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Origens pluriétnicas no cotidiano da pesca na Amazônia: contribuições para projeto de estudo pluridisciplinar

Multi-ethnic origins in everyday fishing in the brazilian Amazon: contributions to a multidisciplinary project

Resumos

O presente texto é versão de uma conferência proferida no Departamento de Genética da Universidade Federal do Pará (UFPA), no marco do tema Populações amazônicas ontem, hoje e perspectivas para o futuro. Essa conferência enfatizava a relevância das contribuições dos primeiros formadores da sociedade amazônica para a sociedade de hoje e vem agora compor o cenário deste volume temático do Boletim do Museu Goeldi. Os dados apresentados são frutos de trabalhos de campo anteriores da autora em diferentes momentos e lugares da região e associados à pesquisa bibliográfica e à experiência pessoal da autora em diversos 'lugares de pescadores' do litoral, médio Amazonas, estuário amazônico e ilha do Marajó. Este conjunto serviu de base e instrumento para estas reflexões propositivas para novas pesquisas mutidisciplinares, tendo em vista preencher lacunas sobre a história da pesca na Amazônia. Assim, propõese a evocar as origens pluriétnicas da sociedade e cultura que se formaram na Amazônia visando à maior clareza sobre as relações entre os primeiros contingentes formadores da sociedade amazônica e os segmentos sociais contemporâneos. Com isso imagina-se trazer à reflexão o valor das contribuições socioculturais e ambientais daqueles diferentes contigentes sociais e chamar atenção para o legado sociocultural deixado pela ancestralidade indígena que permeia a ocupação humana na região.

Pesca tradicional; História da pesca amazônica; Cultura pesqueira; História da Amazônia; Amazônia


The present text is version of a conference pronounced in the Department of Genetics of the Federal University of Pará (UFPA), in the landmark of the subject Amazonian populations yesterday, today and perspectives for the future. This discusses emphasized the relevance of the contributions of the first components of the Amazonian society for the society of today. It now comes to compose the scene of this thematic volume of the Bulletin of the Goeldi Museum, the presented data are fruits of previous works of field of the author at different moments and places of the region, and associates to the bibliographical research and the personal experience of the author in diverse 'fishing places' of the coast, Amazon medium, Amazonian estuary and island of the Marajo. This set served of base and of instruments for these propositive reflections for new research mutidisciplinares in view of filling gaps on the history of fishes in the Amazonia. Thus it is considered to evoke the pluriétnicas origins of the society and culture that if had formed in the Amazonia aiming at bigger clarity on the relations between the first contingents components of the Amazonian society the social segments contemporaries. With this if it imagines to bring to the reflection the value of the partner-cultural and ambient contributions of those different social populations, and to call attention for the partner-cultural legacy left by the aboriginal ancestry that involving the occupation human being in the region.

Traditional fish; History of fish; Fishing culture; Amazon history; Amazon


ARTIGOS

Origens pluriétnicas no cotidiano da pesca na Amazônia: contribuições para projeto de estudo pluridisciplinar

Multi-ethnic origins in everyday fishing in the brazilian Amazon: contributions to a multidisciplinary project

Lourdes Gonçalves Furtado

Museu Paraense Emílio Goeldi. Pesquisadora Titular. Antropóloga. Belém, Pará, Brasil (lgfurtado@museu-goeldi.br)

RESUMO

O presente texto é versão de uma conferência proferida no Departamento de Genética da Universidade Federal do Pará (UFPA), no marco do tema Populações amazônicas ontem, hoje e perspectivas para o futuro. Essa conferência enfatizava a relevância das contribuições dos primeiros formadores da sociedade amazônica para a sociedade de hoje e vem agora compor o cenário deste volume temático do Boletim do Museu Goeldi. Os dados apresentados são frutos de trabalhos de campo anteriores da autora em diferentes momentos e lugares da região e associados à pesquisa bibliográfica e à experiência pessoal da autora em diversos 'lugares de pescadores' do litoral, médio Amazonas, estuário amazônico e ilha do Marajó. Este conjunto serviu de base e instrumento para estas reflexões propositivas para novas pesquisas mutidisciplinares, tendo em vista preencher lacunas sobre a história da pesca na Amazônia. Assim, propõese a evocar as origens pluriétnicas da sociedade e cultura que se formaram na Amazônia visando à maior clareza sobre as relações entre os primeiros contingentes formadores da sociedade amazônica e os segmentos sociais contemporâneos. Com isso imagina-se trazer à reflexão o valor das contribuições socioculturais e ambientais daqueles diferentes contigentes sociais e chamar atenção para o legado sociocultural deixado pela ancestralidade indígena que permeia a ocupação humana na região.

Palavras-chave: Pesca tradicional. História da pesca amazônica. Cultura pesqueira. História da Amazônia. Amazônia.

ABSTRACT

The present text is version of a conference pronounced in the Department of Genetics of the Federal University of Pará (UFPA), in the landmark of the subject Amazonian populations yesterday, today and perspectives for the future. This discusses emphasized the relevance of the contributions of the first components of the Amazonian society for the society of today. It now comes to compose the scene of this thematic volume of the Bulletin of the Goeldi Museum, the presented data are fruits of previous works of field of the author at different moments and places of the region, and associates to the bibliographical research and the personal experience of the author in diverse 'fishing places' of the coast, Amazon medium, Amazonian estuary and island of the Marajo. This set served of base and of instruments for these propositive reflections for new research mutidisciplinares in view of filling gaps on the history of fishes in the Amazonia. Thus it is considered to evoke the pluriétnicas origins of the society and culture that if had formed in the Amazonia aiming at bigger clarity on the relations between the first contingents components of the Amazonian society the social segments contemporaries. With this if it imagines to bring to the reflection the value of the partner-cultural and ambient contributions of those different social populations, and to call attention for the partner-cultural legacy left by the aboriginal ancestry that involving the occupation human being in the region.

Keywords: Traditional fish. History of fish. Fishing culture. Amazon history. Amazon.

INTRODUÇÃO

Este texto é uma extensão da Conferência 'Origens Pluriétnicas na formação da sociedade pesqueira na Amazônia', proferida pela autora ao Departamento de Genética da Universidade Federal do Pará no marco da Sessão Temática 'População amazônicas ontem, hoje e perspectivas para o futuro'. Naquela ocasião, para falar do assunto, recortava-se o segmento dos pescadores tradicionais amazônicos a partir de suas características socioculturais e ambientais, os particularismos nesses aspectos, assim como a partir de sua história de longa duração que remonta à história dos antigos contingentes formadores da sociedade regional: os nativos, os europeus, os africanos (FURTADO, 1981).

Era importante chamar a atenção para este assunto, uma vez que a economia praticada atualmente por esse segmento social é permeada por práticas e costumes de grupos humanos pré-coloniais, ou seja, daqueles que marcaram o processo de ocupação humana primeva na Amazônia. Importante também porque essas similitudes indicam a milenaridade das práticas haliêuticas na região e em todo o Brasil, segundo os registros arqueológicos, assim como a dependência dos pescadores aos territórios aquáticos.

Entretanto, na história da pesca na Amazônia perdura um grande vazio de informação para relacionar, com precisão, esses fatos entre o presente e o passado.

Pela pertinência do tema em relação ao conteúdo deste volume temático do Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Ciências Humanas, esta nova versão da mencionada conferência vem como proposta para instigar novos estudos sobre a história da pesca na Amazônia, no que tange às origens pluriétnicas nas práticas cotidianas dos pescadores tradicionais contemporâneos dessa região, no que se refere às relações ambientais, às praticas pesqueiras, aos usos dos recursos naturais, à qualificação territorial e aos espaços de moradia.

Para isso o texto indica pistas que poderão ser trabalhadas a posteriori como linha de pesquisa para identificar, nessas práticas, traços comuns entre o presente e o passado, traços da contribuição sociocultural daqueles povos primevos para os contemporâneos e, conseqüentemente, suprir lacunas no conhecimento sobre a economia pesqueira dos pequenos produtores da pesca na Amazônia.

Evidentemente que estudos dessa natureza constróem-se a partir de uma visão multidisciplinar da antropologia, considerando como processo metodológico uma revisão de trabalhos realizados nos campos da antropologia, arqueologia e história da Amazônia, com destaque para aqueles que elegeram como objeto de análise as populações haliêuticas, incluindo as de base agro-pesqueiras. São diversos os de inestimável valor nesses três campos científicos que podem dar o devido suporte, dentre eles, os de Wagley (1957), Galvão (1955), Silveira (1979), Furtado (1971, 1981, 1987, 1993, 2001), Oliveira (1983), Penner (1980), Mello (1981), Maneschy (1988), Sousa (1999), Aviz (1999), Simões (1976, 1981), Corrêa e Simões (1971), Pereira (1996) e Motta-Maués (1977).

Um trabalho de sistematização dos conhecimentos produzidos pelos estudiosos do assunto, que venha nessa linha proposta, certamente virá enriquecer os conhecimentos atuais relacionados aos pescadores (ribeirinhos, marítimos lacustres e dos estuários importantes das bacias hidrográficas da região) e preencher uma lacuna na relação presente-passado. Este texto, portanto, tem como objetivo cultural pontuar considerações sobre o cotidiano de pescadores amazônicos que possam servir de base para esses estudos no estado do Pará, tendo como referência as pesquisas de campo da autora realizadas em diferentes momentos e lugares da Amazônia (particularmente as desenvolvidas no litoral e região do Médio Amazonas, estado do Pará, entre os anos de 1980 e 2006).

A permanência prolongada em campo, a observação participante nas lidas da pesca, entrevistas e histórias de vida recorridas para a construção de textos, artigos, livros e capítulos de livros, foram os percursos metodológicos utilizados como suporte para estas considerações. Forneceram os instrumentos de análise e base para este texto, assim com as incursões na literatura relacionada à pesca na Amazônia, e inspiraram a elaboração deste artigo propositivo. Enfim, a consciência do 'ofício do etnólogo', calcado no 'ver', 'ouvir' e 'escrever' orientou questionamentos que poderão, ao mesmo tempo, servir de pista e se transformar em estudos mais específicos na linha da cultura material pesqueira. Ressalte-se que tais questionamentos poderiam parecer ingênuos ou mesmo sem caráter de prioridades estratégicas se não fosse o interesse em identificar aspectos da relação dessas populações com seus ambientes aquáticos, entretanto, as respostas poderão enriquecer os conhecimentos sobre a história da pesca na Amazônia e preencher os hiatos da informação nesse campo.

Eis alguns destes questionamentos a partir da realidade dos pescadores das citadas regiões: quais as similitudes entre o sistema de construção de palafitas de vilas e ranchos dos pescadores e os registrados nas seqüências cronológicas do povoamento pré-histórico da Amazônia segundo Mário Ferreira Simões (1982) e Ana Roosevelt (1992) apud Pereira (1996); qual o legado sociocultural de povos como os coletorespescadores ceramistas que habitavam o litoral do Pará, e os de outras áreas, como Alenquer e Baixo Xingu (HILBERT, 1957), para os coletorespescadores e ceramistas de hoje (SIMÕES, 1981); e o que os achados arqueológicos dos sambaquis litorâneos da Amazônia (CORRÊA; SIMÕES;, 1971), particularmente os da zona costeira do estado do Pará, podem oferecer para um cotejo entre os costumes atuais nessa região e os do passado daqueles povos?

Indagações como estas instigam sugestões para novas abordagens sobre o cotidiano da pesca amazônica, que é um dos relevantes setores da economia regional e nacional.

Embora as experiências de pesquisa da autora tenham se desenvolvido nos contextos ribeirinho, estuarino e costeiro da Amazônia, neste texto o foco de considerações recai sobre a zona costeira do Pará, que abrange os municípios de Colares, Vigia, São Caetano de Odivelas, Curuçá, Marapanim, Maracanã, Quatipuru, Primavera, Santarém Novo, Salinópolis e Vizeu, área fortemente influenciada pelo mar e pela zona de florestas e campos da zona Bragantina, em cuja história de longa duração há referências da presença de povos pré-coloniais que provavelmente imprimiram marcas no cotidiano de povos que ocuparam essa região após a implantação e consideração da dominação lusitana na Amazônia.

É a partir dessa região que serão tecidas considerações para o estudo sugerido na linha proposta. Ressalte-se que o presente artigo deve ser entendido como um leque de possibilidades para um trabalho conjunto entre antropologia e arqueologia numa linha de sistematização de conhecimentos gerados sobre o assunto para cotejar as relações socioambientais entre passado e o presente dos pescadores tradicionais amazônicos.

REVISITANDO A HISTÓRIA DA PESCA NA AMAZÔNIA

O cotidiano da pesca amazônica atual

Quando se fala em sociedade pesqueira pensa-se nos grupos sociais que fazem da pesca, coleta e extrativismo marinhos e fluviais sua base de vida material e social. Dependendo da organização social, dos modos de produção e tecnologia adotados, estes podem ser classificados como 'pescadores tradicionais' ou 'pescadores industriais', duas categorias de referência não-nativas. Ambos, porém, são partes de um contexto sociocultural, econômico e político mais amplo e mais complexo, com o qual interagem e estão sujeitos às dinâmicas sociais intervenientes e, consequentemente, a níveis de maior ou menor complexidade.

Neste texto a sociedade pesqueira é enfocada a partir de seu segmento tradicional, comumente reconhecido como 'pesca artesanal'. Tal expressão 'extrapassa' o simples ato de pescar, isto é, deixa de ter um caráter puramente ocupacional e locacional para significar um modo de viver no contexto da sociedade envolvente. Para entendê-la na sua história de longa duração é importante fazer evocação às origens pluriétnicas que estão na base da sociedade e cultura que se formaram na Amazônia, e daí fazer avaliação objetiva das contribuições aos povos do presente, no caso a sociedade e cultura pesqueira contemporânea. Assim haverá maior clareza sobre o legado dos primeiros contingentes formadores (índios, europeus e negros mais tarde) nos saberes e tecnologias que pontificam o cotidiano dos segmentos sociais atuais, principalmente no que diz respeito à classificação e uso de territórios, relação com o meio ambiente, concepções e formas de manejo dos recursos naturais.

O encontro de sociedades tribais e não-tribais na história de longa duração da Amazônia gerou uma sociedade miscigenada étnica e culturalmente; e proporcionou a coexistência de diversos grupos humanos (de início índios, europeus e povos africanos, depois, segmentos rurais e urbanos, migrantes marcados por diferenças socioculturais) da qual resultou, certamente, a troca de experiências, valores e práticas em seus cotidianos de trabalho e comportamento face aos recursos ambientais e, ao mesmo tempo, refletidos nas práticas de grupos atuais, sobretudo daqueles dotados de tecnologia simples, que manejam ambientes e recursos naturais marcados pela presença da água, singular na Amazônia em relação às outras regiões brasileiras. Identificar as contribuições desses encontros interculturais, a partir da sistematização dos conhecimentos gerados sobre o assunto, facilitará o cotejo entre o passado e o presente das relações socioambientais no âmbito da pesca amazônica. Galvão (1955), Oliveira (1983), Reis (1956), Furtado (1971, 1981, 1987, 1993, 2001) tratam melhor desse assunto.

Com essa reflexão, é oportuno propor um 'olhar' antropológico com abordagem interdisciplinar para esse segmento da sociedade amazônica, que é a população pesqueira (ribeirinha, lacustre, estuarina e costeira), em razão de nela estarem identificadas situações e práticas que evocam as do passado précolonial em grupos que habitaram o litoral amazônico e outras regiões amazônicas, segundo referências em Simões (1981), Simões (1982 apud PEREIRA, 1996) e Corrêa (1971) e por conter em sua história traços dessas possíveis contribuições socioculturais do passado da região e, do ponto de vista prático, por representar um dos significativos setores produtivos da economia regional e do país, cuja vida material e social transita entre a terra e a água, a terra e a floresta, entre a terra e o mar.

Um estudo com essa abordagem ainda é uma lacuna na literatura sobre o universo pesqueiro amazônico, por isso este artigo objetiva provocar essa nova construção.

Ao escolher este tema para sugerir estudos, há o desejo de trazer à reflexão o valor das contribuições daqueles diferentes contigentes sociais, chamando atenção para a necessidade de não desprezar a herança socioambiental da ancestralidade indígena e dos povos que ocuparam a região, a qual pode estar associada (mas não explícita) a certas práticas de manejo ambiental de grupos sociais contemporâneos e a simbologias pertinentes.

Há alguns anos tem-se trabalhado em 'lugares' de 'pescadores' (FURTADO, 1981, 1987, 1993, 2001, 2002a; NASCIMENTO, 1993) junto às instituições, como 'Colônias de Pescadores' e a 'Movimentos Sociais da Pesca' (tanto masculinos quanto femininos), e lideranças em diversas regiões, que conduziram a buscar na história de longa duração traços que possam evidenciar uma cultura pesqueira na região. Assim, as questões antes colocadas são elementos essenciais para essa tarefa. Somadas a elas outras reflexões de fundo poderão contribuir para evidenciar essa cultura: quem são os atores sociais que compõem este segmento de pescadores? De onde vêm, como vivem e quais as perspectivas para o futuro? Se não todas, mas algumas destas questões norteiam um esforço de síntese para associar os dois 'momentos' históricos: o passado, antes da chegada dos colonizadores na Amazônia, e o presente, no contexto da vida pesqueira contemporânea na região, particularmente no estado do Pará.

Percorrendo caminhos históricos

Por muito tempo os compêndios de história do Brasil ensinaram aos alunos de primeiro grau que os portugueses detinham o primado da descoberta desse país ao desembarcarem no Ilhéu da Coroa Vermelha em 22 de abril de 1500, e que outros povos europeus os antecederam ao desembarque. Mas o que dizer, então, da presença imemorial dos diferentes grupos indígenas que aqui viviam no litoral e no interior do território brasileiro? Se autócnes ou alóctones não está aqui em discussão, porém, importante é reconhecer o fato dessa inequívoca presença anterior no processo de ocupação humana, atestada tanto pelos estudos históricos quanto antropológicos conhecidos.

É relevante destacar que nessa terra de 'além-mar' um formidável contingente humano já vivia em grupos cultural e politicamente organizados e diferenciados, cuja herança manifesta-se em traços físicos, em processos identitários, nas práticas contemporâneas de arranjos socioculturais para apropriação, uso e manejo de recursos naturais, nas representações coletivas relacionadas ao meio ambiente e certamente em outras práticas dos povos amazônicos.

O que dizer, então, da presença imemorial dos diversos grupos indígenas - os primevos e verdadeiros donos da 'terra ignota' - igualmente agrupados cultural e politicamente em diferentes áreas do Brasil e da Amazônia à chegada dos colonizadores, estes motivados pelas determinações de tratados territoriais?

O etnólogo Curt Nimuendaju (1944 apud IBGE, 1987) elaborou um mapa da distribuição desses grupos indígenas do Brasil que imemorialmente ocuparam o território nacional antes das primeiras tentativas de ocupação estrangeira, destacando a dinâmica migratória provocada por perturbações exógenas.

O historiador Antonio Porro (1993) reafirma esse fato em seu estudo sobre a etno-história das antigas populações da região amazônica, destacando os povos da várzea do rio Amazonas. Faz referência à presença de um considerável contingente indígena que habitava às margens desse rio, que mais tarde foi tangido para o interior através dos caminhos abertos por eles em direção ao interior amazônico. Destaca também sua redução para quase 200 mil índios no início dos anos 1990, cujo tipo físico revela, em maior ou menor grau, a herança genética do índio nos grupos indígenas e caboclos contemporâneos da região. Ainda em outro trabalho mais recente, Porro (1996) trata da organização social e o poder político entre os índios da Amazônia, desde a 'pré-história ao presente'.

A 'Bula Intercoetera', de 1493, e o 'Tratado de Tordesilhas', de 1494, estão na origem da ação transformadora que emerge nos meados do século XV, pela qual a territorialidade desses nativos e seus hábitos, milenarmente construídos, passaram a ser ameaçados, com recorrências ou analogias que perduram no presente. Estes dois documentos colocam-se também como causas remotas da formação da sociedade pesqueira ao longo das zonas costeiras, estuarinas e de águas interiores da Amazônia, particularmente ao longo da calha do rio Amazonas. Estas, associadas a outras, como a lei de intercasamentos entre colonos e mulheres indígenas pontificadas no século XVIII sob a égide da política pombalina, contribuíram para essa formação.

Estudos sobre a ocupação humana na Amazônia indicam que essa região, antes da expansão européia, era habitada por uma população cujo padrão de ocupação era do tipo 'floresta tropical', provavelmente a forma de adaptação mais efetiva ao ambiente amazônico. Não obstante divergências sobre esse conceito (EVANS; MEGGERS; LATHRAP apud OLIVEIRA, 1983), havia concordância em que esse padrão tendia a ser hegemônico na região e era concebido como "um nível mais simples e menos complexo de arranjo societário" (OLIVEIRA, 1983).

Certamente que estudos arqueológicos mais recentes vêm aprofundar as pesquisas e discutir e aprimorar as concepções sobre a dinâmica das formas de ocupação humana na Amazônia, suas 'fases', sua mobilidade espacial e os contributos às modalidades de uso e manejo dos recursos ambientais. Dentre estes estudos destacam-se os de Roosevelt (1992 ) apud Pereira (1996) e outros de boa qualidade.

Dessas fontes históricas, arqueológicas e antropológicas infere-se sobre a antiguidade da atividade haliêutica na Amazônia, pela qual os grupos humanos, segundo suas concepções, saberes, simbologias e escolhas, apropriam-se e utilizam os recursos dos ambientes aquáticos através dos tempos. Entre outras formas de exploração de recursos naturais, a pesca e a coleta inserem-se entre as atividades humanas mais antigas no mundo (HERUBEL, 1928; LEROI-GOURHAN, 1983).

Saltando-se um pouco para o nosso tempo, falar-se de sociedade 'agro-pesqueira' é falar de pescadores, pensar nessa antiguidade e em uma considerável parte da sociedade amazônica cujos meios de vida são atualmente marcados por práticas muito antigas voltadas para os meios aquáticos e terrestres, isto é, pelo viver entre a pesca e a coleta como atividades principais e as roças como complemento, por isso vivem entre a água e a terra, entre o mar e a floresta em suas diferentes dimensões. A vida material e social apresenta especificidades sociais e ambientais, orientada pela convivência com o mundo das águas, sejam os rios, os lagos, os igarapés, os igapós, estuários, furos, como fonte de reprodução social. Fazem parte do que se tem chamado de 'população cabocla'. E nestes termos entenda-se para além do sentido estritamente étnico que os mesmos incorporam, buscando o que se pode chamar de caboclitude: a cultura construída segundo adaptações, valores e regras grupais ao longo da linha do tempo. Resgata-se, assim, a concepção de categoria social pensada por Galvão (1955).

Buscar as origens pluriétnicas desse segmento caboclo é, também, ir além deste momento de intercasamentos processados na história da Amazônia, além do encontro dessas sociedades européias e indígenas no século XVI; é recuar e remontar-se aos tempos primevos da ocupação humana da Amazônia.

Olhando para os tempos primevos

A descoberta de sítios arqueológicos revela o florescimento de culturas humanas na Amazônia em diversos locais ao longo da calha do rio Amazonas, em regiões de várzea, terra firme e zonas costeiras da região. Já se tem conhecimento que muitos grupos indígenas habitavam às margens de rios, lagos, igarapés e orla do mar, com arranjos societários em nível de bandos ou de grupos mais sedentários.

Esses grupos organizavam-se social e politicamente em aldeias de tamanho e longevidade variáveis, valorizando o meio ambiente segundo suas concepções culturais e geográficas. Os sistemas produtivos pareciam estar em íntima relação e dependência à natureza e seus recursos ecossistêmicos, nos quais a pesca e a coleta repontavam como primado de uma economia extrativista, seguidas da agricultura através de roçados (derrubada, queimada). Esse padrão leva-nos a fazer analogias no presente a partir de muitas comunidades ribeirinhas e costeiras da região, atestando sua milenaridade.

A descoberta desses sítios arqueológicos apresenta vestígios de materiais do passado, possibilitando inferências para o presente dos povos ribeirinhos, com 'testemunhos' líticos e cerâmicos; e restos de fogueira, de peixes e de bivalvos atestando a prática milenar da pesca e coleta de moluscos em ambientes aquáticos da várzea, dos rios, do mar e dos manguezais, como técnicas de subsistência e reprodução social desses grupos primevos. Destes 'testemunhos' há coleções no acervo científico do Museu Goeldi. Datações através de testes de C14 definiram os períodos das diversas 'fases' ou formas de ocupação na Amazônia em que estes testemunhos apareceram.

Num esforço de síntese, Adélia Engrácia de Oliveira (1983) apresenta um panorama geral das 'fases' arqueológicas da Amazônia brasileira, em referência à ocupação humana na região, com base nas pesquisas arqueológicas até então existentes, o que vem em favor da presente argumentação. Do quadro por ela construído, infere-se que, na região litorânea do estado do Pará, habitaram povos com estreita ligação com o mar, aos quais se denomina aqui de povos primevos. Sua forma de povoamento e tempo de permanência representam 'fases' culturais nesse processo na região. Recortando-se, pois, do mencionado quadro, apenas a região litorânea do Pará, configurada na atual 'Zona do Salgado', observa-se que nessa região existiram quatro 'fases' seqüenciais de povoamento e suas respectivas localizações, forma de ocupação e datação em anos descritas.

A 'fase Mina', ocorrida em Quatipuru, atual vila do município de Primavera, entre os anos de 3000 a 1500 a.C, foi marcada pela presença de sambaquis (grandes depósitos artificiais de conchas, acumulados durante séculos por grupos indígenas que habitavam a zona costeira e dependiam essencialmente da coleta de moluscos e que paralelamente se ocupavam da pesca, caça e cultivo de raízes). Localizavam-se nas praias, baías e mangues locais, embora atualmente estejam quase todos destruídos. Presença de coletores de mariscos que complementavam com a coleta de frutos e caça esporádica.

A 'fase Uruá' ocorreu aproximadamente em 1715 a.C, também no município de Primavera, apresentando diversas evidências de sítios de gastrópodes fluviais, isto é, sambaquis, no interior da região.

A 'fase Areão', ocorrida na ilha de Marudá, próximo ao rio Camará, no município de Marapanim, apresenta evidências de agricultura de derrubada e queimada, de coleta de produtos marinhos e vestígios de aldeias construídas em tesos naturais acima do nível das inundações. É posterior à 'fase Mina' e, embora a autora não defina a datação dessa 'fase', supõe-se que teria tido uma permanência longa.

A 'fase Tucumã' apresenta evidências no médio rio Quatipuru, onde reponta à cultura de roçados, como a da 'fase Areão' e é igualmente posterior à 'fase Mina'.

Ensaiam-se aqui algumas analogias com o cotidiano atual dos pescadores da 'região litorânea do Salgado', apresentando algumas pistas para estudos: a forte presença da biodiversidade de peixes, bivalvos e crustáceos que compõem o itens da dieta alimentar das populações costeias, assim como no passado (mexilhão, sururu,ostra, turu, sernambi, ou sarnambi, e sapequara); a presença de grupos coletores desses mariscos, principalmente composta por mulheres e crianças, moradoras das comunidades costeiras em todo o litoral amazônico; o formidável contingente de pescadores, trabalhadores da pesca que habitam essa comunidades ao longo das praias, rios, enseada, ilhas e temporariamente constróem ranchos de pesca em áreas longíquas de suas moradias permanente; e a permanência da agricultura de roçados por método de derrubada e queimada.

Revendo as seqüências cronológicas do povoamento pré-histórico da Amazônia, segundo Simões (1982) e Roosevelt (1992) apud Pereira (1996), observam-se, na seqüência das diversas formas de povoamento, traços culturais reveladores da antiguidade da pesca e coleta na Amazônia e práticas que indicam a apropriação e uso de recursos marítimos e fluviais pelo grupos de caçadores, coletores e ceramistas daquela época.

Assim, na seqüência de Simões, no período dos 'caçadores-coletores', situado entre 10.000 a 1.000 a.C, há menção da prática da pesca e coleta de moluscos fluviais na região do Tapajós no Médio Amazonas e na ilha de Cotijuba no estuário amazônico, perto de Belém, capital do estado do Pará. Na seqüência de Roosevelt essas atividades aparecem muito antes, remontando o período entre 11.000 e 5.000 a C, na região de Santarém, Pará. Ela situa a 'fase Mina', da seqüência de Simões, entre os anos 5.000 a 2000 a.C.

Na forma de povoamento dos 'coletores-pescadores ceramistas', entre 3.200 e 200 a.C, ocorrida no litoral e estuário amazônicos e interior do Pará (respectivamente na região de Quatipuru, ilha de Cotijuba, Alenquer e baixo Xingu), Simões menciona o uso dos recursos do mar e presença de 'sambaquis', que eram grandes depósitos artificiais de carapaças de bivalvos, acumuladas durante séculos pela população indígena, certamente usuários dos recursos marinhos ou fluviais em seu cotidiano. Na seqüência de Roosevelt (1992) são também identificados como 'sambaquis' litorâneos e fluviais, cuja datação remonta 5.000 a 2000 a.C (apud PEREIRA, 1996).

As Tabelas 1 e 2, elaboradas por Pereira (1996), de quem se toma por empréstimo, contribuem para contextualizar a antiguidade da pesca na Amazônia e situar o leitor sobre o passado pluriétnico dessa forma de produção econômica, cuja base é a exploração dos recursos aquáticos que fazem da atividade pesqueira ou coletora a base de sustentação de muitas comunidades ribeirinhas, costeiras e lacustres da região amazônica. A plurietnia aqui mencionada corresponde à diversidade de povos primevos que habitaram essa região.

Outros vestígios desse passado foram encontrados tanto no litoral quanto nas interiores do Baixo, Médio e Alto Amazonas: os 'sambaquis', as 'palafitas' ou estearias, os 'hipogeus', os 'tesos 'rtificiais', 'pinturas' e 'grafismos rupestres'. Tais vestígios indicam também que o homem amazônico teria sido inicialmente um coletor de moluscos, diante da quantidade de moluscos disponíveis e dos costumes locais, tornando o indígena um construtor de 'sambaquis'.

Devido a uma baixa do nível do mar, ocorreu a simultânea perda de um abastecimento contínuo de alimentos marinhos, forçando grupos humanos a procurarem outras alternativas, encontradas na caça e coleta de produtos silvestres. Provavelmente, começou uma agricultura incipiente, com mão de obra familiar, mais tarde passando a uma agricultura mais complexa de 'derrubada' e 'queimada', até chegar a uma agricultura mais intensiva, alcançada na fase Marajoara (OLIVEIRA,1983). Essa autora, num esforço de síntese de revisão das 'fases' de ocupação humana na Amazônia, apresenta um quadro seguinte para se ter uma visão mais didática desse processo, com foco para os tempos que antecederam ao processo de colonização européia na região.

Um estudo seqüencial entre essas fases e o presente é instigante para o acompanhamento dos processos de ocupação, apropriação e uso do meio ambiente no tempo atual, identificando pontes entre os tempos primevos e a contemporaneidade.

Agora um pouco mais perto de nós

Durante os séculos XV e XVI, antes da chegada dos portugueses na Amazônia, em 1616, com a fundação da Feliz Lusitânia, como foi dito, várias tentativas de colonização européia sucederam-se, na disputa por recursos naturais definidos como as drogas do sertão. A seqüência presencial desses estrangeiros, segundo registros históricos, indicam essas tentativas.

O francês Jean Cousin teria alcançado o estuário do rio Amazonas em 1488 ou 1940. O florentino Américo Vespúcio teria descoberto a foz do rio Amazonas em junho de 1499. O espanhol Vicente Yanez Pinzon chegou ao estuário desse rio, viajou na desembocadura do Amazonas e percorreu a costa do Amapá em fevereiro de 1499. Diogo de Lepe alcançou a foz do rio Amazonas viajando pela mesma rota do antecessor, em dezembro de 1499. O português Diogo Leite teria explorado a costa nordeste do Brasil até o estuário do Amazonas por volta de 1531 e 1532. Diogo de Ordaz também teria chegado à foz do Amazonas em 1532 e Francisco Orellana chegou à foz desse rio no período entre 1541 e 1542. Ursua e Aguirre, em 1560 e 1561, percorreram a vertente oriental dos Andes, descendo o Marañon e todo o rio Amazonas até o Atlântico, na procura do El Dorado, lenda disseminada por Carvajal, em cuja crença existiam países ricos e fabulosos perdidos na floresta (OLIVEIRA, 1983; FURTADO, 1993; PORRO, 1993).

A ocupação estrangeira na Amazônia, após essas tentativas, assenta-se mesmo com a chegada dos portugueses no século XVII, em 1616, liderados por Francisco Caldeira Castelo Branco, num lugar que chamaram de Feliz Lusitânia, onde fundaram o Forte do Presépio, atual Forte do Castelo. A consolidação da soberania lusitana intensifica-se com a viagem de Pedro Teixeira, assentando marcos demarcatórios, e com a fundação de fortalezas, feitorias e casas fortes, desde o Baixo até o Alto Amazonas. Datam desse tempo os Fortes de Gurupá, Santarém e Óbidos, a partir dos quais floresceram as cidades homônimas atuais, sede de seus respectivos municípios.

Desencadeia-se, então, um longo processo de caldeamento, de mestiçagem à sombra desses fortes, feitorias e missões religiosas, fundada nas relações pluriéticas em presença, isto é, entre grupos indígenas (diferenciados social e culturalmente) e colonos. Cresce uma população variada de índios catequizados, mercadores portugueses e colonos, que mais tarde teriam seus descendentes chamados etnocentricamente de 'tapuios'. A população adensase em torno destes marcos de ocupação com os 'descimentos' feitos pelas 'tropas de resgate'. A lei de Pombal, no século XVIII, vem corroborar para isso, oferecendo vantagens aos colonos que casassem com mulheres indígenas, misturando sangues, hábitos, comportamentos, formas de 'encarar o mundo', para assim melhor legitimar a posse do território, em nome da Coroa Portuguesa (FURTADO, 1993).

À época, o índio cada vez mais integrava-se à sociedade mameluca que se formava e se desenvolvia em torno dos fortes, aldeamentos missionários e dos núcleos populacionais. Os índios compulsoriamente 'descidos' de suas aldeia nativas no interior das matas amazônicas eram utilizados nos serviços de caça, da pesca e coleta; os 'descidos' das áreas de beira de rios foram destinados às atividades de pesca e à navegação interna; e os do interior à atividades agrícolas e extrativistas. Vale lembrar que ao longo da calha amazônica os Omáguas e os Tapajós eram presenças inequívocas nas áreas de várzea dessa região.

Assim há a construção e a dinamização, com métodos e filosofias exógenas, à revelia dos nativos, de uma população mestiça com uma economia baseada nos recursos ambientais possibilitados pelo uso dos rios, igarapés, praias, enseadas, estuários, mar, florestas, 'várzeas' e 'terras firmes'. Portanto, uma sociedade de base agropesqueira, isto é, voltada para ações 'agropesqueiras', com legados socioculturais e ambientais oriundos de relações sociais das culturas indígenas do passado que serviram de base para essa mestiçagem. O contato com os europeus colonizadores, os intercasamentos, foram fortes mecanismos para alimentar o caldeamento e a troca de traços culturais, de hábitos e práticas nesse processo.

Esse povoamento embrionário estende-se pela região marginal à calha amazônica, cuja dinâmica envolve outros contingentes chegados mais tardiamente, como o negro e outros migrantes. Não se pode negar que, a despeito dos métodos anti-éticos dos colonizadores, dos sérios conflitos provocados principalmente por genocídios e extermínio de povos indígenas, viria, a posteriori, desenvolver-se uma sociedade etnicamente mestiça e culturalmente rica em valores, saberes e formas de exploração do mundo concreto, cuja fenotipia e tradições são reveladoras dessa fase do contato com os colonizadores e desse processo, assim como da história de longa duração dos grupos indígenas e da dinâmica da influência lusitana na região.

A língua tupi foi gramaticada e imposta como 'língua geral', materializando uma estratégia ideológica de dominação/subordinação do novo território e dos nativos recém-contactados.

O índio tornou-se útil ao processo de ocupação humana, à manutenção da posse do território, às busca das 'drogas do sertão' e na provisão de alimentos e trabalho pelo saber e pela mão-de-obra servil a que eram relegados. Padre Antônio Vieira diria que os missionários "trataram de aproveitar o índio empregando-os em serviços de exclusiva utilidade de suas respectivas confrarias". Resulta, desse modo, de viver forte influência no tipo de economia extrativista, que perdura até hoje. Os pescadores da região do Médio Amazonas e seu complexo lacustre ainda hoje adotam métodos de influência indígena como a pesca com arcoe-flecha, arpão, zagaia; conservação de pescado através do moquém (cozimento de peixe envolvido em folha de bananeira ou similar, ao calor de brasas); e assado de peixe ou de quelônios em trempes improvisadas nas praias, que comem com farinha na pá do remo e denominam de 'mauassu' ou 'piracaia'.

Desse processo de ocupação e de aculturação e das políticas implantadas nos séculos XVI e XVII, e mais efetivamente no século XVIII, resultou a formação do que se tem chamado de 'sociedade cabocla', dentro da qual se organizam grupos de caráter 'agropesqueiro', cujos hábitos são evocativos desse processo sociocultural e das características e da influência do meio ambiente; resultou também, mais tarde, o aparecimento dos primeiros núcleos coloniais da Amazônia, transformados nos atuais centros urbanos da região, onde essa população distribui-se.

No século XIX (primeira metade, de 1840 a 1912), a vida das populações do interior amazônico experimenta reflexos da era da borracha: surto de progresso nas capitais do Pará e do Amazonas, levas de migrantes nordestinos para os seringais da Amazônia, abandono de atividades agrícolas para corrida aos seringais (exemplo da Zona Bragantina), ribeirinhos dividindo atividades com a coleta do látex da seringueira (hévea brasiliensis) nos seringais da região, homens embrenhando-se nas estradas da borracha enquanto mulheres e filhos tratavam da casa e da pesca (o exemplo dos ribeirinhos da ilha do Marajó e região dos furos do Pará) e concentração de migrantes nordestinos no Baixo Amazonas e Zona Bragantina, trazendo contributo étnico e sociocultural.

E, hoje, onde vivem e o que fazem os pescadores?

Hoje, os pescadores vivem com suas famílias nas margens dos rios, igarapés, furos, paranás, ilhas, encostas de praias fluviais ou marítimas, periferias de pequenas e médias cidades configurando aí 'lugares de pescadores'. Moram em pequenas unidades sociais constituídas por grupos domésticos. Ao contexto, o senso comum costuma denominar variadamente de: 'pescadores', 'mariscadores', 'marisqueiros', 'ribeirinhos', 'caboclos', 'curraleiros', 'curralistas', assemelhando-se aos 'caiçaras' do litoral de São Paulo (MUSSOLINI, 1977; DIÈGUES, 1977), partilhando de uma cultura comum, originalmente e diversificada ao longo de sua história no tempo e do espaço, segundo as variáveis da dinâmica social. Atualmente vivem empenhados em suas lutas por alternativas de trabalho e renda face às dinâmicas sociais a que estão sujeitos (DIÈGUES, 2004)

Essas unidades sociais, ou genericamente chamadas 'comunidades', representam sítios, povoados, vilas, cidades portuárias e carregam especificidades sociais e ambientais que suscitam atenção especial, processos de gestão e políticas públicas relativizadas dirigidas em favor de sua 'permanência' como segmento social de um todo maior.

No estado do Pará, segundo dados do Conselho Pastoral da Pesca, o número estimado de pescadores registrados nas 71 Colônias de Pesca da Federação dos Pescadores do Pará gira em torno de 80.000, que, somados à população dos pescadores 'não-matriculados' ou inscritos nas Colônias de Pescadores, atinge aproximadamente 100.000 entre homens e mulheres.

Dessa fonte produtora de alimento protéico originam-se os cerca de 90% de pescado que abastece os pequenos, médios e grandes centros da região (as sedes municipais e capitais amazônicas) através de feiras livres, mercados municipais, peixarias e supermercados. Dessa mesma fonte flui o pescado que entra nas indústrias pesqueiras da região e de outros estados brasileiros, em geral sem a fiscalização necessária que retenha nos municípios e nos estados os impostos devidos.

Em suas comunidades guardam atualmente acentuados traços do passado colonial e pré-colonial; detendo saberes em relação ao meio ambiente, aos seus recursos e formas de manejá-lo; saberes em relação ao uso social do patrimônio natural e a gerenciamentos de recursos e de solução de conflitos a que estão sujeitos.

Com essa trajetória temporal e social inaugura-se uma nova etapa da formação sociocultural na região, que Charles Wagley (1957) chamaria de 'Comunidades civis amazônicas', nas quais repontam segmentos com maior ou menor traços étnicos resultantes dos contatos com as etnias formadoras da sociedade amazônica e, sobretudo, com inquestionável legado cultural que as mesmas transmitiram de geração a geração.

Nessas comunidades a noção de progresso é buscada pelo uso das diferentes formas de extrativismo assentadas em manejos tradicionais herdados secular e mesmo imemorialmente, pelas novas alternativas de exploração do meio natural e por novas formas de ocupação territorial que correspondem a diferentes formas de gestão e de políticas públicas.

No século XX, tomando-o como 'presente etnográfico' mais próximo de nós e de nossa atualidade, novos cenários são desenhados no contexto desse segmento social amazônico que é a sociedade pesqueira, novas questões surgem quanto ao seu significado na economia regional e na esfera patrimonial da região.

Como, então, 'olha-se' esta sociedade pesqueira - produtora de bens e serviços - cuja trajetória tem comprovado o valor de sua co-existência com outros segmentos sociais? Uma sociedade plena de saberes, que tem potencial para discutir suas formas de desenvolvimento local, ou uma sociedade sempre a espera de determinações e escolhas exógenas? Em outras palavras, uma sociedade detentora de valores socioculturais que geram a singularidade da Amazônia Brasileira, recortando territórios com suas especificidades sociais e ambientais, ou uma sociedade excluída do debate sobre ação transformadora que lhe convém? Como é situada no quadro socioeconômico e político da região e do estado, será que ainda desconhecemos a constituição de novos sujeitos políticos que emergem em seu seio? São questões que se colocam para reflexão e para o debate sobre a diversidade social da região amazônica, sobre a heterogeneidade de culturas que alicerçam as diferenças. Finalmente, nas 'linhas' a seguir situam-se algumas constatações sobre o significado que as ditas comunidades pesqueiras assumem no cenário regional.

Na história da pesca na Amazônia e, particularmente, no Pará, é marcante a presença do índio na produção pesqueira, na apropriação e uso dos ecossistemas através de técnicas especiais, e nas tomadas de decisão para acesso aos 'pesqueiros' ou 'pontos de pesca' na época conhecidos como 'pesqueiros reais'. Eles participaram de 'campanhas de pesca' nesses 'pesqueiros' para provisionamento de pescado para as tropas militares dos fortes e para a população dos núcleos coloniais. Esta marca, antes de ser um anacronismo no manejo de ambientes piscosos, ainda é fortemente presente na pesca das populações ribeirinhas da região.

A Tabela 3 indica antigos locais em que foram erigidos aldeamentos missionários em torno dos quais se desenvolveu a atividade pesqueira regional, em razão da convivência entre colonos e índios 'descidos' das aldeias para esses locais, permanecendo no presente com traços indeléveis desse passado.

É importante reter que as especificidades sociais e ambientais próprias às unidades sociais de pescadores, isto é, às localidades onde a pesca é praticada e assume um papel relevante na economia regional, correspondem a demandas de políticas públicas, efetivas e setoriais que venham contemplar sua 'permanência' em seus territórios, sua reprodução social como segmento de um contexto mais amplo, a solução dos conflitos a que vivenciam, gerados por impactos antrópicos, como a diminuição ou expropriação de seus territórios de moradias e de trabalho; a exclusão social de planos desenvolvimentistas que lhe dizem respeito; a exclusão social de planos e projetos que envolvem seus territórios construídos socialmente para lazer e trabalho. Enfim, demandas de políticas públicas que venham melhorar a qualidade de vida a que muitas comunidades pesqueiras estão relegadas, tantas padecendo de absoluta falta de assistência médica, sanitária, social, educacional, falta de assistência à chamada 'terceira idade', à infância e à adolescência no mundo rural que absorve pouco a pouco, ou aceleradamente, em algumas regiões, as mazelas dos centros urbanos.

A qualidade de vida para estas populações deve ser a meta, o fim maior de toda a governabilidade, de todo o gerenciamento da coisa pública, para que se possa corrigir a degradação sociocultural a que muitos grupos sociais já estão submetidos.

Recebido: 17/09/2004

Aprovado: 15/05/2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2006

Histórico

  • Aceito
    15 Maio 2006
  • Recebido
    17 Set 2004
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