RESENHA
Escritos não tangenciais no diálogo com Raimundo Lopes
Rosa Acevedo Marin
Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará (ream30@hotmail.com)
DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol; ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de (Orgs.). Raimundo Lopes: dois estudos resgatados. Prefácio de Luis de Castro Faria. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010. 174 p. ISBN 978-85-88777-37-8.
Em estudos recentes, o sentido de 'resgatar' em História tem sido polemizado na ideia de que é impossível produzir tal ação, pois 'o que', 'quem', 'porquê' e 'como' resgatar sugerem atos arbitrários, despropositais ou mesmo metafóricos. A perspectiva do livro-objeto desta recensão é criticamente retornar e recuperar um autor em sua "trajetória tangencial", noção destacada no Pósfacio.
"Raimundo Lopes: dois estudos resgatados" está constituído por um Prefácio (p. 7-13) escrito por Luis de Castro Faria (Antropólogo) em 1957 e reintitulado "Um sábio maranhense no Museu Nacional". O livro é organizado por Heloisa Maria Bertol Domingues (Historiadora da Ciência) - que escreve, à maneira de apresentação, o ensaio "A marca da terra" (p. 15-26) - e por Alfredo Wagner Berno de Almeida (Antropólogo), autor do Posfácio intitulado "Trajetória tangencial: Raimundo Lopes e a antropologia no Brasil" (p. 161-171). Os três pesquisadores estabelecem um diálogo entre si para além dos dois estudos do geógrafo maranhense Raimundo Lopes. Nesta resenha, são destacados os dois ensaios e as 'notas' de diálogo.
No primeiro ensaio etnográfico, "Pesquisa etnológica sobre a pesca brasileira no Maranhão", Lopes descreve a pesca nos rios e lagos da Baixada Maranhense, e os temas abordados mostram seu amplo conhecimento sobre o que denomina o 'complexo da pesca' no Brasil. Ainda procede a cotejar as práticas sociais de pesca entre povos de África, Oceania, Ásia, Europa e de outros países da América do Sul. A rica sucessão de descrições comparativas de técnicas de construção e de uso dos instrumentos de pesca (armas: flechas e arpões) entre diversas etnias é resultado de pesquisas de campo, quando se dedicou a coletar e organizar parte do acervo que compõe as coleções no Museu Nacional. Nesse estudo, Lopes maximizou o privilégio de praticar a etnologia e, mediante o ofício de colecionador, continuar próximo de diferentes povos e seus objetos. Além do que, Raimundo Lopes reconhece, em nota de rodapé, que seu conhecimento de pescaria de tapagem e os detalhes de pesca na região do Pindaré foram obtidos de uma carta do seu pai, o desembargador Manoel Lopes da Cunha, e de suas memórias do lugar de pertencimento.
A partir das leituras de trabalhos de etnógrafos, viajantes e missionários, constrói um denso conhecimento sobre as técnicas da pesca. Lopes é um leitor dessas obras na língua original. Os autores são citados com familiaridade e desse notável domínio empírico valeu-se para apontar os acertos/limitações de suas observações; um deles é o etnólogo americanista Erland Nordenskjöld.
A etnologia de Lopes elabora-se sobre achados das técnicas e os instrumentos de pesca, o que correlaciona com as práticas e, notadamente, com a linguagem. A noção de "complexo" (a exemplo de "complexo do arco achatado") o aproxima de certa lógica de sistemas de classificação dos 'aparelhos' de pesca (socó e jequi), ao mesmo tempo em que aponta as inovações, as invenções independentes. Por privilegiar um procedimento comparativo entre as "formas culturais dos povos", passa a alertar para estar em posição de "guarda contra o perigo das filiações e das afinidades fictícias" (p. 71).
Lopes focaliza a pesca como uma forma de trabalho e organização coletiva, e registra, especialmente, durante suas excursões ao rio Turiaçu (1927-1930), a movimentação para a 'salga', quando os moradores do município, inclusive "gente de lavoura", deixava as "moradias de terra firme" e organizavam, às margens do rio, as "barracas dos salgadores". Estas "povoações temporárias da salga, das rancharias", constituíam uma "sociedade adventícia" dirigida pelos "chefes de rede". Lopes destaca a organização social, na qual, no seu entender, "não há margem a uma literal escravização econômica. Isto mais depressa lá acontece na lavoura". Ainda, no final da faina da pesca, havia as "danças ao tambor, à noite entre as barracas" (p. 44-45).
No segundo ensaio, "Gonçalves Dias e a raça americana", o poeta é introduzido, de imediato, como "etnógrafo, historiador e cantor da raça americana". Sobre Gonçalves Dias, faz a crítica aos que o identificaram na corrente do denominado 'indianismo literário' no Brasil. No entendimento de Lopes, "esse conceito nativista" seria o mesmo que censurá-lo e concorda no seu enquadramento como "poeta sintético do Romantismo".
Lopes evoca e elabora os argumentos de identidade de Dias na escolha dos indígenas Timbira como inspiração poética dos seus "Cantos", ao mesmo tempo em que apresenta os fundamentos de ter sido o "defensor do índio". E mais: na sua interpretação, o poeta Gonçalves Dias se desdobrou no "homem de ciência" que, com "erudição e saber etnológico invulgares", compôs "quadros da vida indígena poetizada", mas também os livros "Brasil e Oceania" e "Reflexões sobre os Anais" - texto introdutório aos "Anais Históricos de Berredo" (de Bernardo Pereira de Berredo) -, que correspondem ao "segundo ciclo da vida intelectual" como historiador e etnólogo. O "Vocabulário da Língua Geral" e o "Dicionário da Língua Tupi" compreendem o "terceiro ciclo". Com admiração e agudas observações, realiza a apresentação da produção de Gonçalves Dias, que define como a "obra, una pela concepção na sua própria complexidade", e por se constituir "um dos padrões indestrutíveis da cultura americana". Gonçalves Dias é considerado por Raimundo Lopes como o "fundador da etnologia no Brasil" e fundamental no estudo e na compreensão do índio, e, como ele próprio, representa uma "trajetória tangencial" da antropologia no Brasil. Castro Faria escreveu, em 1957, com o título "Raimundo Lopes", um texto que permaneceu inédito até se tornar Prefácio deste livro resenhado. O antropólogo releva a carreira científica de Lopes em "duas décadas das menos fecundas na história da pesquisa científica no Brasil" (1920-1930 e 1930-1940) (p. 7). A primeira imagem de Lopes é que, na segunda fase, alimentada por uma ideia de "renovação", foi ele "muito mais um semeador que um beneficiário", e contribuiu para a "formação de uma atitude científica da parte dos estudantes e estagiários do Museu Nacional"; "crítico perspicaz e seguro, mas, sobretudo, o orientador tolerante e sempre pródigo em incentivos"; "esforçou-se para que a etnologia fosse reconhecida como disciplina universitária de valor pragmático e não como simples campo de erudição" (p. 7).
Castro Faria também dimensiona a obra etnológica de Raimundo Lopes como "não muito ampla, nem especialmente consistente", entretanto, seu papel teria reflexos como investigador e mestre, acrescentando que sua experiência era das mais ricas e completas, "comparadas a quantos naquele período trataram dos nossos problemas humanos de população e de cultura" (p. 9). As contribuições de Lopes para os conceitos fundamentais da chamada 'antropogeografia' - ou estudo das relações entre os agrupamentos humanos e o meio físico - são destacadas por Castro Faria, assim como as que trouxe para a Arqueologia.
O prefaciador situa pontos relevantes dos autores-fonte de Raimundo Lopes quando escreve seus livros "Antropogeografia" e "O torrão maranhense", e registrou como fez do desenho e do mapa formas expressivas de linguagem, deste que fora um "pesquisador de campo, sensível, exato", que, ademais, tinha a qualidade de "mestre despretensioso e quase alheio às incompreensões e às injustiças que o atingiam" (p. 13).
Heloisa Bertol Domingues buscou reinterpretar os estudos feitos por Raimundo Lopes que o conduzem para a geografia humana, "jovem ciência" chamada por Friedrich Ratzel, na Alemanha, de 'antropogeografia', no final do século XIX. Na interpretação do historiador Lucien Febvre, esta ciência "significava o casamento da geografia com a etnografia", o que, segundo Domingues, representou a prática científica de Raimundo Lopes.
As questões do determinismo do meio na ideia ratzeliana haviam sido esquivadas por Lopes, indo ao encontro de Paul Vidal de La Blache, Jean Brunhes e Camille Vallaux. O geógrafo-etnólogo se orienta para a ação dos homens na natureza que trazia a "marca da terra", observada nos diferentes utensílios. Esta reflexão da "marca da terra" é estenografada por Domingues no seu ensaio.
A autora pontua, ainda, que o ensaio sobre a pesca no Maranhão seria um "estudo etnológico regionalista, porém comparativo", que surgiu no "calor das discussões sobre a legislação de pesca no Brasil", da qual Lopes participou, sublinhando a sua importância e observando que a sua aplicação deveria obedecer as diferenças regionais (p. 26). Esta notícia articula-se com a discussão que facultaria compreender Lopes como um "intelectual público" de Pierre Bourdieu (p. 161), por sua participação nos debates sobre a legislação de pesca naquele período.
No "Posfácio", Almeida elabora a noção de "trajetória tangencial", critério de consagração para reflexionar sobre o intelectual Raimundo Lopes e os debates sobre os campos do conhecimento antropológico no Brasil e da história do pensamento social. Nessa linha interpretativa, os "produtores intelectuais relativamente 'menores', 'anônimos' ou 'ausentes' das galerias de consagrados e ilustres são 'relançados', preenchendo exigências estritamente intelectuais e fazendo, de certo modo, sombra à representação ordinária dos 'notáveis'" (p. 162).
Em 1957, quando Castro Faria reedita Raimundo Lopes, no entender de Almeida, ele projeta Gonçalves Dias. Nesse ato, segundo Almeida, convidaria "os leitores a travarem uma batalha contra a ilusão de rigor do senso comum erudito" e ainda tornaria "complexo" o sentimento de 'ausente' ou 'esquecido'. Desde essa leitura, é sugerida a "possibilidade de se reconstituir uma embrionária 'rede de esquecidos', em termos do pensamento antropológico" (p. 163).
"Trajetória tangencial" constitui, para Almeida, uma noção operacional ou prática, que "diz respeito a itinerários de produtores intelectuais e científicos que coexistem e mantiveram contato rotineiro e mais próximo com autores consagrados, permanecendo sempre gravitando em torno deles, sem criar 'pensamento de escola'" (p. 164). A triangulação Gonçalves Dias, Raimundo Lopes, Luis de Castro Faria municia a crítica da história do pensamento social e a formação do campo antropológico para Almeida.
Uma observação se torna mais consistente: a ideia de 'resgate', do resgatado ou do resgatável, não é sinônimo da interpretação destas trajetórias intelectuais, ela transcende a proposta de retomar, recuperar, e formula diversas questões instigantes para o campo científico.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Jan 2012 -
Data do Fascículo
Dez 2011