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Desvelando o racismo na escola médica: experiência e enfrentamento do racismo pelos estudantes negros na graduação em Medicina

Unveiling racism in medical school: experience and confrontation of racism by Black students in Medical graduation

Develando el racismo en la escuela de medicina: experiencia y confrontación del racismo por parte de estudiantes negros en la graduación de Medicina

Resumo

O Brasil sofre os efeitos do racismo científico, do mito da democracia racial e da política de embranquecimento. Em 2019, 28% dos/as estudantes egressos/as de cursos de Medicina no Brasil eram negros/as. Com os objetivos de desvelar as formas de manifestação do racismo na graduação de Medicina e compreender como estudantes negros/as enfrentam o racismo, conduzimos uma pesquisa exploratória e qualitativa, segundo o método de Minayo, por meio de entrevistas semiestruturadas on line e auxílio do software ATLAS.ti9®. Com um referencial teórico-crítico, percebemos que as dimensões do racismo internalizado, interpessoal e institucional se sobrepõem, evidenciando seu caráter estrutural, atrelado ao desenvolvimento histórico-econômico de nosso país. A crença de inferioridade dos/as estudantes negros/as é reforçada em nível interpessoal nos olhares, piadas ou comentários sobre o cabelo. Em nível institucional, nega-se a necessidade do estudo da saúde da população negra, enquanto a baixa representatividade no corpo docente e discente não é percebida como expressão do racismo. A identificação racial, a organização em coletivos e a existência de amparos legais são fundamentais, mas o efetivo enfrentamento do racismo na escola médica requer a crítica ao sistema econômico que sistematicamente privilegia pessoas brancas.

Palavras-chave:
racismo; educação médica; saúde da população negra

Abstract

Brazil suffers from the effects of scientific racism, the myth of racial democracy and whitening policy. In 2019, 28% of students graduating from Medicine courses in Brazil were Black. With the objectives of revealing the forms of manifestation of racism in medical graduation and understanding how Black students face racism, we conducted an exploratory and qualitative research, according to Minayo’s method, through semi-structured online interviews and analysis were carried out in ATLAS.ti9® software. With a theoretical-critical framework, we realize that the dimensions of internalized, interpersonal and institutional racism overlap, evidencing its structural character, linked to the historical-economic development of our country. Black students’ belief of inferiority is reinforced at an interpersonal level in looks, jokes or comments about their hair. At an institutional level, the need to study the health of the Black population is denied, while the low representation in the faculty and students is not perceived as an expression of racism. Racial identification, organization in collectives and the existence of legal protections are fundamental, but the effective confrontation of racism in medical schools requires a critique of the economic system that systematically privileges White people.

Keywords:
racism; medical education; Black population health

Resumen

Brasil sufre los efectos del racismo científico, del mito de la democracia racial y de la política del blanqueamiento. En 2019, el 28% de los/las estudiantes que se graduaron en cursos de Medicina en Brasil eran negros/as. Con los objetivos de develar las formas de manifestación del racismo en la graduación de Medicina y comprender cómo los/las estudiantes negros/as enfrentan el racismo, conducimos una investigación exploratoria y cualitativa, según el método de Minayo, a través de entrevistas semiestructuradas online y con la ayuda del software ATLAS.ti9®. Con un marco teórico-crítico, percibimos que las dimensiones del racismo internalizado, interpersonal e institucional se superponen, evidenciando su carácter estructural, ligado al desarrollo histórico-económico de nuestro país. La creencia de inferioridad de los/las estudiantes negros/as se refuerza a nivel interpersonal en miradas, bromas o comentarios sobre el cabello. A nivel institucional se niega la necesidad de estudiar la salud de la población negra, mientras que la baja representación en el cuerpo docente y discente no es percibida como una expresión de racismo. La identificación racial, la organización en colectivos y la existencia de respaldo legal son fundamentales, pero enfrentar efectivamente el racismo en las facultades de medicina requiere una crítica al sistema económico que sistemáticamente privilegia a los blancos.

Palabras clave:
racismo; educación médica; salud de la población negra

Introdução

A escravização negra no Brasil durou mais de 350 anos, contando com cerca de cinco milhões de africanos traficados no período (Tráfico Transatlântico de Escravos, [2006]TRÁFICO Transatlântico de Escravos. Slave Voyages, [2006]. Disponível em: https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates. Acesso em: 20 abr. 2022.
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), um quantitativo tão significativo que coloca o Brasil hoje com a maior população negra fora da África. A abolição da escravatura em 1888 não acompanhada por políticas reparatórias impediu que essa liberdade fosse efetivada. Em oposição à segregação explícita que houve nos Estados Unidos e na África do Sul, no Brasil o mito da democracia racial e a política de embranquecimento dificultaram a criação de uma identidade étnico-racial e ainda hoje colaboram para o não reconhecimento do racismo (Guimarães, 1995GUIMARÃES, Antonio S. A. Racismo e anti-racismo no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 43, n. 3, p. 26-44, nov. 1995.).

Ao pensar o racismo na escola médica, faz-se necessário pontuar o papel que a própria Medicina teve na disseminação do racismo científico, ao aceitar o determinismo biológico, que fazia parte das teorias eugenistas dos séculos XVII a XIX (Schwarcz, 1993SCHWARCZ, Lília M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.). Estas atribuíam diferenças cognitivas e culturais a fatores genéticos e fenotípicos, como a cor da pele e olhos, tipo de cabelo, largura do nariz e formato do crânio, com suas consequências evidenciadas até hoje em dados referentes à saúde da população negra, dentre outros marcadores sociais de desigualdade.

Existe racismo na academia (Santos, 2017SANTOS, Dyane B. R. Curso de branco: uma abordagem sobre o acesso e a permanência de estudantes de origem popular nos cursos de saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Revista Contemporânea de Educação, Rio de Janeiro, v. 12, n. 23, p. 31-50, jan./abr. 2017. https://doi.org/10.20500/rce.v12i23.3229. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/view/3229/7579. Acesso em: 20 abr. 2022.
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), e esse conflito se acentuou após a entrada de estudantes negros/as pelo sistema de cotas (Brasil, 2012BRASIL. Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil , Brasília, DF, Seção 1, p. 1, 29 ago. 2012. ), notadamente em cursos de alta demanda, como a Medicina. Seguramente, as ações afirmativas não aumentaram o racismo. Ocorre que a maior presença de estudantes negros/as no ensino superior fez emergir o racismo existente, tornando imprescindível seu debate. Apesar disso, apenas mais recentemente a temática racial começa a ser discutida no ensino médico (Borret, 2020BORRET, Rita H. et al. Reflexões para uma prática em saúde antirracista. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, v. 44, supl. 1, p. 1-7, 2020. https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.supl.1-20200405. Disponível em: https://bityli.com/LcnaRY. Acesso em: 20 abr. 2022.
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), e os estudos sobre racismo na universidade são ainda, em sua maioria, das áreas de humanas e de ciências sociais.

A pesquisa no campo da saúde da população negra se justifica por sua participação expressiva no conjunto da população brasileira, sua presença majoritária dentre os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), pelos piores indicadores de saúde, pela necessidade de consolidação dos princípios do SUS e pela obrigação amparada em instrumentos legais, como o Estatuto da Igualdade Racial e Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) (Werneck, 2016WERNECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 535-549, 2016. https://doi.org/10.1590/S0104-129020162610. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/bJdS7R46GV7PB3wV54qW7vm/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2022.
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).

Em conformidade com esses amparos legais, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) da graduação de Medicina estabelecem que “o graduando será formado para considerar sempre as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, [...] e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana” (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Educação. Resolução n. 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil , Brasília, DF, Seção 1, p. 8-11, 23 jun. 2014. Disponível em: https://bityli.com/AOrUpk. Acesso em: 20 abr. 2022.
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, p. 1).

Considerando o racismo estrutural e o mito da democracia racial, questionamos: como estudantes de Medicina vivenciam o racismo no Brasil de 2021, em plena pandemia, momento em que a pobreza, a falta de saneamento, o desemprego, o encarceramento em massa e o genocídio da população negra (Oliveira et al., 2020OLIVEIRA, Roberta G. et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 9, p. 1-14, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-311X00150120. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static//arquivo/1678-4464-csp-36-09-e00150120.pdf. Acesso em: 20 abr. 2022.
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) voltaram a ser notícia?

Assim, foram objetivos dessa pesquisa desvelar as formas de manifestação do racismo na graduação de Medicina, na perspectiva discente, e compreender como estudantes de Medicina negros/as enfrentam o racismo.

Método

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, com análise hermenêutico-dialética, considerando a não neutralidade da ciência e o caráter histórico e social que permeia as falas da população estudada (Minayo, 2012MINAYO, Maria C. de S. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 621-626, mar. 2012. https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000300007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/39YW8sMQhNzG5NmpGBtNMFf/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2022.
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). Os critérios de inclusão foram: ser maior de 18 anos, estar cursando ou ter concluído graduação em Medicina em escola pública ou privada e ser autodeclarado/a da raça/cor negra, compreendida neste contexto como soma de pretos/as e pardos/as.

O estudo foi conduzido em Curitiba, e o primeiro contato com potenciais participantes ocorreu via grupo de Facebook de uma Faculdade de Medicina do Paraná. Por meio da técnica de seleção ‘bola de neve’, obteve-se uma amostra intencional em que um/a participante indicou outro/a, justificada pela baixa presença de estudantes negros/as nos cursos de Medicina. A técnica de coleta de dados foi entrevista semiestruturada, realizada on line em virtude da pandemia, por meio da plataforma Google Meet®.

Após a etapa de transcrição e confirmação do conteúdo pelos/as entrevistados/as, seguimos com a ordenação, a codificação e a categorização das transcrições, conforme sistematização proposta por Taquette (2016TAQUETTE, Stella R. Análise de Dados de Pesquisa Qualitativa em Saúde. In: CONGRESSO IBERO-AMERICANO EM INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA, 5., 2016, Porto. Atas [...]. Porto: CIAIQ, 2016. p. 524-533. v. 2. Disponível em: https://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2016/article/view/790/777. Acesso em: 20 abr. 2022.
https://proceedings.ciaiq.org/index.php/...
). Esse processo ocorreu com auxílio do software ATLAS.ti9®, o qual possibilitou organização do conteúdo, facilitando o agrupamento de elementos, ideias e expressões em torno de um mesmo conceito para a criação das categorias prévias de análise. Por fim, as categorias foram trianguladas à luz de dados bibliográficos e dos referenciais teóricos envolvendo as dimensões do racismo (Jones, 2002JONES, Camara P. Confronting Institutionalized Racism. PHYLON, Atlanta, v. 50, n. 1/2, p. 7-22, 2002. https://doi.org/10.2307/4149999. Disponível em: https://stacks.cdc.gov/view/cdc/104986. Acesso em: 20 abr. 2022.
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), a política de embranquecimento e mito da democracia racial (Fernandes, 2008FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Biblioteca Azul, 2008. v. 1.; Guimarães, 1995GUIMARÃES, Antonio S. A. Racismo e anti-racismo no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 43, n. 3, p. 26-44, nov. 1995.; Schwarcz, 1993SCHWARCZ, Lília M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.), o pensamento feminista negro brasileiro (Gonzalez, 2020GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.; Carneiro, 2003CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 117-132, dez. 2003. https://doi.org/10.1590/s0103-40142003000300008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/Zs869RQTMGGDj586JD7nr6k/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2022.
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), racismo, sociedade de classes e saúde mental (Fanon, 2020FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Sebastião Nascimento e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020. 320 p.; Souza, 1983SOUZA, Neusa S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.) e o racismo estrutural (Almeida, 2020ALMEIDA, Silvio L. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2020.).

Foram realizadas dez entrevistas, utilizando-se o critério de saturação descrito por Minayo (2017MINAYO, Maria C. de S. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Qualitativa, São Paulo, v. 5, n. 7, p. 1-12, abr. 2017. Disponível em: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82/59. Acesso em: 30 jan. 2022.
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). Esta pesquisa foi conduzida por uma mulher, médica e negra, o que permitiu uma aproximação entre pesquisadora e participantes, e facilitou a obtenção das informações. Foi submetida à apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa das Faculdades Pequeno Príncipe e aprovada conforme o parecer n. 3989901, de abril de 2020.

Resultados e discussão

Perfil dos/as participantes

Foram entrevistados/as oito mulheres e dois homens, com idades que variavam entre 19 e 33 anos. Quanto à raça/cor, que foi um campo aberto do questionário sociodemográfico, quatro se declararam estudantes negros/as, e seis, pretos/as. Sete participantes estavam na primeira metade do curso, e três, na segunda, duas das quais eram do internato. Seis estudantes eram de faculdade pública, e quatro, de instituição particular, com apenas uma não cotista ou bolsista.

Em 2019, apenas 28% dos/as estudantes egressos/as dos cursos de Medicina eram negros/as (Scheffer, 2020SCHEFFER, Mario (coord.). Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP; Conselho Federal de Medicina , 2020. ), valor ainda muito inferior à proporção de 56% de população negra no país (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2020). Segundo o estudo Demografia Médica, os/as médicos/as graduados/as no Brasil entre 2014 e 2015, na sua grande maioria, são “solteiros, brancos, não têm filhos, dependeram financeiramente dos pais [...]. A maioria cursou ensino médio em escola particular e fez cursinho pré-vestibular” (Scheffer, 2018SCHEFFER, Mario (coord.). Demografia Médica no Brasil 2018. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP; Conselho Federal de Medicina, 2018., p. 65). Quase 35% vieram de famílias com renda mensal acima de 10 salários-mínimos, e apenas 6,8% com renda de até 1,5 salário-mínimo (Scheffer, 2020SCHEFFER, Mario (coord.). Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP; Conselho Federal de Medicina , 2020. ).

Esse perfil contrasta com o dos/as participantes deste estudo, no qual nenhum teve renda familiar acima de 10 salários-mínimos, menos da metade de seus pais cursou o ensino superior e, dentre suas ocupações, encontramos diaristas, professores/as, mecânico, auxiliar de cozinha e pedreiro.

Não foram encontrados dados sobre a distribuição por raça/cor dos/as médicos/as atualmente inscritos/as nos conselhos profissionais do Brasil. A página na internet do Conselho Regional de Medicina do Paraná, estado onde o estudo foi conduzido, tampouco apresenta dados racializados sobre o perfil da categoria. Essa ausência de dados pode refletir tanto o desinteresse nessa informação como a crença em uma democracia racial, já que, ‘se somos todos iguais’, para que obter dados por raça/cor?

A partir das perguntas de pesquisa, duas grandes categorias de discussão foram criadas: a primeira, referente às manifestações e dimensões de racismo na graduação de Medicina; e a segunda, sobre suas formas de enfrentamento. A categoria sobre as dimensões de racismo partiu da proposição de Jones (2002JONES, Camara P. Confronting Institutionalized Racism. PHYLON, Atlanta, v. 50, n. 1/2, p. 7-22, 2002. https://doi.org/10.2307/4149999. Disponível em: https://stacks.cdc.gov/view/cdc/104986. Acesso em: 20 abr. 2022.
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) e foi discutida com base na noção das “novas formas de expressão [...] do racismo” de Lima e Vala (2004LIMA, Marcus E. O.; VALA, Jorge. As novas formas de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de Psicologia, Natal, v. 9, n. 3, p. 401-411, 2004. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2004000300002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/epsic/a/k7hJXVj7sSqf4sPRpPv7QDy/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2022.
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, p. 401), subdividida em “Racismo internalizado e estereótipos na Medicina”, “Racismo velado, sutil, cordial... para quem?” e “A negação do racismo e o racismo institucional”. Ressalta-se que tal classificação se dá para fins didáticos, pois as falas, por serem um retrato da realidade, perpassam as tentativas de categorização. Há intersecção entre todas as dimensões do racismo.

Racismo internalizado e estereótipos na Medicina

Na classificação de Jones (2002JONES, Camara P. Confronting Institutionalized Racism. PHYLON, Atlanta, v. 50, n. 1/2, p. 7-22, 2002. https://doi.org/10.2307/4149999. Disponível em: https://stacks.cdc.gov/view/cdc/104986. Acesso em: 20 abr. 2022.
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), o racismo internalizado representa a interiorização dos padrões racistas pelo grupo estigmatizado, incorporando visões negativas sobre si mesmo no que se refere à capacidade, habilidade e valor. Em relação aos sentimentos negativos despertados, os/as estudantes relataram dor, autocobrança, impotência, inferioridade, insegurança, sensação de não pertencimento, nervosismo, pessimismo, raiva, revolta, baixa autoestima, solidão, angústia, tristeza, vergonha, preocupação com o futuro profissional, medo e fenômeno do impostor.

Desde criança a gente vê que sempre quem assim são as pessoas brancas, ? Na TV, a gente vê... Lendo em livros dos irmãos Grimm, [...] você vê que as pessoas pretas é [sic] a maldição, são pessoas que não são vistos [sic] como pessoas bonitas, como pessoas inteligentes. São sempre vistos [sic] como pessoas para trabalhos braçais. Parece que todo mundo vai te enxergar como uma pessoa inferior, que não tem competência para fazer as coisas... Não sei, eu me senti inferiorizada (Estudante 3, F, faculdade pública, cota social e racial).

Essa sensação de inadequação ocasionada pela cor, apesar de todos os esforços, é explicitada por Fanon (2020FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Sebastião Nascimento e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020. 320 p.), médico psiquiatra negro martinicano, no livro Pele negra, máscaras brancas:

Era o professor negro, o médico negro; eu, que começava a me fragilizar, tremia ao menor sinal de alerta. Sabia, por exemplo, que, se o médico cometesse um erro, estariam acabados ele e todos os que o sucedessem. O que se pode esperar, na verdade, de um médico negro? Enquanto tudo estivesse correndo bem, era alçado às nuvens, mas cuidado, não faça nenhuma besteira, em hipótese alguma! O médico negro jamais saberá a que ponto sua posição beira o descrédito. Eu lhes digo, já estive emparedado: nem minhas atitudes civilizadas, nem meus conhecimentos literários, nem minha compreensão da teoria quântica eram vistos com bons olhos (Fanon, 2020FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Sebastião Nascimento e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020. 320 p., p. 132).

Nessa passagem, o autor reflete também sobre o permanente julgamento a que pessoas negras são submetidas, como se estivessem sempre sendo vigiadas, prontas para serem lançadas das nuvens ao descrédito ao menor erro. Não somente elas, individualmente, mas “todos os que o sucedessem” (Fanon, 2020FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Sebastião Nascimento e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020. 320 p., p. 132).

O racismo interpessoal pode ser expresso na forma de preconceitos e estereótipos que podem ocasionar discriminação, ou seja, oferta de tratamentos desiguais às pessoas em função da cor. Manifesta-se pelo desrespeito, atendimento precário ou inexistente, falta de informação sobre direitos, desconfiança, hipervigilância e atos mais ‘sutis’, como atravessar a rua ou apertar a bolsa contra o corpo ao cruzar com pessoas negras (Jones, 2002JONES, Camara P. Confronting Institutionalized Racism. PHYLON, Atlanta, v. 50, n. 1/2, p. 7-22, 2002. https://doi.org/10.2307/4149999. Disponível em: https://stacks.cdc.gov/view/cdc/104986. Acesso em: 20 abr. 2022.
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). Todos esses comportamentos foram mencionados pelos/as participantes ao longo das entrevistas.

Ao serem questionados/as sobre a existência de algum estereótipo de estudante de Medicina, a este foi atribuída a brancura, poder aquisitivo elevado e propensão natural ao exercício da profissão, como na fala: “Não digo que uma pessoa branca, loira, de olhos azuis, mas pelo menos uma pessoa branca, de classe social elevada e muito inteligente” (Estudante 7, M, Prouni integral).

Para Lia Vainer Schucman, a branquitude é entendida como:

uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade (Schucman, 2012SCHUCMAN, Lia V. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. 2012. 122 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012., p. 84).

A visão de ‘classe social elevada’ demonstra um marcador racial da condição socioeconômica, que associa livremente raça branca à riqueza e raça negra à pobreza e servidão. Cabe notar que esse pensamento não surge espontaneamente, mas advém de uma base material que, ao mesmo tempo que construiu essa realidade por meio da economia escravista, do imperialismo e do racismo científico, ainda fomenta uma ideia de naturalidade e, portanto, impossibilidade de mudança.

Nesse sentido, a crença de que, no Brasil, a discriminação é um problema de classe social e não de raça contribui para a manutenção dessa ordem, impedindo o reconhecimento do racismo, o qual é ocultado num preconceito de classe, como ao questionar a adoção de medidas que visem à reparação dessa desigualdade, como cotas raciais exclusivas, por exemplo.

Sobre a intersecção entre raça e classe social, Lélia Gonzalez afirma que “se pessoas possuidoras dos mesmos recursos (origem de classe e educação, por exemplo), excetuando sua filiação racial, entram no campo da competição o resultado desta última será desfavorável aos não brancos” (Gonzalez, 2020GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 187). Assim, por mais que a pessoa branca também sofra com a exploração da força de trabalho no modo de produção capitalista, as piores ocupações e condições de trabalho ainda serão destinadas às pessoas negras, em função do racismo.

A visão que vislumbra pessoas negras apenas na posição de serventes faz parte de uma ideologia fomentada desde a infância, a partir da educação e da mídia. Assim, a representação de pessoas negras como passivas ao processo de escravização, intelectualmente inferiores e afeitas a trabalhos braçais cria as condições para a internalização desses valores por pessoas brancas e não brancas, naturalizando desigualdades historicamente e socialmente construídas.

Sueli Carneiro define esse apagamento intencional:

O epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo (Carneiro, 2005CARNEIRO, Aparecida S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf. Acesso em: 20 abr. 2022.
https://negrasoulblog.files.wordpress.co...
, p. 97).

Enquanto o/a estudante branco/a teria uma propensão ‘natural’ ao estudo da Medicina, o/a estudante negro/a foi associado/a ao consumo de substâncias ilícitas, hipersexualidade, violência, vitimização, ocupações de menor prestígio social, pobreza e menor capacidade intelectual.

Um dos estudantes entrevistados conta que, durante o coffee break de um evento médico, ao relatar que havia assistido a uma palestra sobre canabidiol, uma colega com quem não tinha intimidade comentou que a escolha era “bem a sua cara mesmo”. Tal comentário pode parecer circunstancial, mas é provável que essa associação tenha ocorrido exclusivamente em função de o estudante ser negro. E aqui é preciso lembrar o quanto os estereótipos atribuídos às pessoas negras proporcionam tratamentos distintos se comparados a uma pessoa branca nas mesmas condições, ocasionando encarceramento e até mesmo a morte.

Apesar de menos frequentes que o racismo mascarado, ofensas explícitas também foram relatadas. Mesmo entre ‘amigos’, em momentos de questionamento da ofensa perpetrada na forma de piada, a reação dos colegas tende a ser uma postura defensiva, de negação de racismo, em vez de escuta e acolhimento dos sentimentos despertados, como na citação a seguir:

E o pedido de desculpa dele não foi um pedido de desculpa, ele falou “Ah, galera, foi mal por ter falado isso”, mas começou a atacar eu e meu amigo tipo: “Ah, vocês também veem racismo em tudo”... A gente começou a discutir, a coisa ficou muito calorosa, até que ele atacou meu amigo por ser prounista e daí falou que não era por eu ser escurinha que eu tinha que ser violenta (Estudante 4, F, faculdade privada, outro tipo de bolsa).

Nesse episódio, é possível perceber a ofensa direta à cor da pele na palavra ‘escurinha’ e o estereótipo atribuído à mulher negra que, ao manifestar seu ponto de vista, é ligado ao estereótipo de mulher violenta.

Racismo velado, sutil, cordial... para quem?

Dentre as formas de racismo ‘velado’ relatadas pelos/as estudantes, houve confundimento com outros funcionários - não sendo reconhecidos/as como estudantes de Medicina -, descrédito em suas habilidades, piadas de cunho racista, demonstração de surpresa ao revelarem que são da Medicina, tratamento como ‘exóticos/as’, recebimento de olhares de estranhamento e exclusão social.

Segundo Lima e Vala (2004LIMA, Marcus E. O.; VALA, Jorge. As novas formas de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de Psicologia, Natal, v. 9, n. 3, p. 401-411, 2004. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2004000300002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/epsic/a/k7hJXVj7sSqf4sPRpPv7QDy/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2022.
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), haveria uma mudança da manifestação de racismo ao longo dos séculos, que teria passado de uma forma mais explícita a “novas formas de expressão [...] do racismo” (Lima e Vala, 2004LIMA, Marcus E. O.; VALA, Jorge. As novas formas de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de Psicologia, Natal, v. 9, n. 3, p. 401-411, 2004. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2004000300002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/epsic/a/k7hJXVj7sSqf4sPRpPv7QDy/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2022.
https://www.scielo.br/j/epsic/a/k7hJXVj7...
, p. 401). Para eles, novas formas de preconceito passaram a ser identificadas à medida que o racismo tradicional foi sendo substituído por um racismo ‘cordial’, no caso do Brasil, o qual seria expresso por meio de piadas, ditos populares e brincadeiras de cunho racista.

Por mais que haja essa mudança na forma de expressar o racismo, fruto de lutas do próprio movimento negro ao longo das últimas décadas, questionamos se podemos chamar esse sistema, que apenas aperfeiçoou suas formas de operar, de ‘sutil’ ou ‘cordial’. Uma estudante revela que, ao utilizar tranças, frequentemente ouvia questionamentos sobre como fazia para lavar o cabelo e como iria frequentar o centro cirúrgico.

Em outro relato, um estudante branco, ao se irritar com uma professora que passou uma atividade extra, associou a atitude à “falta de um negão”. Além de reproduzir um discurso machista, a fala do estudante revela um estereótipo frequentemente atribuído aos homens negros, relacionando-os à virilidade e potência sexual.

Neusa Santos Souza (1983SOUZA, Neusa S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.), médica psicanalista negra baiana, no livro Tornar-se negro, fala que a superpotência sexual, a resistência física e a sensibilidade privilegiada são estereótipos que reafirmam a animalidade biológica do homem negro, suplantando aspectos relacionados à sua condição histórica e à sua humanidade. Bernardino-Costa, ao comentar Fanon, descreve que “Do ponto de vista racista, o corpo negro está preso à natureza, aos instintos selvagens, à sexualidade. Um negro é uma ameaça em potencial” (Bernardino-Costa, 2016BERNARDINO-COSTA, Joaze. A prece de Frantz Fanon: Oh, meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona! Civitas, Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 504-521, jul./set. 2016. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2016.3.22915. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/22915/15069. Acesso em: 20 abr. 2022.
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, p. 510).

Estereótipos atribuídos às pessoas negras naturalizam condições socialmente construídas relacionadas a uma suposta inferioridade, hipersexualidade e periculosidade de pessoas negras, o que, a nível das instituições, vai ocasionar a perpetuação de negação de direitos, dos mais imediatos para a reprodução da vida, como acesso à saúde e emprego, chegando à negação da própria vida, como no caso de João Alberto Silveira Freitas, homem de 40 anos morto em supermercado no sul do Brasil em 2020 (Homem..., 2020HOMEM negro é espancado até a morte em supermercado do grupo Carrefour em Porto Alegre. G1 RS, Rio Grande do Sul, 20 nov. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/11/20/homem-negro-e-espancado-ate-a-morte-em-supermercado-do-grupo-carrefour-em-porto-alegre.ghtml. Acesso em: 20 abr. 2022.
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), já que ‘o negro é uma ameaça em potencial’.

A negação do racismo e o racismo institucional

Se o racismo explícito tem sido mais vigiado, a negação de racismo ainda é um comportamento comum no Brasil. Em um estudo de Turra e Venturi (1995TURRA, Cleusa; VENTURI, Gustavo (org.). Racismo cordial: a mais completa análise sobre preconceito de cor no Brasil. São Paulo: Ática, 1995.) sobre o preconceito de cor, 89% dos entrevistados afirmaram haver preconceito no Brasil, entretanto, só 10% deles admitiram ter um pouco ou muito preconceito.

Em 2020, a pesquisa foi repetida e revela um quadro semelhante: 76% veem racismo no Brasil, mas só 28% admitem ter preconceito contra pessoas negros/as. Para 12%, racismo não existe (Freire, 2020FREIRE, Sabrina. 76% veem racismo no Brasil, mas só 28% admitem preconceito contra negros. Poder 360, 1 jul. 2020. Disponível em: https://www.poder360.com.br/poderdata/76-veem-racismo-no-brasil-mas-so-28-admitem-preconceito-contra-negros/. Acesso em: 20 abr. 2022.
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).

A negação do racismo não é exclusividade das pessoas brancas. Neste estudo, uma das alunas nega vivências de racismo na Medicina e, momentos depois, manifesta surpresa ao perceber que ela ou alguém da família nunca foram atendidos/as por um/a médico/a negro/a. A falta de representatividade no curso de Medicina foi mencionada por todos/as os/as entrevistados/as, tanto no corpo docente, como nas ligas acadêmicas, diretórios acadêmicos e coletivos estudantis.

A crença de que o racismo seria uma prática individual expressada apenas por ofensas explícitas impede o reconhecimento dessa falta de representatividade e do medo de sofrerem discriminação como consequência do racismo.

Uma estudante relatou que um professor usava termos como ‘cabelo carapinha’ e ‘mulato’, alegando serem termos médicos. Ao conversar com ele ao final da aula para orientá-lo quanto aos termos apropriados, a postura dele foi de defesa, colocando-se numa posição de superioridade, sem mudança de comportamento.

Atribui-se às pessoas negras a tarefa de educar e ensinar as pessoas brancas a não ‘serem racistas’. O relato explicita como essa tarefa pode ser árdua e pouco produtiva, sobretudo quando realizada a partir da própria vítima ao se encontrar em uma posição de subalternidade. O professor continuou disseminando termos racistas em suas aulas, ignorando as manifestações e sentimentos despertados na estudante negra.

Em outro relato, uma estudante conta que, ao comunicar o professor que iria perder uma prova, pois participaria de um congresso sobre saúde da população negra, ouviu em resposta que “saúde não tem cor”, que “somos todos iguais” e que “faria uma segunda chamada bem difícil”.

De fato, do ponto de vista biológico não há diferenças entre as raças, ao menos não no que se refere à capacidade intelectual e comportamental, como afirmava o racismo científico. Entretanto, do ponto de vista sociológico, há que se admitir uma diferença entre os grupos raciais (Munanga, 2003MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO-PENESB, 3., 2003, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: PENESB, 2003. p. 1-17. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf. Acesso em: 20 abr. 2022.
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), seja por questões genéticas (a exemplo da doença falciforme), seja no surgimento e agravamento de condições de saúde em função do próprio racismo (a exemplo dos transtornos de ansiedade e depressão), seja por piores condições de vida ocasionadas pela desigualdade social, que, no Brasil, guarda relação com a cor. Apesar de a PNSIPN justificar a necessidade de ensino dessa temática nas graduações em saúde, ainda é preciso incluí-la na educação permanente dos profissionais (Pinheiro, 2010PINHEIRO, Nadja F. Cotas na UFBA: percepções sobre racismo, antirracismo, identidades e fronteiras. 2010. 218 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.; Silvério e Dias, 2019SILVÉRIO, Ana C. L.; DIAS, Nicole G. Abordagem da saúde da população negra nos cursos da área de saúde. Temas em Educação e Saúde, Araraquara, v. 15, n. 1, p. 24-37, jan./jun. 2019. https://doi.org/10.26673/tes.v15i1.12525. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/tes/article/view/12525/8355. Acesso em: 20 abr. 2022.
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).

Segundo alguns estudantes, o não ensino da saúde da população negra foi justificado pelos/as docentes pela “ausência de pessoas negras na sala”, ignorando que pessoas pardas são negras e que o fato de morarmos no Brasil já justificaria essa demanda, ou por não terem “lugar de fala” por serem brancos. Ora, o argumento de lugar de fala se torna falho, pois, se assim fosse, não poderiam existir professores homens de ginecologia. Como explicitado no livro Lugar de fala, todos têm lugar de fala, a diferença é que pessoas brancas e negras falarão de lugares distintos (Ribeiro, 2019RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2019.).

De fato, há pouca formação docente para discutir racismo de forma crítica e ética no sentido de combatê-lo e não reproduzi-lo em estereótipos e juízos pessoais de valor. A maioria dos/as profissionais da educação não está preparada para tratar da questão étnico-racial. São eles/as, muitas vezes, os/as próprios/as agentes da atuação racista. Isso reforça o caráter estrutural do racismo, já que tais comportamentos não estariam atrelados apenas à falta de informação, pois são reflexos de uma sociedade estruturada pelo racismo (Santana et al., 2019SANTANA, Rebecca A. R. et al. A equidade racial e a educação das relações étnico-raciais nos cursos de Saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 23, 2019. https://doi.org/10.1590/Interface.170039. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/fcFjjTxbDtytgD9dXxdVcJK/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2022.
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).

Ainda na instituição de ensino, as estudantes relataram solicitações para prender o cabelo crespo ou cacheado, pedido não realizado a estudantes brancas no mesmo contexto. Há uma tradição dos cursos de Medicina de recomendar a seus estudantes normas sobre a aparência, justificadas por uma necessidade de higiene e de preservação da imagem da profissão médica. Quando aplicadas à população negra, a ‘boa aparência’ é interpretada pelo cabelo liso para as mulheres e curto para os homens, como explicitado na fala de uma das participantes: “Eu tento andar mais arrumada pra ir pra faculdade [...], puxava muito em escova pro cabelo estar sempre muito liso...”. Em última instância, essa boa aparência está atrelada a uma condição que as pessoas negras nunca terão: a pele branca. Importante lembrar que essa associação tem uma base material, advinda de uma bagagem cultural adquirida ao longo da vida através da mídia, mas também da escola e de experiências vividas no próprio âmbito familiar (Gomes, 2002GOMES, Nilma L. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 21, p. 40-51, set./dez. 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000300004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/D7N3t6rSxDjmrxrHf5nTC7r/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2022.
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).

Estudantes de universidades públicas relataram experiências de preconceito contra estudantes cotistas, sobretudo os/as negros/as, já que o/a cotista branco/a não tem sua aparência automaticamente associada a uma ou outra forma de ingresso. E aí precisamos apontar que a mesma política que deveria incluir pode segregar e estigmatizar se não for acompanhada por uma série de ações que visem de fato à integração e acolhimento dos/as estudantes negros/as nas universidades. A desperiodização foi reportada como mais uma forma de reforçar preconceitos contra os estudantes cotistas negros/as, o que piora o sofrimento mental:

Mas por que que a gente falha? Porque a faculdade não dá suporte, porque às vezes a gente não consegue estudar [...], eu não acostumada a estudar 12h por dia que nem eles, eu não falo inglês... Então, se eu tenho mais dificuldades, se eu não consigo estudar tanto, é porque eu tenho que andar de ônibus, a gente tem outras preocupações... (Estudante 1, F, faculdade pública, cota racial).

Nos serviços de saúde, o racismo institucional se manifestou no não reconhecimento dos/as estudantes negros/as como pertencentes ao curso de Medicina, no pior atendimento prestado a pacientes negros/as, incluindo não oferta de atestado médico por prejulgar que a paciente não tinha “cara de quem trabalha” e questionamentos em relação à cor da pele do filho no momento do nascimento, por ser mais claro que a mãe. Essas condutas evidenciam um forte despreparo das equipes para oferecer serviços adequados em função da cor, ou seja, o racismo institucional (López, 2012LÓPEZ, Laura C. O conceito de racismo institucional: aplicações no campo da saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 16, n. 40, p. 121-134, jan./mar. 2012. https://doi.org/10.1590/S1414-32832012005000004. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/icse/v16n40/aop0412.pdf. Acesso em: 20 abr. 2022.
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).

Seis das oito estudantes entrevistadas já foram confundidas com enfermeiras ou técnicas de enfermagem, por mais que tenham se apresentado e estivessem com jaleco indicando o curso. Para compreender esse comportamento, precisamos discutir as bases materiais que ainda hoje alimentam estereótipos racistas, que moldam num inconsciente coletivo o lugar passível de ser ocupado por pessoas brancas e negras, além do papel de gênero atribuído às mulheres.

Em sua origem, as atividades de cuidados com doentes, idosos/as e pessoas com deficiência eram desenvolvidas no âmbito doméstico. É a partir do final do século XIX que ocupações como curandeiros/as, cirurgiões-barbeiros, amas de leite e parteiras, exercidas até então em caráter de benevolência e majoritariamente por pessoas negras, transformam-se em profissão específica e prestigiada, exercida por pessoas brancas (Lombardi e Campos, 2018LOMBARDI, Maria R.; CAMPOS, Veridiana P. A enfermagem no Brasil e os contornos de gênero, raça/cor e classe social na formação do campo profissional. Revista da ABET, Uberlândia, v. 17, n. 1, p. 28-46, jan./jun. 2018. https://doi.org/10.22478/ufpb.1676-4439.2018v17n1.41162. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/article/view/41162/20622. Acesso em: 20 abr. 2022.
https://periodicos.ufpb.br/index.php/abe...
).

Sem acesso à profissionalização no período pós-abolição, essa divisão social do trabalho acabou gerando uma divisão racial, ao passo que o racismo, como ideologia, retroalimenta as bases materiais de piores empregos e condições de trabalho, impedindo que a maioria das pessoas negras acesse o ensino superior e aspire por melhores condições de vida. Essa situação é intensificada para a mulher negra, que muitas vezes se ocupa, além do seu próprio sustento, do cuidado doméstico e sustento de toda a família, evidenciando as intersecções entre gênero, raça e classe (Gonzalez, 2020GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.).

Reações e formas de enfrentamento ao racismo na escola médica

As reações ao racismo vivenciado pelos/as estudantes negros/as de Medicina envolveram estratégias individuais e coletivas. Dentre as individuais, podemos citar: alterar a aparência com o objetivo de embranquecimento, empenhar-se mais nos estudos, ignorar as situações de racismo, evidenciar as conquistas pessoais aos colegas e buscar apoio psicológico.

Sobre o embranquecimento como parte da estratégia de ascensão social, Souza (1983SOUZA, Neusa S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.) afirma que

Tendo que livrar-se da concepção tradicionalista que o definia econômica, política e socialmente como inferior e submisso, [...] o negro viu-se obrigado a tomar o branco como modelo de identidade, ao estruturar e levar a cabo a estratégia de ascensão social (Souza, 1983SOUZA, Neusa S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983., p. 19).

Um estudo sobre a percepção de racismo por estudantes negros/as de Medicina na Universidade Federal da Bahia também encontrou o disfarce como forma de mostrar-se pertencente a esse lugar (Pinheiro, 2010PINHEIRO, Nadja F. Cotas na UFBA: percepções sobre racismo, antirracismo, identidades e fronteiras. 2010. 218 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.).

Sobre o enfrentamento coletivo, o Negrex, coletivo formado por estudantes de Medicina negros/as presente em várias faculdades brasileiras, foi mencionado por alguns estudantes, bem como o desejo de estruturá-lo no município do estudo. Os coletivos têm a potência de visibilizar demandas, fomentar os debates sobre as relações raciais e ampliar a representatividade negra na universidade (Rosa e Alves, 2020ROSA, Evellyn G. D.; ALVES, Míriam C. Estilhaçando a máscara do silenciamento: movimentos de (re)existência de estudantes negros/negras. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 40, n. spe., p. 1-14, 2020. https://doi.org/10.1590/1982-3703003229978. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/d5kWsM4mt5fPmjmPMPRYJKS/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2022.
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). É no interior dos grupos que muitos/as estudantes passam a ter consciência de seu pertencimento racial e acessam literaturas até então fora do seu alcance, já que poucos currículos trazem as questões de raça, gênero ou sexualidade na escola ou na universidade (Santos, 2017SANTOS, Dyane B. R. Curso de branco: uma abordagem sobre o acesso e a permanência de estudantes de origem popular nos cursos de saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Revista Contemporânea de Educação, Rio de Janeiro, v. 12, n. 23, p. 31-50, jan./abr. 2017. https://doi.org/10.20500/rce.v12i23.3229. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/view/3229/7579. Acesso em: 20 abr. 2022.
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).

Além da organização do coletivo Negrex, foram sugestões para enfrentamento ao racismo: apoio efetivo das coordenações de curso no que tange ao cumprimento das DCN e denúncias de racismo, ampliação de vagas para estudantes negros/as nas faculdades privadas, aprimoramento das políticas de permanência estudantil, disponibilização de tratamento psicológico, oferta de optativas de idiomas, uso de metodologias ativas de ensino e aulas de reforço escolar.

Como formas de enfrentamento ao racismo institucional na saúde, aponta-se a necessidade de ampliação dos espaços de discussão do racismo dentre o corpo docente, discente e nos locais de atendimento médico, o que passa pela efetivação das DCN da Medicina, da PNSIPN e pelo cumprimento da lei n. 10.639/03 (Brasil, 2003BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Seção 1, p. 1, 10 jan. 2003. ), a qual torna obrigatório o ensino da história e cultura africanas e indígenas. Mesmo com desafios à implantação, a existência dessas políticas são conquistas da classe trabalhadora e, como tal, precisam estar sob permanente vigilância, sobretudo no atual contexto de desestruturação de políticas públicas na saúde e na educação.

Os resultados dessa pesquisa apontam para questões ainda em aberto, tais como: é possível ensinar a ser antirracista? Se o racismo é estrutural e, como ideologia, é um dos pilares do modo de produção capitalista, para que ele desapareça, bastaria ensinar sobre saúde da população negra e racismo nas escolas médicas? Como enfrentar de fato o racismo sob o jugo da educação na sociedade capitalista?

Alguns caminhos incluem a ampliação das políticas de acesso e permanência estudantil, com a garantia de que essa população não morra antes mesmo de chegar à faculdade. É necessário questionar políticas que definem quem pode viver e quem deve morrer, a que Achille Mbembe (2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018.) chama de necropolítica. É preciso permitir, inclusive, que esses jovens cultivem o sonho de um dia acessar o ensino superior por meio da melhoria de suas condições de vida, na infância e na educação básica, e do combate ao racismo institucional que impede que algumas políticas, mesmo quando existentes, cheguem à população negra.

Considerações finais

A crise sanitária global trouxe à tona e intensificou problemas crônicos enfrentados pela população negra, o que permitiu que discussões sobre racismo ganhassem visibilidade, sobretudo no que tange à saúde.

O processo de categorização das expressões do racismo internalizado, interpessoal, institucional, explícito, velado ou ‘sutil’ evidenciou a sobreposição dessas manifestações e seu caráter estrutural, independentemente do nome que se dê.

No âmbito internalizado, há a crença de inferioridade, que ao mesmo tempo é reforçada em nível interpessoal de forma mascarada nos olhares e piadas ou comentários sobre o cabelo. No nível da instituição de ensino médico, nega-se a necessidade e a importância do estudo da saúde da população negra, enquanto a baixa representatividade no corpo docente e discente é pouco questionada e não percebida como expressão do racismo nesse espaço. Nos serviços de saúde, estereótipos associados à população negra ocasionam pior atendimento e até negação de direitos.

Conforme apontou uma das entrevistadas, os olhares, comportamentos e tratamento pior não ocorrem por serem “pessoas de mente fechada”, mas porque “aprenderam a agir de forma racista [...], é preciso perceber essa questão racial, o quanto dentro delas”. Como dito por Almeida (2020ALMEIDA, Silvio L. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2020., p. 47), “as instituições são racistas porque a sociedade é racista”.

Sobre as formas de enfrentamento ao racismo na Medicina, a organização em espaços coletivos de acolhimento, resgate e valorização da cultura negra e iniciativas para incluir a discussão do racismo no currículo, ensino e pesquisa médicos têm se mostrado imprescindíveis. Mas como ir além? O efetivo enfrentamento do racismo na escola médica requer mais que a postura ativa de docentes, discentes e gestores dessas instituições, mas a crítica ao sistema econômico que sistematicamente privilegia pessoas brancas.

Referências

  • Aspectos éticos

    A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa das Faculdades Pequeno Príncipe, conforme parecer n. 3989901, emitido em 24 de abril de 2020.
  • Apresentação prévia

    Esse artigo é resultante da dissertação de mestrado Racismo na graduação de Medicina: Formas de manifestação e enfrentamento na perspectiva discente, de autoria de Vanessa Cristine Ribeiro Fredrich, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Ensino das Ciências da Saúde das Faculdades Pequeno Príncipe, Curitiba, em 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2022
  • Aceito
    04 Abr 2022
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