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Etnografia e tradução cultural em antropologia

Etnografia e tradução cultural em antropologia

Priscila Faulhaber

Museu Paraense Emílio Goeldi / Museu de Astronomia e Ciências Afins

O uso da tradução pode ser observado desde os primeiros registros de viajantes que precisaram comunicar-se com povos estrangeiros e transpuseram suas impressões para a própria língua. Em antropologia, a tradução sempre esteve associada ao registro etnográfico. No entanto, não se pode dizer que toda tradução cultural se baseie em etnografias, nem que em todas as etnografias se empreguem, necessariamente, procedimentos de tradução. Voltada, inicialmente, à interação com povos indígenas, a tradução cultural antropológica passou a ter um alcance mais abrangente, abarcando diferentes culturas no terreno das fronteiras entre diferentes etnias e nacionalidades. No que diz respeito à teoria comparativa do conhecimento, a conceituação de tradução cultural implica a discussão de problemas relacionados ao alcance da racionalidade da construção científica, bem como da relatividade e da comensurabilidade de diferentes formas de conhecimento, procurando equacionar as relações entre linguagens diferentes e uma perspectiva interdisciplinar.

A antropologia da tradução incorpora a história, uma vez que cada tradução é uma atualização de conhecimentos prévios ou pré-constituídos e que a novidade enunciativa é entendida em referência ao presente. Implica, também, o uso da lingüística, no sentido de analisar as já mencionadas correlações entre diferentes linguagens, e o da teoria literária, em termos da construção de sentido numa correlação entre princípios de coerência e princípios de correspondência entre diferentes visões de mundo, de acordo com cada contexto etnográfico. Considera, ainda, outros elementos, como os horizontes narrativos específicos, a verossimilhança na comunicação, a adequação das mensagens trocadas e o ajuste das concepções entre emissor e receptor. Emprega, igualmente, procedimentos da análise política para pensar as transposições de códigos e princípios de coerência para raciocínios jurídicos eficazes, no que diz respeito à aplicação local de princípios universais em contextos específicos.

As questões ligadas à tradução de conceitos resumem-se, assim, na impossibilidade de uma equivalência completa entre o conjunto dos significados de duas culturas diferentes. A tradução consiste em uma tentativa de decifração do sentido através da procura de aproximações entre várias esferas de intimidade – análoga ao trabalho do xamã em diferentes situações rituais, como os ritos de cura de seu paciente ou de conversação com os espíritos. Tomam como referência as experiências antropológicas do contato, examinando as línguas e culturas diferentes, procurando aproximar-se dos conceitos autóctones ou, ao inverso, tentam traduzir categorias de pensamento ocidental para os seus interlocutores. Em tais procedimentos, a antropologia abarca a tradução cultural como uma forma de pensar o cruzamento de diferentes campos sociais, políticos e simbólicos. Reunimos, neste número, trabalhos apresentados no Grupo de Trabalho intitulado "Etnografia e Tradução Cultural em Antropologia", coordenado por Priscila Faulhaber e Pablo Wright, na VII Reunião de Antropologia do Mercosul, em Porto Alegre, em julho de 2007.

O trabalho de Priscila Faulhaber examina a história das relações entre antropologia e tradução em um momento em que existia uma marcada divisão intelectual do trabalho entre antropólogos 'de gabinete' e etnógrafos que viveram durante muito tempo em contato direto com os índios. O texto examina os primeiros tempos da história da antropologia no século XX, mostrando que o conceito de tradução cultural em antropologia foi formulado a partir da comparação de diferentes 'modos de conhecimento' – a partir de ocasiões em que os viajantes europeus encontravam-se com nativos de outros continentes. A comparação entre Constant Tastevin e Curt Nimuendajú mostra que ambos estavam imersos em uma situação de participação etnográfica e de envolvimento com os povos pesquisados, que eles conheceram 'em carne e osso'. Sendo assim, procuraram entender de modo livre de preconceitos etnocêntricos os povos da Amazônia, procurando conhecê-los através do contato direto. No entanto, enquanto produtores de artigos publicados no campo científico, participaram de um processo de apropriação cultural determinado por sistemas de relações de poder envolvendo diferentes situações nacionais.

O artigo de Heloisa Bertol Domingues examina antropólogos que, a par de suas formações acadêmicas, realizaram 'pesquisa de campo'. focaliza, especificamente, Claude Lévi-Strauss, Luís de Castro faria (expedição à Serra do Norte), Charles Wagley e Eduardo Galvão (expedição a Gurupá). Considerando um corte epistemológico entre a antropologia física e a antropologia cultural, Heloisa Domingues mostra que estes autores realizaram traduções culturais, uma vez que privilegiaram o estudo sócio-cultural. A autora combina informações coletadas com base em pesquisa histórica em arquivos – como a leitura de documentos do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (Paris) – com a leitura crítica da obra dos antropólogos que focaliza, mostrando que a separação entre as "duas antropologias" levou esses antropólogos a focalizarem as relações entre o homem e o meio ambiente, a ecologia e os aspectos sócio-culturais.

Marília Facó Soares, a partir da análise lingüística, mostra como a língua é uma forma de estudar o universo Ticuna como um sistema cognitivo. Por meio do estudo da linguagem deste povo, parte de indagações sobre como a antropologia, por meio da tradução cultural, serve como mediadora entre diferentes modos de conhecimento. Sua proposição, deste modo, vai ao encontro de Stanley Tambiah, segundo o qual a antropologia como tradução cultural implica a correlação dos códigos culturais formulados em termos de lógicas diferentes, buscando compreender os diferentes modos de pensamento. A metodologia e os dados seguem os desenvolvimentos formais recentes da gramática de cunho chomskiano, "que leva em conta os sistemas cognitivos com os quais a linguagem faz interface". É um tema e uma relação que têm sido pouco explorados na lingüística gerativista. O objetivo do trabalho é mostrar que alguns domínios da gramática podem se articular com o conhecimento enciclopédico pensado como um conhecimento extralingüístico. A proposta desenvolvida no artigo é sustentada por meio de um texto escrito e traduzido por um falante nativo Ticuna. O artigo é parte de um estudo mais amplo, que pretende discutir, a partir "do que é considerado campo de produção do sentido, como podem ser estabelecidas, de forma multilinear, correspondências entre formas, sentidos e sons e refletir como tais correspondências repercutem sobre a tradução cultural". Trata-se, pois, de um artigo que mostra as perspectivas do estudo entre cultura e língua.

Evelyn Schuler Zea segue uma direção diferente, discutindo a teoria da tradução a partir da perspectiva Waiwai. Pergunta: Tradução de que? De quem? Entre quais sujeitos? Discorre sobre reflexões de tradutores sobre suas traduções, discutindo as implicações da tarefa do tradutor. A passagem da teoria da tradução para a teoria antropológica se dá dentro de reflexões propostas por Talal Asad na releitura de Walter Benjamin. Zea desvia-se da crítica à tradução como apropriação cultural, abrindo caminho para a tradução Waiwai, pensada como um "modo enviesado" de ver as relações entre sujeitos. Tais relações incluem os antropólogos e outros seres humanos ou não humanos. Realiza uma etnografia da antropologia sobre este povo, procurando entender seus deslocamentos, seu olhar, suas brincadeiras rituais. Evoca a imagem do "pacto entre o original e a tradução" para mostrar como a cultura Waiwai se transmite através de um movimento errático, em que a cultura é a própria vida que se transforma e se renova. Em seu exercício de antropologia Waiwai, a autora vivencia dilemas teóricos da tarefa do tradutor, que procura discutir, simultaneamente ao tratamento etnográfico de suas observações diretas, na interação com os Waiwai.

Josué Tomasini Castro parte de sua experiência entre os Herero, na Namíbia (África), para discutir o estatuto da pesquisa de campo como locus da produção da "verdade" etnográfica. Mostra que, de fato, o pesquisador e os pesquisados situam-se em lugares sociais diferentes. Tal locus é a própria escrita etnográfica e não uma 'comunidade' localizada geograficamente, onde o pesquisador passa algum tempo para receber seu 'batismo de fogo' antes de tornar-se antropólogo. A partir da releitura de indagações teóricas sobre etnografia e tradução cultural na antropologia contemporânea, Josué Castro realiza incursões na história da antropologia, remontando a Malinowski e aos africanistas britânicos, bem como aos problemas colocados por sua inserção nas situações coloniais e nos processos de descolonização. Discute, em seguida, dilemas da participação dos antropólogos sul-americanistas envolvidos com a construção identitária e a etnogênese. Neutralidade ou imparcialidade? Distância social, distanciamento reflexivo ou dificuldade de instaurar uma instância reflexiva quando se está imerso na mediação entre atores sociais? Estas questões são equacionadas na escrita antropológica, que ressalta a pertença moral dos antropólogos-cidadãos. "Vá e conte ao seu povo" – é a expectativa dos nativos que o autor encontrou e que o levou a questionar a possibilidade de que a prática antropológica esteja no mesmo terreno de produção de sentido que as práticas dos povos pesquisados.

O texto de Adriana Dorfman trata da literatura de contrabando como um tema para a análise da tradução. Indaga sobre o uso científico de textos literários, mostrando as semelhanças e diferenças entre a pesquisa de campo antropológica e a vivência dos escritores. Inverte, assim, a fórmula de Clifford Geertz, perguntando se devemos tratar o autor literário como antropólogo, ou se devemos considerá-lo como um tradutor das culturas locais. A partir da leitura do livro de Umberto Eco, "Quase a mesma coisa: experiências de tradução", recentemente lançado no Brasil, discorre sobre as diferentes modalidades de tradução. No que toca, especificamente, à tradução cultural em antropologia, menciona a dimensão ética das formas diferenciadas de pensar o mundo. Adota a dimensão política da tradução apontada por Talal Asad, na tentativa da compreensão dos discursos e na tentativa de diálogo entre pesquisador e pesquisado. focaliza cinco contos gaúchos e uma novela, que versam sobre o contrabando, caracterizando-os como "literatura de fronteira", comparando-os a partir das seguintes correlações entre termos hispânicos e brasileiros: bagayo/contrabando, línea/linha e pasar/passar. Trata, também, das representações sobre contrabando em países europeus, como França e Espanha, na área de fronteira entre esses dois países (País Basco). Para finalizar, cabe perguntar se o contrabando pode ser visto como uma metáfora para a tradução, na liminaridade entre regiões limítrofes, como a transposição de sentidos de uma linguagem para outra. Ressalta-se a diferença semântica: contrabandos aparecem como ilícitos e traduções, como inapropriadas.

Eduardo Romano introduz seu texto falando das circunstâncias especiais em que se pode falar de traduções, entre signos, códigos e variantes culturais na poesia gauchesca. Aborda os anos imediatamente posteriores ao fim das lutas civis na Argentina, seladas pela reorganização liberal do país a partir de meados do século XIX. Faz notar, no entanto, que este gênero remonta às últimas décadas do século XVIII. Romano questiona a atribuição de tal retomada do gênero a Bartolomé Hidalgo, remontando aos próprios poetas gauchescos. Em uma leitura livre da cuidadosa análise de Romano, que se circunscreve às particularidades locais do gênero, cabe destacar a ênfase na historicidade de toda tradução. Pierre Menard, celebrizado no conto de Jorge Luis Borges, viu malogrado seu intento de reescrever o Quixote porque vivia em circunstâncias históricas diferentes das vividas por Cervantes. Do mesmo modo que o Fausto de Gounod é diferente do Fausto de Goethe, que é diferente do Fausto de Marlowe, uma recriação da mitologia faustiana britânica. Como o Fausto de Thomas Mann, foi escrito com base na mitologia e na literatura germânica sobre o Fausto, mas sob o impacto das circunstâncias especiais vividas pelo autor nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Sendo assim, o Fausto gauchesco reproduz as singularidades desse gênero poético determinado, que Romano mostra serem circunstanciais e históricas. Temos aqui o encontro da história com a antropologia, no gosto da particularidade e da singularidade.

Para finalizar, um convite para o leitor seguir os itinerários percorridos pelos autores deste número e, quem sabe, apresentar sua contribuição para a correlação entre etnografia e tradução cultural em antropologia, que não se esgota nas páginas desta publicação. Resumindo, pode-se dizer que os artigos deste número versam sobre as possibilidades de pacto ou separação entre etnografia e tradução. Sumariamente, etnografia é o registro escrito sistemático de uma cultura, do ponto de vista de uma determinada etnia, e tradução cultural é a transposição para a linguagem da escrita antropológica dos sentidos de duas culturas diferentes. Qualquer etnografia é, ao mesmo tempo, particular e universal. A tarefa da tradução nunca é completa, uma vez que se leve em conta que toda cultura tem particularidades intraduzíveis, cuja singularidade deve ser reconhecida, salvaguardando-se o direito à diferença em uma postura de pluralismo cultural. Agradecemos aos autores, aos editores, aos pareceristas anônimos e a todos que, de alguma forma, participaram do pacto de qualidade para concretizar a contento a produção deste número do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Assim sendo, esta participação, com todas as divergências próprias à discussão intelectual, transformou a tarefa em uma atividade prazerosa.

Agradecimentos

O trabalho de organização deste número é um produto parcial do projeto "Etnografia e Tradução Cultural na Amazônia. Uma comparação de Constant Tastevin e Curt Nimuendajú", desenvolvido por Priscila Faulhaber com Bolsa de Produtividade I-D, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (março de 2005 a agosto de 2007), e que teve como desdobramento o projeto "Ethnography of the Amazon and Cultural Translation. Comparing Constant Tastevin and Curt Nimuendajú", conduzido na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA/USA), com bolsa de pós-doutorado do CNPq (setembro de 2007 a abril de 2008). Conta, ainda, com nova Bolsa de Produtividade do CNPq, concedida ao projeto "Curt Nimuendajú, a antropologia do clima e o conhecimento Ticuna" (maio de 2008 a março de 2011). Registra-se, aqui, um agradecimento a todos os colegas do Museu Goeldi e do MAST, bem como ao apoio e à amizade de Ruth Monserrat (UFRJ) e Anthony Seeger (UCLA).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Abr 2008
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