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Ansiedade, afeto negativo e estresse de docentes em atividade remota durante a pandemia da Covid-19

Anxiety, negative affect, and stress of faculty in remote work during the COVID-19 pandemic

Ansiedad, afecto negativo y estrés de docentes en actividad remota durante la pandemia de Covid-19

Resumo

O trabalho pedagógico remoto emergencial foi implementado em muitas escolas do Brasil durante a pandemia da Covid-19, como forma de diminuir os contatos entre indivíduos e, consequentemente, diminuir a taxa de transmissão da doença, mantendo aulas e atividades didáticas. Em muitas situações, professoras e professores realizaram atividades que descaracterizam sua identidade docente e conflitam com atividades domésticas, produzindo mal-estar e sofrimento. Em pesquisa de coorte em duas fases, o sofrimento psicológico de professores e professoras da Educação Básica foram analisados em função da quantidade de trabalho remoto, do gênero, da quantidade de trabalho doméstico e da experiência prévia. O trabalho remoto emergencial produziu efeitos na Ansiedade-estado, Afeto negativo e Estresse percebido − e essas respostas foram moderadas pela experiência prévia. Mulheres apresentaram maiores respostas que homens, um efeito mediado principalmente pela quantidade de trabalho doméstico realizada pela professora. Os participantes referenciaram principalmente dimensões laborais negativas e dimensões afetivas quando levados a pensar sobre o trabalho remoto, com menor saturação de respostas relacionadas a dimensões laborais positivas, à aprendizagem e a questões político-econômicas. Esses resultados sugerem que o trabalho remoto emergencial exacerba o estresse docente, apontando para precarização do trabalho docente e necessidade de implementação de políticas que mitiguem esses impactos.

Palavras-chave:
Covid-19; trabalho pedagógico remoto; trabalho remoto emergencial; sofrimento psicológico; precarização do trabalho

Abstract

Emergency remote pedagogical work was implemented in many schools in Brazil during the COVID-19 pandemic, as a way to reduce contacts between individuals and, consequently, reduce the rate of disease transmission, maintaining classes and educational activities. In many situations, teachers and teachers carried out activities that mischaracterize their teaching identity and conflict with domestic activities, producing discomfort and suffering. In a two-phase cohort study, the psychological suffering of Basic Education teachers were analyzed as a function of the amount of remote work, gender, the amount of housework and previous experience. Emergency remote work had effects on State Anxiety, Negative Affect and Perceived Stress − and these responses were moderated by previous experience. Women had higher responses than men, an effect mediated mainly by the amount of housework performed by the teacher. Participants mainly referred to negative work dimensions and affective dimensions when led to think about remote work, with less saturation of answers related to positive work dimensions, learning and political-economic issues. These results suggest that emergency remote work exacerbates teacher stress, pointing to the precariousness of teaching work and the need to implement policies that mitigate these impacts.

Keywords:
COVID-19; remote pedagogical work; emergency remote work; psychological suffering; job precariousness

Resumen

El trabajo pedagógico remoto de emergencia se implementó en muchas escuelas de Brasil durante la pandemia Covid-19, como una forma de reducir los contactos entre las personas y, en consecuencia, disminuir la tasa de transmisión de la enfermedad, manteniendo las clases y actividades educativas. En muchas situaciones, profesoras y profesores realizaron actividades que distorsionan su identidad docente y entran en conflicto con las actividades domésticas, produciendo malestar y sufrimiento.

En un estudio de cohorte de dos fases, se analizó el sufrimiento psicológico de los docentes de Educación Básica en función de la cantidad de trabajo remoto, de género, de la cantidad de tareas domésticas y de la experiencia previa. El trabajo remoto de emergencia tuvo efectos sobre la Ansiedad-estado, el Afecto negativo y el Estrés percibido - y estas respuestas fueron moderadas por la experiencia previa. Las mujeres tuvieron respuestas más altas que los hombres, efecto mediado principalmente por la cantidad de tareas domésticas realizadas por las profesoras. Los participantes se refirieron principalmente a las dimensiones negativas del trabajo y las dimensiones afectivas cuando se les indujo a pensar en el trabajo remoto, con una menor saturación de respuestas relacionadas con las dimensiones positivas del trabajo, el aprendizaje y las cuestiones político-económicas. Estos resultados sugieren que el trabajo remoto de emergencia agrava el estrés docente, apuntando a la precariedad del trabajo docente y la necesidad de implementar políticas que mitiguen estos impactos.

Palabras clave:
Covid-19; trabajo pedagógico remoto; trabajo remoto de emergencia; sufrimiento psicológico; precariedad del trabajo

Introdução

Em decorrência da pandemia da Covid-19, iniciada em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, na China, mudanças políticas, econômicas e sociais têm ocorrido no mundo. A Covid-19 é causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), vírus com alto potencial de proliferação. Dessa forma, a Organização Mundial de Saúde (OMS) indicou o distanciamento social como uma das medidas de prevenção e contenção do avanço da Covid-19 (Freitas, Napimonga e Donalisio, 2020FREITAS, André R. R.; NAPIMONGA, Marcelo; DONALISIO, Rita. Análise da gravidade da pandemia de Covid-19. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, v. 29, n. 2, e2020119, 2020. DOI: 10.5123/s1679-49742020000200008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ress/a/TzjkrLwNj78YhV4Bkxg69zx/?lang=pt . Acesso em: 30 maio 2021.
https://www.scielo.br/j/ress/a/TzjkrLwNj...
). A Covid-19 é uma doença de grande impacto nas populações humanas, devido à sua alta mortalidade e transmissão por gotículas respiratórias aerossolizadas (Bourouiba, 2020BOUROUIBA, Lydia. Turbulent gas clouds and respiratory pathogen emissions: potential implications for reducing transmission of Covid-19. JAMA, Chicago, v. 323, p. 1.837-1.838, May 2020. DOI: 10.1001/jama.2020.4756. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2763852 . Acesso em: 30 maio 2021.
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). Uma consequência importante dessa alta transmissibilidade, bem como da ausência de vacinas ou protocolos de tratamento, é que as ações de saúde pública relativas à Covid-19 têm como objetivo diminuir a probabilidade de encontro entre indivíduos infectados e indivíduos susceptíveis, diminuindo a taxa de transmissão (Bourouiba, 2020BOUROUIBA, Lydia. Turbulent gas clouds and respiratory pathogen emissions: potential implications for reducing transmission of Covid-19. JAMA, Chicago, v. 323, p. 1.837-1.838, May 2020. DOI: 10.1001/jama.2020.4756. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2763852 . Acesso em: 30 maio 2021.
https://jamanetwork.com/journals/jama/fu...
; Wilder-Smith e Freedman, 2020WILDER-SMITH, Annelies; FREEDMAN, David O. Isolation, quarantine, social distancing and community containment: pivotal role for old-style public health measures in the novel coronavirus (2019-nCoV) outbreak. Journal of Travel Medicine, v. 27, n. 2, p. taaa020, March 2020. DOI: 10.1093/jtm/taaa020. Disponível em: https://academic.oup.com/jtm/article/27/2/taaa020/5735321 . Acesso em: 30 maio 2021.
https://academic.oup.com/jtm/article/27/...
). As principais ferramentas aplicadas, em maior ou menor grau, por agentes públicos para tal objetivo são o isolamento, a quarentena, o distanciamento social e a contenção comunitária (Wilder-Smith e Freedman, 2020WILDER-SMITH, Annelies; FREEDMAN, David O. Isolation, quarantine, social distancing and community containment: pivotal role for old-style public health measures in the novel coronavirus (2019-nCoV) outbreak. Journal of Travel Medicine, v. 27, n. 2, p. taaa020, March 2020. DOI: 10.1093/jtm/taaa020. Disponível em: https://academic.oup.com/jtm/article/27/2/taaa020/5735321 . Acesso em: 30 maio 2021.
https://academic.oup.com/jtm/article/27/...
). Isolamento refere-se à separação de indivíduos portadores de Covid-19 de pessoas não portadoras, com o objetivo de proteger as pessoas não infectadas, normalmente ocorrendo em contexto hospitalar. A quarentena - uma das práticas mais antigas e efetivas para o controle de surtos de doenças comunicáveis - envolve a restrição do movimento dos indivíduos e populações presumidamente expostos a uma doença contagiosa, mas que estão assintomáticos, na expectativa de identificar casos positivos após o período de incubação da doença. O distanciamento social diz respeito à redução de interações entre todos os indivíduos de uma comunidade mais ampla, estejam infectados ou não, e inclui o fechamento do comércio, das escolas, dos locais de trabalho, bem como o cancelamento de reuniões públicas. Se essas medidas são consideradas insuficientes, a contenção comunitária pode ser aplicada, expandindo o distanciamento social para uma quarentena com amplitude em uma comunidade, cidade, ou região, restringindo a movimentação de todos os indivíduos (Wilder-Smith e Freedman, 2020WILDER-SMITH, Annelies; FREEDMAN, David O. Isolation, quarantine, social distancing and community containment: pivotal role for old-style public health measures in the novel coronavirus (2019-nCoV) outbreak. Journal of Travel Medicine, v. 27, n. 2, p. taaa020, March 2020. DOI: 10.1093/jtm/taaa020. Disponível em: https://academic.oup.com/jtm/article/27/2/taaa020/5735321 . Acesso em: 30 maio 2021.
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). Em geral, os países que adotaram esquemas de contenção comunitária prontamente (i.e., assim que se verificou estado de transmissão comunitária do coronavírus SARS-CoV-2) tiveram relativo sucesso na redução da mortalidade e da taxa de infecção até o momento (Anderson et al., 2020ANDERSON, Roy M. et al. How will country-based mitigation measures influence the course of the Covid-19 epidemic? The Lancet, Londres, v. 395, n. 10.228, p. 931-934, March 2020. DOI: 10.1016/S0140-6736(20)30567-5. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30567-5/fulltext . Acesso em: 3 jun. 2021.
https://www.thelancet.com/journals/lance...
).

No Brasil, o primeiro caso de Covid-19 foi registrado no estado de São Paulo em março de 2020. Em seguida, a doença chegou rapidamente aos demais estados brasileiros. Como estratégia de conter a propagação da Covid-19, o Ministério da Saúde instituiu medidas sanitárias e o distanciamento social como maneira preventiva e de contenção da doença, o que causou mudanças de hábitos sociais da população brasileira. Escolas e universidades tiveram suas aulas presenciais suspensas. Frente a essa nova realidade, e a necessidade de garantir a continuidade do ano letivo, o Ministério da Educação, considerando o artigo 32 da Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional nº 9394/96, instituiu portarias indicando a continuidade das aulas através de atividades remotas emergenciais.

Dessa feita, o trabalho remoto, antes praticado por algumas empresas, mais especificamente por aquelas localizadas nas grandes metrópoles, passa a fazer parte do cotidiano de professores e profissionais da educação nas mais longínquas localizações do país. As formações e instrumentos oferecidos pelas secretarias de educação muitas vezes não foram suficientes para que professores e profissionais da educação pudessem efetivar o trabalho pedagógico de maneira eficiente no formato remoto emergencial. Assim, a pandemia da Covid-19 causou alterações inesperadas no trabalho pedagógico (Barreto e Rocha, 2020BARRETO, Andreia C. F.; ROCHA, Daniele S. Covid 19 e educação: resistências, desafios e (im)possibilidades. Revista Encantar: Educação, Cultura e Sociedade, Bom Jesus da Lapa, v. 2, p. 1-11, jan./dez. 2020. DOI: 10.46375/encantar.v2.0010. Disponível em: https://www.revistas.uneb.br/index.php/encantar/article/view/8480/0 . Acesso em: 3 jun. 2021.
https://www.revistas.uneb.br/index.php/e...
; Fiera, Evangelista e Flores, 2020FIERA, Letícia; EVANGELISTA, Olinda; FLORES, Renata. Chantagem como estratégia para assegurar o “direito de aprendizagem” aos “vulneráveis”. In: SOARES, Sávia B. V. et al. (org.). Coronavírus, educação e luta de classes no Brasil. Piauí: Terra Sem Amos, 2020. p. 21-28. v. 1. Disponível em: https://terrasemanos.files.wordpress.com/2020/05/coronavc3adrus=educac3a7c3a3o-e-luta-de-classes-no-brasil.pdf . Acesso em: 3 jun. 2021.
https://terrasemanos.files.wordpress.com...
). O distanciamento entre professores e alunos e a necessidade de dar continuidade às aulas fizeram com que professores e professoras recorressem às mídias de comunicação como estratégias de ensino e meio de interação social. Somam-se ainda horas diárias dedicadas às transmissões ao vivo, em busca de formação para o exercício do trabalho remoto emergencial. Nesse sentido, o trabalho em home office acabou sobrecarregando esses profissionais, que se dividiam entre o trabalho doméstico e o profissional (Soares, 2020SOARES, Sávia B. V. Coronavírus e a modernização conservadora da educação. In: SOARES, Sávia B. V. Coronavírus, educação e a luta de classes no Brasil. Piauí: Terra Sem Amos , 2020. p. 5-14. v. 1. Disponível em: https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/05/coronavc3adrus-educac3a7c3a3o-e-luta-de-classes-no-brasil.pdf . Acesso em: 30 maio 2021.
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).

Como observa Arruda (2020ARRUDA, Eucidio P. Educação remota emergencial: elementos para políticas públicas na educação brasileira em tempos de Covid-19. EmRede: Revista de Educação a Distância, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 257-275, maio 2020. Disponível em: https://www.aunirede.org.br/revista/index.php/emrede/article/view/621 . Acesso em: 07 jun. 2021.
https://www.aunirede.org.br/revista/inde...
):

A escola é um dos espaços sociais em que há maiores trocas e mobilidades de sujeitos de diferentes faixas etárias, portanto, representa espaço de maior probabilidade de contaminação em massa - o que indica ser um dos últimos espaços a ser reaberto em países que controlaram minimamente a taxa de contaminação do novo coronavírus (Arruda, 2020ARRUDA, Eucidio P. Educação remota emergencial: elementos para políticas públicas na educação brasileira em tempos de Covid-19. EmRede: Revista de Educação a Distância, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 257-275, maio 2020. Disponível em: https://www.aunirede.org.br/revista/index.php/emrede/article/view/621 . Acesso em: 07 jun. 2021.
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, p. 263).

Diferentemente de outros países, o Brasil, embora com pouquíssima experiência na modalidade de ensino a distância na educação básica, se viu obrigado a provocar um debate em busca de estratégias que pudessem manter o sistema educacional operando durante o período de isolamento para cumprir seu papel e, de algum modo, garantir o convívio escolar, mesmo que virtualmente (Arruda, 2020ARRUDA, Eucidio P. Educação remota emergencial: elementos para políticas públicas na educação brasileira em tempos de Covid-19. EmRede: Revista de Educação a Distância, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 257-275, maio 2020. Disponível em: https://www.aunirede.org.br/revista/index.php/emrede/article/view/621 . Acesso em: 07 jun. 2021.
https://www.aunirede.org.br/revista/inde...
; Soares, 2020SOARES, Sávia B. V. Coronavírus e a modernização conservadora da educação. In: SOARES, Sávia B. V. Coronavírus, educação e a luta de classes no Brasil. Piauí: Terra Sem Amos , 2020. p. 5-14. v. 1. Disponível em: https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/05/coronavc3adrus-educac3a7c3a3o-e-luta-de-classes-no-brasil.pdf . Acesso em: 30 maio 2021.
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). Assim é que o Conselho Nacional de EducaçãoBRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP n. 5/2020. Aprovado em 28 de abril de 2020. Reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da Covid-19. Disponível em: https://normativasconselhos.mec.gov.br/normativa/pdf/CNE_PAR_CNECPN52020.pdf . Acesso em: 1 jun. 2020.
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(Parecer CNE/CP no 5/2020, aprovado em 28 de abril de 2020 - Reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da Covid-19. Conselho Pleno/Conselho Nacional de Educação, 2020) lançou a proposta de parecer sobre reorganização dos calendários escolares e realização de atividades pedagógicas não presenciais durante o período de pandemia da Covid-19.

Desse modo surge, sob a tutela legal do CNE, o Ensino a Distância Emergencial ou Ensino Remoto, um modelo de ensino mediado pela tecnologia digital que se assemelha à modalidade a distância para ser aplicado por secretarias estaduais e municipais. Tal modelo contempla atividades pedagógicas a exemplo dos áudios para envio em mensageiros virtuais, videoaulas gravadas mesmo que de forma não profissional, atividades em plataformas virtuais, e-mail, atividades em PDF e, até mesmo, atividades com material impresso em alguns casos etc. Como se vê, trata-se de uma forma de ensinar que depende da rede mundial de comunicação - a internet. Nesse sentido, a educação remota online digital se diferencia da Educação a Distância pelo caráter emergencial que propõe usos e apropriações das tecnologias em circunstâncias específicas de atendimento onde outrora existia regularmente a educação presencial (Arruda, 2020ARRUDA, Eucidio P. Educação remota emergencial: elementos para políticas públicas na educação brasileira em tempos de Covid-19. EmRede: Revista de Educação a Distância, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 257-275, maio 2020. Disponível em: https://www.aunirede.org.br/revista/index.php/emrede/article/view/621 . Acesso em: 07 jun. 2021.
https://www.aunirede.org.br/revista/inde...
, p. 265).

Apesar dos esforços dos governos, das escolas, dos professores e professoras, dos alunos e das famílias para manter a escola em funcionamento, bem como o ensino e a aprendizagem, estudantes relatam falta de acesso a computadores, de internet de boa qualidade, de espaço adequado para estudar em casa e até de acúmulo de atividades.

Além das questões de acesso à internet e outras já apontadas, o ensino remoto emergencial tem revelado fragilidades do ponto de vista pedagógico, ao considerar a falta de formação profissional adequada para ensino virtual. A situação dos professores não é diferente. O distanciamento do ambiente escolar exige dos professores mais tempo para o preparo das aulas e correção de trabalhos, além de tempo para atendimento individual de alunos por meio eletrônico (Soares, 2020SOARES, Sávia B. V. Coronavírus e a modernização conservadora da educação. In: SOARES, Sávia B. V. Coronavírus, educação e a luta de classes no Brasil. Piauí: Terra Sem Amos , 2020. p. 5-14. v. 1. Disponível em: https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/05/coronavc3adrus-educac3a7c3a3o-e-luta-de-classes-no-brasil.pdf . Acesso em: 30 maio 2021.
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). Esse novo e inesperado cenário educacional exigiu dos professores e professoras, técnicos educacionais, alunos e alunas, pais e mães ou responsáveis mudanças radicais frente ao uso das tecnologias digitais. Muitos não dominam os recursos tecnológicos ou, quando o usam, o fazem com outros fins. No caso específico dos professores, além de tudo, são obrigados a serem criativos na transformação de recursos tecnológicos anteriormente utilizados apenas para se comunicar, como recursos pedagógicos eficazes para o ensino-aprendizagem, e para além disso, manter o interesse do aluno na aula (Soares, 2020SOARES, Sávia B. V. Coronavírus e a modernização conservadora da educação. In: SOARES, Sávia B. V. Coronavírus, educação e a luta de classes no Brasil. Piauí: Terra Sem Amos , 2020. p. 5-14. v. 1. Disponível em: https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/05/coronavc3adrus-educac3a7c3a3o-e-luta-de-classes-no-brasil.pdf . Acesso em: 30 maio 2021.
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).

Existe pouca pesquisa na literatura acerca da experiência afetiva do educador a distância. Apesar de haver o reconhecimento generalizado de que o gerenciamento dos estudantes é uma dimensão de alta demanda e, por vezes, alto estresse da condução dos cursos a distância, o apoio institucional muitas vezes é limitado a aspectos técnicos do desenho instrucional (Gates, 2000GATES, Gordon S. Teaching-related stress: the emotional management of faculty. The Review of Higher Education, Baltimore, v. 23, n. 4, p. 469-490, 2000. DOI: 10.1353/rhe.2000.0016. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/30107/pdf . Acesso em: 7 jun. 2021.
https://muse.jhu.edu/article/30107/pdf...
). Pouca ou nenhuma atenção é dada à totalidade da experiência de ensinar a distância, e quais são os impactos do trabalho pedagógico remoto em nível social ou pessoal do ponto de vista do corpo docente.

Algumas pistas podem ser encontradas nos estudos sobre estresse em professores. Kyriacou (2001KYRIACOU, Chris. Teacher stress: directions for future research. Educational Review, v. 53, n. 1, p. 27-35, jul. 2001. DOI: 10.1080/00131910120033628. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/00131910120033628 . Acesso em: 7 jun. 2021.
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1...
, p. 28, tradução nossa) define estresse de professores como “a experiência [...] de emoções desagradáveis e negativas, como raiva, ansiedade, tensão, frustração ou depressão, resultantes de algum aspecto do seu trabalho como professor”. Seu modelo percebe o estresse como uma experiência emocional negativa, desencadeada pela percepção do professor de que sua situação de trabalho constitui uma ameaça à sua autoestima ou bem-estar (Kyriacou, 2001KYRIACOU, Chris. Teacher stress: directions for future research. Educational Review, v. 53, n. 1, p. 27-35, jul. 2001. DOI: 10.1080/00131910120033628. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/00131910120033628 . Acesso em: 7 jun. 2021.
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1...
; Kyriacou e Sutcliffe, 1978KYRIACOU, Chris; SUTCLIFFE, John. A model of teacher stress. Educational Review, v. 4, n. 1, p. 1-6, 1978. DOI: 10.1080/0305569780040101. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/0305569780040101 . Acesso em: 8 jun. 2021.
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1...
). Os estudos sobre estresse de professores têm apontado alguns estressores importantes no contexto escolar, muitos dos quais podem ser exacerbados no atual contexto de trabalho remoto na pandemia: lidar com a classe e manter a disciplina; aplicar as tarefas; organizar grupos de trabalho; ajudar crianças com problemas comportamentais; comunicar conceitos e preparar recursos para lições; enfrentar a falta de recursos e equipamentos. Outros estressores importantes são o excesso de responsabilidade pelos alunos; pouco suporte do Estado e pressões de tempo na escola; o maior número de turmas; alta carga de trabalho; a baixa motivação dos alunos; o envolvimento insuficiente dos pais; e a pressão conjunta dos pais, professores e alunos (Silveira et al., 2014SILVEIRA, Kelly A. et al. Estresse e enfrentamento em professores: uma análise da literatura. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 30, n. 4, p. 15-36, 2014. DOI: 10.1590/S0102-46982014000400002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/bPDgWC8X4KbncZ8VNxFdHsn/?lang=pt . Acesso em: 30 maio 2021.
https://www.scielo.br/j/edur/a/bPDgWC8X4...
). Makarenko e Andrews (2017MAKARENKO, Erica; ANDREWS, Jac J. W. An empirical review of the mental health and well-being of online instructors. The Journal of Educational Thought (JET) / Revue de la Pensée Éducative, v. 50, n. 2-3, p. 182-199, 2017. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/26372403 . Acesso em: 8 jun. 2021.
https://www.jstor.org/stable/26372403...
) apontam ainda que professores que trabalham com instrução online estão mais sujeitos a sensações de isolamento e solidão, produzindo maior estresse.

Outra pista importante para o possível impacto negativo da transição súbita ao trabalho pedagógico remoto no período de pandemia pode ser encontrada nas pesquisas sobre trabalho digital e precarização (Antunes, 2010ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2010. ; Antunes e Praun, 2015ANTUNES, Ricardo; PRAUN, Luci. A sociedade dos adoecimentos no trabalho. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 123, p. 407-427, jul./set. 2015. DOI: 10.1590/0101-6628.030. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/cbc3JDzDvxTqK6SDTQzJJLP/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 7 jun. 2021.
https://www.scielo.br/j/sssoc/a/cbc3JDzD...
; Berardi, 2009BERARDI, Franco. Precarious rhapsody. 1. ed. Nova Iorque: Minor Compositions, 2009. ; Filgueiras e Antunes, 2020FILGUEIRAS, Vitor; ANTUNES, Ricardo. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Revista Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020. DOI: 10.22409/contracampo.v39i1.38901. Disponível em: https://periodicos.uff.br/contracampo/article/view/38901/pdf . Acesso em: 30 maio 2021.
https://periodicos.uff.br/contracampo/ar...
). Antunes (2010)ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2010. aponta para uma reconfiguração, a partir do trabalho digital precarizado, de uma ‘nova morfologia do trabalho’, expressa por clivagens e transversalidades entre grupos de trabalhadores (estáveis e precários, homens e mulheres, jovens e idosos, brancos, negros e índios, qualificados e desqualificados, empregados e desempregados, nativos e imigrantes etc.). Berardi (2009)BERARDI, Franco. Precarious rhapsody. 1. ed. Nova Iorque: Minor Compositions, 2009. aponta que essa nova morfologia − caracterizada por outsourcing global, ‘liofilização’ da produção, e financialização − produz uma espécie de isomorfismo material com a ansiedade direcionada ao futuro. Como resultado, o trabalho digital gera uma espécie de ‘afetariado’, ou proletariado afetivo (Holmes, 2003HOLMES, Brian. The spaces of a cultural question: an e-mail interview with Brian Holmes. Conducted by Marion von Osten. Republicart, 2003. Disponível em: https://transversal.at/transversal/0704/holmes/en . Acesso em: 9 jun. 2021.
https://transversal.at/transversal/0704/...
; Kingsmith, 2018KINGSMITH, A. T. We the affectariat: activism and boredom in anxious capitalism. Rhizomes: Cultural Studies in Emerging Knowledge, n. 34, 2018. DOI: 10.20415/rhiz/034.e07. Disponível em: http://www.rhizomes.net/issue34/kingsmith/index.html . Acesso em: 9 jun. 2021.
http://www.rhizomes.net/issue34/kingsmit...
).

Este enfoque sobre o ‘afetariado’ é uma tentativa de sugerir que o sofrimento psíquico produzido pelo trabalho imaterial seja um efeito socialmente fabricado, e não um déficit pessoal ou uma diferença individual. Como aponta Holmes (2003HOLMES, Brian. The spaces of a cultural question: an e-mail interview with Brian Holmes. Conducted by Marion von Osten. Republicart, 2003. Disponível em: https://transversal.at/transversal/0704/holmes/en . Acesso em: 9 jun. 2021.
https://transversal.at/transversal/0704/...
), o estado de ser ‘afetariado’ é “insegurança não-autodeterminada” no trabalho e na vida com acesso inseguro aos meios para sobreviver ou prosperar. Ao contrário das limitações socioeconômicas de um termo como ‘precariado’, o termo ‘afetariado’ aponta as formas pelas quais as violências do capitalismo ansioso e exagerado permeiam toda a vida consciente, inconsciente e não consciente. A ansiedade imposta ao ‘afetariado’ leva à superestimulação e à excitação constantes e nos prendem dentro de uma impossibilidade socialmente imposta de relaxamento que carece de qualquer meio tangível de liberação afetiva real.

Um fator secundário que pode influenciar diretamente os níveis de estresse e satisfação profissional dos professores que iniciaram o trabalho a distância durante a pandemia é o alcance do que ‘ensinar’ pode significar nesse contexto. O ensino a distância tem criado uma estrutura organizacional que ‘separa’ (Paulson, 2002PAULSON, Karen. Reconfiguring faculty roles for virtual settings. The Journal of Higher Education, v. 73, n. 1, p. 123-140, 2002. DOI: 10.1080/00221546.2002.11777133. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1558450 . Acesso em: 8 jun. 2021.
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) os papéis tradicionalmente associados ao professorado, em um processo de desidentificação (Soares, 2020SOARES, Sávia B. V. Coronavírus e a modernização conservadora da educação. In: SOARES, Sávia B. V. Coronavírus, educação e a luta de classes no Brasil. Piauí: Terra Sem Amos , 2020. p. 5-14. v. 1. Disponível em: https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/05/coronavc3adrus-educac3a7c3a3o-e-luta-de-classes-no-brasil.pdf . Acesso em: 30 maio 2021.
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) e alienação do trabalho docente (Benini et al., 2020BENINI, Elcio G. et al. Educação a distância na reprodução do capital: entre a ampliação do acesso e a precarização e alienação do trabalho docente. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, 2020 v. 18, n. 3, p. e00307139. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00307. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/hLZ6sF8hmNy7sSBb3xkFQ7t/abstract/?lang=pt . Acesso em: 3 jun. 2021.
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).

Uma terceira pista pode ser encontrada nas análises feministas do trabalho precário (Federici, 2008FEDERICI, Silvia. Precarious labor: a feminist viewpoint. Disponível em: https://inthemiddleofthewhirlwind.wordpress.com/precarious-labor-a-feminist-viewpoint /. Acesso em: 09 jun. 2021.
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). Nessa análise,

o capitalismo se constrói sobre uma imensa quantidade de trabalho não remunerado, que não se constrói exclusiva ou principalmente sobre relações contratuais; [e] a relação salarial esconde a natureza escrava não remunerada de tanto trabalho sobre o qual se baseia a acumulação de capital (Federici, 2008FEDERICI, Silvia. Precarious labor: a feminist viewpoint. Disponível em: https://inthemiddleofthewhirlwind.wordpress.com/precarious-labor-a-feminist-viewpoint /. Acesso em: 09 jun. 2021.
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, p. 7).

De fato, há uma divisão sexual do trabalho doméstico/reprodutivo/afetivo, ainda que as mulheres tenham conquistado espaços de trabalho fora de casa, o que gera assimetrias comumente classificadas como ‘jornada dupla’ de trabalho para mulheres. Essa jornada dupla é estressante, principalmente quando as tarefas envolvidas envolvem baixo controle de agendamento, como, por exemplo, lavar a louça e cozinhar, cuidar das crianças (Barnett e Shen, 1997BARNETT, Rosalind C.; SHEN, Yu-Chu. Gender, high- and low-schedule-control housework tasks, and psychological distress: a study of dual-earner couples. Journal of Family Issues, v. 18, n. 4, p. 403-428, jul. 1997. DOI: 10.1177/019251397018004003. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/1997-06417-003 . Acesso em: 3 jun. 2021.
https://psycnet.apa.org/record/1997-0641...
; Tao, Janzen e Abonyi, 2010TAO, Wenting; JANZEN, Bonnie L.; ABONYI, Sylvia. Gender, division of unpaid family work and psychological distress in dual-earner families. Clinical Practice and Epidemiology in Mental Health, v. 6, p. 36-46, 2010. DOI: 10.2174/1745017901006010036. Disponível em: https://clinical-practice-and-epidemiology-in-mental-health.com/VOLUME/6/PAGE/36/FULLTEXT /. Acesso em: 31 maio 2021.
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). Makarenko e Andrews (2017MAKARENKO, Erica; ANDREWS, Jac J. W. An empirical review of the mental health and well-being of online instructors. The Journal of Educational Thought (JET) / Revue de la Pensée Éducative, v. 50, n. 2-3, p. 182-199, 2017. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/26372403 . Acesso em: 8 jun. 2021.
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) apontam uma diferença de gênero, com professoras em EaD reportando níveis mais altos de estresse e seus sintomas do que professores.

O possível impacto negativo das estratégias de trabalho pedagógico remoto na pandemia da Covid-19 sobre a saúde mental de educadores é um agravante que deve ser considerado na escolha de políticas complementares. Uma prioridade imediata para a pesquisa na área é coletar dados de alta qualidade sobre os impactos da pandemia da Covid-19 sobre a saúde mental de educadores em isolamento social, pesquisas estas que devem, sobremaneira, dar voz aos participantes no sentido de levantar, de modo êmico, os atos de significado que estão presentes na sua forma de pensar o trabalho pedagógico remoto. Dentre esses objetivos de prioridade imediata, observamos a identificação de mecanismos causais associados aos efeitos sobre a saúde mental. Dentre esses dispositivos, incluem-se determinantes de gênero, divisão sexual do trabalho e experiência prévia em EaD. Tais mecanismos são fundamentais para a criação de políticas complementares de saúde e educação que diminuam o impacto do isolamento social ao mesmo tempo em que mantenham a efetividade das estratégias educativas. Assim, neste trabalho, objetivamos investigar o impacto da adoção de estratégias de trabalho pedagógico remoto no estresse e ansiedade de professores com e sem experiência na estratégia, bem como identificar o repertório de significado êmico atribuído a esta natureza de isolamento.

Materiais e métodos

Delineamento e amostragem

A Etapa 1 refere-se a estudo quantitativo. Seus participantes responderam a um questionário socioeconômico, para caracterização da amostra e, em seguida, responderam a questões da versão reduzida da Escala Portuguesa de Afeto Positivo e Negativo (Galinha, Pereira e Esteves, 2014GALINHA, Iolanda C.; PEREIRA, Cícero R.; ESTEVES, Francisco. Versão reduzida da escala portuguesa de afeto positivo e negativo - PANAS-VRP: Análise fatorial confirmatória e invariância temporal. Psicologia, Lisboa, v. 28, n. 1, p. 53-65, 2014. DOI: 10.17575/rpsicol.v28i1.622. Disponível em: https://revista.appsicologia.org/index.php/rpsicologia/article/view/622 . Acesso em: 09 jun. 2021.
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), para avaliar impactos afetivos positivos e negativos da assunção da EaD como método generalizado durante a pandemia. Para avaliar estados de ansiedade, o Inventário de Ansiedade Traço-Estado (Biaggio e Natalício, 1979BIAGGIO, Angela M. B.; NATALÍCIO, Luiz. Manual para o inventário de ansiedade traço-estado (IDATE). Rio de Janeiro: Centro Editor de Psicologia Aplicada, 1979. ) e a Escala de Estresse Percebido (Cohen, Kamarck e Mermelstein, 1983COHEN, Sheldon; KAMARCK, Tom; MERMELSTEIN, Robin. A global measure of perceived stress. Journal of Health and Social Behavior, v. 24, n. 4, p. 385-396, 1983. DOI: 10.2307/2136404. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2136404 . Acesso em: 31 maio 2021.
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) foram utilizados. Todos os instrumentos foram apresentados online. Para essa etapa, 280 respondentes foram recrutados por e-mail; esse tamanho amostral foi calculado a partir de uma aproximação para modelo de análise de variância, com a = 4, b = 2, tamanho de efeito para trabalho em EaD e gênero de f = 0.2 e poder de 80%. Os participantes foram recrutados por todo o país, procurando oferecer o máximo de cobertura possível, diminuindo vieses regionais.

A Etapa 2 diz respeito a significativos êmicos. Seus participantes foram recrutados a partir do pool de respondentes da primeira etapa, através de convite por e-mail. O estudo qualitativo compreende a realização de uma tarefa cognitiva de escrita livre, na qual o participante responderá a uma pergunta mobilizadora, a saber: “O que lhe vem à cabeça quando você pensa nas dificuldades do trabalho pedagógico remoto na pandemia?”. Seguindo critérios de saturação, foram inicialmente recrutados 50 participantes, e uma curva de acumulação de temas foi traçada (Tran et al., 2012TRAN, Viet-Thi et al. Predicting data saturation in qualitative surveys with mathematical models from ecological research. Journal of Clinical Epidemiology, v. 82, p. 71-78, 2012. DOI: 10.1016/j.jclinepi.2016.10.001. Disponível em: http://www.bichat-larib.com/publications.documents/5241_JCE_2016_Data_saturation_2.pdf . Acesso em: 30 maio 2021.
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). Como a inclinação local da curva esteve abaixo de 0.05, considerou-se que houve saturação.

Instrumentos

Para a primeira etapa da pesquisa, os participantes responderam a um formulário online na plataforma Google Forms. Trata-se de um questionário inteiramente online, disponível para todos os professores do Brasil, o qual busca relatar as reações emocionais diante das pressões do EaD, diferenças de gênero, e como o trabalho reprodutivo e a experiência prévia com EaD influenciam esses efeitos. Os seguintes instrumentos foram utilizados nessa etapa: a Escala Portuguesa de Afeto Positivo e Negativo [PANAS-VRP] (Galinha, Pereira e Esteves, 2014GALINHA, Iolanda C.; PEREIRA, Cícero R.; ESTEVES, Francisco. Versão reduzida da escala portuguesa de afeto positivo e negativo - PANAS-VRP: Análise fatorial confirmatória e invariância temporal. Psicologia, Lisboa, v. 28, n. 1, p. 53-65, 2014. DOI: 10.17575/rpsicol.v28i1.622. Disponível em: https://revista.appsicologia.org/index.php/rpsicologia/article/view/622 . Acesso em: 09 jun. 2021.
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), o Inventário de Ansiedade Traço-Estado [IDATE] (Biaggio; Natalício, 1979BIAGGIO, Angela M. B.; NATALÍCIO, Luiz. Manual para o inventário de ansiedade traço-estado (IDATE). Rio de Janeiro: Centro Editor de Psicologia Aplicada, 1979. ) e a Escala de Estresse Percebido [PSS] (Cohen, Kamarck e Mermelstein, 1983COHEN, Sheldon; KAMARCK, Tom; MERMELSTEIN, Robin. A global measure of perceived stress. Journal of Health and Social Behavior, v. 24, n. 4, p. 385-396, 1983. DOI: 10.2307/2136404. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2136404 . Acesso em: 31 maio 2021.
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).

A PANAS-VRP consiste em 20 emoções que representam todas as categorias de emoções de afeto positivo e de afeto negativo. Trata-se de escala tipo-Likert. Com base nesta escala, o participante determina em que grau sente cada uma das emoções neste momento (1 = ‘Muito pouco ou nada’; 5 = ‘Extremamente’). Na adaptação para este estudo, em vez de referir a sensação ‘deste momento’, os participantes se referiram ao último mês.

O IDATE é um dos instrumentos mais utilizados para quantificar componentes subjetivos relacionados à ansiedade. Apresenta 20 itens para avaliar a ansiedade-traço (um aspecto mais estável relacionado à propensão do indivíduo lidar com maior ou menor ansiedade ao longo de sua vida) e 20 itens para avaliar a ansiedade-estado (uma reação transitória diretamente relacionada a uma situação de adversidade que se apresenta em dado momento). Assim, pode ser usado para controlar um efeito transitório pelo nível de ansiedade-traço. É uma escala tipo-Likert de quatro pontos (1 = ‘Quase nunca’; 4 = ‘Quase sempre’).

A PSS é uma ferramenta amplamente utilizada para medir a percepção de estresse. Trata-se de uma escala tipo-Likert de cinco pontos (0 = ‘Nunca’; 4 = ‘Muito frequentemente’), com perguntas sobre sentimentos, emoções e cognições relacionadas ao estresse relativas ao último mês.

A variável independente analisada é o trabalho em EaD, avaliada pela resposta à afirmativa “Nesse momento de pandemia, estou realizando trabalho pedagógico remotamente” (possibilidades de resposta: “Não estou realizando trabalho pedagógico remotamente”, “Estou ministrando aulas remotas”, “Estou preparando material para aulas remotas” e “Estou preparando material e ministrando aulas remotas”). Foram comparados indivíduos em cada uma dessas categorias. Essa variável interage com a variável Gênero como variável independente. Foram consideradas as seguintes variáveis como covariáveis: quantidade de horas semanais dedicadas a afazeres domésticos (moderadora do efeito do Gênero), experiência prévia com trabalho pedagógico remoto (moderadora do efeito do trabalho pedagógico remoto).

Para a segunda etapa, um formulário, produzido no Google Forms, foi encaminhado aos participantes, que concordaram em ceder seus e-mails para contato. O formulário continha termo de consentimento livre e esclarecido, seguido do prompt para a tarefa cognitiva de escrita livre.

Análise de dados

Os dados quantitativos da Etapa 1 foram analisados através de análise de covariância (ANCOVA), com duas vias (status de EaD versus gênero), utilizando como covariáveis a quantidade de horas semanais dedicadas a afazeres domésticos e à experiência prévia com EaD. Esses dados foram representados graficamente por valores individuais (corrigidos ou não para covariáveis), sobrepostos de densidade de distribuição e boxplots (mediana, 1º e 3º quartis e valores acima e abaixo de 1,5 x amplitude interquartis) relativos aos escores das variáveis dependentes.

Os dados qualitativos foram sistematizados e analisados com base no modelo de análise de conteúdo temático (Bardin, 1979BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979. ). A análise de conteúdo temático é uma tipologia da clássica análise de conteúdo de Bardin, muito utilizada em pesquisas qualitativas em Psicologia Social, bem como nas ciências humanas e sociais. A partir da produção textual dos participantes, foram identificadas as unidades de análise, verificadas as suas frequências, reconhecidas as que mais saturaram. Em seguida, as unidades de análise foram organizadas em categorias temáticas, as quais foram conceituadas e apresentadas. Além da descrição textual das categorias e exemplificação com amostras de texto, as categorias e suas relações foram representadas por meio de tabelas, e sua distribuição por diferentes níveis de trabalho remoto foi analisada mediante o teste exato de Fisher.

Práticas de Ciência Aberta

O estudo foi pré-registrado na plataforma Open Science Framework (hattps://osf.io/2z6vp). O acesso ao pré-registro ao público geral esteve sob embargo até 20 de julho de 2020. Os resultados foram postados na mesma plataforma, bem como os scripts de análise. Em relação ao pré-registro, uma fase da pesquisa (painel de especialistas) foi descartada, dado que não alcançamos tamanho amostral mínimo.

Resultados

Fase 1: Estudo quantitativo

As características demográficas e socioeconômicas dos participantes da Fase 1 podem ser encontradas na Tabela 1.

Tabela 1
Características demográficas e socioeconômicas dos participantes da Fase 1

A distribuição dos valores, bem como os valores individuais (não corrigidos por qualquer covariável), para cada uma das variáveis dependentes em função do trabalho remoto na pandemia pode ser vista na Figura 1.

Figura 1
Valores individuais (pontos), densidade de distribuição e boxplots relativos aos escores de (A) Afeto negativo, (B) Ansiedade-estado e (C) Estresse percebido em professores e professoras reportando diferentes regimes de trabalho remoto emergencial durante a pandemia da Covid-19

Efeitos do gênero

Não foi observada relação estatisticamente significativa entre as variáveis dependentes Afeto negativo ou Estresse percebido com a covariável Trabalho doméstico, mas houve correlação com a variável dependente Ansiedade-estado (Tabela 2). Assim, prosseguimos a análise dos efeitos de gênero sem a covariável Trabalho doméstico para Afeto negativo ou Estresse percebido, mas com a covariável Ansiedade-estado.

Tabela 2
Coeficientes de correlação linear (r2 de Pearson) entre variáveis dependentes e covariáveis hipotetiz

Um modelo linear generalizado, com Ansiedade-estado como variável dependente, Trabalho remoto na pandemia e Gênero como variáveis independentes e Ansiedade-traço e Trabalho doméstico como covariáveis, produziu bom ajuste (r2 ajustado = 0,975, F[8, 282] = 1149,77, p < 0,001, η2 parcial = 0,976; modelo linear ajustado por quadrados mínimos ordinários). Após centralização pelas covariáveis em torno da média (± 1 desvio-padrão), observou-se um efeito principal estatisticamente significativo do trabalho remoto (F[3, 282] = 5,25, p = 0,002, η2 parcial = 0,054) e do gênero (F[2, 282] = 3686,18, p < 0,001, η2 = 0,964), mas não da interação entre as variáveis (F[3, 282] = 1,25, p = 0,293, η2 parcial = 0,013). Esses resultados podem ser visualizados na Figura 2. Os tamanhos de efeito sugerem que as diferenças de gênero explicam quase toda a variação na Ansiedade-estado, após correção por Ansiedade-traço e por Trabalho doméstico: o gênero captura 96,4% da variação, enquanto a variável Trabalho remoto na pandemia captura somente 5,4% dessa variação. O teste post-hoc (HSD de Tukey) apontou diferenças significativas entre professores que não estão realizando trabalho pedagógico remotamente e professores que estão preparando material para aulas remotas (p < 0,001) e professores que estão preparando material e ministrando aulas remotas (p = 0,005). Esses efeitos podem ser visualizados na Figura 2A.

Figura 2
Valores individuais, corrigidos pela quantidade estimada de trabalho doméstico reportada pelos participantes da pesquisa, e boxplots relativos aos escores de (A) Ansiedade-estado, (B) Afeto negativo e (C) Estresse percebido em professores e professoras dos gêneros masculino e feminino reportando diferentes regimes de trabalho remoto emergencial durante a pandemia da Covid-19

Um modelo linear generalizado com as mesmas variáveis independentes, mas com Afeto negativo como variável dependente, produziu bom ajuste (r2 ajustado = 0,904, F[8, 282] = 335,15, p < 0,001, η2 parcial = 0,907). Observou-se um efeito principal estatisticamente significativo do trabalho remoto (F[3, 282] = 18,2, p < 0,001, η2 parcial = 0,165) e do gênero (F[2, 282] = 827,46, p < 0,001, η2 parcial = 0,857), mas não da interação entre as variáveis (F[3, 282] = 0,408, p = 0,75, η2 parcial = 0,004). A análise dos tamanhos de efeito sugere que, novamente, as diferenças de gênero explicam boa parte da variação no Afeto negativo (85,7%), mas a variável Trabalho remoto na pandemia responde por 16,5% da variação, um valor consideravelmente maior do que em relação à Ansiedade-estado. O teste post-hoc detectou diferenças significativas entre professores que não estão realizando trabalho pedagógico remotamente e todos os outros grupos (p < 0,001). Esses efeitos podem ser visualizados na Figura 2B.

Finalmente, um modelo linear generalizado com as mesmas variáveis independentes, mas com Estresse percebido como variável dependente, produziu bom ajuste (r2 ajustado = 0,939, F[8, 282] = 549,99, p < 0,001, η2 parcial = 0,941). Observou-se um efeito principal significativo do trabalho remoto (F[3, 282] = 10,94, p < 0,001, η2 parcial = 0,106) e do gênero (F[2, 282] = 1428,65, p < 0,001, η2 parcial = 0,912, mas não da interação entre as variáveis (F[3, 282] = 1,25, p = 0,294, η2 parcial = 0,0013). A análise dos tamanhos de efeito sugere que as diferenças de gênero são responsáveis pela maior parte da variação (91,2%), mas o trabalho remoto explica parte da variação (10,6%). O teste post-hoc detectou diferenças significativas entre professores que não estão realizando trabalho pedagógico remotamente e todos os outros grupos (p < 0,001). Esses efeitos podem ser visualizados na Figura 2C.

Efeitos da experiência prévia

Foi observada relação estatisticamente significativa entre as variáveis dependentes Ansiedade-estado e Afeto negativo com a covariável Experiência prévia com trabalho pedagógico remoto (Tabela 2). Assim, prosseguimos a análise somente em relação às duas primeiras variáveis dependentes.

A introdução da experiência prévia em um modelo linear generalizado com Ansiedade-estado como variável dependente, Trabalho remoto na pandemia como variável independente, e Ansiedade-traço e Experiência prévia com trabalho pedagógico remoto como covariáveis produziu bom ajuste (r2 ajustado = 0,97, F[6, 279] = 1487,67, p < 0,001, η2 parcial = 0,97). Observou-se um efeito principal significativo do trabalho remoto (F[4, 279] = 2130,84, p < 0,001, η2 parcial = 0,969). Cada nível acima na covariável (de ‘Nenhuma experiência’ para ‘Menos de 1 ano’, daí para ‘1-2 anos’, então para ‘2-4 anos’, e finalmente para ‘Mais de 4 anos’) diminui o nível de ansiedade-estado (corrigido pela ansiedade-traço) em 0,3 pontos na escala. O teste post-hoc, entretanto, não encontrou diferença significativa entre os grupos (p > 0,3).

A introdução da experiência prévia em um modelo linear generalizado com Afeto negativo como variável dependente, Trabalho remoto na pandemia como variável independente, e Experiência prévia com trabalho pedagógico remoto como covariável produziu bom ajuste (r2 ajustado = 0,907, F[5, 279] = 544,37, p < 0,001, η2 parcial = 0,909). Observou-se um efeito principal significativo do trabalho remoto (F[4, 279] = 677,6, p < 0,001, η2 parcial = 0,908). Cada nível acima na covariável (de ‘Nenhuma experiência’ para ‘Menos de 1 ano’, daí para ‘1-2 anos’, então para ‘2-4 anos’, e finalmente para ‘Mais de 4 anos’) diminui o nível de ansiedade-estado (corrigido pela ansiedade-traço) em 1,5 pontos na escala. O teste post-hoc detectou diferenças significativas entre professores que não estão realizando trabalho pedagógico remotamente e todos os outros grupos (p < 0,001).

Como não foi observada relação linear entre Estresse Percebido e Experiência prévia com trabalho pedagógico remoto, não se procedeu a nova análise, já que o modelo reduzido já foi testado.

Fase 2

Em relação à etapa qualitativa, a análise de conteúdo identificou 14 categorias de primeira ordem, agrupadas em cinco categorias de segunda ordem. A primeira categoria de segunda ordem, Dimensão afetiva, refere principalmente sentimentos, sensibilidades e emoções negativas, agrupando as categorias de primeira ordem Esgotamento físico e mental, Reações emocionais negativas, Isolamento social e Resignação. Exemplos de respostas dadas nessa categoria encontram-se na Tabela 3. Essa categoria foi a que mais saturou, com 21 participantes produzindo respostas nela classificadas (Tabela 3).

Tabela 3
Número de respostas dadas em cada categoria a posteriori na Fase 2

A segunda categoria de segunda ordem, Dimensão de aprendizagem, refere-se principalmente a preocupações com a qualidade do ensino e agrupa a categoria de primeira ordem Dificuldades de aprendizagem; exemplos de respostas dadas nessa categoria podem ser observadas na Tabela 3. Essa categoria apresentou pouca saturação, com seis participantes produzindo respostas classificadas nesta categoria (Tabela 3).

A terceira categoria de segunda ordem, Dimensão laboral negativa, refere preocupações relativas ao aumento da carga de trabalho, conflitos com o trabalho doméstico e necessidade de comunicabilidade e inclui as categorias de primeira ordem Intensificação da carga de trabalho, Trabalho doméstico e Telepresença. Essa categoria apresentou saturação intermediária, com 10 participantes produzindo respostas classificadas nesta categoria (Tabela 3); na Tabela 3, há exemplos de respostas dadas nessa categoria.

A quarta categoria de segunda ordem, Dimensão laboral positiva, refere aspectos da nova situação laboral considerados em chave positiva ou neutra, incluindo as categorias de primeira ordem Facilidade, Novidade, Desafio pedagógico e/ou técnico e Uso de TICs. Essa categoria também apresentou saturação baixa, com 14 participantes produzindo respostas nela classificadas (Tabela 3); exemplos de respostas dadas nessa categoria encontram-se na Tabela 3.

A última categoria de segunda ordem, Dimensão político-econômica, refere preocupações quanto à inclusão de estudantes com baixo acesso à internet e apreensões quanto ao futuro da educação; exemplos de respostas dadas nessa categoria estão na Tabela 3. Essa categoria inclui as categorias de primeira ordem Acesso e status socioeconômico e Apreensão quanto a políticas educacionais e apresentou saturação intermediária: 10 participantes produziram respostas classificadas nesta categoria (Tabela 3).

De maneira geral, a distribuição das respostas varia de acordo com o tipo de trabalho remoto sendo realizado (teste exato de Fisher, n = 61, p = 0.049). Dentre os participantes que relataram estar preparando material e ministrando aulas remotas no período da pesquisa, as categorias que mais saturaram foram Dimensão afetiva e Dimensão laboral negativa, enquanto essa última categoria saturou pouco nos outros grupos. Esses resultados são limitados porque o número de participantes que não estavam realizando trabalho pedagógico remotamente (n = 2) é pequeno.

Discussão

Este artigo representa um estudo comparativo com professores da Educação Básica de todo o Brasil, buscando entender alguns impactos do trabalho pedagógico remoto emergencial durante a pandemia da Covid-19 em variáveis associadas com sofrimento psicológico. Observamos um efeito do tipo de trabalho remoto sendo realizado (nenhum trabalho pedagógico remoto, preparação de material didático, ministração de aulas ou preparação de material e ministração de aulas) sobre todas as variáveis analisadas, com aumentos em Ansiedade-estado, Afeto negativo e Estresse percebido. Essas variáveis também revelaram um efeito de gênero, que, no entanto, não apresentou interação com o tipo de trabalho remoto, mas era confundido com a carga de trabalho doméstico somente em relação à Ansiedade-estado. Finalmente, observamos que a experiência prévia com trabalho pedagógico remoto parece moderar esse efeito no caso do Afeto negativo.

A experiência do trabalho remoto produziu elevação em todas as variáveis independentes, incluindo sentimentos de ansiedade (caracterizado, no IDATE, por fadiga, preocupação excessiva, indecisão e sentimentos de tristeza), afeto negativo (caracterizado por sentimentos de angústia, insatisfação e medo) e estresse percebido (sentimentos e cognições de um indivíduo sobre quanto estresse está sofrendo). Esses efeitos também são corroborados pela análise qualitativa, em que a categoria de segunda ordem Dimensão afetiva é uma das mais referidas. Entretanto, nem a variável de gênero, nem as covariáveis (trabalho doméstico e experiência prévia) apresentaram efeito sobre o estresse percebido. O estresse percebido incorpora sentimentos de incontrolabilidade e imprevisibilidade sobre a vida, o que é difícil de explicar em termos tanto da imposição do ensino remoto emergencial quanto da incontrolabilidade das tarefas domésticas com baixo controle de agendamento. Entretanto, é importante notar que se trata de um estresse percebido - não é uma medida dos tipos e frequências de eventos estressantes que ocorrem a um indivíduo, mas como os indivíduos percebem e interpretam os eventos e sua capacidade de lidar com esses estressores (Cohen, Kamarck e Mermelstein, 1983COHEN, Sheldon; KAMARCK, Tom; MERMELSTEIN, Robin. A global measure of perceived stress. Journal of Health and Social Behavior, v. 24, n. 4, p. 385-396, 1983. DOI: 10.2307/2136404. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2136404 . Acesso em: 31 maio 2021.
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). Os indivíduos podem sofrer eventos de vida negativos semelhantes, mas podem avaliar o impacto ou a severidade desses eventos de maneira diferente, como resultado de fatores como personalidade, recursos de enfrentamento e fontes de suporte social.

Esses resultados replicam efeitos anteriores relacionados com diferenças de gênero no estresse de professores trabalhando online (Makarenko e Andrews, 2017MAKARENKO, Erica; ANDREWS, Jac J. W. An empirical review of the mental health and well-being of online instructors. The Journal of Educational Thought (JET) / Revue de la Pensée Éducative, v. 50, n. 2-3, p. 182-199, 2017. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/26372403 . Acesso em: 8 jun. 2021.
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). Em uma revisão empírica dos achados acerca de estresse e impactos em saúde mental em instrutores online, Makarenko e Andrews (2017)MAKARENKO, Erica; ANDREWS, Jac J. W. An empirical review of the mental health and well-being of online instructors. The Journal of Educational Thought (JET) / Revue de la Pensée Éducative, v. 50, n. 2-3, p. 182-199, 2017. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/26372403 . Acesso em: 8 jun. 2021.
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relataram que professores e instrutores em trabalho online estão mais suscetíveis a sentimentos de isolamento e solidão do que professores, e que as professoras apresentavam mais sinais de sofrimento emocional do que os professores. Nosso estudo sugere que, ao menos no contexto brasileiro da resposta à pandemia da Covid-19, as diferenças de gênero em relação ao impacto do trabalho remoto são explicadas principalmente pela maior carga de trabalho afetivo e doméstico. O trabalho doméstico, além de não remunerado, comumente não reconhecido como trabalho, e distribuído desigualmente entre gêneros, envolve tarefas com baixo controle de agendamento, como, por exemplo, lavar a louça e cozinhar, cuidar das crianças) − isso é, tarefas que demandam atenção pontual, mas incontrolável, o que potencializa o estresse das tarefas (Barnett e Shen, 1997BARNETT, Rosalind C.; SHEN, Yu-Chu. Gender, high- and low-schedule-control housework tasks, and psychological distress: a study of dual-earner couples. Journal of Family Issues, v. 18, n. 4, p. 403-428, jul. 1997. DOI: 10.1177/019251397018004003. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/1997-06417-003 . Acesso em: 3 jun. 2021.
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). Além disso, o trabalho remoto compete com o trabalho doméstico, no sentido de que o modo remoto impõe a telepresença como maneira de operação (Virilio, 1996VIRILIO, Paul. Velocidade e política. 1. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. ). Como sugerem Santos e Zaboroski (2020SANTOS, Jamily R.; ZABOROSKI, Elisângela. Ensino remoto e pandemia Covid-19: desafios e oportunidades de alunos e professores. Interacções, Santarém (Portugal), v. 16, n. 55, p. 41-57, 2020. DOI: 10.25755/int.20865. Disponível em: https://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/view/20865 . Acesso em: 18 jun. 2021.
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):

Os professores, por outro lado, têm de procurar relacionar sua vida profissional com as atribuições familiares e domésticas. Muitos precisam, ainda, auxiliar seus filhos que estão estudando em casa, ao mesmo tempo em que lecionam para outros jovens, causando uma sobrecarga bastante considerável, que só aumenta a tensão causada pela pandemia. (Santos e Zaboroski, 2020SANTOS, Jamily R.; ZABOROSKI, Elisângela. Ensino remoto e pandemia Covid-19: desafios e oportunidades de alunos e professores. Interacções, Santarém (Portugal), v. 16, n. 55, p. 41-57, 2020. DOI: 10.25755/int.20865. Disponível em: https://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/view/20865 . Acesso em: 18 jun. 2021.
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, p. 46)

Esses resultados são, em parte, consistentes com a ideia de que o trabalho remoto pode ser uma importante fonte de sofrimento psicológico (Berardi, 2009BERARDI, Franco. Precarious rhapsody. 1. ed. Nova Iorque: Minor Compositions, 2009. ; Filgueiras e Antunes, 2020FILGUEIRAS, Vitor; ANTUNES, Ricardo. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Revista Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020. DOI: 10.22409/contracampo.v39i1.38901. Disponível em: https://periodicos.uff.br/contracampo/article/view/38901/pdf . Acesso em: 30 maio 2021.
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; Soares, 2020SOARES, Sávia B. V. Coronavírus e a modernização conservadora da educação. In: SOARES, Sávia B. V. Coronavírus, educação e a luta de classes no Brasil. Piauí: Terra Sem Amos , 2020. p. 5-14. v. 1. Disponível em: https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/05/coronavc3adrus-educac3a7c3a3o-e-luta-de-classes-no-brasil.pdf . Acesso em: 30 maio 2021.
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), transformando operadores cognitivos, como o professorado, em um ‘afetariado’ − em especial quando não é acompanhado de treinamento adequado. Soma-se a essa precarização a instituição da solidão e do isolamento, marcada pela falta de convívio e troca de ideias e experiências entre colegas, características do home office durante a pandemia (Souza, 2021SOUZA, Diego O. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, n. 19, p. e00311143, 2021. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00311. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/7rJ6TkW8Cs88QkbNwHfdkxb /. Acesso em: 31 maio 2021.
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). Além disso, um importante impacto do trabalho remoto é a alteração da identidade da atividade didática; por exemplo, é comum que professores e professoras nesse contexto pandêmico refiram uma necessidade de adquirir habilidades de edição de vídeos, gerenciamento de redes sociais e produção de conteúdo que não são comumente identificadas como parte do trabalho docente (Soares, 2020SOARES, Sávia B. V. Coronavírus e a modernização conservadora da educação. In: SOARES, Sávia B. V. Coronavírus, educação e a luta de classes no Brasil. Piauí: Terra Sem Amos , 2020. p. 5-14. v. 1. Disponível em: https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/05/coronavc3adrus-educac3a7c3a3o-e-luta-de-classes-no-brasil.pdf . Acesso em: 30 maio 2021.
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).

Essa desidentificação é uma característica importante da precarização do trabalho docente nos contextos contemporâneos (Filgueiras e Antunes, 2020FILGUEIRAS, Vitor; ANTUNES, Ricardo. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Revista Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020. DOI: 10.22409/contracampo.v39i1.38901. Disponível em: https://periodicos.uff.br/contracampo/article/view/38901/pdf . Acesso em: 30 maio 2021.
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). Benini et al. (2020)BENINI, Elcio G. et al. Educação a distância na reprodução do capital: entre a ampliação do acesso e a precarização e alienação do trabalho docente. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, 2020 v. 18, n. 3, p. e00307139. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00307. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/hLZ6sF8hmNy7sSBb3xkFQ7t/abstract/?lang=pt . Acesso em: 3 jun. 2021.
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apontam a educação a distância (EaD) como uma importante fonte de precarização e alienação do trabalho docente, em um processo constante de desidentificação. De fato, em um estudo alemão, professoras e professores relataram que o ensino remoto emergencial na pandemia da Covid-19 produziu uma percepção de estresse elevado motivado pela carga de trabalho excessiva para estudantes e pais, baixo acesso a computadores, conectividade ruim e baixa motivação de estudantes (Klapproth et al., 2020KLAPPROTH, Florian et al. Teachers’ experiences of stress and their coping strategies during Covid-19 induced distance teaching. Journal of Pedagogical Research, v. 4, n. 4, p. 444-452, 2020. DOI: 10.33902/JPR.2020062805. Disponível em: https://www.ijopr.com/download/teachers-experiences-of-stress-and-their-coping-strategies-during-covid-19-induced-distance-teaching-8475.pdf . Acesso em: 7 jun. 2021.
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). O mesmo estudo sugere que o tipo de dificuldades enfrentadas pelos professores afeta diretamente o tipo de estratégia de enfrentamento que é utilizada por eles. O uso de estratégias funcionais de enfrentamento de estresse estava positivamente relacionado à percepção de baixa motivação dos pais e de um baixo nível de organização da escola. Já o uso de estratégias disfuncionais de enfrentamento estava positivamente relacionado à percepção de alta carga de trabalho para estudantes, baixa competência digital percebida e o próprio nível de organização de trabalho. Esses resultados corroboram a ideia de que o uso de estratégias disfuncionais de enfrentamento de estresse, que tendem a produzir efeitos negativos, está mais associado à atribuição de impedimentos a fatores externos, que podem produzir movimentos de desidentificação com as atividades docentes.

A organização do ensino remoto precisa ser acompanhada de estratégias não somente de treinamento, mas também de uma reconfiguração do trabalho para diminuir os efeitos da telepresença, da competição com o trabalho doméstico e da desidentificação do corpo docente com sua própria atividade. Resta saber se isso é possível no âmbito de uma progressiva precarização do trabalho docente, como projeto de educação (Antunes, 2010ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2010. ; Fiera, Evangelista e Flores, 2020FIERA, Letícia; EVANGELISTA, Olinda; FLORES, Renata. Chantagem como estratégia para assegurar o “direito de aprendizagem” aos “vulneráveis”. In: SOARES, Sávia B. V. et al. (org.). Coronavírus, educação e luta de classes no Brasil. Piauí: Terra Sem Amos, 2020. p. 21-28. v. 1. Disponível em: https://terrasemanos.files.wordpress.com/2020/05/coronavc3adrus=educac3a7c3a3o-e-luta-de-classes-no-brasil.pdf . Acesso em: 3 jun. 2021.
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; Soares, 2020SOARES, Sávia B. V. Coronavírus e a modernização conservadora da educação. In: SOARES, Sávia B. V. Coronavírus, educação e a luta de classes no Brasil. Piauí: Terra Sem Amos , 2020. p. 5-14. v. 1. Disponível em: https://terrasemamos.files.wordpress.com/2020/05/coronavc3adrus-educac3a7c3a3o-e-luta-de-classes-no-brasil.pdf . Acesso em: 30 maio 2021.
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). Se essas questões sistêmicas não forem atacadas, o trabalho remoto emergencial continuará sendo uma importante fonte de sofrimento psicológico para os docentes.

Esse cenário pode ser observado também na análise qualitativa, em que as categorias de segunda ordem, Dimensão laboral negativa e Dimensão afetiva, saturaram mais naqueles indivíduos com maior carga de trabalho remoto. Esses resultados apontam para o que foi descrito por Pachiega e Milani (2020PACHIEGA, Michel D.; MILANI, Débora R. C. Pandemia, as reinvenções educacionais e o mal-estar docente: uma contribuição sob a ótica psicanalítica. Dialogia, São Paulo, v. 36, p. 220-234, set./dez., 2020. DOI: 10.5585/dialogia.n36.18323. Disponível em: https://periodicos.uninove.br/dialogia/article/view/18323/8712 . Acesso em: 15 jun. 2021.
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), os quais sugerem que o mal-estar docente está no processo de uma reflexão e mudança da prática pedagógica, no sentido de se criar uma nova identidade diante das demandas do mundo externo e do momento atual. Entretanto, tais resultados também demonstram a complexidade das respostas: as categorias Dimensão laboral positiva (que refere aspectos da nova situação laboral considerados como desafio pedagógico e técnico), Dimensão político-econômica (que refere preocupações quanto à inclusão e quanto ao futuro da educação) e Dimensão de aprendizagem (que refere preocupações didáticas) apresentaram igualmente baixa saturação. Isso pode sugerir que parte do efeito afetivo do trabalho pedagógico remoto emergencial esteja descolado, na percepção dos professores, de preocupações macropolíticas relativas às políticas públicas de ensino-aprendizagem, o que poderia revelar um grau alarmante de descolamento e individualização do sofrimento.

Conclusão

Os resultados do presente artigo sugerem que o trabalho remoto emergencial produziu importantes impactos na saúde mental de professores e professoras da Educação Básica no Brasil. sugere-se que a organização do ensino remoto precisa ser acompanhada de estratégias não somente de treinamento, mas também de uma reconfiguração do trabalho para diminuir os efeitos da telepresença, da competição com o trabalho doméstico e da desidentificação do corpo docente com sua própria atividade. Se a progressiva precarização do trabalho docente não for atacada, o trabalho remoto emergencial continuará sendo uma importante fonte de sofrimento psicológico para os docentes. Nesse cenário, o mal-estar docente está no processo de uma reflexão e mudança da prática pedagógica, no sentido de se criar uma nova identidade diante das demandas do mundo externo e do momento atual.

Referências

  • Financiamento

    Não houve financiamento.
  • Apresentação prévia

    Este artigo não é resultante de dissertação ou tese, ainda que tenha sido realizado com a participação de estudantes do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2021
  • Aceito
    01 Out 2021
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