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A Educação Permanente em Saúde e os atores do sistema prisional no cenário pandêmico

Permanent Education in Health and prison system actors in the pandemic scenario

La Educación Permanente en Salud y los actores del sistema penitenciario en el escenario pandémico

Resumo

A Educação Permanente em Saúde legitimou a educação na saúde com base na aprendizagem significativa, em vivências no cotidiano de trabalho e na solução de problemas de forma coletiva, além de estar pautada no Quadrilátero Ensino-Gestão-Atenção-Controle Social. A pandemia da Covid-19 exigiu novas formas de fazer saúde e educação, principalmente no sistema prisional, onde a superlotação é um impeditivo ao isolamento social. Este estudo teve como objetivo identificar, por meio de rodas de conversa virtuais, os desafios encontrados no cotidiano de trabalho e discutir propostas de intervenção com os atores do sistema prisional no período pandêmico, na perspectiva da Educação Permanente em Saúde. Foi utilizada abordagem qualitativa de investigação com caráter descritivo, interpretativo e compreensivo de análise do fenômeno social, por meio da análise de conteúdo temático de Minayo. Da análise temática de conteúdo emergiram quatro categorias: desafios da assistência em saúde no sistema prisional no contexto da pandemia da Covid-19; desafios para a gestão da saúde nos estabelecimentos prisionais; interlocução entre instituições de ensino e sistema prisional; e o controle social e a representação familiar. As rodas de conversa virtuais propiciaram discussões aprofundadas e construções coletivas, propondo encaminhamentos pautados no Quadrilátero da Educação Permanente em Saúde.

Palavras-chave:
educação em saúde; Covid-19; prisões; pesquisa qualitativa

Abstract

Permanent Education in Health legitimized health education based on meaningful learning, experiences in daily work and collective problem solving, in addition to being based on the four-way approach, based on teaching, management, attention and social control. The COVID-19 pandemic has required new ways of doing health and education, especially in the prison system, where overcrowding is an impediment to social isolation. This study aimed to identify, through virtual conversation circles, the challenges encountered in daily work and discuss proposals for intervention with the actors of the prison system in the pandemic period, from the perspective of Permanent Education in Health. It was used a qualitative research approach with descriptive, interpretative and comprehensive analysis of the social phenomenon, through Minayo’s thematic analysis of content. From the thematic analysis of content, four categories emerged: challenges of health care in the prison system in the context of the COVID-19 pandemic; challenges for health management in prisons; dialogue between educational institutions and the prison system; and social control and family representation. The virtual conversation rounds provided in-depth discussions and collective constructions, proposing referrals based on the four-way approach of Permanent Education in Health.

Keywords:
education in health; Covid-19; prisons; qualitative research

Resumen

La Educación Permanente en Salud legitimó la educación en salud basada en el aprendizaje significativo, en experiencias en el cotidiano de trabajo y en la resolución colectiva de problemas, además de basarse en el Cuadrilátero Enseñanza-Gestión-Atención-Control Social. La pandemia del Covid-19 requirió nuevas formas de hacer salud y educación, especialmente en el sistema penitenciario, donde el amontonamiento es un impedimento para el aislamiento social. Este estudio tuvo como objetivo identificar, a través de círculos de conversación virtuales, los desafíos encontrados en el trabajo diario y discutir propuestas de intervención con los actores del sistema penitenciario en el período pandémico, en la perspectiva de la Educación Permanente en Salud. Se utilizó un enfoque de investigación cualitativo con un análisis descriptivo, interpretativo y comprensivo del análisis del fenómeno social, a través del análisis de contenido temático de Minayo. Del análisis temático de contenido surgieron cuatro categorías: desafíos de la atención en salud en el sistema penitenciario en el contexto de la pandemia de la Covid-19; desafíos para la gestión de la salud en las cárceles; diálogo entre las instituciones educativas y el sistema penitenciario; y el control social y la representación familiar. Los círculos de conversación virtuales proporcionaron discusiones profundas y construcciones colectivas, proponiendo encaminamientos basados en el Quadrilátero de la Educación Permanente en Salud.

Palabras clave:
educación para la salud; Covid-19; prisiones; investigación cualitativa

Introdução

A Educação Permanente em Saúde (EPS) configura-se como Política Pública de Saúde no Brasil que, a partir de 2004, legitimou a educação na saúde com base na aprendizagem significativa, em vivências no cotidiano de trabalho e na solução de problemas de forma coletiva. A EPS está alicerçada no Quadrilátero Ensino-Gestão-Atenção-Controle Social e é uma estratégia de intervenção pertinente à formação e desenvolvimento de trabalhadores nas diversas áreas do campo da saúde, potencializando a transformação de práticas (Ceccim e Feuerwerker, 2004CECCIM, Ricardo B.; FEUERWERKER, Laura C. M. O Quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, 2004. Doi: 10.1590/S0103-73312004000100004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/GtNSGFwY4hzh9G9cGgDjqMp/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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; Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? Brasília: Ministério da Saúde, 2018. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_educacao_permanente_saude_fortalecimento.pdf. Acesso em: 7 jan. 2022.
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; Silva e Scherer, 2020SILVA, Cláudia B. G.; SCHERER, Magda D. A. A implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde na visão de atores que a constroem. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 24, p. e190840, 2020. Doi: 10.1590/Interface.190840. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/wSmkML5zgMkhhS8WmRYsKpm/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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). Pensar a EPS no sistema prisional no cenário pandêmico representou um desafio de grandes proporções.

O sistema prisional brasileiro apresenta problemas estruturais que repercutem de forma direta nas questões de saúde, como superlotação, elevada incidência de doenças infectocontagiosas e ambientes altamente insalubres. Como parte da solução, foi instituída, em 2014, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), que tem como principal estratégia a habilitação de Equipes de Atenção Primária Prisional (eAPP) nas instituições penais. Essas eAPP são responsáveis pela integralidade das ações de saúde em nível primário, incluindo assistência curativa, prevenção de doenças e agravos, promoção da saúde e reabilitação (Brasil, 2022BRASIL. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP). Brasília: Ministério da Saúde , 2022. Disponível em: https://aps.saude.gov.br/ape/pnaisp/pnaisp. Acesso em: 7 jan. 2022.
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). A PNAISP é uma política do Sistema Único de Saúde (SUS) alinhada a outras políticas públicas, como a Política de Educação Permanente em Saúde e as Rodas de Conversa Virtuais (RCV), que se constituem como ação educativa nos cenários de prática (Pinheiro, 2020PINHEIRO, Leandro R. Rodas de conversa e pesquisa: reflexões de uma abordagem etnográfica. Pro-Posições, Campinas, v. 31, p. e20190041, 2020. Doi: 10.1590/1980-6248-2019-0041. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pp/a/jxjfFR8ZtfFkHNJ36CX6mFp/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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).

A PNAISP representa importantes avanços para a saúde da População Privada de Liberdade (PPL), pois além do cuidado integral e da inserção na Rede de Atenção à Saúde (RAS), ela também prevê o cuidado de todas as pessoas custodiadas pelo Estado, incluindo presos provisórios, presos dos regimes aberto e semiaberto e trabalhadores dos estabelecimentos prisionais. Nesse contexto, a EPS tem papel fundamental na gestão, planejamento, execução, monitoramento e avaliação para efetivação da PNAISP nos territórios (Brasil, 2022BRASIL. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP). Brasília: Ministério da Saúde , 2022. Disponível em: https://aps.saude.gov.br/ape/pnaisp/pnaisp. Acesso em: 7 jan. 2022.
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).

O Estado do Rio Grande do Sul (RS) possui mais de 40 mil pessoas privadas de liberdade e 45 eAPP em unidades prisionais de regime fechado, que representam uma cobertura de 54,5% da PPL, correspondendo a 17.384 custodiados de um total de 31.933 pessoas da PPL em regime fechado (Rio Grande do Sul, 2021RIO GRANDE DO SUL (Estado). Coordenação Estadual de Saúde Prisional. Saúde da População Prisional. 2021. Disponível em: https://atencaobasica.saude.rs.gov.br/saude-da-populacao-prisional. Acesso em: 7 jan. 2022.
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). O preconceito contra a PPL também é percebido com as eAPP, que, pelas especificidades que representam em termos de saúde coletiva, raramente são incluídas nas atividades de capacitação dos programas e políticas de saúde ou da RAS, ou são planejadas atividades específicas, como reuniões e treinamentos, no âmbito municipal, regional ou estadual, ficando restritas a atividades pontuais. As condições de trabalho muitas vezes são precárias, principalmente no que se refere à falta de profissionais e à ausência de formações específicas que incluam os profissionais da segurança, que são peças fundamentais para o sucesso das ações em saúde no sistema prisional.

A pandemia da Covid-19 colocou a PPL e os trabalhadores das instituições penais em situação de extrema vulnerabilidade. As condições precárias de vida e insalubridade somaram-se à impossibilidade de adesão ao distanciamento social devido à superlotação. As instituições penais configuram-se como locais ideais para infecção e adoecimento pela Covid-19 (Ely et al., 2020ELY, Karine Z. et al. Recomendações de prevenção e controle da covid-19 nas instituições penais: revisão integrativa. Revista Interdisciplinar de Promoção da Saúde, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 1, p. 43-49, 2020. Doi: 10.17058/rips.v3i1.16269. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/ripsunisc/article/view/16269. Acesso em: 27 dez. 2022.
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).

Para o enfrentamento dessa situação, a Universidade de Santa Cruz do Sul, em parceria com as Secretarias Estaduais da Saúde e da Administração Penitenciária do RS, iniciou em 2018 ações de ensino-aprendizagem visando capacitar, valorizar, empoderar e dar voz aos trabalhadores do sistema prisional, por meio de construções coletivas, em que todos podem aprender e ensinar, pois “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (Freire, 1998FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998., p. 12). Em 2021, foi criado o Programa de Educação Permanente em Saúde - Saúde Prisional (PEPSSP), baseado nos pressupostos de educação emancipatória (Freire, 1998FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.; 2002FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 34. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2002.) e da Educação Permanente em Saúde (Ceccim e Feuerwerker, 2004CECCIM, Ricardo B.; FEUERWERKER, Laura C. M. O Quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, 2004. Doi: 10.1590/S0103-73312004000100004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/GtNSGFwY4hzh9G9cGgDjqMp/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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; Ceccim, 2005CECCIM, Ricardo B. Permanent Education in the Heathcare field: an ambitious and necessary challenge. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 161-177, 2005. Doi: 10.1590/S1414-32832005000100013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/jC4gdtHC8RPL WSW3WG8Nr5k/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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), que ampliou a participação daqueles que vivem a experiência do sistema prisional, incluindo a PPL, por meio de seus representantes no controle social. O PEPSSP inclui lives abertas ao público, disponibilizadas no YouTube, RCV dialógicas pautadas nos desafios do cotidiano de trabalho, competição virtual e congressos.

O objetivo deste estudo é identificar os desafios do cotidiano de trabalho e as propostas de intervenção construídas pelos atores do sistema prisional durante as RCV, no período pandêmico, na perspectiva da EPS.

Método

Este estudo do PEPSSP tem abordagem qualitativa de investigação com caráter descritivo, interpretativo e compreensivo das RCV, que valoriza o papel dos sujeitos na construção social da realidade, reconhecendo a subjetividade inerente à produção do conhecimento e os seus significados (Cook e Reichardt, 2000COOK, Thomas D.; REICHARDT, Charles S. Métodos cualitativos y cuantitativos em investigación evaluativa. 4. ed. Madrid: Ediciones Morata, 2000.).

Os participantes institucionais foram o Departamento de Atenção Primária e Política de Saúde e o Departamento de Vigilância em Saúde da Secretaria Estadual da Saúde, a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) da Secretaria de Justiça, Sistema Penal e Socioeducativo do Rio Grande do Sul e o Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde da Universidade de Santa Cruz do Sul, selecionados por interesse.

Os sujeitos participantes foram aqueles inscritos no PEPSSP por adesão no ano de 2021, incluindo profissionais da saúde, profissionais do sistema prisional, gestores do sistema prisional e da saúde, docentes e discentes de instituições de ensino superior (IES) e os membros do controle social, convidados por e-mail, a participar da RCV da sua macrorregião de saúde. Eles foram identificados conforme as categorias: A (Atenção), para trabalhadores de assistência em saúde e profissionais da segurança; G (Gestão); E (Ensino), para estudantes e docentes; e CS (Controle Social). Após a letra de identificação, foi acrescentado um número cardinal sequencial.

Os encontros foram planejados por construção participativa, com os interessados informando o tempo que disponibilizariam ao PEPSSP (1 hora e 30 minutos), o turno e o dia da semana mais adequados (terças-feiras à noite). As RCV ocorreram de agosto a dezembro de 2021, conforme cronograma estabelecido, em um total de sete, uma por Macrorregião de Saúde do Estado: Vales, Metropolitana, Sul, Centro-Oeste, Missioneira, Norte e Serra (Figura 1).

Figura 1
Macrorregiões do Estado do Rio Grande do Sul.

As RCV foram realizadas por meio do Google Meet, facilitadas por autores deste estudo, iniciando com a apresentação dos participantes e seu vínculo com o sistema prisional, seguida da pergunta norteadora da discussão: “Quais os desafios encontrados no dia a dia de trabalho no sistema prisional?”. Foi esclarecido que os desafios a serem debatidos precisariam ser passíveis de reflexão, discussão e propostas de intervenção. No encerramento, foram retomados os principais assuntos discutidos e propostas de encaminhamentos. Foram utilizadas tecnologias de aproximação virtual, que perpassam o conceito de educação a distância (Faria e David, 2010FARIA, Magda G. A.; DAVID, Helena M. S. L. Enfermagem e educação permanente a distância: o exemplo do projeto Telessaúde Brasil, núcleo Rio de Janeiro. Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 15, n. 4, p. 667-673, 2010. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=483648973011. Acesso em: 12 jul. 2022.
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; Ely et al., 2022ELY, Karine Z. et al. Processo de construção de um programa de educação permanente para as equipes de atenção básica prisional. In: DARSIE, Camilo et al. (org.). Educação e saúde: reflexões e experiências educativas. 1. ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2022. p. 51-58.) como processo de ensino-aprendizagem. Este, por sua vez, representa um processo de emancipação política e de ação transformadora da realidade (Chiarella et al., 2015CHIARELLA, Tatiana et al. A pedagogia de Paulo Freire e o processo de ensino-aprendizagem na educação médica. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 39, n. 3, p. 418-425, 2015. Doi: 10.1590/1981-52712015v39n3e02062014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbem/a/jg9jPgnZRrqBy7WTDdrpFcn/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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). As RCV foram gravadas e transcritas pelos autores, mediante autorização escrita dos participantes, somando 10 horas e 39 minutos de gravação. O chat também foi disponibilizado para uso dos participantes e considerado para análise.

A análise de conteúdo temático do texto transcrito de cada uma das RCV, acompanhado das gravações, foi realizada por dois dos autores com apoio dos demais autores deste estudo. A metodologia analítica foi a preconizada por Minayo (2004MINAYO, Maria C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8. ed. São Paulo; Rio de Janeiro: Hucitec; Abrasco, 2004.). Esse referencial pressupõe um olhar crítico do pesquisador ao texto, de forma sistemática, e se divide em três etapas. A primeira delas compreendeu a pré-análise do material, na qual o pesquisador busca rever criticamente seus pressupostos de pesquisa diante do texto. Em uma leitura flutuante da totalidade do material produzido, buscaram-se os parâmetros de validação qualitativa, que permitem compreender a complexidade e os detalhes das informações obtidas. Isso ocorre por meio da homogeneidade e da representatividade, elencadas diante da pertinência da bibliografia escolhida frente ao fenômeno em estudo.

A segunda etapa compreendeu o processo exploratório, no qual os pesquisadores buscaram compreender a unidade de significação do texto. Empregou-se a caracterização cromática, na qual o texto é grifado em cores, de forma que as palavras, frases ou resumos possam evidenciar núcleos de significado e emergir as categorias para o tratamento dos dados (Costa et al., 2018COSTA, Maria A. R., et al. Itinerário de pesquisa Paulo Freire: contribuição no campo de investigação em enfermagem. Revista de Enfermagem UFPE, Recife, v. 12, n. 2, p. 546-553, 2018. Doi: 10.5205/1981-8963-v12i2a109935p546-553-2018. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/109935. Acesso em: 27 dez. 2022.
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).

A terceira etapa compreendeu o tratamento dos dados e posterior discussão dos resultados utilizando como referencial teórico ‘o Quadrilátero da EPS’ (Ceccim e Feuerwerker, 2004CECCIM, Ricardo B.; FEUERWERKER, Laura C. M. O Quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, 2004. Doi: 10.1590/S0103-73312004000100004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/GtNSGFwY4hzh9G9cGgDjqMp/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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), cujas categorias descritas na literatura são Ensino, Gestão, Atenção e Controle Social e compreendem a visão argumentativa das vivências profissionais e os documentos norteadores de suas práticas. Nessa técnica, os temas que emergiram foram agrupados nas categorias previamente estabelecidas de acordo com o Quadrilátero da EPS, na problematização, na horizontalidade e na interação entre os participantes, observando, ainda, as convergências e divergências dos diversos atores e recomendações para o enfrentamento das dificuldades apontadas.

A pesquisa atendeu às exigências da resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, com aprovação nos Comitês de Ética da Universidade de Santa Cruz do Sul (parecer n. 4.251.658) e da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (parecer n. 4.498.390). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, encaminhado de forma virtual por meio de um Google Forms, no qual o participante declarava a intenção em participar da pesquisa. Este artigo foi desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde da Universidade de Santa Cruz do Sul.

Resultados e discussão

Um total de 109 pessoas participaram das RCV, variando de 9 a 29 pessoas de acordo com a Macrorregião (Tabela 1). A Macrorregião Metropolitana apresentou maior número de participantes pois é a mais populosa, possui maior número de PPL, estabelecimentos prisionais de maior porte e maior número de eAPP implantadas. A Macrorregião Norte, com menor participação, possui menos eAPP no território e unidades prisionais de pequeno porte, com menos de 100 presos. O processo de implantação da PNAISP é recente; foi iniciado na região metropolitana e posteriormente expandiu-se para o interior do estado (Rio Grande do Sul, 2021RIO GRANDE DO SUL (Estado). Coordenação Estadual de Saúde Prisional. Saúde da População Prisional. 2021. Disponível em: https://atencaobasica.saude.rs.gov.br/saude-da-populacao-prisional. Acesso em: 7 jan. 2022.
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).

Tabela 1
Caracterização do grupo representado pelos participantes da pesquisa, segundo Macrorregião de Saúde. Rio Grande do Sul, 2021.

Quanto aos grupos representados, o Atenção (A) foi formado por 20 técnicos superiores penitenciários (TSP), 18 agentes penitenciários e 11 profissionais da saúde de nível superior que trabalham nas eAPP. No grupo Gestão (G), foram representadas a SES/RS, a SUSEPE, oito Coordenadorias Regionais de Saúde (CRS) e sete Delegacias Penitenciárias Regionais (DPR). No grupo Ensino (E), foram identificadas quatro IES e a Escola do Serviço Penitenciário, e representando o Controle Social (CS), um movimento social formado por familiares de pessoas privadas de liberdade.

Considerando as diferenças contextuais e debates relevantes, emergiram temas diversificados em cada RCV. Nas Macrorregiões Vales, Sul e Norte, houve a predominância de temas relacionados à Atenção; na Macrorregião Metropolitana, temas relacionados ao Controle Social; e nas Macrorregiões Centro-Oeste, Missioneira e Serra, temas relacionados à Gestão. Os problemas e potencialidades dos territórios foram compartilhados, possibilitando trocas de experiências, propostas de intervenção e encaminhamentos.

Da análise temática de conteúdo, emergiram temas agrupados nas quatro categorias pautadas no Quadrilátero da EPS. Essas categorias serão apresentadas e discutidas a seguir.

Desafios da assistência em saúde no sistema prisional no contexto da pandemia da Covid-19

A PPL é uma população vulnerável, com demandas complexas e específicas. A cobertura das eAPP do RS demonstra que uma parcela dessa população pode ter dificuldades de acesso ao cuidado integral. As unidades prisionais se estruturam de diferentes formas para prestar o cuidado, considerando a presença de eAPP, o porte e o número de presos. O discurso dos profissionais e gestores demonstra preocupação com o atendimento ofertado.

O nosso maior desafio é propor saúde integral [...]. Tentar que tenham acesso a um serviço que nunca tiveram. Proporcionar inclusão é uma grande responsabilidade dos profissionais da saúde. (A34)

Não entendo como é dado o atendimento [referindo-se às instituições sem eAPP]. Como são identificadas as necessidades? É feita ‘Porta de Entrada’? Como fica o acolhimento? [...] Se a pessoa presa não tiver nenhum problema de saúde e não pedir atendimento, não vai ser atendida nunca. (G27)

[...] é feita uma triagem dentro do presídio pelo enfermeiro experiente, e o preso é conduzido para atendimento médico, escolta agendada para UBS [Unidades Básicas de Saúde] ou PA [Pronto Atendimento]. Uma vez ia um médico uma vez por semana. Agora temos um enfermeiro da SUSEPE com experiência, 40 horas semanais. Ele filtra os atendimentos e chega para o médico somente o que é necessário, diminuindo a necessidade de remoção. (A30).

Os desafios supracitados tangem à preocupação do acesso do usuário às políticas de cuidado, incluindo promoção, prevenção e percepção do cuidar integral, pois a atenção em saúde não se resume ao plano curativista e de urgência. Nas instituições penais sem eAPP, o núcleo da saúde preocupa-se com o acesso, enquanto o núcleo da segurança entende que o acesso ao atendimento médico deve se dar nos casos em que o enfermeiro ‘experiente’ não consegue resolver a queixa. Considerando que a EPS está constituída em uma lógica descentralizadora, ascendente e transdisciplinar (Ceccim e Feuerwerker, 2004CECCIM, Ricardo B.; FEUERWERKER, Laura C. M. O Quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, 2004. Doi: 10.1590/S0103-73312004000100004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/GtNSGFwY4hzh9G9cGgDjqMp/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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), esse debate, de certa forma antagônico, mostra-se relevante, pois o campo da saúde passa a entender as dificuldades e fragilidades do campo da segurança, acontecendo o inverso também. Em outras ocasiões, foram identificadas falas antagônicas entre trabalhadores da saúde e da segurança, porém, com o desenvolvimento do PEPSSP, essas dificuldades foram minimizadas.

Para a efetivação do SUS à PPL, torna-se indispensável repensar os serviços de saúde na forma em que estão constituídos, alguns ainda orientados pelo modelo hegemônico fragmentado e curativista. Para que seja ofertado um cuidado integral, é necessário romper com a lógica do sofrimento manifesto e da queixa-conduta. Precisa-se repensar as práticas em saúde com base na realidade ampliada, considerando as singularidades individuais (Bonfada et al., 2012BONFADA, Diego et al. A integralidade da atenção à saúde como eixo da organização tecnológica dos serviços. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 555-560, 2012. Doi: 10.1590/S1413-81232012000200028. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/8VxDmKwcrjyknyc5hVj5FNt/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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). Esse debate precisa incluir o setor da segurança, pois sem a colaboração e a união de esforços, o cuidado integral fica prejudicado.

Populações institucionalizadas, sem mobilidade e que não podem aderir à estratégia de distanciamento social, com contatos inevitáveis e permanentes, são especialmente vulneráveis a infecções como Covid-19. Nesses locais, medidas adicionais de prevenção e controle foram necessárias (Wang et al., 2020WANG, Jiao et al. Prevention and control of COVID-19 in nursing homes, orphanages, and prisons. Environmental Pollution, v. 266, n. 1, p. e115161, 2020. Doi: 10.1016/j.envpol.2020.115161. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S02697 49120327627?via%3Dihub. Acesso em: 27 dez. 2022.
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). Os atores do sistema prisional demonstraram preocupação e discutiram a implementação dos Planos de Contingência para organização dos atendimentos diante dos diversos cenários apresentados, considerando a presença de casos confirmados, surtos ou mortes pela doença.

O Plano de Contingência foi um trabalho conjunto, uma reunião do setor técnico, equipe de saúde e administração penitenciária. (G13)

O maior desafio foi a pandemia [...]. Estamos em diálogo permanente com a SUSEPE, com a gestão, a justiça, vigilância epidemiológica, para repensar estratégias. Não tivemos nenhum caso, somente após a liberação das visitas, surtos, óbitos e afastamento de trabalhadores. (A2)

O pessoal da saúde trabalhou muito bem. [...] Pensávamos que esse vírus seria uma verdadeira chacina nas casas prisionais. (G27)

Durante o desenvolvimento das RCV, houve avanço da infecção para dentro das instituições penais, ocasionando surtos. Houve necessidade de ampliação das testagens, busca ativa e isolamento dos casos confirmados (Gouvea-Reis et al., 2021GOUVEA-REIS, Fernando A. et al. COVID-19 Outbreak in a Large Penitentiary Complex, April-June 2020, Brazil. Emerging Infectious Diseases, v. 27, n. 3, p. 924-927, 2021. Doi: 10.3201%2Feid2703.204079. Disponível em: https://wwwnc.cdc.gov/eid/article/27/3/20-4079_article. Acesso em: 27 dez. 2022.
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). Essas medidas acompanhavam estratégias internacionais de controle da doença no sistema prisional (Marco et al., 2021MARCO, Andrés et al. Public health response to an outbreak of SARS-CoV2 infection in a Barcelona prison. Epidemiology and Infection, v. 149, p. e91, 2021. Doi: 10.1101/2020.11.08.20227744. Disponível em: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.11.08.20227744v1. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.medrxiv.org/content/10.1101/...
). O Estado brasileiro, entretanto, não preparou os trabalhadores da linha de frente para o enfrentamento da pandemia, conforme recomendado pela Organização Mundial da Saúde, o que poderia ter sido realizado por meio da EPS (Sarreta et al., 2022SARRETA, Fernanda O. et al. Educação Permanente de trabalhadores da saúde em tempos de pandemia. Cadernos ESP, Fortaleza, v. 16, n. 3, p. 24-32, 2022. Doi: 10.54620/cadesp.v16i3.855. Disponível em: https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php/cadernos/article/view/855. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php...
), considerando que a formação de profissionais da saúde tem um contexto histórico pautado na pedagogia hegemônica de matriz flexneriana (Leite, Pinto e Fagundes, 2020LEITE, Catharina M.; PINTO, Isabela C. M.; FAGUNDES, Terezinha L. Q. Educação Permanente em Saúde: Reprodução ou Contra-Hegemonia? Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, Supl. 1, p. e0025082, 2020. Doi: 10.1590/1981-7746-sol00250. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/4BZcBgr5mXVpkqQygzM9hrG/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.scielo.br/j/tes/a/4BZcBgr5mX...
).

A formação dos profissionais da saúde implica diretamente na forma como os processos de trabalho são conduzidos. Considerando os Planos de Contingência, alguns deles foram resultado de um trabalho de planejamento estratégico conjunto e intersetorial; em outros, evidenciam-se problemas básicos, como a pactuação de exames, a realização dos testes rápidos e os protocolos de isolamento, e questões mais complexas, como o cuidado em saúde com os ingressantes que vinham da rua e transferidos de outras instituições.

O presídio é pequeno, temos uma galeria. O preso vem da rua, fica cinco dias, daí entra outro, e mais outro. Quando o que veio primeiro completa 14 dias, é testado e vai para a galeria, mas ele teve contato com os outros que vieram da rua. (A 35)

Quando começamos a isolar, os presos começaram a se esconder porque não queriam ficar isolados. Muitas vezes, os agentes penitenciários traziam os sintomáticos, e os exames demoravam para chegar. (A34)

Isolamento é ruim em casa... Imagina na prisão. (G5)

Considerar os diversos saberes contribui para a construção compartilhada do conhecimento em saúde (Neves et al., 2021NEVES, Vanusa N. S. et al. Utilização de lives como ferramenta de educação em saúde durante a pandemia pela COVID-19. Educação & Sociedade, Campinas, v. 42, p. e240176, 2021. Doi: 10.1590/ES.240176. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/yVCyYWbQPrZNYdB9sYtWwHt/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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), o que se tornou imprescindível no auge da pandemia, pois a negligência de instâncias superiores do Poder Público conduziu profissionais comprometidos com a saúde coletiva a criar estratégias locais e regionais de mitigação do vírus. O início da vacinação contra o coronavírus tranquilizou os profissionais da saúde e do sistema prisional, os gestores, os próprios presos e os familiares. No Brasil, a PPL esteve entre os grupos prioritários para a aplicação da vacina.

Estive afastada por ser grupo de risco. Os colegas e apenados estão vacinados. Retorno com segurança. (A9)

Os presos aceitam e desejam a vacina para garantir as visitas. Temos 100% dos presos vacinados. (A27)

Eu tenho problemas com as vacinas daqueles que são transferidos, doses e marcas diferentes, não têm carteirinha. (A36)

Os participantes das RCV reconheceram a agilidade no processo de vacinação e a aceitação dos presos para garantir a retomada das visitas. Porém, identificaram problemas relacionados aos registros e dificuldades em obter informações. Essa situação é comum no sistema prisional, pois muitas eAPP não dispõem do prontuário eletrônico usado no município.

Além dos problemas e mortes causadas pela pandemia, alguns profissionais de saúde entenderam esse momento como uma oportunidade para qualificar os processos de trabalho. Os servidores da SUSEPE e os gestores de ambos os setores estão satisfeitos com as ‘mudanças forçadas’ dentro do sistema prisional.

A pandemia melhorou a questão da higiene, com insumos e produtos de limpeza que antes não estavam disponíveis. (G24)

Conseguimos ampliar a rede e utilizar o momento de testagem de Covid-19 para testar HIV, sífilis, hepatite B, hepatite C e também perguntar sobre os sintomas de tuberculose. Os casos de doenças infecciosas aumentaram porque aumentou também as testagens. Antes a gente não conseguia testar. (A2)

A [sic] Covid tornou obrigatória a questão da triagem na Porta de Entrada. É muito importante para iniciar logo os tratamentos. (A27)

Os profissionais aproveitaram o momento de dificuldade para compartilhar saberes e propor soluções conjuntas para os problemas. Houve uma construção coletiva de novas práticas em saúde considerando os desafios do momento pandêmico e da integralidade, o que possibilitou a inclusão de atores sociais no projeto terapêutico. A EPS propõe transformação nos serviços, que não envolve somente as questões técnicas. As mudanças mais significativas ocorrem nas relações, nos processos e nas pessoas, de forma que a discussão ampliada entre os trabalhadores, as suas esferas de gestão, as instituições formadoras e a representação dos usuários expande a percepção e a postura diante das dificuldades (Ceccim, 2005CECCIM, Ricardo B. Permanent Education in the Heathcare field: an ambitious and necessary challenge. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 161-177, 2005. Doi: 10.1590/S1414-32832005000100013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/jC4gdtHC8RPL WSW3WG8Nr5k/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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).

A pandemia contribuiu significativamente para mudanças de paradigmas de forma definitiva, pois todos foram afetados e tiveram as suas práticas transformadas. A aproximação virtual dos diversos atores propiciou encontros e trocas que antes seriam improváveis. Identificou-se que as preocupações eram semelhantes, e foi possível entender algumas práticas que pareciam hostis.

Desafio para a gestão da saúde nos estabelecimentos prisionais

O principal desafio citado pelos participantes, referente à gestão da saúde nas unidades prisionais, está relacionado à inexistência de eAPP, o que acarreta escoltas desnecessárias e riscos à segurança. Além disso, o baixo efetivo de pessoal e as estruturas físicas inadequadas constituem problemas de difícil solução. No entanto, as instituições penais de menor porte têm sua gestão facilitada pelo menor quantitativo de PPL.

A gestão é bem facilitada nos presídios menores, não tem isso que eu sou contra, esse empilhamento de pessoas. Presídio grande é mais difícil de controlar, e onde não tem equipe de saúde, tem convênio com as secretarias municipais de saúde. (G13)

Nesta região são poucas as equipes habilitadas, gestores municipais apresentam inúmeras desculpas para não aderir: falta de pessoal, não tem como destinar uma equipe exclusiva, eles têm receio de não vir o recurso e alegam que a assistência é ofertada nos serviços do município. (G26)

Existe uma parceria da SMS, vão no presídio e entendem a necessidade, mas apresentam receio da formalização. (A42)

A PNAISP, apesar de representar grande avanço em termos de políticas públicas para a PPL, não levou em consideração particularidades estruturais do sistema penitenciário. A constituição de Equipes de Atenção Básica Prisional (EABp), de 2014, apresentava-se rígida, de forma que impedia a adesão de alguns municípios por não cumprirem os pré-requisitos. Em 2021, as normas foram flexibilizadas, e espera-se maior adesão dos municípios à PNAISP nos próximos anos (Brasil, 2021BRASIL. Portaria GM/MS n. 2.298, de 9 de setembro de 2021. Dispõe sobre as normas para a operacionalização da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, seção 1, Brasília, DF, p. 106, 10 set. 2021.).

A gestão em saúde vai além dos aspectos gerenciais, de forma que a inserção da EPS como prática de discussão na gestão possibilita utilizar a criatividade na resolução de problemas e na estruturação dos serviços que possam atender às necessidades da população adstrita, pautada no próprio processo de trabalho. Esse processo é o objeto de transformação da EPS, partindo da reflexão crítica do cotidiano para a solução conjunta dos problemas encontrados (Ferreira et al., 2019FERREIRA, Lorena et al. Educação Permanente em Saúde na atenção primária: uma revisão integrativa da literatura. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 120, p. 223-249, 2019. Doi: 10.1590/0103-1104201912017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/3wP8JDq48kSXrFMZqGt8rNQ/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/3wP8JDq48...
). A EPS transforma o trabalho, pois o profissional de saúde assume uma condição de ‘educador em potencial’, modificando sua prática, reflexão ou ação na organização do processo de trabalho e na gestão (Rojas et al., 2019ROJAS, Fagner L. L. et al. Educação permanente em saúde: o repensar sobre a construção das práticas de saúde. Journal Health NPEPS, v. 4, n. 2, p. 310-330, 2019. Doi: 10.30681/252610103730. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/jhnpeps/article/view/3730. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://periodicos.unemat.br/index.php/j...
). Assim, rompe-se a lógica de que os problemas devem ser resolvidos administrativamente, pois todos os atores se envolvem com a problemática e se comprometem com a busca de soluções. Articulações interinstitucionais podem constituir espaços de planejamento, gestão e mediação (Ceccim e Feuerwerker, 2004CECCIM, Ricardo B.; FEUERWERKER, Laura C. M. O Quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, 2004. Doi: 10.1590/S0103-73312004000100004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/GtNSGFwY4hzh9G9cGgDjqMp/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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).

A estrutura física é precária, não há possibilidade de área física para UBS prisional. (A28)

Não teria condições de unidade de saúde porque não tem o número de profissionais, a flexibilização das portarias abre espaço para negociação [...]. Mesmo assim, para os municípios é difícil dispor da unidade específica. (G20)

O déficit funcional é histórico; para atendimento precisa [de] viatura, servidores, horas extras, combustível, escolta para atendimento externo. É sempre um estresse, exige gestão de pessoas, deve ser feito com segurança. Já avançamos muito, pois tínhamos a dificuldade dos colegas, gestores e administradores de entender a importância e obrigatoriedade deste atendimento. (G27)

A adesão à PNAISP e implantação das eAPP é de responsabilidade do gestor municipal (Brasil, 2022BRASIL. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP). Brasília: Ministério da Saúde , 2022. Disponível em: https://aps.saude.gov.br/ape/pnaisp/pnaisp. Acesso em: 7 jan. 2022.
https://aps.saude.gov.br/ape/pnaisp/pnai...
). A equipe que tem conhecimento e empodera-se pode buscar com a gestão não somente a adesão, como também melhores condições de trabalho. A EPS possibilita a construção de processos de autoanálise, nos quais diferentes atores, colocados em roda, podem assumir papéis proativos na condução dos sistemas locais de saúde (Ceccim, 2005CECCIM, Ricardo B. Permanent Education in the Heathcare field: an ambitious and necessary challenge. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 161-177, 2005. Doi: 10.1590/S1414-32832005000100013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/jC4gdtHC8RPL WSW3WG8Nr5k/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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).

O quadro é competente e existem pessoas qualificadas, estrutura e condições de trabalho é [sic] uma briga complicada. Não se faz saúde sem dinheiro. (G13)

Não é fácil fazer o gestor entender que precisa colocar o dinheiro em algo que não dá retorno pra ele ou para [a] sociedade. O preso não vota. (A42)

Não temos linha de fomento. Você tem que chorando pitanga pra juiz para você conseguir melhorar uma sala, um computador. (G19)

As falas relacionadas às dificuldades orçamentárias são mais expressivas nas instituições penais sem eAPP e quando a equipe desconhece a política de financiamento. As eAPP recebem incentivo de custeio dos governos federal e estadual, que variam de acordo com o tipo de eAPP, o número de presos atendidos e a carga horária semanal dos profissionais. Quando a equipe se apropria dessas informações, tem argumentos para solicitar melhorias estruturais, equipamentos e insumos, pois apesar de garantida por lei e constituir-se uma das premissas do SUS, a gestão participativa ainda é uma tarefa a ser construída (Warmling, Marques e Rosa, 2019WARMLING, Cristiane M.; MARQUES, Luciana; ROSA, Roger S. O trabalho e a educação nas redes de saúde: contribuições coletivas. Curitiba: Prismas, 2019.). A EPS produz conhecimento, autonomia (Freire, 1998FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.) e, consequentemente, o empoderamento para que os trabalhadores possam discutir com a gestão o financiamento das ações e a forma de aplicação dos recursos.

Celas específicas para população de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis, queer, intersexuais, assexuais e mais outras formas de expressão da sexualidade (LGBTQIA+) também representam preocupação, principalmente entre os gestores e trabalhadores da saúde.

O seguro é uma cela isolada para travestis, pedófilos [...]. (A27)

O seguro não é seguro para população LGBT [...]. A estrutura dos presídios pequenos não permite separar a população LGBT [...]. É difícil garantir segurança para esta população. (G16)

[...] tem cela específica para população LGBT e tem casos de recusas, eles não querem permanecer nestas celas, preferem ficar na galeria. (A23)

Os presídios menores não têm celas específicas, e os presos aceitam permanecer nas galerias para não serem transferidos. A população LGBTQIA+ não é homogênea e tem suas especificidades. Pessoas que se identificam como LGBTQIA+ são encarceradas em uma taxa três vezes maior que a população adulta total, são condenadas a penas mais longas, estão sobrerrepresentadas em todo o sistema de justiça criminal e sujeitas a condições especialmente prejudiciais atrás das grades. A discriminação e o estigma levam à criminalização (Jones, 2021JONES, Alexi. Visualizing the unequal treatment of LGBTQ people in the criminal justice system. Prison Policy Initiative, Northampton, mar. 2021. Disponível em: https://www.prisonpolicy.org/blog/2021/03/02/lgbtq/. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.prisonpolicy.org/blog/2021/0...
).

Nos depoimentos categorizados no tema Gestão (G), evidencia-se a necessidade de garantir financiamento e acesso a toda a PPL, considerando grupos minoritários dentro do próprio sistema penal, como a população LGBTQIA+. A gestão em saúde no sistema prisional deve ser pensada em nível de instituição, pois cada unidade prisional apresenta as suas particularidades e complexidades. É preciso considerar os diversos atores envolvidos para o planejamento conjunto de estratégias de ação que permitam o cuidar, sem que isso repercuta em fragilidades para o campo da segurança.

Interlocução entre IES e sistema prisional

Tão importante quanto esse PEPSSP proposto por uma IES é a inserção das IES no cotidiano de trabalho das eAPP por meio de projetos de extensão, pesquisa acadêmica ou formação em serviço. O trabalho em saúde tem necessidade de egressos que conheçam práticas diversificadas de saúde e com múltiplas possibilidades de atuação. A interlocução entre as IES e o sistema prisional pode potencializar estratégias de cuidado, de ensino e de produção de conhecimentos nos espaços locais, pautando a formação dos trabalhadores nas necessidades sociais em saúde, na integralidade do atendimento e na rede formada a partir dessas relações. Além disso, capacitar as equipes de saúde facilita a gestão, a promoção da saúde e a prevenção de doenças entre as pessoas privadas de liberdade (Valentim et al., 2022VALENTIM, Janaína L. R. S. et al. The relevancy of massive health education in the Brazilian prison system: The course “health care for people deprived of freedom” and its impacts. Frontiers in Public Health, v. 10, p. 935389, 2022. Doi: 10.3389/fpubh.2022.935389. Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpubh.2022.935389/full. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.frontiersin.org/articles/10....
).

Assim, cabe diferenciar educação continuada e EPS: enquanto a primeira se constitui como fator influenciador do aprimoramento profissional, envolve atividades de ensino, ocorre após a graduação, possui duração definida e metodologia tradicional de ensino-aprendizagem, a segunda está alicerçada na inclusão de conhecimentos, de valores e de um compromisso com aspectos políticos, éticos e sociais, propondo-se à análise das necessidades do processo de trabalho (Ceccim, 2005CECCIM, Ricardo B. Permanent Education in the Heathcare field: an ambitious and necessary challenge. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 161-177, 2005. Doi: 10.1590/S1414-32832005000100013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/jC4gdtHC8RPL WSW3WG8Nr5k/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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; Peixoto et al., 2013PEIXOTO, Leticia S. et al. Educación permanente, continua y em servicio: desvelando sus conceptos. Enfermería Global, Murcia, v. 12, n. 29, p. 324-340, jan. 2013. Disponível em: https://scielo.isciii.es/scielo.php?pid=S1695-61412013000100017&script=sci_arttext&tlng=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://scielo.isciii.es/scielo.php?pid=...
; Ferreira et al., 2019FERREIRA, Lorena et al. Educação Permanente em Saúde na atenção primária: uma revisão integrativa da literatura. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 120, p. 223-249, 2019. Doi: 10.1590/0103-1104201912017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/3wP8JDq48kSXrFMZqGt8rNQ/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/3wP8JDq48...
).

Experimentar o processo de EPS por meio virtual, empregando tecnologias de aproximação, é a inovação desta pesquisa. Uma revisão integrativa buscou verificar estratégias para a efetivação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) na Atenção Primária em Saúde e identificou o uso da internet, a educação a distância e o programa Telessaúde para o alcance desse objetivo (Ferreira et al., 2019FERREIRA, Lorena et al. Educação Permanente em Saúde na atenção primária: uma revisão integrativa da literatura. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 120, p. 223-249, 2019. Doi: 10.1590/0103-1104201912017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/3wP8JDq48kSXrFMZqGt8rNQ/?lang=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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). Os participantes comentaram sobre as RCV e avaliaram positivamente a intervenção. Foram falas que surgiram espontaneamente, sem que fosse considerado um momento avaliativo.

As Rodas de Conversa são importantes para que possamos refletir sobre questões em que precisamos avançar. Serve como dispositivo para pensarmos o que fazer e dar encaminhamentos. (E19)

É uma grande oportunidade para se conhecer e entender o papel de cada um na rede. Promover união e aproximação das equipes. Oportunidade bem importante de conhecer vários aspectos desta política. (A21)

Valorização da intersetorialidade saúde e segurança [...], cada um faz a sua parte, constrói junto [...], respeito entre os profissionais, vínculo para trabalhar em harmonia. (A12)

As ponderações denotam entendimento, reflexão e ação, ressignificando o processo da EPS no sistema prisional e a importância desses momentos para os participantes e atores envolvidos. A diversidade de atores e discussões em roda ampliou a análise crítica do trabalho, que Merhy (1997MERHY, Emerson E. O SUS e um dos seus dilemas: mudar a gestão e a lógica do processo de trabalho em saúde (um ensaio sobre a micropolítica do trabalho vivo). In: FLEURY, Sonia (org.). Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial, 1997. p. 125-141. ) conceituou como trabalho vivo em ato, no qual é possível a transformação de práticas de trabalho nos serviços de saúde. Nessa perspectiva, o trabalho, como prática social, considera as relações estabelecidas no ato produtivo com os produtos que realiza, nas relações estabelecidas com outros trabalhadores e usuários de seus produtos (Merhy e Franco, 2003MERHY, Emerson E.; FRANCO, Túlio B. Por uma composição técnica do trabalho em saúde centrado no campo relacional e nas tecnologias leves. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 316-323, 2003. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/lil-394033. Acesso em: 27 dez. 2022.
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).

As RCV foram uma oportunidade ímpar de os participantes (re)conhecerem colegas e estabelecerem novas parcerias. O chat foi bastante utilizado para troca de e-mails e telefones. Identificou-se a necessidade de oportunizar novos espaços de debates e trocas de experiências, nos quais a interlocução entre as IES e o sistema prisional serão fundamentais. Entender que esse processo foi possível por meio da proposição de uma IES demonstra a importância do quadrilátero da formação em saúde para a efetivação da EPS.

O Controle Social e a representação familiar

A inclusão da PPL nas RCV deu-se pela representação familiar. A Frente dos Coletivos Carcerários (FCC) é um movimento social composto por 46 comissões distribuídas pelo Estado e organizadas pelos familiares de presos, egressos e outros militantes das causas prisionais e seus coletivos. O grupo é liderado por mulheres que articulam com o sistema prisional as garantias das PPL e de seus familiares. A busca do direito à saúde é a principal característica do controle social na EPS (Ceccim e Feuerwerker, 2004CECCIM, Ricardo B.; FEUERWERKER, Laura C. M. O Quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, 2004. Doi: 10.1590/S0103-73312004000100004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/GtNSGFwY4hzh9G9cGgDjqMp/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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).

Quando o movimento social se identificou, houve discussões no chat por acontecimentos e questões pontuais. Um delegado penitenciário retirou-se da RCV, pois não aceitou a presença da FCC. Para os demais participantes, esse foi um momento para esclarecer situações de embate e fortalecer a luta por melhores condições para todos que convivem no sistema prisional.

As novas medidas de isolamento dos ingressantes e da PPL que apresentam sintomas respiratórios estava desagradando os familiares. Além da restrição de visitas, a FCC questionava esse isolamento, pois, no contexto prisional, o isolamento é visto como castigo. O debate permitiu o entendimento das necessidades que o momento exigia, e pode-se pensar na FCC como apoiadora de estratégias de cuidado direcionadas à PPL.

Nossa missão é o enfrentamento do encarceramento desumano e degradante e o combate à violência produzida no cárcere. Queremos fortalecer o diálogo com os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. (CS3)

Ter a oportunidade de estar no mesmo espaço que vocês para nós é muito importante, pois a gente traz uma realidade que muitas vezes não chega ao conhecimento de todos. Então, a nossa ideia é estar fortalecendo e aproximando esse diálogo. (CS4)

Sabemos o que acontece lá dentro, temos vivências fortes do dia a dia, temos propriedade. Sabemos que pode ser bom, mas, ao mesmo tempo, em alguns lugares é muito precário. (CS2)

Lutar pela saúde prisional é lutar contra o desmonte do SUS. Infelizmente nos últimos anos a gente tem visto muito desmonte do SUS. [...] Precisamos nos fazer presentes nos Conselhos de Saúde. Nossa luta é única e passa por discutir a efetivação do SUS. (A14)

O controle social, no SUS, legitima a sociedade a participar dos debates e decisões referentes à formulação, execução e avaliação das Políticas Públicas de Saúde. O trabalho em saúde requer escuta qualificada, na qual a interação entre profissional e usuário pode ser determinante na qualidade da resposta assistencial (Ceccim e Feuerwerker, 2004CECCIM, Ricardo B.; FEUERWERKER, Laura C. M. O Quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, 2004. Doi: 10.1590/S0103-73312004000100004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/GtNSGFwY4hzh9G9cGgDjqMp/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 27 dez. 2022.
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).

Dessa forma, entendeu-se que os diversos grupos tinham os mesmos objetivos de cuidado e preservação da vida. Ademais, o grupo de familiares foi orientado quanto à importância de participação nos Conselhos da Comunidade e nos Conselhos Municipais de Saúde, e abriu-se uma nova oportunidade de interlocução com atores sociais, até então excluídos do processo.

Encaminhamentos sobre as rodas de conversa virtuais e considerações finais

A participação efetiva nas RCV propiciou reflexões e construções coletivas. As discussões aprofundadas, complexas e significativas foram possíveis pela união de atores, olhares e cenários diversificados. Somente com a participação ampliada e diversidade dos atores sociais foi possível a efetivação da EPS; caso contrário, seria um programa de educação continuada, como tantos outros disponíveis nas plataformas digitais. A avaliação das atividades aponta para a satisfação dos participantes, e a alta adesão às atividades virtuais e presenciais posteriores representam o impacto gerado pelo programa.

Em termos de Atenção (A), as principais recomendações são: manter a rotina da Porta de Entrada, conciliando os testes rápidos de HIV, sífilis, hepatites virais e triagem para tuberculose com a rotina de testagem para coronavírus; buscar acesso aos sistemas oficiais de informação com registro adequado em prontuários; melhorar os espaços de isolamento a fim de proporcionar acolhimento, construção de protocolos e materiais informativos que possam auxiliar as equipes no diagnóstico de doenças infecciosas e em condutas a partir dos resultados; e adicionar informações como identidade de gênero ao prontuário.

Na Gestão (G), o principal encaminhamento refere-se à sensibilização dos gestores para a adesão à PNAISP e implantação de eAPP nas instituições penais. As IES (E) podem ser parceiras para projetos e convênios com as instituições prisionais, possibilitando, assim, a ampliação das ações interinstitucionais que envolvam estágio, pesquisa e extensão universitária. Em relação ao Controle Social (CS), recomenda-se a participação nas instâncias oficiais, como os Conselhos da Comunidade e os Conselhos Municipais de Saúde, assim como o encaminhamento de situações particulares via ouvidoria do SUS.

Discutir saúde de forma ampliada é desafiador; discutir saúde por meio da EPS em um contexto complexo como o sistema prisional, de forma virtual, envolvendo todo o Estado do Rio Grande do Sul e durante o curso de uma pandemia, é uma experiência inovadora. A inovação está no tema, no cenário, nos atores participantes do processo, na abrangência e no planejamento estratégico desenvolvido especialmente para o PEPSSP. A inexistência de orçamento exigiu maior dedicação da equipe organizadora e esforços de articulação de parcerias institucionais entre saúde e sistema prisional, em uma perspectiva dialógica e compartilhada. A organização intersetorial e interdisciplinar possibilitou reflexões sobre as práticas e avanços no conhecimento e na direção da qualificação da atenção à saúde no sistema prisional. As limitações encontradas no estudo referem-se principalmente à baixa representatividade do controle social. Alinhar e juntar os pontos da rede, incluindo o Ministério Público, a Vara de Execuções Penais e outros atores, como os Conselhos da Comunidade e os Conselhos Municipais de Saúde, ampliaria ainda mais a discussão e as possibilidades de intervenção.

A EPS dispõe-se a promover reflexões sobre os fenômenos e seu contexto, problematizando as práticas educativas de saúde a fim de torná-las significativas. O PEPSSP promoveu mudanças na saúde prisional do Estado, tornando-se um dispositivo relevante para apontar caminhos e promover mudanças no SUS. Foi uma excelente oportunidade de reunir profissionais da saúde e do serviço penitenciário, diretores das unidades prisionais, delegados penitenciários regionais, gestores da saúde prisional, estudantes, docentes e movimentos sociais para discutir os desafios, compartilhar avanços e propor novas formas de fazer saúde no sistema prisional. O PEPSSP teve continuidade por meio de atividades virtuais e presenciais.

Referências

  • Financiamento

    Realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), código de financiamento n. 001, e do Programa de Pesquisa para o SUS (PPSUS), código de financiamento n. 21/2551-0000095-3.
  • Aspectos éticos

    Aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), CAEE 36932820.2.0000.5343, número do parecer 4.251.658, em 1º de setembro de 2020, e no Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/RS), CAEE 36932820.2.30015312, número do parecer 4.498.390, em 14 de janeiro de 2021.
  • Apresentação prévia

    Esse artigo é resultante da tese de doutorado intitulada Monitoramento e avaliação, educação permanente e tecnologias em saúde no sistema prisional gaúcho, de autoria de Karine Zenatti Ely, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), qualificada em 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2022
  • Aceito
    05 Dez 2022
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