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Sobre o conceito de risco em Epidemiologia

On the concept of risk in Epidemiology

Sobre el concepto de riesgo en Epidemiología

Resumo

Este ensaio teórico analisa a centralidade do conceito de risco para a ciência epidemiológica, descrevendo os tipos de medidas de risco e suas definições, a origem e o desenvolvimento histórico dessas medidas desde o século XVII até o momento atual. Em seguida, são analisadas as fases do desenvolvimento histórico do conceito de risco desde a constituição da disciplina no século XIX, passando pela transposição do limiar de cientificidade, até a atualidade. Após esse recorrido histórico, são apontados os pressupostos epistemológicos do conceito de risco tal qual ele se apresenta na epidemiologia. A polissemia do conceito nos saberes do senso comum e sua formulação em diferentes disciplinas científicas assim como suas diferentes conotações no âmbito da epidemiologia são brevemente comentadas. Finalizamos com a discussão do conceito na chamada sociedade de riscos da modernidade tardia. Consideramos que o ensaio possa ser de utilidade na formação dos profissionais de saúde, tendo em vista seu papel nuclear na epidemiologia e na Saúde Coletiva, não apenas como articulador das proposições teóricas, mas também na orientação das práticas.

Palavras-chave:
medidas epidemiológicas; conceito de risco; desenvolvimento histórico

Abstract

This theoretical paper analyzes the centrality of the concept of risk for epidemiological science, describing the types of risk measures and their definitions, the origin and historical development of these measures from de 17th century to the present time. Next, the phases of the historical development of the concept of risk are analyzed, from the constitution of the discipline in the 19th century, through the crossing of the threshold of scientificity, until today. After this historical review, the epistemological assumptions of the concept of risk as it is presented in epidemiology are pointed out. The polysemy of the concept in common sense knowledge and its formulation in different scientific disciplines, as well as its different connotations within the scope of epidemiology, are briefly commented on. Finally, we conclude with a discussion of the concept in the so-called risk society of late modernity. We believe that this paper can be useful in the formation of health professionals, in view of its core role in epidemiology and Collective Health, not only as an articulator of theoretical propositions, but also in the orientation of practices.

Keywords:
epidemiologic measures; concept of risk; historical development

Resumen

Este ensayo teórico analiza la centralidad del concepto de riesgo para la ciencia epidemiológica, describiendo los tipos de medidas de riesgo y sus definiciones, el origen y desarrollo histórico de estas medidas desde el siglo XVII hasta la actualidad. En seguida, se analizan las fases del desarrollo histórico del concepto de riesgo, desde la constitución de la disciplina en el siglo XIX, pasando por la transposición del umbral de la cientificidad, hasta la actualidad. Después de este recorrido histórico, se señalan los presupuestos epistemológicos del concepto de riesgo tal como se presenta en la epidemiología. Se comenta brevemente la polisemia del concepto en el conocimiento del sentido común y su formulación en diferentes disciplinas científicas, así como sus distintas connotaciones en el campo de la epidemiología. Finalizamos con la discusión del concepto en la llamada sociedad del riesgo de la modernidad tardía. Creemos que el ensayo puede ser útil en la formación de profesionales de la salud, en vista de su papel central en la epidemiología y la Salud Colectiva, no sólo como articulador de proposiciones teóricas, sino también en la orientación de las prácticas.

Palabras-clave:
medidas epidemiológicas; concepto de riesgo; desarrollo histórico

Sobre as medidas de ocorrência e as medidas de risco

A epidemiologia tem no conceito de risco um dos componentes centrais, tanto no que se refere ao estudo da distribuição populacional dos eventos de saúde quanto nos estudos relacionados com o estabelecimento de relações de causalidade entre diferentes exposições e desfechos em saúde.

Segundo Morabia (2004 MORABIA, Alfredo . A History of epidemiology methods and concepts. Basel: Birkhauser Verlag, 2004.), a contribuição da epidemiologia para os estudos em saúde populacional tem consistido no desenvolvimento de um conjunto coerente de conceitos e métodos que orientam a investigação científica, baseando-se em dois princípios gerais: a adoção do pensamento populacional, ou seja, a perspectiva das distribuições populacionais e a determinação probabilística como ferramenta heurística, e a comparação entre grupos como estratégia fundamental de controle de diversos tipos de vieses de seleção, informação ou confundimento (Morabia, 2014 MORABIA, Alfredo . A History of epidemiology methods and concepts. Basel: Birkhauser Verlag, 2004.).

O pensamento populacional necessita de medidas que relacionem quantidades de modo a poder descrever distribuições. A simples contagem de eventos, sem a menção a um denominador, não é capaz de avaliar risco, na medida em que não leva em conta a distribuição populacional das características de interesse (Victora,1993VICTORA, Cesar G. What’s the denominator? The Lancet , Amsterdam, v. 342, n. 8.863, p. 97-99, 1993. doi: 10.1016/0140-6736(93)91291-S.
https://doi.org/10.1016/0140-6736(93)912...
). Taxas, risco, razões e odds são as medidas mais comumente usadas para expressar relações entre quantidades. O que as distingue é o tipo de numerador e denominador aplicado em cada caso (Morabia, 2014MORABIA, Alfredo. Enigmas of health and disease. New York: Columbia University Press, 2014.).

Em uma razão, são relacionadas duas quantidades referentes a dois conjuntos distintos de medidas, ou seja, a medida no numerador não está contida no denominador ou, dito de outra maneira, cada uma das medidas usadas na relação refere-se a grupos populacionais distintos. Por exemplo, quando calculamos um risco relativo, relacionamos dois riscos ou duas taxas que correspondem a um grupo exposto e a outro não exposto (Morabia, 2014MORABIA, Alfredo. Enigmas of health and disease. New York: Columbia University Press, 2014.; Victora, 1993VICTORA, Cesar G. What’s the denominator? The Lancet , Amsterdam, v. 342, n. 8.863, p. 97-99, 1993. doi: 10.1016/0140-6736(93)91291-S.
https://doi.org/10.1016/0140-6736(93)912...
). O termo latino ratio surgiu na matemática para significar a divisão entre dois números inteiros, diferenciando essas operações daquelas envolvendo números irracionais (Morabia, 2014 MORABIA, Alfredo . A History of epidemiology methods and concepts. Basel: Birkhauser Verlag, 2004.).

O risco é uma medida de probabilidade, não dimensional, na qual necessariamente a quantidade indicada no numerador é parte da quantidade total indicada no denominador. Indica a probabilidade de ocorrência de um evento específico na população observada. Por exemplo, para conhecer o risco de um jovem, do sexo masculino, de 15 a 19 anos, morrer vítima de um homicídio em um determinado período e lugar, é necessário relacionar o número de óbitos por homicídio ocorridos nesse tempo e lugar, em jovens do sexo masculino de 15 a 19 anos, e a população de indivíduos do sexo masculino de 15 a 19 anos neste tempo e lugar (Morabia, 2014MORABIA, Alfredo. Enigmas of health and disease. New York: Columbia University Press, 2014.).

As taxas são medidas de mudança no risco por unidade de tempo. O numerador corresponde à quantidade do evento de interesse no período de observação, e o denominador corresponde à população exposta por unidade de tempo de observação. Assim, as taxas medem o risco por unidade de tempo de observação (Morabia, 2014MORABIA, Alfredo. Enigmas of health and disease. New York: Columbia University Press, 2014.; Victora, 1993VICTORA, Cesar G. What’s the denominator? The Lancet , Amsterdam, v. 342, n. 8.863, p. 97-99, 1993. doi: 10.1016/0140-6736(93)91291-S.
https://doi.org/10.1016/0140-6736(93)912...
).

Finalmente odds (chances) é uma medida que relaciona a frequência de ocorrência de um evento com a frequência da não ocorrência do mesmo evento em um dado grupo populacional. Ou seja, quantas vezes uma situação é mais frequente do que outra em um grupo populacional. Por exemplo, quantas são as gestantes fumantes, em relação às gestantes não fumantes em um grupo de gestantes acompanhadas em um programa pré-natal (Morabia, 2014MORABIA, Alfredo. Enigmas of health and disease. New York: Columbia University Press, 2014.; Victora, 1993VICTORA, Cesar G. What’s the denominator? The Lancet , Amsterdam, v. 342, n. 8.863, p. 97-99, 1993. doi: 10.1016/0140-6736(93)91291-S.
https://doi.org/10.1016/0140-6736(93)912...
).

Origem e desenvolvimento das medidas de risco

O livro de John Graunt, Natural and political observations made upon the bills of mortality, foi um dos primeiros livros de estatísticas de saúde, produzido no século XVII na Inglaterra, visando descobrir padrões previsíveis na ocorrência de eventos vitais como nascimentos e óbitos (Morabia, 2014MORABIA, Alfredo. Enigmas of health and disease. New York: Columbia University Press, 2014.). Segundo Rothman (1996ROTHMAN, Kenneth J. Lessons from John Graunt. The Lancet, Amsterdam, v. 347, n. 8.993, p. 37-39,1996.), ele foi o primeiro a registrar que nascem mais meninos do que meninas, apresentar uma das primeiras tábuas de vida e estudar tendências temporais de algumas causas de morte levando em conta o tamanho populacional. Para avaliar a importância dos óbitos por peste, foi calculada a proporção destes óbitos na totalidade dos óbitos (expressa em termos relativos e não em porcentagem), e calculada uma razão entre os óbitos por peste e o número de nascidos vivos em cada ano para dar uma ideia da progressão da doença. Embora o maior número de óbitos tenha sido registrado em 1625 (cerca de 35 mil óbitos), a proporção foi maior em 1603 com 4 óbitos por peste a cada 5 óbitos registrados, enquanto em 1625 foram 7 óbitos por peste em cada 10 óbitos totais. Já a razão entre óbitos pela peste e o número de nascimentos foi igual nos dois anos: 8 óbitos para cada nascimento (Morabia, 2014MORABIA, Alfredo. Enigmas of health and disease. New York: Columbia University Press, 2014.).

No século XIX, John Snow, estudando as epidemias de cólera em Londres, utilizou medidas de risco para defender sua tese de que a doença era produzida pela contaminação da água de abastecimento e não pelos miasmas, introduzindo assim a ideia de causalidade, tratando as medidas de risco como relação entre exposição e doença. Ele calculou o risco de ocorrência dos óbitos por cólera segundo a companhia de água em um distrito em que três diferentes companhias operavam. Como estimativa da população exposta, Snow usou o número de moradores em cada domicílio abastecido por determinada companhia, e assim sucessivamente. Ainda não se trata de uma taxa de incidência, mas já há aí uma medida de risco relacionando ocorrência do evento às subpopulações com diferentes tipos de exposição (Morabia, 2014MORABIA, Alfredo. Enigmas of health and disease. New York: Columbia University Press, 2014.; Snow, 1990 SNOW, John. Sobre a maneira de transmissão do cólera. São Paulo; Rio de Janeiro:Hucitec, Abrasco, 1990.).

William Farr, superintendente do Registro Geral da Inglaterra, também no século XIX, praticamente instituiu taxas e riscos como as medidas epidemiológicas por excelência. Ele percebeu a necessidade de diferentes tipos de medidas para melhor caracterizar a ocorrência de doenças agudas ou crônicas, e foi capaz de diferenciar os riscos mensurados pela taxa de mortalidade e pela letalidade. Farr chamou a medida da letalidade de ‘tendência para destruir a vida, mortalidade ou morte percentual’ expressa pela proporção de óbitos sobre casos da doença (risco de letalidade); e de ‘força da mortalidade’ a taxa média de óbitos por unidade de doentes-tempo (número de doentes x duração da enfermidade); neste caso, uma taxa de mortalidade. Usando as duas medidas, ele comparou a cólera, uma doença aguda epidêmica, com mortes percentuais de 46% e força da mortalidade de 2.415 óbitos por 100 doentes-ano, com a tuberculose, doença endêmica de evolução crônica, com mortes percentuais de 90 a 100% e força da mortalidade de 50 óbitos por 100 doentes-ano (Morabia, 2014MORABIA, Alfredo. Enigmas of health and disease. New York: Columbia University Press, 2014.).

No século XX, as medidas de ocorrência vão assumir a forma atual. Bradford Hill, no livro Introduction to medical statistics, publicado em 1939, percebeu a falácia decorrente da não consideração do tempo de exposição para o cálculo das medidas de incidência. Ele demonstrou numericamente como é necessário empregar no denominador do cálculo sempre a população exposta ao risco multiplicada pelo tempo de exposição. Caso contrário, as conclusões podem ser equivocadas ao se comparar o grupo exposto ao grupo não exposto (Morabia, 2014MORABIA, Alfredo. Enigmas of health and disease. New York: Columbia University Press, 2014.).

Olli Miettinen (1976 MIETTINEN, Olli S . Estimability and estimation in case-referent studies. American Journal of Epidemiology, Oxford, v. 103, n. 2, p. 226-235, 1976. doi: 10.1093/oxfordjournals.aje.a112220.
https://doi.org/10.1093/oxfordjournals.a...
) propôs distinguir as taxas de incidência do risco de incidência, em um artigo tratando da concepção equivocada de que nos estudos caso-controle só seria possível calcular as razões de risco sob a suposição de que a doença fosse rara. Ele estabeleceu a diferença entre densidade de incidência, ou força da morbidade, obtida pela relação entre o número de casos e o denominador pessoas-ano de exposição, e incidência cumulativa que é aproximadamente a medida do risco em um período, obtida pela soma das densidades de incidência nesse período (Morabia, 2014MORABIA, Alfredo. Enigmas of health and disease. New York: Columbia University Press, 2014.).

Em epidemiologia são considerados dois tipos de medidas de incidência, risco e taxa, diferenciadas pelo denominador. A primeira, na qual o denominador são pessoas expostas ao risco (risco), e a segunda, na qual o denominador são unidades de pessoa-tempo expostas ao risco (taxa). A incidência baseada em pessoas expostas ao risco é chamada de incidência cumulativa e se o tempo de exposição for igual para todos, ou seja, se o seguimento for completo, é expressa pelo número de eventos dividido pela população exposta. Se, como ocorre frequentemente, o tempo de seguimento não é o mesmo para todos, a incidência será expressa pela função de sobrevida ou sobrevivência cumulativa. A segunda, chamada taxa de incidência, é expressa pela divisão do número de eventos por unidades de pessoa-tempo de exposição e corresponde à densidade de incidência.

O Quadro 1 sintetiza os principais tipos de medidas de incidência, porém, para uma compreensão mais detalhada do desenvolvimento dessas medidas, é aconselhável recorrer ao capítulo 2, “Measuring disease occurrence”, do livro de Szklo e Javier-Nieto (2019 SZKLO, Moyses, JAVIER-NIETO Francisco, . Epidemiology: beyond the basics. Burlington: Jones & Bartlett Learning, 2019 .), no qual todas as variantes com suas respectivas suposições estão explicadas de modo detalhado.

Quadro 1
Diferentes tipos de medidas de incidência

Desenvolvimento histórico do conceito de risco

Alfredo Morabia (2013 MORABIA, Alfredo . Epidemiology’s 350th anniversary: 1662-2012. Epidemiology, Philadelphia, v. 24, n. 2, p. 179-183, 2013. doi: 10.1097/EDE.0b013e31827b5359.
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) estabelece o ano de 1662 como aquele no qual nasceu a epidemiologia. Ele argumenta que o lançamento do livro de John Graunt, Natural and political observations made upon the bills of mortality, pode ser considerado o marco inicial de um novo tipo de conhecimento baseado no pensamento populacional e na comparação entre grupos, características fundamentais do conhecimento epidemiológico.

Quais são as razões para que o conhecimento epidemiológico só tenha aparecido em meados do século XVII, se a saúde e a doença são ocorrências que sempre acompanharam a existência do homem? O autor elenca três motivos principais para esse aparecimento relativamente tardio dos saberes epidemiológicos: a formulação do conceito de população apenas na idade moderna; noções primitivas de exposição e doença que surgem no século XVII; e as bases filosóficas do reducionismo como recurso imprescindível para o desenvolvimento da ciência moderna (Morabia, 2013 MORABIA, Alfredo . Epidemiology’s 350th anniversary: 1662-2012. Epidemiology, Philadelphia, v. 24, n. 2, p. 179-183, 2013. doi: 10.1097/EDE.0b013e31827b5359.
https://doi.org/10.1097/EDE.0b013e31827b...
; Barata, 1998 BARATA, Rita B. Epidemiologia e saber científico. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 14-27, 1998. doi: 10.1590/S1415-790X1998000100003.
https://doi.org/10.1590/S1415-790X199800...
).

A coleta e registro semanais das causas de morte na população londrina permitiram a observação de padrões de comportamento que não podiam ser apreendidos com base nas observações clínicas. Porém, como já apontado no item anterior, estas análises iniciais de eventos vitais como nascimentos e mortes não resultaram na elaboração do conceito de risco. As análises e comparações eram feitas segundo os números absolutos sem relacioná-los à população, e por meio de razões que permitiam identificar relações entre quantidades diferentes, como por exemplo mortes pela peste e mortes por todas as outras causas (Morabia, 2014MORABIA, Alfredo. Enigmas of health and disease. New York: Columbia University Press, 2014.; Rothman, 1996ROTHMAN, Kenneth J. Lessons from John Graunt. The Lancet, Amsterdam, v. 347, n. 8.993, p. 37-39,1996.).

No século XIX, os saberes epidemiológicos passam a constituir uma disciplina científica, isto é, um conjunto articulado de enunciados coerentes e demonstráveis sobre a dimensão populacional da saúde e da doença (Barata,1998 BARATA, Rita B. Epidemiologia e saber científico. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 14-27, 1998. doi: 10.1590/S1415-790X1998000100003.
https://doi.org/10.1590/S1415-790X199800...
). Os trabalhos, anteriormente mencionados, de William Farr em estatísticas vitais e os de John Snow sobre as epidemias de cólera em Londres são exemplos dos primeiros usos das medidas de risco, isto é, de medidas de ocorrência baseadas em cálculos de probabilidade. Mas o conceito de risco, como tal, não é mencionado nesses textos.

José Ricardo Ayres (1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ), no livro Sobre o risco: para compreender a Epidemiologia, traça, com muita precisão, o percurso de desenvolvimento histórico do conceito de risco desde as últimas décadas do século XIX até meados do século XX. Para melhor delimitar as etapas do desenvolvimento do conceito e suas transformações ao longo da história, o autor propõe uma periodização em três etapas: a epidemiologia da constituição, de 1872 a 1929; a epidemiologia da exposição, de 1930 a 1945; e a epidemiologia do risco, de 1946 a 1965.

No primeiro período, a teoria da constituição epidêmica reunia os epidemiologistas procurando diferenciar esta disciplina da bacteriologia e de sua promessa de reduzir todos os determinantes da saúde e da doença à identificação dos agentes etiológicos, possibilitando a produção de soros e vacinas, resolvendo assim boa parte dos problemas de Saúde Pública. A teoria da constituição epidêmica buscava recuperar a importância do meio externo e das relações de interação homem-natureza-sociedade como produtoras de doenças (Ayres,1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ).

Os estudos epidemiológicos desenvolvidos neste primeiro período eram predominantemente de caráter descritivo, voltados para a compreensão da distribuição populacional das doenças e de seu comportamento epidemiológico. As medidas de risco utilizadas eram de primeira ordem, ou seja, indicadores de risco absoluto traduzidos em taxas de incidência ou mortalidade e medidas de prevalência (Ayres,1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ).

Morabia, Rubenstein e Victora (2013 MORABIA, Alfredo; RUBENSTEIN, Beth; VICTORA, Cesar G. A . Newsholme’s methodological innovation to study breastfeeding and fatal diarrhea. American Journal of Public Health, Washington, n. 103, e17-e22, 2013. doi: 10.2105/AJPH.2013.301227.
https://doi.org/10.2105/AJPH.2013.301227...
) relatam que as investigações de Arthur Newsholme, sobre a mortalidade infantil por diarreia, eram completamente distintas dos estudos epidemiológicos usuais do início do século XX. O pesquisador realizou censos para estabelecer a distribuição da exposição ‒ formas de aleitamento ‒ na população de menores de 1 ano em Brighton, e recolheu informação para todos os bebês que morreram de diarreia. Inicialmente, ele comparou óbitos esperados e observados em cada subgrupo com base na taxa de mortalidade por diarreia na população geral. Depois, calculou as taxas de mortalidade específicas em cada grupo e estabeleceu um risco relativo usando a razão entre as taxas de mortalidade. Os cálculos foram feitos considerando que todos os bebês que morreram haviam sido previamente recenseados. Os dados levaram à conclusão de que as mamadeiras eram contaminadas durante o preparo, causando as diarreias que levavam à morte. Este estudo mostra que a noção de risco já estava presente, e o uso da razão de taxas como medida de efeito também, porém, como frisam os autores, este é um caso excepcional.

Frost e Sydenstricker (1919 FROST, Wade H.; SYDENSTRICKER, Edgar . Influenza in Maryland: preliminary statistics of certain localities. Public Health Reports, London, v. 34, n. 11, p. 491-504, 1919. ) realizaram um inquérito domiciliar para o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, durante a pandemia de influenza em 1918. Os autores calcularam as taxas de incidência, mortalidade e letalidade dividindo os eventos pela população exposta, referentes ao período de duração da epidemia. Além disso, as taxas de incidência foram ajustadas por idade e sexo. Para comparar as taxas entre as cidades e os distritos rurais estudados, os autores definiram Baltimore como referência e calcularam razões entre as taxas de incidência, mortalidade e letalidade, sem chamar essa medida de risco relativo.

Os exemplos aqui citados, como muitos outros estudos epidemiológicos de meados do século XIX e das primeiras décadas do século XX, já apresentam cálculo de medidas de risco sem nomear ou desenvolver amplamente o conceito. Geralmente, as medidas de ocorrência são usadas como indicadores de uma situação populacional que expressa a força da morbimortalidade sobre o grupo.

Ayres (1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ) destaca o artigo “The real risk-rate of death of mothers from causes connected with childbirth”, de William Howard Jr., no American Journal of Hygiene, em 1921HOWARD JUNIOR, Willian T. The real risk-rate of death of mothers from causes connected with childbirth. American Journal of Hygiene , Baltimore, v. 1, n. 2, p. 197-233, 1921. doi: 10.1093/oxfordjournals.aje.a118032.
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, como o primeiro a empregar a noção de risco explicitamente. O autor afirma que a função mais importante da estatística vital é determinar com exatidão o risco de doença e morte nos expostos, medindo a força da incidência e da mortalidade, expressos em razões e taxas (Howard Jr., 1921HOWARD JUNIOR, Willian T. The real risk-rate of death of mothers from causes connected with childbirth. American Journal of Hygiene , Baltimore, v. 1, n. 2, p. 197-233, 1921. doi: 10.1093/oxfordjournals.aje.a118032.
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). O artigo é uma reflexão sobre a necessidade de ter dados de qualidade para orientar as ações em saúde reprodutiva, discutindo inclusive qual o melhor denominador para as taxas, optando pelo número de nascidos vivos somado ao número de natimortos como o mais específico.

O segundo período, entre 1930 e 1945, é marcado por inúmeras investigações sobre aspectos ainda pouco conhecidos da cadeia do processo infeccioso, como suscetibilidade e infectividade, infecções assintomáticas, imunidade coletiva, comportamento de surtos e epidemias, de certo modo relacionadas com a especificação dos objetos de estudo da epidemiologia como diferentes e complementares à clínica de doenças infecciosas e à microbiologia. Ayres (1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ) designa este período como epidemiologia da exposição.

Neste período ganha centralidade na produção epidemiológica a dinâmica de transmissão e a exposição dos indivíduos à infecção e o uso mais sistemático da comparação entre grupos como recurso metodológico. A noção de potencial epidêmico, que se define como a chance ou oportunidade de ocorrer a exposição aos agentes etiológicos, se expressa na relação entre infectados e suscetíveis em cada população, determinando a dinâmica do processo na dimensão coletiva.

A noção de risco passa a designar um diferencial na oportunidade de ocorrência de qualquer evento ligado a uma doença ou condição entre indivíduos pertencentes a grupos comparáveis. Risco passa a significar exposição a agravos, associada à ideia de suscetibilidade (Ayres, 1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ). Diversos estudos realizados no período usaram a taxa de ataque secundário entre comunicantes familiares de casos de doenças transmissíveis para estimar indiretamente a infectividade de diferentes agentes (Downes, 1935 DOWNES, Jean. A study of the risk of attack among contacts in tuberculous families in a rural area. American Journal of Hygiene, Baltimore, v. 22, n. 3, p. 731-742, 1935. doi: 10.1093/oxfordjournals.aje.a118195.
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).

Jean Downes (1935 DOWNES, Jean. A study of the risk of attack among contacts in tuberculous families in a rural area. American Journal of Hygiene, Baltimore, v. 22, n. 3, p. 731-742, 1935. doi: 10.1093/oxfordjournals.aje.a118195.
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) estudou a transmissão de tuberculose em comunicantes familiares em zona rural comparando o risco de ataque secundário à incidência na comunidade como um todo. Ele estudou 83 famílias de casos primários de tuberculose pulmonar, diagnosticados entre 1923 e 1930, acompanhando os comunicantes por 3,5 a 12 anos. Foram observados 28 casos secundários e o denominador do cálculo foram pessoas-ano em diferentes grupos etários. Assim, ele observou que a incidência entre comunicantes foi maior nos dois primeiros anos de exposição. Cerca de 10% dos comunicantes desenvolveram a doença em uma década. A taxa de ataque foi 13 vezes maior do que a incidência na população geral.

O trabalho de Frost (1939 FROST, Wade H . The age selection of mortality from tuberculosis in successive decades. American Journal of Hygiene , Baltimore, v. 30, n. 3, p. 91-96, 1939. doi: 10.1093/oxfordjournals.aje.a117343.
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) sobre a mortalidade por tuberculose por idade em décadas sucessivas é exemplar das preocupações do período, buscando interpretar a distribuição observada não apenas como decorrente de características particulares de cada ano calendário, mas como a resultante do processo longitudinal de exposição, suscetibilidade, infectividade e imunidade ao longo da vida. Analisando a distribuição das taxas de mortalidade por idade para diferentes coortes de nascimento, desde 1870 até 1910, ele concluiu que: o padrão constante observado entre as coortes sugere mudanças fisiológicas na resistência com a idade; a frequência de exposição no início da vida foi diminuindo em cada década sem que isso aumentasse o risco de morte na vida adulta por falta de oportunidade de adquirir imunidade na infância; e a observação atual do maior risco no final da vida não representa a transferência do risco para períodos posteriores, mas indica a presença de um resíduo nesses grupos que nasceram em anos de exposição mais alta no início da vida.

Estes exemplos mostram que o risco não é mais calculado de forma absoluta como uma proporção entre eventos e população. O risco passa a ser expresso como uma taxa na qual se relaciona o número de eventos ao tempo de exposição de cada indivíduo na população estudada. A relação casos-população deixa de ser concreta no sentido de relacionar duas quantidades realmente observadas e passa a ser uma construção abstrata a partir de um artefato analítico que é o denominador pessoas-ano. As medidas relativas são baseadas na razão entre a incidência observada e a incidência esperada, atribuindo-se a diferença entre elas à exposição.

O risco deixa de ser um adjetivo, como na primeira etapa, no qual ainda guardava os sentidos de senso comum de perigo e infortúnio e passa a constituir um núcleo de sentido representando um conjunto de relações de necessidade entre exposição e desfechos (Ayres, 1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ).

O terceiro período, de 1945 a 1965, denominado por Ayres (1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ) de epidemiologia do risco, marca uma série de mudanças importantes para a epidemiologia: maior articulação entre a epidemiologia e a clínica, mudança do perfil epidemiológico com aumento das doenças crônicas, fortalecimento dos métodos e rearticulação com a bioestatística. Os estudos de associações causais vão progressivamente substituindo os estudos descritivos e os inquéritos populacionais, dando ao conceito de risco um lugar central na validação das proposições causais. Morabia (2015 MORABIA, Alfredo . Has epidemiology become infatuated with methods? A historical perspective on the place of methods during the classical (1945-1965) phase of epidemiology. Annual Review of Public Health, San Mateo, n. 36, p. 69-88, 2015. doi: 10.1146/annurev-publhealth-031914-122403.
https://doi.org/10.1146/annurev-publheal...
) considera este o período clássico da epidemiologia como disciplina científica, caracterizado principalmente pela solução de problemas, articulação com a prática da saúde pública, suporte estatístico para a análise quantitativa sempre mais interessada na força das associações do que nas probabilidades da hipótese nula.

Os estudos emblemáticos de Richard Doll e Bradford Hill (1950 DOLL, Richard; HILL, Austin B. Smoking and carcinoma of the lung. British Medical Journal, United Kingdom, v. 2, n. 4.682, p. 739-748, Sept. 1950. doi: 10.1136/bmj.2.4682.739.
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, 1964a DOLL, Richard; HILL, Austin B. Mortality in relation to smoking: ten year’s observations of British doctors. British Medical Journal , United Kingdom, v. 1, n. 5.395, p. 1.399-1.410, 1964a. , 1964b DOLL, Richard; HILL, Austin B. Mortality in relation to smoking: ten year’s observations of British doctors. British Medical Journal , United Kingdom, v. 5.396, p. 1.460-1.467, 1964b. doi: 10.1136/bmj.1.5396.1460.
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) sobre câncer de pulmão e exposição ao tabaco permitiram o desenvolvimento de novas formas de cálculo do risco e toda uma nova argumentação em torno da causalidade. Os primeiros estudos sobre esta associação escolheram o desenho caso-controle, conhecido desde a década de 1920, mas pouco utilizado (Morabia, 2015 MORABIA, Alfredo . Has epidemiology become infatuated with methods? A historical perspective on the place of methods during the classical (1945-1965) phase of epidemiology. Annual Review of Public Health, San Mateo, n. 36, p. 69-88, 2015. doi: 10.1146/annurev-publhealth-031914-122403.
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).

Doll e Hill (1950 DOLL, Richard; HILL, Austin B. Smoking and carcinoma of the lung. British Medical Journal, United Kingdom, v. 2, n. 4.682, p. 739-748, Sept. 1950. doi: 10.1136/bmj.2.4682.739.
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) analisaram casos e controles de base hospitalar em Londres e foram os primeiros a calcular medidas de efeito ou risco relativo. Como não havia informações populacionais sobre o número de fumantes ou a intensidade do hábito, eles usaram os resultados obtidos entre os controles para estimar a quantidade de expostos em cada subgrupo. Assim, puderam calcular um ‘risco relativo’ para casos e controles. Eles reconhecem que este não é um cálculo exato, mas consideram que poderia ser considerado uma medida aproximada da força da associação.

É importante ter em conta que em 1950 ainda não se usava a odds ratio como medida de efeito. Cornfield (1951 CORNFIELD, Jerome. A method of estimating comparative rates from clinical data: applications to cancer of lung, breast and cervix. Journal of the National Cancer Institute, New York, v. 6, n. 11, p. 1.269-1.275, 1951. doi: 10.1093/jnci/11.6.1269
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) propôs uma solução para os estudos de caso-controle, uma vez que eles não permitiam calcular a incidência entre expostos e não expostos como seria desejável, mas permitiam calcular a proporção de expostos entre os casos e os controles, ou seja, o odds da exposição ‒ razão entre expostos e não expostos ‒ nos dois grupos. Ele alerta que o odds não é uma taxa verdadeira, e a diferença entre frequências relativas não indicam a força de uma associação. Se estivermos interessados apenas em saber a quantidade relativa pela qual a incidência é maior entre os expostos, podemos fazer o cálculo mesmo sem conhecer a proporção de expostos na população geral usando apenas as proporções de expostos entre os casos e os controles, com a seguinte fórmula: proporção de expostos entre os casos x proporção de não expostos entre os controles/proporção de expostos entre os controles x proporção de não expostos entre os casos. Assim, a odds ratio corresponde a uma aproximação à razão de riscos, como medida da associação entre exposição e desfecho. Para que a estimativa seja válida, tanto os casos como os controles devem ser representativos destes subgrupos na população (Morabia, 2015 MORABIA, Alfredo . Has epidemiology become infatuated with methods? A historical perspective on the place of methods during the classical (1945-1965) phase of epidemiology. Annual Review of Public Health, San Mateo, n. 36, p. 69-88, 2015. doi: 10.1146/annurev-publhealth-031914-122403.
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).

Para superar os criticismos que foram apontados em relação aos resultados dos estudos caso-controle, Doll e Hill (1964 DOLL, Richard; HILL, Austin B. Mortality in relation to smoking: ten year’s observations of British doctors. British Medical Journal , United Kingdom, v. 5.396, p. 1.460-1.467, 1964b. doi: 10.1136/bmj.1.5396.1460.
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a; 1964b) iniciaram o estudo de coorte com os médicos britânicos, em 1951. Nesse estudo, além de usar pessoas-ano como denominador, como já vinha acontecendo com pesquisas do período anterior, eles explicitaram o uso das medidas de efeito calculadas com base na razão de taxas ‒ risco relativo ‒ e calculadas segundo a diferença entre taxas ‒ risco atribuível. A primeira, correspondendo à força da associação entre exposição e desfecho na análise de causalidade; e a segunda, estabelecendo quanto da incidência poderia ser atribuída à exposição, tendo maior aplicação na orientação das ações de saúde pública.

Para além dos períodos incluídos no estudo de Ayres sobre o surgimento e o desenvolvimento do conceito de risco em epidemiologia, as três décadas finais do século XX correspondem à chamada epidemiologia moderna, caracterizada por um papel central atribuído aos métodos que vão transformar a disciplina em uma ciência.

Pressupostos epistemológicos do conceito de risco

O risco epidemiológico corresponde à probabilidade de ocorrência de eventos de interesse na população, em certo período, expresso diretamente por uma probabilidade ou, mais frequentemente, por uma taxa de ocorrência (Almeida-Filho, Castiel e Ayres, 2012ALMEIDA-FILHO, Naomar; CASTIEL, Luís D.; AYRES, José R. Risco: conceito básico da epidemiologia. In: ALMEIDA-FILHO, Naomar; BARRETO, Maurício L. (org.). Epidemiologia & Saúde: fundamentos, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2012. p. 43-54).

As estimativas de risco requerem pelo menos três componentes: a ocorrência do evento de interesse (numerador); a referência populacional na qual os eventos ocorreram (denominador); e a referência temporal ou período de observação considerado (denominador) (Almeida-Filho, Castiel e Ayres, 2012ALMEIDA-FILHO, Naomar; CASTIEL, Luís D.; AYRES, José R. Risco: conceito básico da epidemiologia. In: ALMEIDA-FILHO, Naomar; BARRETO, Maurício L. (org.). Epidemiologia & Saúde: fundamentos, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2012. p. 43-54).

Há três formulações fundamentais do risco epidemiológico: o risco absoluto (risco ou taxas); as medidas de força de associação denominadas genericamente de risco relativo que são razões entre riscos, taxas ou odds; e as medidas de diferença absoluta ou relativa entre riscos ou taxas, denominada risco atribuível (Szklo e Javier-Nieto, 2019 SZKLO, Moyses, JAVIER-NIETO Francisco, . Epidemiology: beyond the basics. Burlington: Jones & Bartlett Learning, 2019 .; Castiel, 1999 CASTIEL, Luís D. A medida do possível...: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria; Editora Fiocruz, 1999. ; Almeida-Filho, 2000ALMEIDA-FILHO, Naomar. La ciencia tímida. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2000. ).

O conceito de risco está ancorado em alguns pressupostos acerca da realidade e dos processos de saúde-doença que a epidemiologia pretende compreender. O primeiro deles está baseado no estabelecimento de uma identidade entre o provável e o possível, ou seja, a possibilidade de que um dado evento ocorra em um certo grupo populacional pode ser apreciada por meio de sua probabilidade de ocorrência. Vale dizer, a probabilidade de ocorrência calculada com base em eventos já ocorridos pode ser empregada como indicativa da possibilidade de que os mesmos eventos voltem a ocorrer.

O segundo princípio implícito no conceito de risco está baseado na ideia de homogeneidade na natureza dos eventos a serem computados. Ou seja, para que a probabilidade de ocorrência sinalize a possibilidade de nova ocorrência, é necessário que os eventos que estão sendo considerados no cálculo sejam eventos discretos, clara e objetivamente definidos, de modo a que qualquer variação na apresentação esteja contida em uma certa margem de variabilidade tal que seja possível reconhecê-los como parte de um mesmo conjunto.

O terceiro princípio pressupõe a recorrência dos eventos em série que autorizam a expectativa de estabilidade dos padrões de ocorrência, de modo que, o que já ocorreu no passado recente, possa servir de guia para o que ocorrerá no presente ou no futuro imediato.

Portanto, para que seja possível o cálculo dos riscos, é necessário que haja uma clara definição dos eventos e grupos populacionais a serem observados, um método bem estabelecido e sistemático de observação e a abordagem populacional, visto que os padrões de recorrência dos fenômenos, cuja determinação é predominantemente probabilística, dependem da lei dos grandes números, ou seja, da observação de séries de eventos, em maior ou menor número a depender da variabilidade dos próprios eventos de interesse na população de referência (Castiel, 1999 CASTIEL, Luís D. A medida do possível...: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria; Editora Fiocruz, 1999. ; Almeida-Filho, 2000ALMEIDA-FILHO, Naomar. La ciencia tímida. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2000. ).

Tratando-se do risco epidemiológico, um outro aspecto é fundamental: definir o estatuto dos fatores estudados no modelo de causalidade, isto é, ter a capacidade de distinguir entre determinantes, predisponentes, contribuintes, preditores ou associados de maneira incidental (espúria). Portanto, não basta atentar apenas para os métodos corretos de computar o risco, mas é igualmente importante compreender as relações entre exposições e desfechos no interior de modelos causais corretamente elaborados e aplicar métodos capazes de facilitar a análise (Castiel, 1999 CASTIEL, Luís D. A medida do possível...: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria; Editora Fiocruz, 1999. ; Samaja, 2000SAMAJA, Juan. Semiótica y Dialéctica. Buenos Aires: JVE Ediciones, 2000.; Susser e Stein, 2009 SUSSER, Mervyn; STEIN Zena. Eras in epidemiology. New York: Oxford University Press, 2009.; Silva, 2021SILVA, Antônio A. M. Introdução à inferência causal em epidemiologia: uma abordagem gráfica e contrafactual. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.).

Ainda nessa dimensão dos modelos relacionais, é imprescindível identificar os diferentes níveis hierárquicos na organização, presente na estrutura de determinação-mediação entre as diferentes variáveis, usando técnicas apropriadas para captar a complexidade de relações e como elas influenciam a ocorrência dos eventos cuja probabilidade estamos buscando medir (Castiel, 1999 CASTIEL, Luís D. A medida do possível...: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria; Editora Fiocruz, 1999. ; Silva, 2021SILVA, Antônio A. M. Introdução à inferência causal em epidemiologia: uma abordagem gráfica e contrafactual. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.).

Com base nas estimativas de risco, é possível realizar dois tipos de generalizações: a extrapolação e a predição. A extrapolação se dá no âmbito da construção do próprio conhecimento científico, na medida em que a aplicação cuidadosa dos métodos de investigação permita a generalização dos resultados observados nas amostras estudadas para as populações das quais elas foram provenientes, em um processo de inferência indutiva. Ou, ainda, a extrapolação dessa generalização, em um processo de inferência abdutiva, para populações semelhantes, sem que efetivamente as amostras estudadas tenham sido delas provenientes (Almeida-Filho, Castiel e Ayres, 2012ALMEIDA-FILHO, Naomar; CASTIEL, Luís D.; AYRES, José R. Risco: conceito básico da epidemiologia. In: ALMEIDA-FILHO, Naomar; BARRETO, Maurício L. (org.). Epidemiologia & Saúde: fundamentos, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2012. p. 43-54; Almeida-Filho, 2000ALMEIDA-FILHO, Naomar. La ciencia tímida. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2000. ; Samaja, 2000SAMAJA, Juan. Semiótica y Dialéctica. Buenos Aires: JVE Ediciones, 2000.).

Já a predição é um procedimento mais arriscado, principalmente em se tratando de fenômenos bastante complexos, cambiáveis e historicamente determinados. Parte do sucesso do conteúdo preditivo contido nas afirmações construídas pela ciência epidemiológica vai depender da capacidade de adequadamente captar as especificidades dos diferentes grupos sociais, determinados por sua posição de classe e por outros determinantes sociais que atravessam essas posições e estabelecem distinções importantes na forma assumida pelos fenômenos relacionados com a saúde e a doença. As transformações constantes nas condições de produção dos processos saúde-doença é fator a ser sempre considerado.

Ayres (1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ) considera que, segundo a formulação de Habermas para os discursos científicos em geral, a validação intersubjetiva ocorre em três níveis distintos de legitimação: no pragmático ou normativo, representado pela capacidade de implementação de projetos ancorados nas proposições do campo científico; no nível da sintaxe ou da verdade proposicional, que se revela na enunciação de conteúdos compartilháveis e com valor de verdade conferido pela comunidade dos pares; e no nível semântico ou da autenticidade expressiva, no qual se estabelece a comunicação efetiva entre diferentes perspectivas subjetivas em interação (Ayres, 1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ).

Nesta perspectiva, os enunciados epidemiológicos tratam de uma pragmática relacionada à possibilidade de controle técnico sobre o processo saúde-doença em sua dimensão coletiva. Adotam uma sintaxe referida ao comportamento coletivo, considerando como os diferentes modos de vida influenciam a ocorrência dos diferentes desfechos, e uma semântica que se apoia na ideia de variação quantitativa dos fenômenos e na possibilidade de medir a incerteza decorrente dessa variabilidade (Ayres, 1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ).

O conceito de risco é central na ciência epidemiológica por ter um papel nuclear na construção dos enunciados científicos necessários para obter a validação intersubjetiva nesses três níveis já assinalados. Ele não tem apenas um papel instrumental como consubstanciado nas medidas de risco, mas é o articulador das proposições e enunciados que dão corpo à disciplina.

Os limites presentes na própria conceituação do risco se relacionam com o fato da estimativa de risco constituir-se em uma forma presente de prever o futuro sob o pressuposto de que se pode decidir qual é o futuro desejável. Porém as situações estudadas não permitem predições certas, imediatas e indiscutíveis, havendo sempre a possibilidade de ocorrerem circunstâncias imponderáveis ou incontroláveis que modificam as probabilidades de recorrência dos fenômenos conforme previsto. Logo, toda a predição será imperfeita (Castiel, 1999 CASTIEL, Luís D. A medida do possível...: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria; Editora Fiocruz, 1999. ).

O risco como probabilidade de ocorrência observada no passado, mas que se projeta no futuro, é em si mesmo uma incerteza mensurável em termos probabilísticos. Apesar desses limites, o conceito tem servido em diferentes disciplinas científicas e não apenas na epidemiologia como ferramenta de controle e previsibilidade na gestão do domínio da natureza/sociedade na modernidade (Castiel, 1999 CASTIEL, Luís D. A medida do possível...: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria; Editora Fiocruz, 1999. ).

Polissemia do conceito de risco, dimensões culturais e científicas

No senso comum a noção de risco aparece inicialmente associada à ideia de perigo, porém, ao longo da modernidade, observa-se um deslocamento do sentido para a ideia de insegurança e incerteza, e passa a ocupar um lugar central no projeto de colonização do futuro, na acepção, proposta por Giddens, que, segundo o autor, seria um dos traços distintivos da modernidade (Ayres, 1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ; Giddens, 2002 GIDDENS, Anthony . As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 2002. ).

No âmbito científico também o conceito de risco assume diferentes concepções e conotações, dependendo da disciplina ao qual se vê incorporado. Por exemplo, na psicologia a percepção do risco, como ameaça ou desafio, é observada como um elemento a ser considerado no comportamento dos indivíduos. No sistema de crenças, valores e atitudes que compõe aspectos do comportamento individual, a percepção do risco desempenha papel importante na conduta, que resultaria de um balanço entre um conjunto de percepções abarcando a avaliação da suscetibilidade, gravidade, benefícios e barreiras. Portanto, a percepção do risco aparece como um dos balizadores das condutas humanas (Almeida-Filho, Castiel e Ayres, 2012ALMEIDA-FILHO, Naomar; CASTIEL, Luís D.; AYRES, José R. Risco: conceito básico da epidemiologia. In: ALMEIDA-FILHO, Naomar; BARRETO, Maurício L. (org.). Epidemiologia & Saúde: fundamentos, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2012. p. 43-54; Castiel, 1999 CASTIEL, Luís D. A medida do possível...: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria; Editora Fiocruz, 1999. ).

Já na antropologia, a noção de risco aparece como um constructo instituído culturalmente, associado frequentemente ao sentido de ameaça em um contexto histórico e cultural de estratégias de preservação identitária e como instrumento de diferenciação entre o nós e os outros, aplicado operativamente entre grupos de uma mesma sociedade ou entre grupos de sociedades diversas (Almeida-Filho, Castiel e Ayres, 2012ALMEIDA-FILHO, Naomar; CASTIEL, Luís D.; AYRES, José R. Risco: conceito básico da epidemiologia. In: ALMEIDA-FILHO, Naomar; BARRETO, Maurício L. (org.). Epidemiologia & Saúde: fundamentos, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2012. p. 43-54; Castiel, 1999 CASTIEL, Luís D. A medida do possível...: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria; Editora Fiocruz, 1999. ).

No âmbito da sociologia, a noção de risco se aplica no plano individual para demarcar ocorrências no cotidiano, e no plano societal para destacar o papel das estruturas e instituições na configuração do risco, retendo aqui aquele sentido de segurança/insegurança que possibilita ou não o agenciamento, isto é, o exercício de algum controle sobre as circunstâncias da vida (Almeida-Filho, Castiel e Ayres, 2012ALMEIDA-FILHO, Naomar; CASTIEL, Luís D.; AYRES, José R. Risco: conceito básico da epidemiologia. In: ALMEIDA-FILHO, Naomar; BARRETO, Maurício L. (org.). Epidemiologia & Saúde: fundamentos, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2012. p. 43-54; Castiel, 1999 CASTIEL, Luís D. A medida do possível...: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria; Editora Fiocruz, 1999. ).

Na prática clínica, em geral, predomina a ideia de um risco individual, que se apresenta como um conceito pragmático orientador das intervenções preventivas ou utilizável nas análises de prognóstico ou na comparação entre diferentes propostas terapêuticas (Almeida-Filho, Castiel e Ayres, 2012ALMEIDA-FILHO, Naomar; CASTIEL, Luís D.; AYRES, José R. Risco: conceito básico da epidemiologia. In: ALMEIDA-FILHO, Naomar; BARRETO, Maurício L. (org.). Epidemiologia & Saúde: fundamentos, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2012. p. 43-54).

Mesmo no âmbito da Saúde Coletiva, é possível identificar diferentes acepções para o conceito, embora ele seja nuclear neste campo científico. Ayres (1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. , p. 282) indica que a noção está normalmente associada com “o efeito de um sucesso incerto e potencialmente indesejável”, enquanto Castiel (1999 CASTIEL, Luís D. A medida do possível...: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria; Editora Fiocruz, 1999. ) atribui ao conceito o adjetivo de arisco, ou seja, algo que não se deixa perceber facilmente, na medida em que faz referência a algo virtual ou possível, mas que nem sempre se materializa.

Segundo Almeida Filho, Ayres e Castiel (2012)ALMEIDA-FILHO, Naomar; CASTIEL, Luís D.; AYRES, José R. Risco: conceito básico da epidemiologia. In: ALMEIDA-FILHO, Naomar; BARRETO, Maurício L. (org.). Epidemiologia & Saúde: fundamentos, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2012. p. 43-54, em saúde ambiental ou ocupacional é comum que a noção de risco adquira uma conotação estrutural, daí os chamados mapeamentos de risco em ambientes de trabalho ou outros espaços ambientais. Os mesmos autores mencionam um risco contingencial que estaria presente nas abordagens da promoção da saúde, remetendo os diferentes determinantes de saúde e suas configurações favoráveis ou deletérias à manutenção da saúde.

Na medida em que a epidemiologia foi ultrapassando o limiar de cientificidade, mediante um processo crescente de formalização e abstração, o conceito de risco foi-se reduzindo à probabilidade de ocorrência de eventos em população, perdendo qualquer conotação negativa, tornando-se um operador neutro para a mensuração de eventos de interesse para a saúde (Ayres, 1997 AYRES, José R.C.M . Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec: 1997. ; Almeida-Filho, Castiel e Ayres, 2012ALMEIDA-FILHO, Naomar; CASTIEL, Luís D.; AYRES, José R. Risco: conceito básico da epidemiologia. In: ALMEIDA-FILHO, Naomar; BARRETO, Maurício L. (org.). Epidemiologia & Saúde: fundamentos, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2012. p. 43-54; Castiel, 1999 CASTIEL, Luís D. A medida do possível...: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria; Editora Fiocruz, 1999. ; Barata, 1998 BARATA, Rita B. Epidemiologia e saber científico. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 14-27, 1998. doi: 10.1590/S1415-790X1998000100003.
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).

Sociedade dos riscos

Castiel (1999 CASTIEL, Luís D. A medida do possível...: saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria; Editora Fiocruz, 1999. ), nos últimos 20 anos, vem tematizando o que poderia ser denominado de sociedade de risco - uma sociedade catastrófica - na qual uma verdadeira indústria de avaliação de riscos se desenvolveu, talvez para, como diz Giddens (2002 GIDDENS, Anthony . As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 2002. ), nos dar a falsa sensação de que possamos colonizar o futuro e assim adquirir algum grau de controle sobre o destino da humanidade. Essas avaliações de risco se traduzem no campo da saúde sob diferentes formas, tais como os modelos de predição usados na clínica para dar suporte a estratégias preventivas; o estabelecimento de limiares de tolerância e segurança para informar políticas e ações regulatórias aplicáveis a produtos industrializados com potencial de dano para a saúde; os fatores, marcadores e comportamentos de risco adotados como evidências para respaldar práticas de controle no âmbito populacional e medidas de promoção da saúde.

Giddens (2002 GIDDENS, Anthony . As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 2002. ), falando dos riscos nas sociedades da modernidade tardia, aponta quatro tipos de comportamentos dos sujeitos diante da realidade na qual a existência de riscos diversificados fazem parte do cotidiano: a aceitação pragmática, ou seja, atitude conformista diante daquilo que não se chega a compreender perfeitamente; otimismo sustentado na crença na ciência e na razão para o enfrentamento dos desafios; pessimismo cínico calcado na ironia, no sarcasmo e no deboche diante do inevitável; e engajamento radical por meio do ativismo político, na esperança de modificar os determinantes da situação de risco.

Na Saúde Coletiva, o gerenciamento dos riscos relacionados ao estado de saúde das populações se consubstancia em dois conjuntos de abordagens distintas. De um lado, a concepção do estilo de vida, presente em vários modelos de determinação social, que atribui um peso grande aos comportamentos dos sujeitos e, de algum modo, centra as ações de controle em atividades de educação e conscientização social nas chamadas políticas de promoção da saúde. De outro, as concepções de modo de vida, que compreendem os comportamentos individuais como resultantes das condições de existência, dependendo menos de verdadeiras escolhas individuais e mais de estratégias de sobrevivências das classes e frações de classe diante de seu cotidiano, refletindo-se em intervenções macrossociais mediante a adoção de políticas públicas e de regulação.

Trazendo a discussão da sociedade do risco para o campo da reflexão teórica na epidemiologia, a modo de conclusão para esta exposição sobre diferentes aspectos do conceito de risco, vale a pena sintetizar importante reflexão filosófica desenvolvida por Naomar de Almeida Filho em dois artigos, muito interessantes, separados por cerca de 15 anos (Almeida-Filho, 2004ALMEIDA-FILHO, Naomar. Saramago’s All the names and the epidemiological dream. Journal of Epidemiology & Community Health, United Kingdom, v. 58, n. 9, p. 743-746, 2004. doi: 10.1136/jech.2003.013979.
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; 2019ALMEIDA-FILHO, Naomar. El sujeto de los riesgos en un mundo transhumano y posclínico: reflexiones a partir de Todos los nombres de Saramago y The Matrix de las hermanas Wachowsk. Salud Colectiva, Lanus, n. 15, e2595. 2019. doi: 10.18294/sc.2019.2595
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).

No primeiro desses artigos, publicado em 2004, ele traça um paralelo entre o romance Todos os nomes, de José Saramago, e o que ele denominou de sonho epidemiológico; no segundo, de 2019, ele retoma parte dos argumentos deste primeiro artigo e a análise dos filmes que compõem a trilogia Matrix para traçar um paralelo entre o mundo real e o mundo virtual que constituiria a sociedade dos riscos.

O romance de Saramago gira em torno de uma instituição totalizante, representada por um registro civil que contém todos os dados sobre todos os indivíduos de uma cidade indefinida, sem localização clara no espaço e no tempo, separados devidamente pelos eventos vitais do nascimento e da morte. Almeida-Filho (2004)ALMEIDA-FILHO, Naomar. Saramago’s All the names and the epidemiological dream. Journal of Epidemiology & Community Health, United Kingdom, v. 58, n. 9, p. 743-746, 2004. doi: 10.1136/jech.2003.013979.
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traça um paralelo entre este tipo de instituição e o que ele denominou de sonho epidemiológico, qual seja, a possibilidade de realizar a observação total e inclusiva de populações reais, a fim de caracterizar a distribuição e as leis de ocorrência da saúde, da doença e da morte. A semelhança entre um registro exaustivo da vida dos indivíduos e os estudos de coorte de base populacional instituídos como observatórios de fatos epidemiológicos, em meados do século XX, em diferentes locais, e que seguem em funcionamento até os dias atuais, é evidente. As populações dessas cidades foram e ainda são monitoradas com exames clínicos e laboratoriais periódicos, questionários, aplicação de escalas e outros instrumentos de aferição, gerando dados que produzirão informações sobre risco além de propiciarem grande desenvolvimento metodológico para a disciplina.

Os diversos estudos iniciados em cidades norte-americanas na década de 1960 e no Brasil nos anos 1980 são tentativas de construir modelos simplificados para a observação de dinâmica da saúde e da doença na vida real que tiveram grande importância na construção do objeto próprio da epidemiologia. Morabia (2015 MORABIA, Alfredo . Has epidemiology become infatuated with methods? A historical perspective on the place of methods during the classical (1945-1965) phase of epidemiology. Annual Review of Public Health, San Mateo, n. 36, p. 69-88, 2015. doi: 10.1146/annurev-publhealth-031914-122403.
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) lembra que a batalha travada pelos epidemiologistas em torno da relação causal entre tabagismo e câncer de pulmão foi também a batalha pelo reconhecimento do caráter científico da epidemiologia e pela defesa dos métodos de estudos baseados na observação, que se afastavam dos cânones estabelecidos por Fisher, no seu influente texto sobre ‘desenho de experimentos’. Entre 1965 e 1975, autores como Bradford Hill, Jeremy Morris e Richard Doll, na Inglaterra, e MacMahon, Lilienfeld e Susser, nos Estados Unidos, foram fundamentais para os estudos das doenças crônicas e para assentar as bases metodológicas da epidemiologia.

Entretanto, com a chamada epidemiologia moderna, que sucedeu esse momento de transposição do limiar de cientificidade da disciplina, cada vez mais o objeto da epidemiologia se tornará um objeto abstrato, virtual, sobre o qual será possível aplicar as funções de probabilidade que correspondem à mensuração dos riscos. Livre dos contratempos e das dificuldades da observação exaustiva e continuada de populações concretas, o sonho epidemiológico poderá se realizar no mundo virtual propiciado pelo processo eletrônico de registro e computação de dados.

As populações passam a ter existência virtual nos bancos de dados armazenados em grandes computadores, nos quais as amostras podem simular no ambiente digital a população de referência formada por sujeitos de carne e osso. Deste modo, elas constituem objetos abstratos de natureza digital que, por meio do conceito de risco, estabelecem vinculações com o mundo real, desde que os pressupostos metodológicos de obtenção de amostras e dados se cumpram de maneira correta.

A possibilidade de controles analíticos pós-colheita, derivados das técnicas probabilísticas desenvolvidas ao longo dos anos, e os modelos de causalidade contrafactuais vão aproximar essas populações abstratas, cada vez mais, do ideal dos experimentos, capazes de dar validade e confiabilidade aos conhecimentos baseados em abordagens observacionais.

Avançando ainda mais nas consequências dessa abstração trilhada pela ciência epidemiológica, Almeida-Filho (2019)ALMEIDA-FILHO, Naomar. El sujeto de los riesgos en un mundo transhumano y posclínico: reflexiones a partir de Todos los nombres de Saramago y The Matrix de las hermanas Wachowsk. Salud Colectiva, Lanus, n. 15, e2595. 2019. doi: 10.18294/sc.2019.2595
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estabelece um paralelo entre a sociedade atual, cada vez mais atravessada pelas redes e dimensões virtuais, e a fábula construída em Matrix, segundo a qual o mundo virtual tem a aparência real enquanto o mundo real reduz-se ao laboratório onde os humanos hibernam em suas cápsulas, produzindo a energia necessária para sustentar a realidade virtual.

O processamento massivo de dados e a possibilidade de conectar bases de dados muito amplas, que concretizam na realidade da big data e no uso da inteligência artificial para o processamento contínuo e autorregulado, já são uma realidade. Nesta nova realidade não há mais lugar para o homem moderno que com seu universalismo possibilitou o desenvolvimento do discurso científico. Talvez o mundo atual, totalizante e probabilístico, constituído por “unidades que são repositórios de possibilidades de acontecimentos e sucessos” resulte em um novo tipo de sujeito unidimensional, capaz de ser incluído nos algoritmos das linguagens de programação, habitantes desse mundo paralelo criado pelo discurso epidemiológico formalizado (Almeida-Filho, 2019ALMEIDA-FILHO, Naomar. El sujeto de los riesgos en un mundo transhumano y posclínico: reflexiones a partir de Todos los nombres de Saramago y The Matrix de las hermanas Wachowsk. Salud Colectiva, Lanus, n. 15, e2595. 2019. doi: 10.18294/sc.2019.2595
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, p. 13). Assim, aparentemente, o sonho se transforma em pesadelo técnico-científico negador do humano.

Mas, como ressalta Almeida-Filho (2019)ALMEIDA-FILHO, Naomar. El sujeto de los riesgos en un mundo transhumano y posclínico: reflexiones a partir de Todos los nombres de Saramago y The Matrix de las hermanas Wachowsk. Salud Colectiva, Lanus, n. 15, e2595. 2019. doi: 10.18294/sc.2019.2595
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no artigo em torno da obra de Saramago, há uma saída para os praticantes da ciência:

[...] a ciência não pode ser o espelho exato da realidade. Talvez nós epidemiologistas devêssemos usar as artes e a literatura para enxergar a nós mesmos e à nossa ciência através dos óculos da sociedade e da cultura... Fazer parte de outro sonho, não o sonho metodológico de ter o laboratório perfeito (natural ou virtual), mas o sonho de ser parte de uma disciplina politicamente responsável... O novo sonho epidemiológico é ter nossa jovem ciência profundamente comprometida com a emancipação humana, com a equidade social e a justiça (Almeida-Filho, 2019ALMEIDA-FILHO, Naomar. El sujeto de los riesgos en un mundo transhumano y posclínico: reflexiones a partir de Todos los nombres de Saramago y The Matrix de las hermanas Wachowsk. Salud Colectiva, Lanus, n. 15, e2595. 2019. doi: 10.18294/sc.2019.2595
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, p. 746).

Assim, podemos despertar do pesadelo e nos dedicarmos ao objetivo primordial de produzir conhecimentos capazes de influenciar e informar políticas, programas e ações que melhorem efetivamente a saúde e preservem as capacidades das pessoas para que seja possível uma vida plena.

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  • Financiamento

    Não há.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2022
  • Aceito
    24 Ago 2022
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