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CARTA DO EDITOR

Este número do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas encerra dois dossiês de grande relevância. O primeiro deles, "Corpos, medidas e nação", organizado por Vanderlei Sebastião de Souza e Ricardo Ventura Santos (Fundação Oswaldo Cruz), reúne cinco artigos sobre a história da antropologia física no Brasil, que destacam as conexões transnacionais, as adaptações locais e o fundo raciológico das discussões e práticas científicas de final do século XIX e início do XX. Como demonstram os autores, muitos dos que viveram e trabalharam naquela época, como Edgard Roquette-Pinto, José Bastos de Ávila e Álvaro Fróes da Fonseca, dialogaram com seus pares estrangeiros para demonstrar que o Brasil era uma nação viável, isto é, que a mestiçagem predominante no país poderia ser interpretada de maneira positiva, apesar dos preconceitos existentes contra populações negras, índias e mestiças. Alguns antropólogos chegaram a questionar a validade da classificação tipológica e os critérios raciais como chave explicativa dos problemas sociais brasileiros, propondo, em seu lugar, que as condições sanitárias e socioeconômicas da população eram os verdadeiros problemas a serem enfrentados. Conforme esclarecem os organizadores na introdução ao dossiê, são "evidentes as imbricações entre a prática da antropologia física e as questões sociopolíticas que mobilizavam a sociedade brasileira no início do século XX, sobretudo no que dizia respeito à organização do país, ao conhecimento de sua população e às discussões sobre a formação da nacionalidade brasileira".

Na seção "Memória", o assunto volta a ser abordado no texto "O Congresso Universal de Raças, Londres, 1911: contextos, temas e debates", de Vanderlei Sebastião de Souza e Ricardo Ventura Santos, no qual são novamente analisados os temas raciais debatidos por antropólogos, sociólogos e ativistas sociais de diferentes lugares do mundo. Em um ambiente imperialista, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, os autores contextualizam o esforço pacifista dos organizadores do evento e destacam a participação dos representantes brasileiros, João Baptista de Lacerda e Edgard Roquette-Pinto, que defenderam uma visada menos preconceituosa sobre a mestiçagem e mais promissora sobre o futuro do Brasil. Na mesma seção, Antonio Porro (Universidade de São Paulo) discorre sobre um inédito relato do jesuíta português Jacinto de Carvalho (1677-1744), que viveu durante treze anos entre os índios amazônicos. Segundo Porro, essa é a principal fonte etno-histórica para a região na primeira metade do século XVIII, cujos trechos de interesse etnográfico foram aqui vertidos à língua portuguesa.

O segundo dossiê publicado neste número inaugura, na verdade, uma nova seção da revista, que chamamos "Debate" e que tem como objetivo gerar, como o próprio nome indica, controvérsia sobre temas polêmicos e atuais. Nesta experiência piloto, organizada por mim e Ima Vieira (Museu Paraense Emílio Goeldi), optamos por abordar um tema que articula governo, movimentos sociais, cientistas e ambientalistas no mais importante embate em curso na Amazônia, pois tem como horizonte o destino e o futuro da região. Convidamos três especialistas para responder a seguinte pergunta: as hidrelétricas na Amazônia geram desenvolvimento para quem? O texto do jornalista Lúcio Flávio Pinto (Jornal Pessoal, Pará) parte da experiência histórica da UHE Tucuruí, cuja construção teve início em 1975, durante a ditadura militar, para questionar a construção da UHE Belo Monte, seja nas dúvidas provocadas pelo projeto da obra, seja na fragilidade dos estudos de viabilidade econômica ou na falta de transparência do governo no processo de planejamento e execução. A geógrafa Bertha Becker (Universidade Federal do Rio de Janeiro) prossegue com um enfoque geopolítico, criticando a falta de integração das grandes hidrelétricas na Amazônia com uma política justa de uso e gestão da água. Segundo a autora, ao mesmo tempo em que se prioriza o atendimento às demandas por energia existentes no centro-sul do Brasil e a construção de vias fluviais para escoamento de commodities, desconsidera-se a falta de saneamento básico e de acesso à energia elétrica na própria Amazônia. Finalmente, para o engenheiro Francisco Del Moral Hernandez (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São Paulo), a política energética do governo federal deve ser democratizada de maneira a promover o debate público sobre fontes de energia, demanda e oferta, sustentabilidade, impactos ambientais e a efetiva proteção das populações locais. Segundo o autor, também é necessário rever e ajustar o processo de licenciamento ambiental, desde os conceitos básicos que sustentam a avaliação dos analistas, como o de 'área afetada', até a inclusão de novos pontos de análise, como o descomissionamento de hidrelétricas.

Os três autores parecem concordar que os efeitos benéficos das grandes obras de infraestrutura na Amazônia não se localizam na região, isto é, as promessas de desenvolvimento e oportunidades são cumpridas a muitos quilômetros de distância, às vezes, em outros países e continentes. As instituições do governo federal responsáveis pelo planejamento, pelo financiamento e pela execução dos empreendimentos conhecem muito bem esse processo de transferência de matéria-prima e energia - e de socialização dos prejuízos. Sabem o que ocorre com os municípios que abrigam tais obras, os efeitos nefastos sobre os sistemas locais de saúde e educação, sobre os preços e a moradia, sobre o transporte, sobre a estrutura fundiária, sobre os modos de vida, sobre os índices de criminalidade, prostituição e conflitos rurais, sobre a floresta, os animais e os rios. Isto tudo já foi documentado, mas não compõe o custo das obras e nem parece importar para as autoridades públicas que têm o poder de decisão. Exemplo atual são os bilhões investidos pelo governo federal na construção de mais uma usina, no rio Xingu, sem a adequada contrapartida em gastos sociais e ambientais. Ou sem o fortalecimento - também na proporção adequada - de instituições fundamentais para a governança da região, como a Funasa, o Ibama, a Funai e a Polícia Federal. Ou, ainda, sem a aplicação de recursos substantivos em pesquisa científica e tecnológica relevante para a conservação e o desenvolvimento da região. Com as três primeiras contribuições da seção "Debate", esperamos incentivar a ampliação de pesquisas sobre planejamento regional e geopolítica, uso e gestão de recursos naturais, democracia e bem-estar social - em um momento grave de revigoramento da agenda desenvolvimentista do governo federal. Aceitando a provocação de Lúcio Flávio Pinto, creio que a ampla divulgação de informações pode ajudar a reescrever a história contemporânea da Amazônia, de Tucuruí aos novos projetos hidrelétricos dos rios Xingu, Madeira e Tapajós, para que ela tenha outros ingredientes além do autoritarismo.

Encerro este preâmbulo com uma boa notícia: desde agosto de 2012, a revista está disponível na base de dados da Scopus Elsevier. O processo de indexação teve início em 2010, quando foi submetida à avaliação. No primeiro semestre de 2011, o processo finalizou com parecer positivo, que destacava o "excelente escopo editorial" e a "qualidade científica" do periódico. Pouco mais de um ano depois, os artigos passaram a constar do sofisticado sistema de busca da Scopus, que em muito facilita a pesquisa bibliográfica e a análise cientométrica. Ganham, assim, em visibilidade por meio de uma base amplamente utilizada pela comunidade científica internacional. Ao fazer este anúncio, congratulo-me com a equipe de produção editorial pelos importantes avanços efetivados neste ano: Andréa Sanjad, Rafaele Lima e Elaynia Ono.

Boa leitura!

Nelson Sanjad

Editor Científico

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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