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"Vá e conte ao seu povo": interpretações e mediações no trabalho antropológico

"Go and tell your people": interpretations and mediations in the anthropological work

Resumos

Antropólogos são tradutores, intérpretes de uma cultura, de práticas sociais. Mas o que os qualificam como intérpretes fiéis de uma sociedade, grupo ou espaço cultural? Se não existe um consenso em relação a possíveis respostas a esta pergunta, ao menos, não há dúvidas do local onde a tradução final se dará: a escrita. Ela, no entanto, não comprova a veracidade dos dados que são expostos, antes, dá forma a uma verdade que não é bem aquela que o nativo deseja que seja contada ("vá e conte ao seu povo"). O que está revelado nas etnografias é, isto sim, um objeto híbrido que só pode ser descrito pelo uso do que James Clifford dizia ser "poderosas mentiras de exclusão e retórica". Neste artigo, tem-se como base teórica a discussão sobre a escrita etnográfica e sobre certos aspectos que a subscrevem e determinam. Tais questões serão confrontadas com a experiência do próprio pesquisador, baseada em trabalho etnográfico realizado na Namíbia, no vilarejo de Okondjatu, entre o povo Herero. Pretende-se discutir alguns aspectos gerais sobre a experiência dos antropólogos de falar a sua verdade sobre um 'outro', de 'descrever identidades' e de possuir, muitas vezes, o perigoso aspecto de porta-vozes e mediadores culturais.

Tradução cultural; Etnografia; Construções etnográficas; Herero


Anthropologists are translators, interpreters of a culture, of social practices. But what then qualify them as truly interpreters of a society, a group, or a cultural environment? If there is no consent about possible answers to this question, there is no doubt about the place where the final translation will occur: the writing. However, it does not prove the truthfulness of things described, but gives shape to one truth that is not exactly the one 'natives' want to be told ("go and tell your people"). What is revealed in ethnographies is a hybrid object that can only be described using what James Clifford said to be "powerful lies of exclusion and rhetoric". In this article, the discussion about the writing of ethnographies and some aspects that underwrite and determine it will be on its theoretical base. Such questions will finally be confronted with the experience of the researcher himself, based upon a fieldwork in Namibia, in the village of Okondjatu, among a Herero group. It is intended, thereafter, to discuss some general aspects about anthropologists' experience of speaking its truth about an "other", of "describe identities" and possess, generally, the dangerous aspect of spokesperson and cultural middleman.

Cultural translation; Ethnography; Ethnographic constructions; Herero


"Go and tell your people": interpretations and mediations in the anthropological work

Josué Tomasini Castro

Mestrando em Antropologia Social, Universidade de Brasília, Brasília, Dristrito federal, Brasil (josue@portoweb.com.br)

RESUMO

Antropólogos são tradutores, intérpretes de uma cultura, de práticas sociais. Mas o que os qualificam como intérpretes fiéis de uma sociedade, grupo ou espaço cultural? Se não existe um consenso em relação a possíveis respostas a esta pergunta, ao menos, não há dúvidas do local onde a tradução final se dará: a escrita. Ela, no entanto, não comprova a veracidade dos dados que são expostos, antes, dá forma a uma verdade que não é bem aquela que o nativo deseja que seja contada ("vá e conte ao seu povo"). O que está revelado nas etnografias é, isto sim, um objeto híbrido que só pode ser descrito pelo uso do que James Clifford dizia ser "poderosas mentiras de exclusão e retórica". Neste artigo, tem-se como base teórica a discussão sobre a escrita etnográfica e sobre certos aspectos que a subscrevem e determinam. Tais questões serão confrontadas com a experiência do próprio pesquisador, baseada em trabalho etnográfico realizado na Namíbia, no vilarejo de Okondjatu, entre o povo Herero. Pretende-se discutir alguns aspectos gerais sobre a experiência dos antropólogos de falar a sua verdade sobre um 'outro', de 'descrever identidades' e de possuir, muitas vezes, o perigoso aspecto de porta-vozes e mediadores culturais.

Palavras-chave: Tradução cultural. Etnografia. Construções etnográficas. Herero.

ABSTRACT

Anthropologists are translators, interpreters of a culture, of social practices. But what then qualify them as truly interpreters of a society, a group, or a cultural environment? If there is no consent about possible answers to this question, there is no doubt about the place where the final translation will occur: the writing. However, it does not prove the truthfulness of things described, but gives shape to one truth that is not exactly the one 'natives' want to be told ("go and tell your people"). What is revealed in ethnographies is a hybrid object that can only be described using what James Clifford said to be "powerful lies of exclusion and rhetoric". In this article, the discussion about the writing of ethnographies and some aspects that underwrite and determine it will be on its theoretical base. Such questions will finally be confronted with the experience of the researcher himself, based upon a fieldwork in Namibia, in the village of Okondjatu, among a Herero group. It is intended, thereafter, to discuss some general aspects about anthropologists' experience of speaking its truth about an "other", of "describe identities" and possess, generally, the dangerous aspect of spokesperson and cultural middleman.

Keywords: Cultural translation. Ethnography. Ethnographic constructions. Herero.

INTRODUÇÃO

O Sol já estava por se pôr e eu estava há mais de duas horas com Denzel e Maliki, sentado sob uma árvore no terreno onde Denzel havia construído sua casa, bem ao lado do bar do qual ele era responsável. Enquanto conversávamos, alguns outros homens, mulheres e crianças curiosas apareciam em intervalos de tempo para satisfazer sua curiosidade e ter idéia do que falávamos debaixo daquela árvore, voltando rapidamente, após obter algumas informações, para contar aos demais grupos espalhados pelo pequeno terreno, os quais bebiam algumas poucas cervejas junto com pedaços de pão frito – os fatcakes.

Denzel é um homem curioso, inquietante em seus planos para crescer nos negócios, abrir uma loja só para ele e manter sua família de maneira confortável. Toda sua sede por conhecimento, no entanto, contrasta com a limitação de não saber ler ou escrever e de não saber falar inglês – língua oficial da Namíbia. Toda vez em que eu passava em frente à sua loja ele gritava de onde estivesse, me chamando, ao mesmo tempo em que convocando alguém que soubesse falar inglês para traduzir nossa conversa (nesse dia, havia sido Maliki com quem eu havia passado a tarde andando pelo vilarejo). Nosso encontro rendia sempre algumas horas – sempre horas – de conversa, nas quais ele enumerava de tópico em tópico diferentes assuntos sobre os quais gostaria de saber mais e sobre os quais queria me falar – ele tinha um interesse especial em falar sobre os Estados Unidos e George Bush, de onde ele migrava quase que obrigatoriamente ao Iraque e ao problema do petróleo, que ouvira falar por meio de alguns amigos que liam o jornal comprado por ele; gostava também de falar sobre o período de colonização, de onde ele também costumava migrar para os problemas oriundos do contato entre brancos e negros.

Faltavam apenas alguns dias para que eu fosse embora e eu sentava pela última vez para conversar com Denzel, ouvir suas histórias e tentar satisfazer sua curiosidade. Naquele dia, Denzel havia começado a conversa dizendo: "Até hoje, em todas as nossas conversas, falamos sobre muitas coisas e hoje quero te contar como acontecia para que os jovens se tornassem adultos [homens e mulheres] prontos para casar". Ele iniciou descrevendo como eram algumas de suas brincadeiras de infância, passando em seguida para uma longa descrição de como foi sua iniciação para se tornar "homem de verdade". Ao final – chegando agora ao momento no qual comecei esta introdução –, quando estávamos prestes a terminar aquele encontro, Denzel apertou minha mão e, como que me designando uma missão, me instigou, sendo em seguida traduzido por Maliki:

Em toda a minha vida já vi muitos brancos, mas com nenhum deles tive coragem e vontade de conversar... Você foi o primeiro branco com quem sentei para conversar e foi porque você está aqui para conhecer mais sobre os povos africanos, nossa origem e nossa cultura, que lhe contei tudo isso... Agora, você está voltando ao Brasil com tudo isso... Então, vá e conte ao seu povo sobre quem somos nós e sobre como vivem as pessoas de Okondjatu, para que eles possam nos ajudar (Namíbia, 18/02/2006).

Naquela noite, enquanto eu voltava para minha barraca, lembro de ter me sentido encurralado por aquelas palavras. O que exatamente ele estaria pensando quando pediu para que suas vidas fossem contadas? O que ele queria que fosse contado e como ele achava que isso deveria ser contado? E ainda, de que tipo de ajuda ele estaria falando? Muitas vezes, o que o pesquisador entende por ajuda é consideravelmente diferente do que aqueles que a solicitaram pensam – e, nesse sentido, parafraseando Sahlins (1981), o mal-entendido pode não ser produtivo. Um outro breve acontecimento pode ser relatado para mostrar a iminência desse tipo de 'problema', com o qual os antropólogos, desde sempre e, talvez, cada vez mais, têm que lidar.

* * *

Meu maior interesse em Okondjatu, ao qual cedi mais tempo durante a pesquisa – o tema da minha monografia (Castro, 2006) –, foi na temática da religião. Okondjatu possui um campo religioso diversificado e interessante, que não pretendo descrever aqui, obrigando o pesquisador a participar de diferentes cultos e rituais. Em um desses cultos, realizados na Igreja da Estrela de São Josué, uma situação similar à anterior aconteceu nos últimos minutos, logo após a palavra do bispo Abiud.

O local da igreja é simples, situado ao lado da casa onde o bispo mora com sua mulher e seus filhos. O templo, pintado de vermelho e branco por fora, possui uma área de, no máximo, 50m2, com pouco mais que 2m de altura. Suas dimensões, combinadas com sua estrutura física de folhas de zinco, com o ardente sol que brilha incessante em um céu com poucas nuvens e com o fato de que a única porta e as duas pequenas janelas permanecem fechadas o tempo todo, faz do local um ambiente muito abafado e escuro, sendo que apenas algumas poucas velas ajudam a iluminar o pequeno cômodo. Durante o culto, as pouco mais de 45 pessoas presentes se aglomeravam nas paredes da igreja – algumas sentadas nos poucos bancos e cadeiras e outras acomodadas no chão – deixando o centro livre para as danças. O bispo e sua esposa posicionaram-se de frente para todos, atrás de uma mesa de madeira onde ficam sentados durante o culto.

As mais de três horas de culto já estavam chegando ao fim. Abiud havia terminado sua palavra há poucos minutos e todos ainda estavam sentados esperando o início de mais algumas músicas antes de irem embora. Ele, então, se virou para onde eu estava, junto com os demais homens da igreja – homens e mulheres devem sentar separados uns dos outros –, e, da mesma maneira com que Denzel havia feito, afirmou em um tom profético:

Você está vendo o local onde estamos realizando este culto; você tem visto nossas casas, a forma como vivemos e como é a cultura Herero. Agora, você deve colocar isso tudo nos seus relatórios e falar para as pessoas no Brasil como nós vivemos nesse lugar e as dificuldades que passamos (Namíbia, 15/01/2006).

* * *

Podemos perceber nas descrições acima a existência de uma clara demanda 'nativa' por auxílio político – enquanto tradutor/divulgador cultural – e para que esse auxílio possa trazer benefícios financeiros ao grupo em questão, o qual o antropólogo é constrangido a suprir, exigindo algo que vai além de nossa presumidamente imparcial1 1 Para que não pequemos em algo que há tanto já foi derrubado em Antropologia, é preciso deixar claro a diferença entre imparcialidade e neutralidade. O trabalho etnográfico jamais poderá ser neutro, o pesquisador não consegue fugir de seu bias e de todos os seus preconceitos, intrínsecos a ele (Gadamer, 2004[1975]). No entanto, é possível, sim (e é justamente isso que está presente em nossas 'observações participantes'), sermos imparciais diante daquelas demandas que enfrentamos (Cardoso de Oliveira, 2006[2002]). observação participante. Assim, reservando para outro momento a discussão das teorias sobre a manutenção e o (re)surgimento de identidades, nosso esforço será o de discorrer sobre: (1) o problema de transmitir a outrem o modo de vida, a cultura e, inevitavelmente, de descrever e definir uma identidade; (2) o problema do papel de intermediário, ao qual o antropólogo, pesquisador de campo, muitas vezes se vê atrelado, defendendo e legitimando certas identidades.

O primeiro problema nos levará a pensar a etnografia enquanto local onde a transmissão final de certas identidades se dará. Esse esforço nos conduzirá à análise da escrita etnográfica enquanto local privilegiado de tais construções para, nesse ponto, interferirmos na discussão a respeito da construção de diferentes 'economias da verdade' nos trabalhos etnográficos, questionando a possibilidade do antropólogo de ser um 'fiel intérprete' de distintas construções identitárias e sociais.

O segundo desafio, que cada vez mais antropólogos se vêem a enfrentar, desencadeará uma breve discussão sobre certa práxis antropológica, com a qual muitos de nós, fieldworkers, não sabemos como lidar. Por exemplo, os limites necessários para que tais esforços (antropológicos e políticos) possam trabalhar conjuntamente, dando forma a construções antropológicas que possibilitem aos aparatos políticos de nossas sociedades o acesso e entendimento de tais conhecimentos, ao mesmo tempo em que mantenham o diálogo com os elementos internos da própria disciplina e a preservação de um cuidado ético em relação ao grupo estudado.

O Intérprete

Recorro a mais uma situação de campo para iniciar esta reflexão, pois ela poderá evidenciar melhor o dilema que tantos de nós enfrentamos em nossas atividades enquanto antropólogos.

O primeiro dia do último mês de trabalho começava em meio a turbilhões. O tempo estava passando e eu tentava elaborar um plano de trabalho que pudesse me ajudar a preencher as brechas que ainda ocorriam em meu cotidiano. Eu estava sentado dentro de um pequeno cômodo ao lado da casa do pastor Matuzee, com alguns papéis na mão, esperando a hora passar para entrevistar um homem que havia demonstrado interesse em me explicar alguns aspectos de suas crenças.

Passando um pouco o horário do meio dia, uma mulher com quem eu havia conversado alguns dias antes me viu dentro do quarto – eu estava com a porta aberta – e resolveu se aproximar para conversar um pouco e tirar algumas dúvidas a respeito do que eu estava fazendo lá. Suas perguntas não foram além dessa curiosidade inicial e minhas respostas não passaram do usual: "estou aqui para entender melhor a cultura Herero". No entanto, um questionamento chamou minha atenção. Na verdade, era mais uma dúvida, uma desconfiança. O diálogo se passou mais ou menos assim:

Mulher – Então, o que você está fazendo aqui mesmo?

Pesquisador – Estou aqui para entender melhor a cultura Herero e, especificamente, a tradição do fogo Sagrado...

Mulher – Hum, ok. Mas, e quando você voltar, o que você vai fazer com isso?

Pesquisador – [tentando resumir essa difícil pergunta] Terei que apresentar um trabalho na minha universidade sobre o que aprendi aqui...Terei que escrever sobre tudo isso e serei avaliado por algumas pessoas, que dirão se meu trabalho ficou bom ou não.

[a Mulher fica em silêncio, pensando por alguns segundos]

Pesquisador – Mas, por que essas perguntas? Há algo que você queira saber?

Mulher – Sim, sim. Essas pessoas que irão te avaliar, elas já conhecem esse lugar, certo?

Pesquisador – Como assim? Eles sabem que eu estou aqui, mas eles nunca estiveram aqui.

Mulher – Mas, se eles não sabem sobre o fogo dos Herero, como eles poderão saber que você está dizendo a verdade?

Pesquisador – Bom, eles apenas sabem, eles irão ver minhas descrições e as fotos...

Mulher – [balançando a cabeça em sinal negativo] Mas, como eles vão acreditar em você sem nunca terem vindo aqui? Eles deveriam ter vindo primeiro para depois poder comparar os resultados (Namíbia, 15/01/2006).

Havia pouco o que se falar e muito para se rir – realmente, essas relações são imprevisíveis. O problema é tão visível que uma mulher que nunca havia ouvido falar de Antropologia pôde perceber que algo de perigoso, ou talvez pretensioso demais, ocorre neste trabalho. Afinal, o que qualifica um pesquisador como intérprete fiel de uma sociedade, grupo ou espaço cultural? Se não existe consenso em relação a possíveis respostas a essa pergunta, ao menos, não há dúvida do local onde a tradução final se dará: a escrita. Ela é o terreno onde as interpretações ocorrem, é onde as construções a respeito das verdades de um 'outro' são possíveis de serem transmitidas e, por isso, é o local onde a etnografia está, como ressalta James Clifford (2002), imersa, do começo ao fim.

A forma de se pensar a escrita etnográfica passou por algumas modificações desde Malinowski – para não nos deslocarmos por uma longa linha temporal. Pensando a respeito disso, Evans-Pritchard (2005[1976]), no quarto apêndice da edição pós-morte do seu "Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande", reflete sobre algumas questões do trabalho antropológico por excelência, aquilo que – para invocar Geertz (2001, p. 89) – "fazemos que os outros não fazem, ou só fazem ocasionalmente, e não tão bem feito", tal seja: o trabalho de campo. Em um dado momento de suas argumentações, Evans-Pritchard (2005[1976], p. 245) admoesta que, apesar de reconhecer a importância do trabalho de campo para a Antropologia, "a batalha decisiva não se trava no campo, mas depois da volta".

Como um homem de seu tempo, Evans-Pritchard, no entanto, não percebeu o que alguns anos mais tarde surgiria nos debates dos então chamados pós-modernos (se é que existe tal coisa) na Antropologia. Ele continuava sem temer nada, da poltrona do seu gabinete (logo após sua volta coroada), sem medo "de entender mal ou ser mal entendido", sem medo do "etnocentrismo" (Zaluar, 1986, p. 110), sem questionar-se sobre a verdade dos fatos. Afinal, "ele esteve lá" (Geertz, 2005[1988]).

Ao encontro destas consagradas posições temos os seminários de Santa Fé, que provocaram uma mudança interessante nos (des)caminhos antropológicos. Fomos colocados a pensar a criação etnográfica; levados a repensar nossos métodos de escrita e questionar nossa 'natividade'. Os muros sob os quais guardávamos nossa neutralidade foram derrubados. Com reflexões semelhantes às da hermenêutica de Gadamer e outros filósofos alemães, pôde-se perceber a impossibilidade de abafar nossos preconceitos [prejudices] (Gadamer, 2004[1975]) e de esconder o ego antropológico – impossibilidade jamais questionada pelos intensos treinamentos teóricos defendidos pelos fundadores da disciplina antropológica.

A partir de então, são muitos os trabalhos que procurarão mostrar a construção negociada de nossas atividades enquanto 'intérpretes'. Minando as bases monológicas de perspectivas absolutas e privilegiadas do até então vigente pensamento antropológico, começa-se a questionar a possibilidade do pesquisador simplesmente se colocar por detrás dos ombros do 'nativo', sem que isso influencie as próprias ações desse nativo. Assim, nossas interpretações não seriam da 'vida nativa', mas da 'vida nativa na presença do pesquisador', interpretações de interpretações – como na imagem que Foucault (2002[1966], p. 20) nos desafia a pensar em seu "As palavras e as coisas": a mesma percepção que ele teve do quadro de Velásquez "como que a representação da representação clássica", poderíamos ter de nossas etnografias como a representação da representação 'nativa'.

A "estratégia" dialógica de Dennis Tedlock (2003[1987]), se opondo ao pensamento "anti-hermenêutico" precedente, se encontra aí. É nessa mesma lógica que se enquadram as construções de Paul Rabinow (1977, p. 151), salientando, na conclusão de seu "Reflections on fieldwork in Morocco", que "this is the ground of anthropology; there is no privileged position, no absolute perspective, and no valid way to eliminate consciousness from our activities or those of others". E, também, como "Bourdieu nos ensina a perguntar em que campo de poder e em que posição neste campo o autor escreve" (Rabinow, 2002[1986]). De igual maneira, Jean- Paul Dumont (1978, p. 3-5), em seu "The headman and I", ao se questionar "Who was I for the Panare?", reconhece o "dialogue established, despite all odds, between an 'I' and a 'they'" como central em sua construção etnográfica. Poderíamos citar, ainda, "Tuhami: a portrait of a moroccan", de Vicent Crapanzano (1980), onde podemos perceber a construção da etnografia, ao longo do livro, no diálogo entre o antropólogo e seu interlocutor. Assim, para concluir com Marilyn Strathern (2003[1987], p. 242), com a emergência do pensamento pós-moderno, o

poderoso marco modernista, la distinción entre nosotros y ellos que creó el contexto para posicionar al escritor em relación con lo que estaba describiendo, se há convertido em algo ampliamente desacreditado.

Passa-se, então, a entender que as etnografias – as verdadeiras ficções etnográficas, como salienta Clifford – apenas poderão ser apreendidas quando polidas pelo exercício da escrita, pelo esforço de conjugar sob uma mesma estrutura – e isso a embalos bakhtinianos – as "insistentes vozes heteroglotas" que quebram o "silêncio da oficina etnográfica" (Clifford, 2002, p. 22). Escrever uma etnografia seria, portanto, mediar uma relação de poder, seria criar, ajustar e transformar a realidade pesquisada, ao mesmo tempo em que se busca uma verdade absoluta que não existe.

Então, que verdade é essa que o pesquisador constrói? Para relembrar as palavras daquela mulher Herero, "como eles vão acreditar em você sem nunca terem vindo aqui?". Mais exatamente, no que eles terão que acreditar? Se a escrita etnográfica é, tanto como a experiência de campo, um momento de construção e tradução (Rabinow, 1977), e se esses processos estão perpetuamente conectados às construções subjetivas, isso se deve, sempre, à criação sui generis de uma verdade.

A verdade, ressalta Rabinow (2002[1986], p. 98), é uma preocupação tanto de críticos, feministas e intelectuais críticos, quanto de antropólogos. Queremos falar a verdade sobre os outros, queremos viver – em campo – a verdade dos outros, talvez com medo do que aconteceu com Cushing quando de sua transformação em "Sacerdote do Arco", numa cerimônia entre os Zuni (Zaluar, 1986, p. 111), para poder contar essa verdade com exatidão aos nossos colegas nos corredores e departamentos de antropologia e elaborar esquemas conceituais 'verdadeiros' – justamente porque baseados em 'verdadeiras' constatações (irônico, mais uma vez). Acabamos, então, por corroborar um conceito "imanente" de verdade – a verdade como "concordância do pensamento [do antropólogo] consigo mesmo" – enquanto que procurando provar um conceito "transcendente" da mesma – admitindo a concordância entre pensante e "objeto" do qual se pensa, ou seja, antropólogos e grupos pesquisados (Hessen, 2003, p. 119).

Assim, entendendo a 'verdade' como uma construção individual (motivada também por certa consciência coletiva) a respeito de um objeto, de uma construção social ou de um fato qualquer, e não como aquela verdade epistemológica sobre a qual Foucault (1980), Hacking (1982), Gadamer (2004[1975]) e outros discorreram, é improvável deixarmos de questionar o perigo de defender, em nossas descrições – na escrita –, uma perspectiva privilegiada, comprovada justamente pelas letras sobre o papel.

A escrita não comprova a verdade. Antes, dá forma a uma verdade, que só pode ser possível pelo uso de "poderosas 'mentiras' de exclusão e retórica". Assim, qualquer texto etnográfico, "mesmo os melhores textos etnográficos – sérios, ficções verdadeiras – são sistemas, ou economias, da verdade". Apesar dessa propriedade maleável e, por vezes, insegura da escrita etnográfica, há certos aspectos que a subscrevem e a determinam, os quais, como destaca James Clifford (1986, p. 6-7), governarão a elaboração das "ficções etnográficas coerentes":

A escrita etnográfica é determinada no mínimo de seis formas: (1) contextualmente (se origina e cria significativos meios sociais); (2) retoricamente (usa e é usada por convenções de expressão); (3) institucionalmente (se escreve de dentro, e contra, tradições específicas, disciplinas, auditórios); (4) genericamente (uma etnografia geralmente é distinguível de um romance ou um diário de viagem); (5) politicamente (a autoridade para representar realidades culturais não é dividida igualmente e é, por vezes, contestada); (6) historicamente (todas as convenções e construções acima estão em mudança).

O melhor que se pode fazer é deixar claros esses elementos determinantes e explicitar o fato de que tudo o que será trabalhado, analisado e discutido em nossos textos está vinculado não só à experiência com o 'outro', mas à experiência com o self. Assim, tal como um caçador Cree, da América do Norte, que foi requisitado a descrever seus modos de vida e, hesitante, duvidou que fosse capaz de dizer a verdade, seria sempre necessário ressaltar: "Não tenho certeza se posso dizer a verdade... eu apenas posso dizer o que sei" (Clifford, 1986, p. 8).

Já vimos, é impossível "'hablar por' el nativo, representándolo – para sus propósitos – en el discurso" antropológico, tal como ocorria (e possivelmente ainda ocorre) nas "típicas" descrições etnográficas (Tyler, 2003, p. 289). Isso, enfim, nos coloca diante do fato de que aquilo que o nativo pede para que seja contado – "ao seu povo" – não é aquilo que realmente será transmitido pelo antropólogo. Tais exatidões de pensamento e perspectiva, entre os antropólogos e seus interlocutores, são utópicas.

Por fim, é preciso ter cuidado. As identidades 'preservadas' em campo e percebidas pelos 'nativos' não são, exatamente, aquelas que o pesquisador percebe e 'preserva' em seus textos. Não são poucos os casos de antropólogos que, ao terem suas teses e livros lidos por aqueles com quem trabalharam, são admoestados por estes últimos sobre a falsidade de suas construções textuais – etnográficas. Isso não significa dizer de nossos trabalhos que sejam ficções, mas eles também não são verdades absolutas – eles são 'baseados em fatos reais'. Ainda assim, como todos estes desconfortos, nossas etnografias estão prenhes de significado, elas transmitem e interpretam algo (Crapanzano, 1986, p. 52). Somos fálicos, tal como Hermes – o deus grego da fertilidade (também o mensageiro entre o céu e a terra) –, mas não somos deuses.

O Mediador

Lembro de nos primeiros dias de minha estada em campo estar caminhando por Okondjatu, ainda sem saber muito bem o que fazer e tentando me fazer conhecido por todos, à procura do Fogo Sagrado, local onde ocorre um ritual diário onde o homem mais velho de seu núcleo familiar conversa com seus ancestrais. Eu já estava me encaminhando de volta para 'casa' quando Nocky – que acabaria se tornando um interlocutor muito interessante – me viu passar em frente ao seu quarto, no terreno onde ele morava com sua mãe e alguns irmãos.

Ao ver-me, perguntou se eu sabia onde ele podia encontrar o pastor Engelbert, já que eu estava alocado em uma barraca junto à sua casa. Eu disse que não sabia e ele logo continuou a conversa, se apresentando: "You are Castro, right? I´m Nocky. Nice to meet you". Respondi com igual delicadeza e interesse. Em seguida, ele perguntou – como de praxe – o que eu estava fazendo ali e o que eu estava achando. Em seqüência às minhas respostas, ele disse que Engelbert havia comentado com ele sobre a conversa que havíamos tido na noite anterior sobre desenvolvimento. Ele queria saber mais sobre aquilo tudo.

fiquei surpreso. Nocky era jovem, tinha 22 anos e era visto por todos como 'líder' dos jovens no vilarejo. Estava envolvido com alguns projetos sociais (que incluem desde políticas para a prevenção do HIV até iniciativas de cooperação entre os 'nativos' para arrecadar fundos através de investimento em atrativos turísticos) e constantemente pensando na questão do desenvolvimento. Ao ver-me, ele pareceu ter automaticamente reconhecido alguém que poderia e deveria fazer algo.

Mesmo após a resposta sobre minhas intenções ali (trabalhar com fenômenos religiosos – apesar de nunca ter descartado a possibilidade de pensar a questão do desenvolvimento), e 'entendendo' o trabalho antropológico que me propunha realizar2 2 O entendimento era parcial, mas certamente era mais elaborado do que a maioria dos outros moradores de Okondjatu. , Nocky me chamou até o seu quarto e, de posse de alguns documentos, dados e outras informações sobre a região onde estávamos, começou a instigar-me o pensamento, exigindo algo que fosse além do meu esforço por 'conhecer'.

Partindo dessa situação, a pergunta de Roberto Cardoso de Oliveira (2006[2002], p. 227) parece fazer eco: "qual de nós, especialmente os etnólogos, não se viu um dia pressionado para agir simultaneamente ao seu esforço em conhecer?" (itálicos do autor). Podemos iniciar, desse modo, a reflexão deste último e desafiador problema: o de ter (con)fundido o papel do etnógrafo com o papel do mediador cultural e porta-voz de uma identidade.

Na África, essa (con)fusão pode ser claramente percebida na história colonial britânica. A mistura daqueles papéis era intrínseca à antropologia e, inicialmente, isso não causava nenhum transtorno. Segundo Jongh (1997, p. 451), "Anthropology was in no small measure an accomplice and a tool in the colonizing of Africa". De fato, essa relação teria garantido a existência da disciplina e a continuidade de estudos aprofundados. É o que destacam Evans-Pritchard e Firth (1949, p. 137-138):

(...) though after long and shameful neglect by the British people and Government it is now realized that it is impossible to govern colonial peoples without knowledge of their ways of life (...) the vital importance of anthropology is now recognized; (...) the Colonial Office is encouraging research. (...) The greatest value to anthropology, however, lies in the increase of scientific knowledge that will come from the new investigations undertaken.

Certamente, a relação é ambígua. Ao que parece, ao se considerarem como verdadeiros porta-vozes dos grupos com os quais trabalhavam, os antropólogos da primeira metade do século XX colocavam-se diante dos governos coloniais como essenciais para o governo de tais comunidades. O próprio esquema britânico dos indirect rules tornava necessário o conhecimento daqueles que deveriam ser governados para que se pudesse elaborar esquemas de colonização similares aos sistemas de governo dos diferentes grupos africanos. Assim, destaca Sally Moore (1994, p. 74-75):

The anthropologists of this period thought of themselves as empathic friends of Africans and accurate observers of the situation. Moreover, many anthropologists saw themselves as unequivocally on the African side of the controversial issues of the colonial period. They considered themselves knowledgeable go-betweens, occasional intervenors on behalf of Africans in their dealings with the administration.

Se o início da colonização (nas últimas décadas do século XIX) em massa do continente africano – e de outros continentes – foi o marco da instituição da disciplina e a base da transformação dos antiquários em antropólogos profissionais, o fim desse mesmo período (a partir da década de 1960) – devido aos processos de independência dos países africanos – marcou a transformação das inquestionáveis tarefas de tradutor e intérprete para um clima de desconfiança e crítica, que para muitos deveria ter dado fim à antropologia.

Muitos pronunciaram, in memoriam, a fatal morte daquela que seria – como afirmou Kathleen Gough (1968) – a filha do imperialismo (colonialismo) ocidental. Alguns acreditavam que isso se daria pelo dispersar da disciplina por outros campos das ciências humanas (Hooker, 1963; Maquet, 1964; Lévi-Strauss, 1966); outros, reconhecendo a falta de coerência e rigor teórico da disciplina, acreditavam que, ao invés da desintegração, esses limites culminariam na atrofia da disciplina: a antropologia morreria naturalmente (Worsley, 1966; Needham, 1970).

A este processo de descolonização da África (e à paralela tentativa de fazer o mesmo com a antropologia), integraram-se – conjugando forças – as críticas americanas ao seu imperialismo instituído desde o fim da Segunda Guerra Mundial (todo o nono volume da revista Current Anthropology, de 1968, além de Hymes, 1974[1969]). As críticas americanas, no entanto, apontavam para soluções diferentes. O pessimismo europeu da inevitabilidade apocalíptica de nossa disciplina se manifestou nos Estados Unidos como um sentimento de auto-crítica (auto-penitência, talvez), preocupado com a cumplicidade da antropologia com a dominação do recém criado 'terceiro mundo'. Diferentemente dos esforços europeus, e envoltos por um clima de sinceridade intensa, os americanos colocavam em questão a possibilidade de que a antropologia se tornasse relevante para o mundo moderno e afirmavam que isso não ocorreria "unless anthropologists first recognize and thus neutralize this bias and then choose problems and develop theories more appropriate to present-day reality" (Gjessing, 1968, p. 402).

Apontada por alguns antropólogos como uma forma de sobreviver a todas essas críticas, forjou-se a alternativa metodológica – não exatamente conceitual ou teórica – da 'antropologia do desenvolvimento'. Os antropólogos continuavam a acreditar que sabiam exatamente quem eram aquelas pessoas. Os países da década de 1960 eram as 'tribos' que eles conheciam muito bem. A alternativa, no entanto, se aproximava do que E. R. Leach (apud Mafeje, 2001[1996], p. 51) chamou de neo-colonialismo. A questão, é claro, continuou em aberto (de fato, ainda continua).

De todos esses debates evoluíram outros trabalhos, os quais, juntos, inauguraram o momento da chamada pós-modernidade em antropologia (em ordem cronológica e em uma perspectiva de influência ascendente dos principais trabalhos, ver: Hymes, 1974[1969]; Asad, 1973; Fischer e Marcus, 1986; Clifford e Marcus, 1986; e – este com não tanta influência – Comaroff e Comaroff, 1992). Esses debates influenciaram também os trabalhos dos etnólogos sul-americanistas. É a eles que me dirijo agora.

Uma pequena nota introdutória, no entanto, merece ser ressaltada. Os debates sobre a posição do antropólogo enquanto mediador cultural se deram de maneiras diferenciadas nestas duas 'áreas etnográficas'. A luta de grupos indígenas na América Latina (e nas Américas, em geral) ocorreu (e ainda ocorre) de maneira consideravelmente diferente de como ocorreu na África. Enquanto no continente africano vê-se a luta política para a criação de 'estados autóctones' – isto é, a tentativa de total destruição do aparato colonial e o domínio das estruturas de poder –, nas Américas o que ocorre é a luta de um grupo autóctone consideravelmente minoritário para alcançar espaços de legitimidade política, com fins de garantir direitos (a posse da terra, por exemplo) diante de um estado nacional que os abrange – e não a tentativa da criação de um estado, tal como ocorre na África.

O papel dos antropólogos no cenário da etnologia sul-americana está envolto em um campo político consideravelmente diferente do quadro africano. Aqui, desde a década de 1970, essa fusão entre 'conhecedor' e 'ator político' tem sido um tópico recorrente nas reflexões antropológicas.

Bruce Albert (1997, p. 56), em um pequeno artigo intitulado "'Ethnographic situation' and Ethnic movements", discute a mudança nos métodos tradicionais da antropologia canonizados por Malinowski, por onde continuaremos nossa reflexão:

Since the 1970s, indigenous communities and organizations have been openly questioning the purpose and consequences of anthropological study in relation to their own projects for selfdetermination. Under these circumstances, anthropologists find themselves faced with two ethical and political obligations which were eluded by classical ethnography, but are unquestionable nowadays: on the one hand, being accountable in their work to people who were traditionally only the 'objects' of their studies; on the other, assuming the responsability their knowledge entails for these peoples' resistance strategies vis-a-vis the dominant nation-states' discriminatory and despoiling policies. Yet far from leading to a mere condemnation of anthropology, this situation has created an increasing demand for anthropological involvement.

Essa transformação "on the canonical precepts of ethnographic 'participant observation'" (Albert, 1997, p. 56) é onde podemos perceber melhor o início das discussões – de certa forma – metodológicas sobre o papel do antropólogo em situações de campo diferentes daquelas pensadas e vivenciadas por Malinowski. Para citar Albert (1997, p. 54) mais uma vez, o que está desaparecendo não são os 'nativos' tal como previsto por Malinowski, mas antes, "what is increasingly disappearing are the epistemological illusions on which classical anthropology was based".

Essas situações pós-malinowskianas, que, para nós, parecem a base – quase – paradigmática na qual o debate sobre o papel do antropólogo se desenrolou, trouxeram à tona as discussões sobre a 'participação observante' enquanto princípio fundante da situação etnográfica, em oposição àquela 'observação participante'.

Essa inversão gramatical – de uma participação adjetiva para uma substantiva (Cardoso, 1986, p. 101) – foi importante para fortalecer os preceitos pós-modernos contra a possibilidade de uma construção etnográfica neutra, mas conjugado a isso 'criou' o que acreditamos ser um perigoso status representativo, quase diplomático – justamente porque imbuído de características políticas de mediação (entre sociedades indígenas e estado-nação) – do ego antropológico.

É o problema da "antropologia aplicada" (Albert, 1995) ou da "antropologia prática" (Bastide, 1979; Cardoso de Oliveira, 2006[2002]). Como dar conta da demanda nativa e daquela antropológica sem minar tanto uma quanto outra? Isso deverá implicar um cuidado ético com o material de campo (ou seja, o que falar, como falar e para quem falar) e um cuidado metodológico com a experiência etnográfica (que limites estabelecer nessa condição antropológica orgânica – aludindo a Cardoso (2006[2002]) – e como manter a autonomia intelectual do pesquisador).

O cuidado ético ou moral do pesquisador é necessário, justamente, porque sua posição enquanto antropólogo em situações interétnicas – sendo requisitado pelo governo para dizer 'quem é e quem não é índio' (problema catalisado pelo fenômeno do que se costuma chamar 'etnogênese') e visto pelos próprios índios como uma forma de legitimar sua identidade – tem sido cada vez mais percebida como importante para a determinação de certos 'territórios identitários'.

Albert (1997, p. 59) ressalta a respeito disso: "in this global 'culturalist' political environment, ethnographic discourse has become a strategic tool – a symbolic mirror (in identity reconstruction) and a means of legitimation (by scholarly recognition)". O próprio Albert (2002[1992], p. 246), em outro trabalho, destaca que "os antropólogos e suas competências de mediação interétnica (...) aparecem para os índios, nesse contexto, como canais privilegiados de uma estratégia política de controle das representações de si por meio do espelho cultural da fronteira". No sentido inverso (a visão dos antropólogos), os etnólogos, dispostos a dedicarem seus esforços para o desenvolvimento das populações indígenas, percebendo o poder político que seus trabalhos possuem, admitem também – tal como Orin Starn (1991, p. 86) discorrendo sobre as populações andinas do Peru – que "we have helped to construct a discourse that has conditioned not only how the rest of the world perceives the Andes but also how Andean people understand themselves".

Admite-se, então, que o uso do trabalho etnográfico para corroborar a formação de identidades e os discursos 'nativos' deve propor, ao menos, um olhar mais cuidadoso sobre esse fazer antropológico. Assim, o produto antropológico pode também ser percebido na "luta [indígena] para dominar todos os aspectos institucionais e tecnológicos da dependência" para com o aparato "estadonação" (Turner, 1993, p. 64).

Além do cuidado ético e moral, é preciso atentar para as demandas do trabalho antropológico em si. Isso não significa pleitear certa objetividade e neutralidade do antropólogo frente ao grupo estudado, e muito menos a defesa da possibilidade inquestionável da situação de afastamento, entendida por muitos como necessária para a construção da "verdade" etnográfica (Cardoso, 1986) – a visão do outsider e a do insider são ambas situadas.

No entanto, apesar de ser facilmente aceito o fato de que é impossível sermos apenas observadores – "for political positions are implicated and identity (...) matters much more than before" (Jackson, 1999, p. 285) – é preciso ter o cuidado de não condicionarmos nossas pesquisas apenas para fatores políticos. Certamente, tal como salientou Turner (1993, p. 43) discorrendo sobre as produções etnológicas na região amazônica, é necessário entender que, ao estudar em zonas de "fricção interétnica"3 3 Talvez devêssemos nos perguntar se há algum local onde nenhum tipo de fricção exista. (Cardoso de Oliveira, 1996[1964]), o antropólogo jamais conseguirá entender profundamente os sistemas de parentesco, a religião ou a organização social se não atentar para os frutos desses contatos, para os discursos 'nativos' a respeito daquelas relações interétnicas. É preciso ter cuidado sem, no entanto, desprezar tais aspectos.

Como já disse, o trabalho antropológico, diante da constante auto-afirmação da identidade indígena, "é um meio, às vezes decisivo, de viabilização" de projetos de territorialização e autonomia social das comunidades indígenas (Albert, 2002[1992], p. 246). Muitas vezes, por certo mal-entendido (nesse sentido, não produtivo), o antropólogo pode ser visto como alguém à disposição unicamente das demandas nativas. É nesse ponto que se encontra o maior problema do papel de mediador interétnico. Albert (1997, p. 58) discorre sobre este problema:

As with any action-oriented research, whether directly commissioned or simply induced by the representatives of a certain 'social demand', applied anthropology with indigenous peoples raises the problem of the researcher's intellectual autonomy. Indigenous communities or organizations and their leaders, (...) always hope that the anthropologist's work they commissioned or encouraged will lead to a legitimation of their own cultural and political empowerment project.

Não é mais possível ser somente um observador – "to assume that one can speak objectively and authoritatively by being informed and not involved is a delusion" (Jackson, 1999, p. 285) –, acreditando manter-se a uma distância suficientemente objetiva da situação pesquisada para que nossa presença não seja percebida. Além disso, essa impossibilidade é causada tanto pela demanda nativa (que, de certa forma, quer ou espera algo em troca) quanto pela demanda acadêmica (como discorrer sobre os Yanomami, os Tikuna, os Ashaninka ou os Herero sem dar conta dos discursos de formação identitária?). A pesquisa antropológica está situada, justamente, nesse interstício entre "solidariedade" e "pesquisa" (Albert, 1997, p. 59), e o perigo está tanto em defender uma neutralidade antropológica diante das situações de campo (fechando os olhos para as demandas nativas e sua relação com os demais aspectos de uma determinada sociedade) quanto em tomar as demandas nativas como suas próprias demandas (deixando de refletir sobre o que essas demandas podem dizer para além de si mesmas).

CONCLUSÃO

Esse debate não é novo. As reflexões feitas aqui vêm sendo discutidas há algum tempo, e os autores trabalhados em nosso esforço não são a totalidade das vozes que nos conclamam ao debate. No entanto, acredito que, ao se propor analisar as etnografias enquanto produtos de certa tradução cultural, o esforço de se repensar tais questões ainda tem sua validade.

Devemos ser críticos em relação a nossos esforços descritivos. Nossa verdade nunca será a verdade do outro ou a verdade universal (se é que ela existe) e nossos esforços em entender certas identidades serão sempre mediados pela situação da pesquisa – pelos olhos do pesquisador aos pesquisados e pelos olhos dos pesquisados ao pesquisador.

Devemos, também, ter cuidado em relação à nossa posição nas situações de fricção interétnica – e não pretendo aqui transformar esse conceito em um sinônimo para 'contato interétnico'. Saber que o produto de nossas pesquisas será utilizado para a construção de debates fora dos círculos acadêmicos deve nos apontar para a necessidade de entendermos nossa posição enquanto pesquisadores.

No mesmo sentido, devemos cuidar para não darmos às etnografias um valor que substitua as construções de identidade dos próprios 'nativos', como se estes fossem "inaptos à posição de sujeito político e eternamente condenados ao papel de personagens em busca de um autor ou ao de ventríloquos oportunistas" (Albert, 2002[1992], p. 241).

O esforço realizado foi o de, justamente, reforçar os cuidados necessários para que não sejamos pegos pelas armadilhas metodológicas do processo etnográfico e tampouco nos deixemos enganar pelas imagens desfocadas da experiência etnográfica. Ambos os perigos só podem ser minimizados pelo esforço etnográfico em si. É em campo, no convívio diário com nossos dilemas, que podemos melhorar a qualidade de tais imagens e refletir sobre novas construções metodológicas.

AGRADECIMENTOS

Agradeço as leituras e os comentários do Prof. Dr. José Pimenta, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília; de Suzana C. Bornholdt, do Departamento de Ciências da Religião da Universidade de Lancaster; e de Lílian Leite, mestranda do curso de Antropologia Social da Universidade de Brasília. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq - pela bolsa de mestrado.

Recebido: 04/09/2007

Aprovado: 30/03/2008

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  • "
    Vá e conte ao seu povo: interpretações e mediações no trabalho antropológico
  • 1
    Para que não pequemos em algo que há tanto já foi derrubado em Antropologia, é preciso deixar claro a diferença entre imparcialidade e neutralidade. O trabalho etnográfico jamais poderá ser neutro, o pesquisador não consegue fugir de seu bias e de todos os seus preconceitos, intrínsecos a ele (Gadamer, 2004[1975]). No entanto, é possível, sim (e é justamente isso que está presente em nossas 'observações participantes'), sermos imparciais diante daquelas demandas que enfrentamos (Cardoso de Oliveira, 2006[2002]).
  • 2
    O entendimento era parcial, mas certamente era mais elaborado do que a maioria dos outros moradores de Okondjatu.
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    Talvez devêssemos nos perguntar se há algum local onde nenhum tipo de fricção exista.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2008
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