal documents and news about the situation of the pandemic were analyzed, with a view to describing how telemedicine is situated in this context and then submitting it to the scrutiny of Marx’s social theory. It was found that this way of organizing health work consists in a way of increasing work precarization, now called uberization, developed under the subordination mediation of digital platforms to the interests of capital, in convergence with the biomedical model.

Keywords:
Covid-19; telemedicine; work precarization; health work; uberization

Resumen

Se trata de un estudio teórico con el objetivo de evaluar el papel de la telemedicina (y similares) en el proceso de trabajo en salud, con énfasis en el contexto particular de la pandemia de Covid-19 y sus relaciones con los procesos de uberización. Se realizó una investigación bibliográfica en el ámbito de la sociología del trabajo de orientación marxista, con el fin de precisar los procesos estructurales que producen esta forma particular de organización del trabajo en salud. Posteriormente, se analizaron documentos legales y noticias sobre la coyuntura de la pandemia, con el fin de describir cómo se sitúa la telemedicina en este contexto y luego someterla al tamiz de la teoría social de Marx. Se encontró que esta forma de organizar el trabajo en salud consiste en un camino de precarización del trabajo, a veces llamado Uberización, desarrollado bajo la mediación subordinadora de las plataformas digitales a los intereses del capital, en convergencia con el modelo biomédico.

Palabras clave:
Covid-19; telemedicina; precarización del trabajo; trabajo en salud; uberización

Introdução

Este artigo consiste em um estudo teórico que tem o objetivo de analisar o papel da telemedicina, da telessaúde e similares no processo de trabalho em saúde,1 1 Sempre que nos referimos a como o trabalho em saúde se efetiva, tendo em vista a articulação de seus elementos internos, utilizaremos ‘processo de trabalho em saúde’. Quando a menção for de caráter genérico, utilizaremos apenas ‘trabalho em saúde’, como categoria teórica abstrata. considerando, em particular, o fenômeno da precarização do trabalho, potencializado com a crise estrutural do capital, desde meados dos anos 1970.

Tomamos, como contexto particular, a conjuntura instaurada com a pandemia da Coronavirus Disease 2019 (Covid-19), uma vez que ela suscitou o debate sobre as possibilidades e os limites do uso da tecnologia para a assistência médica (e de saúde) de indivíduos e coletividades, sobretudo para acompanhamento clínico. A telemedicina compareceu, assim, como estratégia de viabilização do atendimento médico nos momentos de maior rigor do distanciamento social, necessário à prevenção da Covid-19.

Esse debate vem à tona repleto de dilemas jurídicos, éticos e políticos forjados desde antes da pandemia. Também data de antes da pandemia um contundente processo de precarização do trabalho em saúde, que atinge, inclusive, profissões bem posicionadas na dinâmica de hierarquização do trabalho em saúde, a exemplo da medicina. Em que pesem os possíveis benefícios do emprego da tecnologia na prática de saúde, no bojo das contradições capitalistas, ela parece se imbricar no processo de precarização, produzindo efeitos mais sofisticados no que tange às formas de exploração e subordinação dos trabalhadores, em especial com o que vem sendo chamado de uberização do trabalho.

Ao se considerarem essas contradições, levantamos alguns questionamentos: quais as bases do processo de precarização (e uberização) do trabalho? Como a telemedicina se coloca no processo de trabalho em saúde, tendo em vista os interesses que predominam no circuito mercantil do qual faz parte? Qual a relação entre telemedicina e uberização da saúde? Como a conjuntura pandêmica contribuiu na processualidade dessa relação?

Para tanto, buscamos responder a essas questões com três seções de discussão, além desta introdução. Na primeira, retomamos textos da sociologia do trabalho (que partem da crítica da economia política), a fim de demarcar as categorias e os conceitos que explicam, do ponto de vista histórico-social, o fenômeno da precarização do trabalho e sua faceta mais recente, a uberização. Na segunda, estabelecemos uma interface entre sociologia do trabalho e saúde coletiva, no sentido de delimitar o que entendemos por processo de trabalho em saúde e como a precarização o atinge. Além disso, ainda nessa seção, analisamos documentos legais (leis e resoluções) que regulamentam a prática da telemedicina/telessaúde no Brasil, de modo a situar o uso das tecnologias no processo de trabalho em saúde, sobremaneira com a telemedicina (e congêneres) em face da precarização/uberização. Por fim, na terceira seção, apresentamos o debate particularizado na conjuntura pandêmica, o que demandou o levantamento de documentos, notícias e textos específicos desse período.

Em todas as seções, a perspectiva teórico-metodológica que ilumina a análise consiste no materialismo histórico-dialético, tomando o trabalho como complexo fundante e ontologicamente prioritário para as relações sociais. Com base nesse princípio, articula-se a universalidade do antagonismo basilar da sociedade contemporânea (entre capital e trabalho) com os processos particulares que se desenvolvem nas diversas práxis sociais, a exemplo da saúde.

O que é a uberização?

A história do capitalismo é um constante processo de reinvenção das formas de produzir valor (logo, capital), mas que se dá, crescente e continuamente, a partir da exploração da classe trabalhadora (Marx, 1988aMARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, tomo I. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988a.). Trata-se de uma dinâmica na qual o capital tenta superar os seus próprios limites e contradições, considerando que, em seu conjunto, o sistema sempre está ameaçado de pletora. Garantir a produtividade crescente e a expansão de seus domínios é condição imperativa para que o modo de produção desloque suas contradições no tempo e no espaço, ganhando novo fôlego (Mészáros, 2009MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2009 .).

Novas formas de organização do trabalho e, consequentemente, controle e exploração da classe trabalhadora surgem para dar conta dessas demandas, o que tende a se efetivar com desigualdades econômicas cada vez mais contundentes, com reflexos jurídico-políticos (Alves, 2007ALVES, Giovanni. Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. 2. ed. Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2007.). Entre as manifestações mais recentes dessa contínua metamorfose, comparece o processo de uberização do trabalho, com forte tendência de ampliação no setor de serviços desde a segunda década dos anos 2000 (Slee, 2017SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Editora Elefante, 2017.). Todavia, o tipo de dinâmica que subjaz à uberização é mais antigo, uma vez que coaduna elementos típicos da flexibilização do trabalho em curso desde meados dos 1970 (Abílio, 2019ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov. 2019. DOI:10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674
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).

Convém destacar que desde a obsolescência do padrão ‘rígido’ de acumulação, com o binômio taylorismo/fordismo, os países de capitalismo avançado passam por um processo de reestruturação produtiva, cuja pedra de toque é a flexibilização da produção e de suas relações corolárias. O imperativo da polivalência em substituição à superespecialização do trabalhador, a mudança da relação tempo-espaço e a automação são elementos que se consolidam no capitalismo contemporâneo, conferindo-lhe uma nova dinâmica (Harvey, 1992HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1992.; Antunes, 2009ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. 10. reimp. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2009.).

Essa dinâmica não seria possível se não fossem as alterações da legislação trabalhista, sobretudo com a destruição da proteção social do trabalhador, mistificada pela ideia de sua suposta modernização e incentivo ao empreendedorismo (Lourenço, 2015LOURENÇO, Edvânia A. S. Terceirização: a derruição de direitos e a destruição da saúde dos trabalhadores. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 123, p. 447-475, jul./set. 2015. DOI: 10.1590/0101-6628.032.
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). A tradicional relação patrão e empregado assume novas formas, veladas, até porque as empresas se distribuem geográfica e temporalmente de forma distinta. Com a ‘mundialização do capital’ (Chesnais, 2001CHESNAIS, François. Mundialização: o capital financeiro no comando. Revista Outubro, n. 5, p. 7-28, 2001.), as grandes empresas (do setor primário aos serviços) passam por um processo de descentralização, uma vez que não precisam ter todos os seus setores ou suas etapas de produção reunidas no mesmo local físico. Ao contrário disso, espalham-se por diversas regiões do mundo, desenvolvem formas mais sofisticadas e mais velozes de responder às demandas do mercado consumidor e, para tanto, necessitam de um contingente de trabalhadores com outro perfil (Harvey, 1992HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1992.; Antunes, 2009ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. 10. reimp. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2009.; Alves, 2007ALVES, Giovanni. Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. 2. ed. Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2007.; Chesnais, 2001CHESNAIS, François. Mundialização: o capital financeiro no comando. Revista Outubro, n. 5, p. 7-28, 2001.).

As implicações dessa dinâmica para os vínculos de trabalho com a empresa se desdobram, sobretudo, no caráter temporário, com contratos sem estabilidade e precários que permitem às empresas mudarem rapidamente o perfil, produzindo o serviço em função de demandas freneticamente mutantes. O processo se inicia com a ideia de ‘colaboradores’ em substituição ao tradicional empregado, mas logo avança para um leque heterogêneo de trabalhos precários, desde as formas mais comuns de terceirização até as novas relações mediadas pelos (leia-se, subordinadas aos) grandes grupos tecnológicos (Abílio, 2019ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov. 2019. DOI:10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674
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; Filgueiras e Antunes, 2020FILGUEIRAS, Vitor; ANTUNES, Ricardo. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020. DOI: 10.22409/contracampo.v39i1.38901
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).

A tecnologia assume um papel decisivo para essa dinâmica espaçotemporal, porque permite acelerar as demandas, com formas de comunicação mais rápidas, e sobremaneira porque permite avançar a descentralização/distribuição dos atores e atividades, por vezes até fazendo com que a existência de um endereço físico para a empresa seja fator secundário ou inexistente (Filgueiras e Antunes, 2020FILGUEIRAS, Vitor; ANTUNES, Ricardo. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020. DOI: 10.22409/contracampo.v39i1.38901
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).

Nessa esteira, a reboque da tecnologia, a uberização se tornou a forma mais eminente de organização e controle da força de trabalho, pois coaduna as novidades tecnológicas da indústria 4.0, da gig economy e da sharing economy com os processos já em curso desde o início da reestruturação produtiva, sobretudo por meio dos mecanismos ideológicos subjacentes ao discurso do empreendedorismo (Filgueiras e Antunes, 2020FILGUEIRAS, Vitor; ANTUNES, Ricardo. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020. DOI: 10.22409/contracampo.v39i1.38901
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).

Para Abílio (2019ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov. 2019. DOI:10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674
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), os grandes grupos tecnológicos se apresentam como mediadores de uma relação econômica “natural” e “moderna”, “agentes econômicos independentes que se encontram no mercado e exercem livremente suas potencialidades, o que levaria a um equilíbrio geral entre oferta e procura e à promoção do bem-estar geral” (Abílio, 2019ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov. 2019. DOI:10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674
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, p. 3). Seria, então, um encontro entre empreendedores, livres para crescerem no mercado, de acordo com o seu esforço, capacidade criativa e competitividade. Todavia, para a autora:

[...] em realidade [a empresa de app] é muito mais do que uma mediadora; a questão é que a subordinação e o controle sobre o trabalho são mais difíceis de reconhecer e mapear. Elementos centrais para tal reconhecimento: i) é a empresa que define para o consumidor o valor do serviço que o trabalhador oferece, assim como quanto o trabalhador recebe e, não menos importante, ii) a empresa detém total controle sobre a distribuição do trabalho, assim como sobre a determinação e utilização das regras que definem essa distribuição. (Abílio, 2019ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov. 2019. DOI:10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674
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, p. 3)

Desse modo, a uberização consubstancia um passo a mais no processo de subordinação do trabalho ao capital, sofisticado pelos processos de gerenciamento algorítmicos. Trata-se de processo que ficou amplamente conhecido, de modo pioneiro, com os motoristas vinculados ao app da Uber, mas que não se restringe a esse caso. Há um amplo conjunto de trabalhadores como entregadores, cuidadores, trabalhadores domésticos etc. que exercem a sua função, distribuídos em espaços os mais distintos, mas conectados aos apps ou plataformas de grandes empresas.

Concordamos com Antunes (2019ANTUNES, Ricardo. Proletariado digital, serviços e valor. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida: o mosaico da exploração. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 15-23.) quando afirma que os trabalhadores são vistos, por parte da sociedade, setores jurídicos, empresas e até por muitos deles mesmos, como empreendedores, quando, na verdade, continuam como trabalhadores explorados, produzindo mais-valia e sendo pagos por procedimento - forma de pagamento capaz de elevar as taxas de exploração quando comparada ao salário por tempo (Marx, 1988bMARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro, tomo II. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural , 1988b.).

O salário por peça, aqui tomado na forma de pagamento por serviço/procedimento, gera a sensação de que quanto mais se trabalha mais se ganha, quando, na verdade, faz com que o salário seja, continuamente, uma parcela relativamente menor ante o todo produzido. Com isso, o prolongamento da jornada, ou a sua intensificação, ganha um impulso subjetivo oriundo do próprio trabalhador envolvido no discurso da autonomia/autogestão. O aumento da jornada comparece, assim, como expressão de uma nova dinâmica temporal, não só pela sua duração, mas pela sua indefinição, uma vez que o trabalhador, diversas vezes, pode passar horas conectado ao app sem que seja demandado por algum consumidor e, consequentemente, sem receber por isso (Abílio, 2019ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov. 2019. DOI:10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674
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; Filgueiras e Antunes, 2020FILGUEIRAS, Vitor; ANTUNES, Ricardo. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020. DOI: 10.22409/contracampo.v39i1.38901
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). Com a uberização,

São estabelecidas relações sem qualquer limite de jornada, renda, saúde, segurança. Nesse sentido, é necessário acentuar que esse vilipêndio em relação ao trabalho não é uma possível remissão ao futuro. No presente, a expansão do trabalho digital vem demolindo a separação entre o tempo de vida no trabalho e o tempo de vida fora dele. (Filgueiras e Antunes, 2020FILGUEIRAS, Vitor; ANTUNES, Ricardo. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020. DOI: 10.22409/contracampo.v39i1.38901
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, p. 38)

Sem contar que, visto como agente autônomo, sem vínculo típico com a empresa, o trabalhador está desprovido de proteção social trabalhista e estabilidade, situação que se torna ainda mais grave quando se considera que diversos custos são repassados para ele, como a compra/aluguel de alguns meios de trabalho (carro, bicicleta, celular etc.) e sua manutenção. Trata-se de processo funcional às intenções do capital em remediar suas contradições, pois consegue, finalmente, deslocar diversos custos para os próprios trabalhadores, aumentando seus lucros, além de não precisar se preocupar com questões espaciais tradicionais (despesa com os locais de trabalho), nem com algumas responsabilidades trabalhistas e fiscais relacionadas às condições de trabalho, em geral.

Uberização do trabalho em saúde

A práxis da saúde, no capitalismo, passa a compor o prolixo mosaico de produção/valorização do valor, portanto, subsumida à produção e reprodução do capital. Os resultados dessa dinâmica são, de um lado, a formação de um grande complexo médico-industrial/financeiro que lucra com a compra e venda da saúde e, de outro, a exploração da força de trabalho responsável pela produção do cuidado em saúde, a exemplo de médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem etc. (Merhy e Franco, 2003MERHY, Emerson E.; FRANCO, Túlio B. Por uma composição técnica do trabalho em saúde centrada no campo relacional e nas tecnologias leves: apontando mudanças para os modelos tecnoassistenciais. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, 2003.; Souza e Mendonça, 2017SOUZA, Diego O.; MENDONÇA, Henrique P. F. Trabalho, ser social e cuidado em saúde: abordagem a partir de Marx e Lukács. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 21, n. 62, p. 543-552, 2017. DOI: 10.1590/1807-57622016.0482
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).

Nesses termos, podemos falar de trabalho em saúde como particularidade do trabalho abstrato em geral, considerando a dinâmica específica do capitalismo, embora, ontologicamente, mantenham-se as diferenças entre o trabalho em termos genéricos (intercâmbio orgânico entre ser humano e natureza) e a práxis do cuidado (que se dá no âmbito do intercâmbio entre seres humanos) (Souza e Mendonça, 2017SOUZA, Diego O.; MENDONÇA, Henrique P. F. Trabalho, ser social e cuidado em saúde: abordagem a partir de Marx e Lukács. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 21, n. 62, p. 543-552, 2017. DOI: 10.1590/1807-57622016.0482
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). Além disso, assim como toda práxis humana, a da saúde encerra seus movimentos contraditórios em face do capital, uma vez que, ainda que esteja imersa em uma espiral de produção/valorização de valor, não perde seus traços essenciais como cuidado, na busca pela intervenção naquilo que ameace a vida de indivíduos e coletividades. Esses traços essenciais passam a coexistir, dialeticamente (nas sociedades nas quais imperam o trabalho abstrato/alienado), com sua subordinação ao processo de valorização e, em consequência, produção e reprodução do capital (Merhy e Franco, 2003MERHY, Emerson E.; FRANCO, Túlio B. Por uma composição técnica do trabalho em saúde centrada no campo relacional e nas tecnologias leves: apontando mudanças para os modelos tecnoassistenciais. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, 2003.; Souza e Mendonça, 2017SOUZA, Diego O.; MENDONÇA, Henrique P. F. Trabalho, ser social e cuidado em saúde: abordagem a partir de Marx e Lukács. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 21, n. 62, p. 543-552, 2017. DOI: 10.1590/1807-57622016.0482
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).

Ao considerarmos essas premissas genéricas, destacamos que a força de trabalho em saúde está inserida no movimento histórico geral das formas de reposição de exploração empreendidas pelo capital, a exemplo do que temos visto no âmbito da precarização do trabalho. Não é um processo homogêneo, até porque na divisão social do trabalho em saúde há diversas nuances que atravessam um processo de hierarquização e (super)especialização que impõe diferenças e peculiaridades para as profissões contemporâneas. Todavia, é mister considerar que mesmo profissões historicamente colocadas no topo dessa hierarquia, como é a medicina, têm enfrentado efeitos contundentes do processo de precarização do trabalho.

No Brasil, de acordo com a pesquisa Demografia médica no Brasil 2020 (dados referentes a 2019), 21,5% desses profissionais trabalham apenas no setor público, enquanto 28,3% trabalham apenas no setor privado, e a maioria (50,2%) atua nos dois setores. Com isso, o acúmulo de vínculos institucionais é comum, pois 61,6% possuem três ou mais vínculos, chegando até mesmo a seis vínculos (11%). O acúmulo de vínculos se reflete em horas trabalhadas por semana, uma vez que quase metade desses trabalhadores (45,9%) trabalha mais de 60 horas/semana, revelando um crescimento em relação a 2014, quando esse percentual era de 32,4% (Scheffer et al., 2020SCHEFFER, Mário et al. Demografia médica no Brasil 2020. São Paulo: FMUSP, CFM, 2020. Disponível em: http://www.flip3d.com.br/pub/cfm/index10/?numero=23&edicao=5058#page/3 . Acesso em: 6 mar. 2020.
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).

Gomes (2017GOMES, Rogério M. Humanização e desumanização no trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017.) problematiza as mudanças no trabalho médico com a transformação da tradicional atuação liberal em formas de assalariamento, ainda que disfarçadas em um formato que forja, ideologicamente, a sensação de exercício autônomo, que estaria próximo dos moldes tradicionais, mas agora subordinado a ‘mediadores’ mercantis. Isso porque, cada vez mais, o trabalho médico é mediado (subordinadamente) pelos planos e seguros de saúde, exatamente quando se forja a sensação de um exercício liberal, mas que é dinamizado pela captura de ‘clientes’ definida pelo plano/seguro, assim como também ocorre com os valores a serem pagos, os procedimentos a serem efetivados e toda a dinâmica do processo de produção do cuidado. Para Gomes (2017)GOMES, Rogério M. Humanização e desumanização no trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017., essa é uma das principais frentes de precarização do trabalho médico, mas que se reproduz, por conseguinte, por toda a cadeia de divisão do trabalho em saúde.

Naquelas profissões em que a mediação de assalariamento é mais clara, a precarização se revela mais nitidamente, quando podemos citar o caso dos trabalhadores de enfermagem, uma vez que, tradicionalmente, exercem a profissão por meio de contratos de assalariamento, seja na esfera pública, seja na esfera privada. Silva et al. (2020SILVA, Raimunda M. et al. Precarização do mercado de trabalho de auxiliares e técnicos de enfermagem no Ceará, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 135-145, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020251.28902019
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), por exemplo, demonstraram que auxiliares e técnicos de enfermagem do estado do Ceará, Brasil, são afetados pela precarização em todas as dimensões consideradas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT): temporal, econômica, social e organizacional. Destaca-se o fato de que 51,2% das atividades desses trabalhadores são realizadas no setor público, o que pode gerar a sensação de que possuem maior estabilidade e estariam sujeitos a menor precarização. Todavia, ao contrário disso, o estudo de Silva et al. (2020SILVA, Raimunda M. et al. Precarização do mercado de trabalho de auxiliares e técnicos de enfermagem no Ceará, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 135-145, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020251.28902019
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, p. 137-138) revela que:

[...] no setor público, o vínculo por meio de cooperativa (30,7%) rivaliza com o estatutário (35,7%). Os contratos por tempo determinado e a prestação de serviços sem vínculo constituem mais da metade dos vínculos de trabalho. No setor privado e no filantrópico, a proporção de vínculo celetista é de 62,1% e 52,4%, que pode ser considerada até melhor que no setor público, tendo em vista a proteção ao trabalhador fornecida pela CLT em comparação com vínculos mais precários.

Araújo-dos-Santos et al. (2018)ARAÚJO-DOS-SANTOS, Tatiane et al. Precarização do trabalho de enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem nos hospitais públicos. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, n. 52, e03411, 2018. DOI: 10.1590/s1980-220x2017050503411
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trazem pesquisa que exemplifica esse processo, destacando que as trabalhadoras de enfermagem de instituições públicas de saúde geridas pela Secretaria de Estado de Saúde da Bahia, Brasil, enfrentam níveis consideráveis de precarização. Os autores destacam que, entre 46,8% das enfermeiras, a precarização se constitui de acordo com a dimensão ‘Condições de trabalho’; já entre as técnicas e auxiliares, a ‘Intensidade do trabalho pela organização do seu processo’ foi a dimensão mais presente, alcançando 51,2% dessas trabalhadoras.

O processo de precarização do trabalho em saúde também é dinamizado pelo avanço tecnológico, pela falácia do empreendedorismo e autogestão. Para Kahn (2016KAHN, Fazal. The ‘uberization’ of healthcare: the forthcoming legal storm over mobile health technology’s impact on the medical profession. Health Matrix, v. 26, n. 1, p. 123-172, 2016. Disponível em: https://scholarlycommons.law.case.edu/healthmatrix/vol26/iss1/8 . Acesso em: 9 out. 2020.
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), está em curso um processo de uberização da saúde, a reboque das metamorfoses gerais do mundo do trabalho. Para o autor, há uma influência, cada vez maior, da tecnologia (especificamente, a Inteligência Artificial) nos processos de decisão dos médicos, apesar de essa categoria ter maior poder de resistência que outras, devido ao seu histórico de exercício liberal. Contudo, lembremos que Gomes (2017GOMES, Rogério M. Humanização e desumanização no trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017.) já destacou que esse histórico comparece como ingrediente para a consubstanciação de formas mais sofisticadas de disfarçar a precarização, o que vale também para a uberização.

Nesse caso específico, Kahn (2016KAHN, Fazal. The ‘uberization’ of healthcare: the forthcoming legal storm over mobile health technology’s impact on the medical profession. Health Matrix, v. 26, n. 1, p. 123-172, 2016. Disponível em: https://scholarlycommons.law.case.edu/healthmatrix/vol26/iss1/8 . Acesso em: 9 out. 2020.
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) chama a atenção, também, para a resistência que os médicos conseguiram exercer em relação à substituição de suas práticas tradicionais de anamnese e exame físico por auxílio tecnológico, com decisões sustentadas pelos cálculos de Inteligência Artificial. Porém, o emprego dessa tecnologia tem sido crescente, até porque consiste em via de expansão da acumulação capitalista, com impulso do desenvolvimento dos meios de produção, aumento de produtividade e, consequentemente, acréscimo de mais-valia circulante na direção do complexo médico-industrial/financeiro.

O uso da tecnologia a partir de uma dinâmica em que, cada vez mais, a criatividade e as capacidades cognitivas do trabalhador da saúde sejam expropriadas e subjugadas à tecnologia não consiste, por si só, no processo de uberização, embora constitua o lastro necessário para que ele se desenvolva, consoante Kahn (2016KAHN, Fazal. The ‘uberization’ of healthcare: the forthcoming legal storm over mobile health technology’s impact on the medical profession. Health Matrix, v. 26, n. 1, p. 123-172, 2016. Disponível em: https://scholarlycommons.law.case.edu/healthmatrix/vol26/iss1/8 . Acesso em: 9 out. 2020.
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). O desenho da uberização na saúde ganha seus contornos mais claros com a inserção da telemedicina, embora carregue os traços do processo de conflito entre a tradição médica e as necessidades de acumulação do complexo médico-industrial/financeiro. No caso brasileiro, esses conflitos refletem-se no processo jurídico-legal que rege essa prática no território nacional, com avanços e recuos. Devemos destacar que desde 2002, o Conselho Federal de Medicina (CFM) resolve:

Art. 1º - Definir a Telemedicina como o exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde.

Art. 2º - Os serviços prestados através da Telemedicina deverão ter a infraestrutura tecnológica apropriada, pertinentes e obedecer às normas técnicas do CFM pertinentes a guarda, manuseio, transmissão de dados, confidencialidade, privacidade e garantia do sigilo profissional. (Conselho Federal de Medicina, 2002CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 1.643, de 7 de agosto de 2002. Define e disciplina a prestação de serviços através da telemedicina. Diário Oficial da União , Brasília, 26 ago. 2002. Seção 1, p. 205.)

Apesar de o órgão que regula a medicina no Brasil considerar a telemedicina como componente do exercício profissional desde 2002, alguns termos de sua efetivação, limites e possibilidades ainda não eram muito claros, inclusive resultando em pouca aderência efetiva. Tanto é que apenas em 2018 há uma resolução que se propõe atualizar os termos desse exercício, na qual ficou definido que: “Art. 2º - A telemedicina e a teleassistência médica, em tempo real on-line (síncrona) ou off-line (assíncrona), por multimeios em tecnologia, é permitida dentro do território nacional, nos termos desta resolução” (Conselho Federal de Medicina, 2019aCONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 2.227, de 13 de dezembro de 2018. Define e disciplina a telemedicina como forma de prestação de serviços médicos mediados por tecnologias. Diário Oficial da União, Brasília, 6 fev. 2019a. Seção 1, p. 58.). Contudo, a matéria permanece objeto de conflito, tendo em vista que já no ano seguinte revogou-se a resolução n. 2.227, de 2018, por meio da resolução n. 2.228 (Conselho Federal de Medicina, 2019bCONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 2.228, de 26 de fevereiro de 2019. Restabelece expressamente a vigência da resolução CFM n. 1.643/2002. Diário Oficial da União , Brasília, 6 mar. 2019b. Seção 1, p. 91.), voltando a vigorar os termos definidos em 2002.

O conflito parece girar em torno de duas questões: os limites éticos da relação profissional-indivíduo assistido mediada pela tecnologia; e sobretudo a perda de poder e autoridade do profissional para a tecnologia. Detendo-nos especificamente na segunda questão, é possível constatar o desenvolvimento dialético de avanço da medicina (e da saúde) pela desumanização da prática médica travestida de especialização e incremento tecnológico, o que consiste na destituição de elementos autenticamente humanos, ainda que sob a face negativa do retrocesso de poder/domínio do processo. A subordinação humana à fetichização da técnica e da tecnologia assume um novo patamar com a uberização, uma vez que as plataformas digitais de empresas, planos e seguros de saúde incorporam o sistema de gerência por algoritmo que controla e molda o exercício profissional, a distribuição espaçotemporal dos serviços e até mesmo os desejos e necessidades dos usuários (Kahn, 2016KAHN, Fazal. The ‘uberization’ of healthcare: the forthcoming legal storm over mobile health technology’s impact on the medical profession. Health Matrix, v. 26, n. 1, p. 123-172, 2016. Disponível em: https://scholarlycommons.law.case.edu/healthmatrix/vol26/iss1/8 . Acesso em: 9 out. 2020.
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; Souza, 2021SOUZA, Diego O. Cuidado em saúde e alienação: relação mediada pela tecnologia. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 25, e200776, 2021. DOI: 10.1590/interface.200776
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).

De acordo com Costa, Sola e Garcia (2020COSTA, José A. F.; SOLA, Fernanda; GARCIA, Marco A. F. Telemedicina e uberização da saúde: médicos operários ou consumidores? Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, Brasília, v. 9, n. 3, p. 72-88, jul./set. 2020. DOI: 10.17566/ciads.v9i3.699
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, p. 77):

A oferta de atenção médica por telemedicina é mais barata que o modo presencial tradicional. Embora incorpore custos de implementação da tecnologia e remunere o fluxo informacional, há redução dos custos de instalação da clínica médica e de deslocamento dos pacientes. A primeira resulta da possibilidade de localizar fisicamente o médico em regiões onde imóveis são mais baratos, de dispensar espaços para receber pacientes e de dispensar funcionários de secretaria e recepção. A segunda decorre da possibilidade de o paciente acessar o médico em seu telefone móvel ou de um terminal doméstico de computador, sem ter de utilizar o tempo e os meios necessários para o deslocamento, às vezes até mesmo penoso.

É preciso destacar que esse barateamento se reverte em maior lucro para a empresa, com repasse de custos para médicos e indivíduos assistidos. Ainda que em um primeiro momento, como destacaram Costa, Sola e Garcia (2020COSTA, José A. F.; SOLA, Fernanda; GARCIA, Marco A. F. Telemedicina e uberização da saúde: médicos operários ou consumidores? Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, Brasília, v. 9, n. 3, p. 72-88, jul./set. 2020. DOI: 10.17566/ciads.v9i3.699
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), os atores envolvidos pareçam economizar com transporte e deslocamento, é preciso considerar que está pressuposto que eles devem possuir os itens tecnológicos necessários (computador, celular, conexão com a internet etc.), assim como garantir seu funcionamento e manutenção. Os autores parecem não considerar que o fato de médicos e usuários assumirem esses custos seja um fato relevante para se constatar que o barateamento do processo beneficia, de forma tendenciosa, a empresa detentora da plataforma digital.

Com efeito, ainda que a plataforma digital de saúde pareça ser mera mediadora que une os interesses de médicos (e outros trabalhadores de saúde) e indivíduo assistido, ou ainda que os trabalhadores de saúde compareçam como supostos empreendedores parceiros das plataformas, ou até mesmo um tipo especial de consumidor dos serviços dessas plataformas, o que se tem é um processo de trabalho em saúde subordinado à tecnologia (de base cognitiva capitalista) de modo que se potencialize o acúmulo de capital, de um lado, e a precarização do trabalho, de outro.

A crítica à uberização não pode se restringir, portanto, a algum fator corporativista profissional (pela redução de seu poder nas relações), mas deve alcançar a dinâmica mais ampla do processo, considerando-se que se trata de uma estratégia de aumentar a produtividade, com menores custos com a manutenção de locais físicos de atendimento (dispensáveis em diversas etapas clínicas pela via da telemedicina), baratear a força de trabalho, mas aumentar a taxa de exploração dos trabalhadores, tudo isso travestido de modernização de uma relação empreendedora. O trabalhador da saúde entra nessa relação sob o rótulo de profissional autônomo que, auxiliado pela tecnologia, alcança uma certa clientela, quando, na verdade, subordina-se à dinâmica imposta pelas empresas digitais de saúde, explorados e sem direitos trabalhistas, até mesmo porque se trata de uma relação que não os enxerga como trabalhadores/empregados, tal qual a visão tradicional, inclusive juridicamente.

O ano de 2020 se mostrou peculiar na história recente, haja vista o processo pandêmico devido ao novo coronavírus e às medidas de distanciamento que lhes foram consequentes. Nesse contexto, observa-se que a subordinação tecnológica do processo de trabalho em saúde fazia-se presente antes da pandemia; no entanto, ocorreu um aprofundamento dessa situação em decorrência da crise sanitária. A seguir, debatemos como esse momento peculiar atuou favorecendo a ampliação e a consolidação da uberização da saúde.

A pandemia de Covid-19: avanços da uberização do trabalho em saúde via telemedicina

Com a rápida ascensão do número de casos e óbitos ocasionados pela Covid-19, adotaram-se medidas de distanciamento social como forma de prevenção da transmissão do SARS-CoV-2, inclusive com a suspensão de alguns serviços de saúde, por algum tempo, em vários países. Foi o caso de determinados procedimentos cirúrgicos eletivos e até mesmo acompanhamento clínico. Nesses casos, a telemedicina e a telessaúde compareceram como uma alternativa encontrada para manter algum suporte ao indivíduo ou grupo assistido, sem infringir o distanciamento social (Moreira et al., 2021MOREIRA, Henrique T. et al . Telemedicina em cardiologia para seguimento ambulatorial de pacientes com alto risco cardiovascular em resposta à pandemia de Covid-19. Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Rio de Janeiro, v. 116, n. 1, p. 153-157, 2021. DOI: 10.36660/abc.20200715
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; Bertasso et al., 2021BERTASSO, Carolina P. et al. Telemedicine in long-term elderly care facilities as ‘social accountability’ in the context of Covid-19. Revista Brasileira de Educação Médica, São Paulo, v. 45, n. 1, e023, 2021. DOI: 10.1590/1981-5271v45.1-20200312.ing
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).

Não obstante, em face do caráter contraditório das relações sociais capitalistas, essa alternativa a priori benéfica (pois viabiliza a continuidade do tratamento dos indivíduos e grupos, sem que eles se exponham a situações de risco) se revela, ao mesmo tempo, como mais uma estratégia de o capital se reproduzir no setor saúde. Em particular, a pandemia se constitui no pretexto esperado para a expansão e a consolidação do modelo de uberização na saúde, nos moldes debatidos na seção anterior.

No caso brasileiro, as tensões em torno dessa alternativa continuaram a se expressar jurídico-politicamente. A resistência de alguns setores da medicina em flexibilizar o uso da tecnologia de informação e comunicação para um modelo de atendimento remoto se deve a diversos motivos, desde a preocupação com o nível de interação profissional-indivíduo assistido até questões ligadas à reserva de mercado.

Apesar das tensões, ainda em março de 2020, o Conselho Federal de Medicina (CFM), após receber ofício do então ministro da saúde do Brasil, Henrique Mandetta, autorizou a teleorientação, o telemonitoramento e a teleinterconsulta como forma de proteger médicos e indivíduos assistidos (Peduzzi, 2020PEDUZZI, Pedro L. CFM autoriza uso de modalidades de telemedicina: medida visa proteger tanto a saúde dos médicos quanto a de pacientes. Portal da Agência Brasil, Brasília, 20 mar. 2020. Disponível em: Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/cfm-autoriza-uso-de-modalidades-de-telemedicina . Acesso em: 20 jan. 2021
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). Logo em seguida, a autorização é ratificada, por meio da lei n. 13.989, de 15 de abril de 2020:

Art. 1º Esta Lei autoriza o uso da telemedicina enquanto durar a crise ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV-2).

Art. 2º Durante a crise ocasionada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), fica autorizado, em caráter emergencial, o uso da telemedicina. (Brasil, 2020BRASIL. Lei n. 13.989, de 15 de abril de 2020. Dispõe sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). Diário Oficial da União, Brasília, 16 abr. 2020. Seção 1, p. 1. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.989-de-15-de-abril-de-2020-252726328 . Acesso em: 27 abr. 2021.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n...
, p. 1)

Essa flexibilização, então necessária em uma conjuntura excepcional, é incorporada ao circuito capitalista como uma espécie de mola propulsora, levando à expansão das plataformas digitais e seus aplicativos, que passam a oferecer o serviço de telemedicina, colocando-se como pretensas mediadoras entre os trabalhadores da saúde e os indivíduos que procuram assistência de saúde.

Trata-se de modelo que vinha avançando antes mesmo da pandemia, a exemplo de grandes plataformas consolidadas internacionalmente, como Teladoc e Doctor on Demand. Muitas empresas foram criadas com objetivo exclusivo de disponibilizar esse tipo de serviço de saúde - isto é, o seu surgimento é direcionado a esse modelo tecnológico, algumas sendo 100% on-line, sem ter histórico de atuação no modelo tradicional, a exemplo da Oscar Health.

No Brasil, o crescimento é notável a partir de 2020, com as tradicionais operadoras de planos e seguros de saúde ampliando sua atuação na direção da telemedicina ou, também, com emergentes startups2 2 Aqui, consideram-se startups como sendo aquelas empresas que trazem serviços inovadores no mercado, desenvolvidos como protótipos via tecnologia, mas com potencial de ser escalável (mudando o status da própria startup para grande empresa em pouco tempo) e reprodutível. criando aplicativos para a oferta de telemedicina (Saúde Debate, 2020aSAÚDE DEBATE. Startup do Paraná cria aplicativo para telemedicina. Portal Saúde Debate, Curitiba, 23 abr. 2020a. Disponível em: <https://saudedebate.com.br/noticias/startup-do-parana-cria-aplicativo-para-telemedicina>. Acesso em: 30 abr. 2020.
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). No caso dos planos e seguros, a própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (2020)AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR (ANS). Nota técnica n. 6/2020. Brasília, 2020. Disponível em: http://www.ans.gov.br/images/Nota_T%C3%A9cnica_06_DIDES.pdf . Acesso em: 20 jan. 2021.
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, por meio da nota técnica n. 6/2020, estabeleceu a obrigatoriedade de as operadoras oferecerem esse tipo de serviço durante a pandemia, o que implicou que esses planos e seguros criassem plataformas digitais ou incorporassem aquelas já existentes.

Já o caso das startups se revela o de maior potencial mercantil, do ponto de vista de canalizar para si algumas práticas pregressas, efetivadas de forma independente por médicos e outros profissionais de saúde, sobretudo durante a pandemia, quando passaram a atender os seus ‘clientes’ por meio de redes sociais e celular, mas com sérios riscos do ponto de vista ético e da proteção dos dados. A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), por exemplo, constatou que cerca de 90% dos profissionais de ginecologia já utilizavam a telemedicina para a realização de orientações médicas, predominantemente via telefone e WhatsApp (Febrasgo, 2020FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA (FEBRASGO). Telemedicina em meio à pandemia. Portal da Febrasgo, Rio de Janeiro, 15 jun. 2020. Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1056-telemedicina-em-meio-a-pandemia . Acesso em: 18 maio 2021.
https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/...
).

Com o argumento da profissionalização da ‘mediação’, as startups avançam no mercado, conseguindo adesão, cada vez maior, de médicos e outros profissionais (Saúde Debate, 2020bSAÚDE DEBATE. Telemedicina: coronavírus impulsiona prática que estava sendo debatida. Portal Saúde Debate , Curitiba, 20 abr. 2020b. Disponível em: https://saudedebat.com.br/noticias/telemedicina-coronavirus-impulsiona-pratica-que-estava-sendo-debatida . Acesso em: 30 abr. 2020.
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). Fortalece-se a ideologia da autogestão, uma vez que, assim como acontece com motoristas e entregadores, constrói-se a narrativa de que o profissional de saúde controla sua jornada, ritmo, ganhos etc., quando, na verdade, as plataformas, por meio da Inteligência Artificial, controlam econômica e espaço temporalmente a relação entre profissionais e indivíduos assistidos.

O crescimento da União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (2021UNIÃO NACIONAL DAS INSTITUIÇÕES DE AUTOGESTÃO EM SAÚDE (UNIDAS). Quem somos. Portal Unidas, São Paulo, 2021. Disponível em: https://unidas.org.br/a-unidas/# . Acesso em: 11 jun. 2021.
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) é sintomático da força dessa narrativa. Essa rede reúne mais de 4 milhões de indivíduos assistidos, com mais de cem operadoras afiliadas, o que corresponde a 11% do total do setor de saúde suplementar. Seguindo a tendência da telemedicina, a Unida

[...] disponibilizou recentemente para as suas associadas uma plataforma de telessaúde, com uma estimativa inicial de atendimento de 70 mil consultas por mês. Segundo a entidade, esta é uma iniciativa inédita no segmento e pode atingir 4,5 milhões de beneficiários. A ferramenta tem o objetivo de evitar um colapso no sistema de saúde diante do cenário da Covid-19, além de proporcionar atendimento seguro, qualificado e ajudar a reduzir o fluxo nos prontos-socorros. (Saúde Debate, 2020bSAÚDE DEBATE. Telemedicina: coronavírus impulsiona prática que estava sendo debatida. Portal Saúde Debate , Curitiba, 20 abr. 2020b. Disponível em: https://saudedebat.com.br/noticias/telemedicina-coronavirus-impulsiona-pratica-que-estava-sendo-debatida . Acesso em: 30 abr. 2020.
https://saudedebat.com.br/noticias/telem...
, p. 1)

Forja-se, então, uma articulação entre a necessidade conjuntural e a nova fase tecnológica da reestruturação do mundo do trabalho - articulação essa que, embora seja repleta de tensões, consolida os caminhos para a subordinação do processo de trabalho em saúde à tecnologia de base cognitiva capitalista e que está, portanto, a serviço da transformação da saúde em mercadoria e da exploração dos trabalhadores da saúde.

Outra expressão desse processo é o barateamento do serviço, uma vez que algumas dessas plataformas chegam a oferecer planos populares a partir de R$ 12,90, a exemplo da UOL Med, que lançou o serviço em 2020 (Cambricolli, 2020CAMBRICOLLI, Fabiana. Consultas virtuais crescem após pandemia e regulamentação. Portal Terra, São Paulo, 20 jul. 2020. Seção Saúde. Disponível em: https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/saude/consultas-virtuais-crescem-apos-pandemia-e-regulamentacao,fddf98b30e5117d9dc9a90c82bfc7f5bxc84nkan.html . Acesso em: 15 mar. 2021.
https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/s...
). Vemos que empresas sem tradição no setor saúde entram nesse mercado, uma vez que o uso da tecnologia permite baratear a força de trabalho e, sob os moldes da uberização, estabelecer uma relação trabalhista disfarçada de empreendedorismo. Com isso, a falta de expertise sanitária ou de grandes capitais previamente investidos nesse setor não se configura empecilho para as empresas de outros segmentos, bastando possuir o aparato tecnológico necessário, a exemplo do que fez o Grupo UOL, tradicionalmente envolvido com produção de conteúdo na internet e venda de outros produtos.

Obviamente, o barateamento produz um apelo ante os segmentos mais pauperizados, o que traz graves repercussões para o modelo de saúde defendido pela Saúde Coletiva de viés crítico, em algum nível incorporado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), embora em constante ameaça de desconstrução. Isso porque fortalece a perspectiva de criação de estratégias alternativas ao SUS, sob a pecha de que o serviço público não funciona. O que não é dito é que o serviço público, inclusive o SUS, está sob a ‘batuta’ de um projeto de contrarreforma, de base neoliberal, que há tempos distorce e fragiliza a esfera pública - o que se expressa, de um lado, no subfinanciamento dos serviços públicos e, de outro, na priorização do uso desses recursos no pagamento de juros da dívida pública, além da desoneração de impostos para empresas privadas.

Ganha tônus, ainda, o modelo biomédico pautado na assistência individual e focado na doença. Por meio da telemedicina, as ações de promoção da saúde, com vistas ao entendimento e transformação das relações sociais concretas (e de suas reverberações na saúde), são dificultadas, uma vez que elas dependem da análise concreta do território sanitário, in loco, em uma perspectiva coletiva de saúde. Barateia-se o valor do serviço pago pelo indivíduo, barateia-se o custo da força de trabalho e dos meios de trabalho necessários, mas sem garantir a qualidade do serviço em uma perspectiva ampla de saúde.

A participação social também se perde nessa espiral virtual, ainda mais porque se traveste de ‘controle de qualidade’ nas avaliações dos serviços prestados, realizadas pelo indivíduo na própria plataforma, mas que, na verdade, gera dados que servem para controlar o trabalhador de saúde e reunir cada vez mais informações a serviço dos algoritmos que controlam a ‘mediação’ ali desenvolvida, no sentido de subordinar os ‘mediados’.

Em síntese, há uma variedade nas formas pelas quais se dá a relação entre os trabalhadores de saúde com os diferentes tipos de empresa que possuem plataformas de telemedicina/telessaúde. No caso dos planos e seguros de saúde mais tradicionais, já existia um histórico de vínculos precários sob diversas denominações (profissionais de saúde credenciados ou cooperados), mas, agora, com a ascensão da uberização, eles passam a ter relações mais complexas, porquanto o cooperado ou credenciado usa a tecnologia do plano/seguro no intuito de fortalecer um exercício profissional autônomo, mas que, na verdade, aumenta a taxa de exploração.

No caso das novas empresas que já nascem como plataformas digitais, incluindo as startups, esse modelo se aproxima da uberização como ocorre em outros setores, como o de motoristas e entregadores, uma vez que nesses casos sequer existe uma denominação/reconhecimento de algum tipo de vínculo com a empresa detentora da tecnologia, pois ela, supostamente, apenas oferece o cadastramento dos trabalhadores de saúde e dos indivíduos que procuram assistência nas suas plataformas, consideradas neutras no processo, pois seriam um espaço de encontro dos interesses desses ‘atores’ sociais.

Em ambos os casos, caracteriza-se a uberização por meio do uso da tecnologia (telemedicina/telessaúde) como forma de impulsionar a precarização do trabalho, porquanto se mascara a relação de subordinação dos trabalhadores de saúde em face das empresas capitalistas detentoras das novas tecnologias, o que se dá fora dos limites convencionais da relação entre patrão e empregado, via contrato de trabalho, mas que os mantém sob a égide da produção e reprodução do capital.

Com a pandemia, essa tendência deu passos largos, o que consubstancia uma sofisticação da subordinação do trabalho (logo, do trabalho em saúde) ao capital, no bojo da reestruturação produtiva. Aqueles que defendem esse modelo são taxativos sobre a relação pandemia e telemedicina: “Afortunadamente, los primeros pasos están dados y el proceso es ya, irreversible” (Bernabeu-Martínez et al., 2020BERNABEU-MARTÍNEZ, Mari A. et al. La ‘nueva normalidad’: ¿qué opinan nuestros pacientes? Hospital a Domicilio, Alicante, v. 4, n. 4, p. 171-184, dez. 2020. DOI: 10.22585/hospdomic.v4i4.112
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, p. 180).

A exemplo do que tem ocorrido com os motoristas e entregadores, é preciso investigar o desenrolar concreto desse processo na saúde junto aos trabalhadores do setor, analisando todos os elementos do serviço, desde as taxas que devem ser pagas até o real destino dos dados armazenados nas plataformas. Também a avaliação da qualidade do serviço e a percepção dos usuários precisam ser acompanhadas daqui em diante, tendo em vista ser um modelo relativamente novo.

As tensões jurídico-políticas devem permanecer e, ao que tudo indica, caso sigam a tendência da uberização em outros setores, podem desencadear reações de grupos de trabalhadores insatisfeitos e organizados para pressionar, ao menos, por regulação mais clara das relações de trabalho efetivamente estabelecidas. Por ora, o que podemos concluir é que a pandemia age como catalisadora do avanço da precarização do trabalho em saúde, na forma de uberização (via telemedicina), com todos os seus efeitos degradantes do ponto de vista da classe trabalhadora.

Considerações finais

Constatamos que as tecnologias em geral seguem a dinâmica do desenvolvimento dos meios de produção sob a racionalidade predominante. Portanto, ainda que elas possuam um potencial de resolver certos problemas do cotidiano, assim o fazem a partir de um campo no qual o próprio capital produz os problemas, determina quais deles serão enfrentados e direciona as respostas. A telemedicina e a telessaúde se inserem nesse processo mais amplo, sendo expressão da dinâmica capitalista no setor saúde.

Por conta disso, o processo de trabalho em saúde mediado pelas tecnologias de informação e comunicação vem se desenvolvendo ante um modelo organizativo particular do regime de acumulação flexível, sobretudo na sua face mais recente, em que a uberização emerge como uma via ainda mais sofisticada de controlar e precarizar o trabalho. Contraditoriamente, no ápice da maior crise sanitária em décadas, essa forma de organizar o processo de trabalho em saúde encontrou o pretexto ideal para se consolidar, acirrando as tensões no setor saúde em face de sua mercantilização.

O entendimento da saúde como processo socialmente determinado e que, portanto, está atravessado pela luta de classes e direcionado à esfera coletiva e da promoção da saúde - obviamente, sem esquecer o indivíduo e a doença - encontra nesse formato um terreno hostil, o que implica caminhos mais férteis para o modelo biomédico e a descaracterização dos sistemas de saúde pública pautados em perspectivas mais amplas.

A exploração dos trabalhadores de saúde, ora acentuada, é um ponto nevrálgico do processo, retroalimentando a transformação da produção do cuidado em valorização do valor, assim como provocando retrocessos no entendimento e efetivação do que é saúde e prática de saúde.

Os momentos atípicos/críticos que exijam a incorporação de certas práticas advindas dessa racionalidade não podem servir de laboratório para gestar a sua hegemonia. Ao contrário disso, deve ser espaço para apreender as suas contradições, no limite das possibilidades e necessidades conjunturais, mas vislumbrando ultrapassá-las, em uma perspectiva de emancipação da práxis da saúde.

Referências

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  • 1
    Sempre que nos referimos a como o trabalho em saúde se efetiva, tendo em vista a articulação de seus elementos internos, utilizaremos ‘processo de trabalho em saúde’. Quando a menção for de caráter genérico, utilizaremos apenas ‘trabalho em saúde’, como categoria teórica abstrata.
  • 2
    Aqui, consideram-se startups como sendo aquelas empresas que trazem serviços inovadores no mercado, desenvolvidos como protótipos via tecnologia, mas com potencial de ser escalável (mudando o status da própria startup para grande empresa em pouco tempo) e reprodutível.
  • Financiamento

    Não houve.
  • Aspectos éticos

    Por se tratar de estudo de teórico, com base em documentos de acesso público, não se fez necessário apreciação do comitê de ética.
  • Apresentação prévia

    O artigo foi escrito especificamente para a publicação em periódico, não sendo produto de trabalho prévio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    08 Jul 2021
  • Aceito
    14 Set 2021
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