Acessibilidade / Reportar erro

Arqueologia da Amazônia Ocidental: os geoglifos do Acre

RESENHAS

Arqueologia da Amazônia Ocidental: os geoglifos do Acre

Juliana Salles Machado

Doutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (julianasallesmachado@gmail.com)

SCHAAN, Denise; RANZI, Alceu; PÄRSSINEN, Martti (Orgs.). Arqueologia da Amazônia Ocidental: os geoglifos do Acre. Belém: Editora Universitária UFPA, 2008. 192 p.: il. ISBN 978-85-247-0428-4.

Os geoglifos, segundo Denise Schaan, são "trincheiras ou valetas escavadas no solo argiloso, formando figuras geométricas (círculos, retângulos, losangos, hexágonos, octógonos) monumentais (com até 350 metros de diâmetro), e caminhos que as conectam" (p. 15). Anteriormente conhecidos na região de Nasca, no Peru, é apenas no século XXI que tais estruturas, encontradas também no estado brasileiro do Acre, ganham maior visibilidade. O livro "Arqueologia da Amazônia Ocidental: os Geoglifos do Acre" é uma coletânea de artigos que tem como objetivos sintetizar e divulgar o conhecimento acumulado até o momento sobre tais estruturas dessa região. Trazer ao público um vestígio até hoje pouco conhecido, mesmo entre as esferas acadêmicas, é o grande mérito desse livro. Ele descortina um mundo grandioso que a arqueologia brasileira sempre se ressentiu de não ter. A inegável monumentalidade das estruturas de terra pode ser um dos motivos dos olhares cautelosos com que muitos trabalhos acadêmicos trataram a região, ainda inseguros pelo universo de questões que tais contextos trazem. O livro lembra-nos da importância de projetos educacionais para a preservação do patrimônio arqueológico, uma vez que é apenas com o conhecimento que teremos a possibilidade de preservar esses sítios já tão impactados. A introdução, de autoria dos organizadores do livro, é fundamental para situarmos cada um dos artigos como parte da história da arqueologia dessa região e, mais especificamente, dos geoglifos. Tratase de uma coletânea histórica que expõe a trajetória da construção do conhecimento sobre essas estruturas por meio de artigos previamente publicados. Apresentaremos alguns comentários acerca de cada um dos capítulos para, ao final, levantarmos alguns pontos importantes e questões que surgiram após a leitura do livro.

No artigo "Arqueologia do Acre: do PRONAPABA às pesquisas sobre geoglifos", Schaan faz um histórico das pesquisas arqueológicas do estado. Publicado primeiramente em 2007, o artigo nos mostra que, longe de uma trajetória de pesquisas, os geoglifos do Acre viram o descaso das instituições públicas,a precariedade eexiguidade dostrabalhosacadêmicos em uma região tão longínqua dos pólos de produção científica do país. Dentre as poucas investigações científicas na região, os pontos marcantes nessa história relativamente recente, segundo a autora, são: as pesquisas iniciais de Ondemar Dias no âmbito do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas da Bacia Amazônica - PRONAPABA, a luta pessoal de Alceu Ranzi pelo patrimônio de seu estado e a mais recente investida compartilhada de pesquisadores nacionais, como a própria autora, e os intercâmbios internacionais, como Martti Pärssinen e Pirjo Kristiina Virtanen. O artigo nos oferece um panorama geral das pesquisas no Acre, tornando-se, assim, uma síntese do próprio livro.

Já "As estruturas de terra na arqueologia", de Ondemar Dias e Eliana de Carvalho, é o primeiro artigo publicado sobre os geoglifos, em 1988, em uma revista de pouca circulação do Instituto de Arqueologia Brasileira, no Rio de Janeiro. Dias fazia parte do PRONAPABA e ficava incumbido de realizar um levantamento arqueológico das bacias hidrográficas dos rios Juruá e Purus. Seu objetivo inicial foi acumular dados sobre padrões de assentamento de antigas populações locais. O trabalho teve início em 1977, quando foram definidas duas tradições nos moldes do programa, "provavelmente relacionadas a horticultores amazônicos de 'terra firme'". Nesse artigo, publicado 11 anos depois do início das pesquisas, Dias questiona a função das estruturas de terra. Sua proposta é a de um mimetismo, supostamente intencional, com o interior das florestas, confundindo-se com a natureza. O autor apresenta uma série de possíveis funções para os sítios: obras de defesa e delimitação de espaços, círculos mágicos de proteção ou, ainda, como terreiros de dança. Observa, ainda, como o conjunto "valeta-mureta" cria um obstáculo entre o exterior-interior do círculo, proporcionando o acúmulo de terra húmica para plantio. Nesse sentido, o autor aponta a possibilidade de essas muretas servirem como suporte para a plantação de ananás, uma barreira natural que impediria o acesso ao interior das estruturas.

"Registro de geoglifos na região amazônica - Brasil", de Alceu Ranzi e Rodrigo Aguiar, foi publicado inicialmente em 2001. O artigo faz um histórico das primeiras identificações dos geoglifos, pelas quais os autores foram, em grande parte, responsáveis. Reafirma seu caráter antrópico e lembra a proximidade dessas estruturas com os Andes peruanos, sobre a qual propõe uma hipótese de intercâmbio, difusão cultural ou subjacente à de Nasca, afirmando o profundo conhecimento geométrico-espacial dos construtores dos geoglifos no Acre. Outra hipótese levantada pelo autor é sua construção anterior à atual floresta amazônica, em um momento de maior aridez e extensa savana, na qual haveria a presença de megafauna, datando-os, aproximadamente, em 11.000 anos. Ao final, Ranzi aponta para a grandiosidade das construções de terra que serviriam como uma forma de comunicação com entidades e forças do alto, estabelecendo uma relação com um plano superior e distante.

Em "Antigas construções geométricas de terra na região de Rio Branco, Acre, Brasil", originalmente publicado em 2003, Martti Pärssinen, Alceu Ranzi, Sanna Saunaluoma e Ari Siiriäinen estabelecem uma comparação passado-presente a partir de alguns dados etnográficos e da leitura dos cronistas para constatar a grande densidade das aldeias e formas de organização social consideradas complexas. Os autores chamam atenção para como nosso modo de entender as populações indígenas é conformado às primeiras incursões europeias e reforçado por teorias ambientais limitantes, e para o reforço da dicotomia várzea versus terra firme. Contra tal visão, os autores ressaltam a modificação do ambiente das zonas interfluviais, promovendo a biodiversidade por meio das "ilhas de recursos". Ambas as zonas ribeirinhas e de interflúvio teriam, assim, capacidade potencial de sustentar altas densidades populacionais, propondo até uma associação entre as construções de terra do Acre e o Império Inca por meio de redes de troca de longa distância. Após uma breve descrição dos sítios, os autores propõem que as estruturas com trincheiras de formato circular, elíptico e semicircular podem ser interpretadas como assentamentos fortificados, associados às paliçadas de madeira citadas pelos cronistas. Com uma única amostra datada, os autores relacionam as ocupações dos geoglifos ao período de aldeias fortificadas do Alto Xingu e do rio Beni (Bolívia), estabelecendo um diálogo com as propostas de Brochado e Lathrap por meio da associação com a cerâmica corrugada, a Tradição Policrômica da Amazônia e a interação entre grupos Panos e múltiplas fases de expansão Guarani. Estabelecem também uma comparação com os Andes, onde destacam a coincidência com picos severos de secas prolongadas, que teriam afetado a capacidade de inundação dos rios, aumentando a pressão para manter normal o potencial agrícola das várzeas. Nesse sentido, propõem que o fosso no interior das estruturas de terra poderia ser depósito de água no interior de aldeias fortificadas, assim como fossos para criação de moluscos ou tartarugas. Ao final, afirmam que a região foi "densamente ocupada entre [os séculos] XIII-XIV" com "padrões culturais compartilhados e uma cosmovisão comum". Seguem indicando que suas evidências de pesquisa corroboram o modelo de Roosevelt de uma "sociedade complexa, mais heterárquica do que hierárquica". No entanto, após todas essas inferências, os autores exprimem uma "pequena" ressalva ao indicar o estágio inicial de suas pesquisas "ainda não sistemáticas" na região.

Schaan, em "Os geoglifos e a atuação da Eletronorte no Acre", muda o eixo que até então conduzia o livro, trazendo o leitor para os problemas da prática arqueológica no Brasil. De início, a autora expõe a legislação de proteção do patrimônio arqueológico (Conselho Nacional de Meio Ambiente - CONAMA, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN) para, em seguida, tratar de um exemplo concreto: um trabalho de consultoria arqueológica realizado pela autora para avaliar o impacto ambiental de uma linha de transmissão das Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A (ELETRONORTE). Schaan trata da peculiaridade do impacto de linhas de transmissão e da metodologia adotada para esse trabalho em específico. Como resultado, o estudo apontou para a grande quantidade de sítios arqueológicos do tipo geoglifo ao longo da área de impacto direto da obra. Os resultados do estudo ressaltaram a importância desses sítios para a compreensão das ocupações pré-coloniais da Amazônia ocidental e para a arqueologia como um todo, conforme enfatizado no artigo. A autora apresenta, então, uma proposta de ação no sentido de preservar a integridade dos sítios arqueológicos: a implantação de programas de educação patrimonial, a musealização de sítios arqueológicos e a escavação de alguns sítios arqueológicos na área. No entanto, após uma vistoria realizada pela autora e por outros pesquisadores, foi verificado o não cumprimento das exigências do relatório de impacto ambiental e o pleno funcionamento da linha de transmissão da companhia.

O último artigo do livro, "Observações sobre as possíveis relações entre os sítios arqueológicos do Acre e um povo Aruak contemporâneo", de Pirjo Kristiina Virtanen, aborda as possíveis ligações entre os geoglifos e os povos Aruak existentes até hoje na região, especialmente os Manchineris, com quem trabalha desde 2003. A autora se questiona por que os geoglifos foram construídos, apontando a necessidade de serem feitos estudos multidisciplinares para compreender a questão. Segundo os cronistas, falantes da língua Aruak ocupavam a região do alto rio Purus na época do contato. A partir de tal afirmação, a autora busca estabelecer continuidades entre os grupos indígenas do passado e os Manchineri, principalmente através de denominações locais em comum. A autora discorre sobre as possíveis funções dos geoglifos a partir de exemplos como o uso de machados de pedra na construção de buracos, a manutenção de terreiros limpos para atividades cerimoniais e jogos de bola, realçando a importância desses jogos para a forma de organização social do grupo. Trata da importância das palmeiras para esse grupo indígena, expressa na nomeação dos rios das áreas do Purus, fazendo, assim, uma associação direta com a existência de nomes Aruak e sua presença no passado da região. Associa a importância desses povos com a presença de palmeiras no entorno de sítios arqueológicos, apontando seu potencial como fonte de matéria-prima para construção e alimentação. Virtanen apresenta, então, o mito do fim do mundo dos Manchineri e Piro, no qual a água alagou o mundo, interpretado pela autora como relacionado às mudanças sazonais, sucessão de épocas de chuva, seca e recriação. A autora associa esse mito à ocupação dos geoglifos, que teriam grande impacto por estarem localizados nas terras altas. Em sua conclusão, levanta a possibilidade dos Manchineri não terem uma relação direta com os construtores das estruturas geométricas, no entanto, afirma que a vivência interétnica é muito forte na Amazônia e, por meio da cosmologia dos Manchineri, podem-se fazer ligações com transformações de terra.

Tendo apresentado o conteúdo do livro, gostaria de fazer alguns comentários que julgo relevantes para refletirmos sobre esse trabalho. Como já mencionei, o mérito do livro é o seu papel de divulgação, que, como nos ressalta Schaan, é um fator importante para a preservação do patrimônio arqueológico da região do Acre. Outro fator levantado no início foi a importância de trazer à tona a trajetória histórica desses vestígios tão raros na arqueologia amazônica e brasileira em geral. No entanto, após sua leitura, vemos que o livro carece de dados empíricos básicos. Muitos dos capítulos mencionados fazem uma listagem dos sítios arqueológicos identificados, apresentando sua localização e estado de conservação, mas não apresentam nenhuma informação sobre os próprios sítios, como a distribuição e caracterização dos vestígios. É comum em livros de divulgação enfocar a interpretação e não os dados empíricos, contudo, nesse caso, não há um corpo de dados para pautar as interpretações fornecidas por alguns dos autores. Grande parte da discussão que perpassa os artigos está voltada para o levantamento de hipóteses sobre as funções dos geoglifos e sobre como estes são correlatos de complexidade social. No entanto, apesar de todas as funções apontadas serem possíveis e terem correlatos etnográficos, muitas outras funções poderiam ser levantadas. Apesar da diversidade de possibilidades elencadas pelos autores, por enquanto, nenhuma hipótese apresenta corroboração empírica, sem qualquer fundamentação concreta.

Como podemos ver pela trajetória de pesquisa dos geoglifos, diversos autores já estiveram conduzindo estudos na área, no entanto, apesar dos mais de 20 anos de pesquisas na região, quase nenhuma conduziu abordagens sistemáticas nos sítios. O resultado é a falta de um arcabouço empírico mínimo sobre os sítios arqueológicos para levantar qualquer hipótese. Não se sabe a extensão dos sítios, se existem ou não vestígios arqueológicos no entorno das estruturas, como eles estão distribuídos no interior das estruturas, valas e muretas e a que tipo de vestígios estão associados.

Outro problema importante é a falta de datações para os sítios arqueológicos. Esse problema se torna ainda maior tendo em vista que muitas interpretações dadas pelos autores, em especial Pärsinen et al. , assumem indiretamente uma contemporaneidade dos sítios. No entanto, há poucas datas e, ao que parece, apenas uma contextualizada, extraída de um barranco aberto por um trator durante a construção de uma estrada. O artigo de Pärsinen et al. dialoga com questões e autores importantes para entendermos as formas de ocupação pré-colonial da Amazônia em geral. No entanto, os autores se baseiam apenas em leituras superficiais de cronistas e dados etnográficos esparsos para tecer um cenário grandioso de densidades demográficas e formas de organização complexas. Os geoglifos aparecem pouco nessa tecedura, integrando um modelo já concebido de ocupação da Amazônia.

Virtanen apresenta uma proposta interdisciplinar importante. No entanto, o artigo trata os temas de maneira muito vaga, associando dados etnográficos, históricos e arqueológicos sem fundamentação. A autora é confusa ao traçar suas associações, inserindo informações irrelevantes e desconexas com dados que poderiam ser melhor explorados para a questão que se propõe. A interdisciplinaridade é um caminho necessário, mas a maneira como lidar com diferentes fontes e escalas de temporalidade é um desafio que, para ser vencido, é necessário um grande aprofundamento teóricometodológico e robustez de dados, ambos aspectos que não vemos presentes no artigo.

Quase todos os artigos mencionam o termo "complexidade social". A meu ver, parte-se para essa discussão numa etapa ainda muito imatura da pesquisa. Apesar de todos podermos achar que tais estruturas monumentais devam estar associadas a sociedades ditas complexas, devido ao planejamento necessário e grande força de trabalho para sua construção, apenas estudos pormenorizados, intra e intersítios, de uma amostragem considerável dessas estruturas vai permitir, de fato, afirmarmos que forma de organização social estava por trás da construção desses montículos. Ainda não se sabe se são sítios-habitação, sítios-cemitério, sítios com ocupação esporádica ou específica para rituais, por exemplo. Como falar de demografia, como falar de organização social ou até função de sítio sem saber como é a divisão interna dos espaços, a que vestígios estão associados, quais estruturas são contemporâneas, entre outras questões importantes? Mais do que afirmar tal complexidade, é importante ter clareza de que forma de complexidade está se falando. A variabilidade inerente ao conceito faz com que seja necessário que se explique de forma mais clara como ela é complexa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 2009
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação, Av. Perimetral. 1901 - Terra Firme, 66077-830 - Belém - PA, Tel.: (55 91) 3075-6186 - Belém - PA - Brazil
E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br