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Interações socioculturais com a fauna silvestre em uma unidade de conservação na Amazônia: relações de gênero e geração

Sociocultural interactions with wild fauna in a conservation unit at the Amazon: gender and generational relations

Resumos

Este artigo descreve as interações socioculturalmente estabelecidas entre os moradores do rio Unini, Parque Nacional do Jaú, Amazônia central, com o conjunto da fauna silvestre local. Analisa a diversidade dessas interações e a reprodução das mesmas quando influenciadas por fatores de gênero e geração. Os procedimentos metodológicos adotados foram observação participativa e oficinas de grupos focais. Nessas oficinas, foram produzidas free-listings de animais silvestres relacionados a um determinado habitat. O grau de similaridade e dissimilaridade entre as listas foi analisado utilizando-se o Índice de Jaccard, ilustrado em dendrogramas. De maneira geral, as associações mentais entre elementos da fauna, habitat da floresta e nichos ecológicos que expressam as interações socioculturais dos indivíduos com os animais silvestres são bastante similares entre os membros da comunidade. No entanto, os efeitos de geração e de gênero são perceptíveis. A reprodução dessas interações perpassa pela questão do habitus, que estrutura o processo de socialização das interações culturais com a fauna local.

Interações socioculturais; Fauna silvestre; Gênero; Geração; Rio Unini; Amazônia


This article describes socioculturally established interactions between inhabitants of Unini River, at Jau National Park, Central Amazon, with the local wild fauna. The diversity of these interactions and how their reproduction is influenced by associated factors of gender and generation. The methodological procedures used were participative observation and focus group workshops. In these workshops, free-listings of wild fauna related to diverse forest habitats and ecological niches were produced and the degree of similarity and dissimilarity between those lists were analyzed using the Jaccard index, illustrated in dendrograms. In general, mental associations between fauna and habitats are similar among community members. Nevertheless, effects of gender and generation are noticeable. Reproduction of such interaction permeates the issue of habitus, which structures the socialization process of cultural interaction with the local fauna.

Sociocultural interactions; Wildlife; Gender; Generation; River Unini; Amazon


ARTIGOS

Interações socioculturais com a fauna silvestre em uma unidade de conservação na Amazônia: relações de gênero e geração

Sociocultural interactions with wild fauna in a conservation unit at the Amazon: gender and generational relations

Luciana Raffi MenegaldoI; Henrique dos Santos PereiraII; Aldenor da Silva FerreiraIII

IUniversidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. São Paulo, São Paulo, Brasil

IIUniversidade Federal do Amazonas. Manaus, Amazonas, Brasil

IIIUniversidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, Brasil

Autor para correspondência Autor para correspondência: Luciana Raffi Menegaldo Av. José Adriano Arrobas Martins, 790, ap. 23. Condomínio Redenção. Jardim Nova Aparecida Jaboticabal, SP, Brasil. CEP 14883-298 ( luzoo@hotmail.com)

RESUMO

Este artigo descreve as interações socioculturalmente estabelecidas entre os moradores do rio Unini, Parque Nacional do Jaú, Amazônia central, com o conjunto da fauna silvestre local. Analisa a diversidade dessas interações e a reprodução das mesmas quando influenciadas por fatores de gênero e geração. Os procedimentos metodológicos adotados foram observação participativa e oficinas de grupos focais. Nessas oficinas, foram produzidas free-listings de animais silvestres relacionados a um determinado habitat. O grau de similaridade e dissimilaridade entre as listas foi analisado utilizando-se o Índice de Jaccard, ilustrado em dendrogramas. De maneira geral, as associações mentais entre elementos da fauna, habitat da floresta e nichos ecológicos que expressam as interações socioculturais dos indivíduos com os animais silvestres são bastante similares entre os membros da comunidade. No entanto, os efeitos de geração e de gênero são perceptíveis. A reprodução dessas interações perpassa pela questão do habitus, que estrutura o processo de socialização das interações culturais com a fauna local.

Palavras-chave: Interações socioculturais. Fauna silvestre. Gênero. Geração. Rio Unini. Amazônia.

ABSTRACT

This article describes socioculturally established interactions between inhabitants of Unini River, at Jau National Park, Central Amazon, with the local wild fauna. The diversity of these interactions and how their reproduction is influenced by associated factors of gender and generation. The methodological procedures used were participative observation and focus group workshops. In these workshops, free-listings of wild fauna related to diverse forest habitats and ecological niches were produced and the degree of similarity and dissimilarity between those lists were analyzed using the Jaccard index, illustrated in dendrograms. In general, mental associations between fauna and habitats are similar among community members. Nevertheless, effects of gender and generation are noticeable. Reproduction of such interaction permeates the issue of habitus, which structures the socialization process of cultural interaction with the local fauna.

Keywords: Sociocultural interactions. Wildlife. Gender. Generation. River Unini. Amazon.

INTRODUÇÃO

Povos indígenas e comunidades tradicionais que habitam o mundo rural amazônico ainda mantêm intensas e variadas formas cotidianas de interação com a fauna silvestre. Segundo Pezzuti e Chaves (2009), essas populações baseiam as atividades socioculturais e de manutenção de sua existência física em uma estreita relação de dependência com os recursos naturais do ambiente em que vivem. Dessa maneira, o elemento fauna é parte constitutiva da cultura desses povos. Para aqueles autores, as interações com a fauna silvestre - descritas até agora - envolvendo essas populações vão desde o conhecimento do comportamento de várias espécies de vespas, pois utilizam seu ninho, pupas e larvas para a preparação de artefatos de pesca, até a criação, nas aldeias, de pequenos mamíferos como pets, com intuito de socializar as crianças acerca de seus comportamentos, bem como de aves coloridas (papagaios e araras), que fornecem plumas para vários tipos de adorno e cocares.

Silva (2008) observou que práticas terapêuticas baseadas no mundo animal consistem numa fonte secundária de tratamento médico na região. A autora lista cerca de 60 espécies animais conhecidas no médio rio Negro, com propósitos medicinais, e afirma ser esse conhecimento bem distribuído entre homens e mulheres e entre localidades (urbanas e rurais).

Outro fator determinante para as interações homem-animal na Amazônia é o simbolismo associado a muitas espécies. Para Lima e Pozzobon (2005), a cultura ecológica amazônica é "mitógena", ou seja, é aquela em que os elementos do ambiente natural são pensados segundo seu papel no mito e seu lugar no cosmo nativo. Para os autores, esse tipo de cultura ecológica é herdeira direta da cultura ameríndia e ambas têm em comum a transmissão oral de práticas culturais de uma geração para a outra.

Em muitas áreas da região amazônica ainda há um enorme potencial faunístico que poderia ser manejado a partir de projetos baseados em conhecimentos sobre os ecossistemas e na ecologia humana, que os conforma historicamente. Isso está previsto no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), criado pela Lei 9.985, de 18 de julho de 2000, que visa preservar o ambiente, a fauna e a flora, assegurando a melhoria de vida para os moradores desses locais. Conforme se lê no artigo 4º, parágrafo XIII, é preciso: "Proteger os recursos naturais necessários à sobrevivência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente".

Mesmo com a criação de muitas áreas protegidas, os poucos projetos para a introdução de práticas de manejo in situ e a criação de animais silvestres ainda não conseguiram ter a continuidade e a sustentabilidade econômica e social desejada. Exemplos claros são o "Projeto de manejo integrado de fauna aquática na várzea: pirarucu, quelônios e jacarés" (2006-2009), em Santarém, onde apenas o manejo do pirarucu deu resultados positivos; e o manejo comunitário dos crocodilianos na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM), projeto piloto realizado em 2008 (Botero-Arias et al., 2009; Torres, 2011)1 1 Informação também confirmada por J. H. Rebêlo, em 2009, durante aula ministrada no curso de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, disciplina de Ecologia, da Universidade Federal do Amazonas, sobre iniciativas comunitárias de manejo. .

As dificuldades de implementação desses projetos podem estar associadas ao fato de não terem sido consideradas, em suas concepções, as interações das populações locais com a fauna silvestre, do ponto de vista cultural e subjetivo. Os projetos talvez não tenham dado a devida importância à relação mantida entre seres humanos e animais, nem à forma de socialização dessas interações, quando influenciadas por fatores de gênero e de geração.

Dessa forma, nosso estudo tem por objetivo contribuir para o debate acadêmico e político acerca da viabilidade de projetos de manejo de fauna silvestre em unidades de conservação de uso sustentável, destacando as considerações socioculturais que se expressam por meio das relações de gênero e intergeracionais. O texto está dividido em duas seções estruturantes. Na primeira parte, são abordadas as interações culturalmente estabelecidas com a fauna silvestre, a partir da observação do cotidiano da comunidade e da análise das estratégias de reprodução da vida social relacionadas aos animais. Conforme afirma Bourdieu (1983, p. 114), a dinâmica social, necessariamente marcada pela produção e reprodução das condições de sobrevivência, pode ser focalizada por meio da geração de estratégias: "Longe de ser o produto automático de um processo mecânico, a reprodução da ordem social ocorre somente através das estratégias". Para esse autor, a estratégia se desenvolve a partir de conhecimentos acumulados, transferidos às gerações futuras por uma prática de oralidade e atividades cotidianas. Nesta seção, também são apresentados os resultados diretos da observação participativa, destacando as interações com os animais para uso medicinal; a arte e cultura da caça; a estética da caça e da pesca, incluindo a captura de peixes para alimentação e para o comércio de espécies ornamentais (fonte de renda importante da comunidade); a captura de 'bichos de casco' (quelônios), o grupo faunístico mais conhecido pelos moradores; e os resultados das observações em relação aos animais de companhia e às interações lúdicas.

Na segunda seção, são analisadas as similaridades e dissimilaridades das associações mentais entre os elementos da fauna silvestre e seus habitats, conforme são reproduzidas pelos grupos homogêneos de gênero e geração. O objetivo principal foi demonstrar que a similaridade entre as associações revelam a influência do habitus de um determinado grupo (gênero e geração), resultando em diferenças nas interações com a fauna e na socialização dessas interações entre cada grupo.

METODOLOGIA

O LOCUS DA PESQUISA

O rio Unini, no estado do Amazonas, abriga populações humanas em três áreas protegidas: subindo o rio, a partir de sua foz, toda a margem direita pertence à Reserva Extrativista (RESEX) do Rio Unini, criada há menos de dez anos. Em sua margem esquerda, até a foz do rio Paunini, a área pertence ao Parque Nacional do Jaú e, desse ponto até a nascente, ainda na margem esquerda, encontram-se os limites da Reserva Estadual de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Amanã. A Figura 1 ilustra o mosaico de áreas protegidas do baixo rio Negro, com a localização do rio Unini e da comunidade Tapiíra.


A maioria dos moradores do rio Unini está agrupada em comunidades, perfazendo um total de onze grupos. Destes, apenas três estão localizados dentro dos limites da RESEX, sendo que um ainda está em formação, seis estão no Parque Nacional do Jaú e dois na RDS Amanã. Essas comunidades se organizam politicamente na Associação dos Moradores do Rio Unini (AMORU), sendo que cada grupo tem presidente e vice-presidente. As comunidades beneficiadas pela Prefeitura Municipal de Barcelos possuem bens e oferecem serviços sociais, como escola, posto de saúde, gerador de energia, sede social comunitária, radiofonia, igreja, professor e agente de saúde. Em geral, os serviços disponibilizados para a população são insuficientes para atender a demanda (FVA et al., 2005).

Tapiíra é a quinta comunidade do rio Unini, da foz para a nascente. Foi fundada em 1987 e faz parte da jurisdição do município de Barcelos. Sua latitude é de 1º 45' 49'' S e a longitude é de 62º 13' 29'' W.

No rio Unini, como no rio Negro, as atividades geradoras de renda estão agrupadas em cinco categorias: agricultura e extrativismo vegetal, criação de pequenos animais, pesca, artesanato e turismo. Há, ainda, alguns produtos adicionais vendidos por poucas famílias, como mel de abelhas, mel de cana e óleo de andiroba. Tapiíra não se diferencia de outras comunidades do rio Negro no que tange às relações mercantis comuns. Essa comunidade é formada, basicamente, por descendentes de nordestinos e, em menor número, por povos indígenas. Como ocorre na grande maioria das comunidades ribeirinhas da Amazônia, os sujeitos sociais são polivalentes, ou seja, exercem várias atividades geradoras de renda durante o ano, 'gerenciadas' pelo ciclo das águas. O cultivo da mandioca para a produção de farinha, em Tapiíra, representa a maior parte da geração de renda. Nos meses de outubro a janeiro, a captura de peixes ornamentais também constitui importante atividade econômica.

A OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA

A pesquisa foi realizada no período de fevereiro de 2009 a setembro de 2010, dividida em três fases. Após contatos estabelecidos junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e à Fundação Vitória Amazônica, realizou-se a primeira viagem ao rio Unini no mês de fevereiro de 2009. Os objetivos dessa primeira viagem foram avaliar as condições estruturais para a realização da pesquisa de campo; estabelecer contatos, verificar possíveis informantes e também apresentar a proposta da pesquisa aos comunitários.

Nos meses de julho a setembro de 2010, ocorreu a pesquisa de campo. Os pesquisadores permaneceram na comunidade durante 25 dias a cada viagem. A hospedaria foi a residência do presidente local, o que facilitou a aproximação com os demais moradores e reduziu o impacto da entrada de pessoas desconhecidas no cotidiano deles. Todas as atividades foram registradas em um diário de campo, escrito ao final de cada dia, momento no qual também eram arquivados em um notebook todas as imagens registradas na máquina fotográfica, os relatos gravados e as entrevistas.

O conjunto dos instrumentos de coleta de dados foi muito valioso para o registro e a recuperação das informações, visando, posteriormente, o cruzamento dos dados. Alguns moradores também foram acompanhados em suas caminhadas cotidianas, como, por exemplo, o caminho da roça e da casa de farinha, para que, com o 'estímulo' da mata, fosse possível conversar sobre os animais. Essas caminhadas renderam declarações preciosas, cujo acesso dificilmente ocorreria de outro modo. Esse procedimento de 'caminhadas ecológicas' foi repetido em relação às pescarias matinais, as quais eram previamente combinadas, já que na maioria das vezes eles utilizam canoas pequenas, pois pescam sozinhos ou em dupla.

OFICINAS

As oficinas foram estruturadas com grupos de, no mínimo, quatro pessoas (Tabela 1) do mesmo gênero e faixa etária, sendo realizadas em dias e horários diferentes. Para cada grupo de gênero/geração, foi organizado um grupo-repetição com pessoas que não participaram do primeiro conjunto, para que, ao final, houvesse duas listas da mesma categoria etária e de gênero. As oficinas ocorreram na segunda e terceira viagens. Na segunda, que ocorreu em julho, havia muitos moradores fora da comunidade devido ao recesso escolar. Todavia, esse intervalo de tempo entre as oficinas foi positivo, pois proporcionou maior distinção de respostas e listas variadas. Os grupos foram divididos em homens e mulheres e por geração, considerando jovens os moradores com idade entre 18 e 35 anos, e adultos os moradores com mais de 35 anos. O corte de idade teve como base o tempo de criação do Parque Nacional do Jaú, em 1980.

O procedimento de repetição de cada oficina de gênero/geração possibilitou a comparação da percepção entre os grupos do mesmo gênero/geração e entre todos eles. A meta da oficina com grupos focais foi a geração de free-lists de espécies, resultantes dos questionamentos e das formas de interação dos moradores com os animais, registradas em gravador e posteriormente analisadas. Para obter respostas espontâneas, as perguntas foram feitas para que os moradores se lembrassem das espécies, relacionando-as com o habitat em que podem ser encontradas ou ainda pela forma como se movimentam (nichos ecológicos), para não restringir as respostas apenas aos animais caçados ou apanhados.

Em comunidades ribeirinhas, geralmente o conceito de 'animal' é associado aos animais de criação (domésticos, de pequeno ou médio porte, como gatos, cães, caprinos etc.), enquanto o conceito de 'bicho' está mais próximo dos animais da mata, incluindo os insetos e até mesmo seres míticos, como o 'curupira'. Alguns 'bichos', ao serem caçados, passam a ser denominados como animais, como ocorre, por exemplo, com as capivaras, os macacos e as antas. Nesse sentido, o primeiro procedimento com os grupos foi definir o que é um 'animal'. O nivelamento desse conceito, considerado como não impositivo, foi importante para o desenvolvimento das oficinas e a posterior análise das listas. Em função das respostas, uma breve discussão ocorreu para que o entendimento do grupo incluísse todas as espécies de seres, exceto os míticos, os pertencentes ao reino das plantas e os humanos.

Os questionamentos (Tabela 2) foram feitos oralmente e, após a pergunta, o grupo discutia entre si, e os integrantes iniciavam a confecção da lista das espécies. Antes do início, um indivíduo do grupo era escolhido para escrever os nomes das espécies em folhas de papel que lhe foram fornecidas. Como o reconhecimento de espécies e o levantamento da fauna não constituíram objetivos da pesquisa, os nomes dos animais foram copiados, para posterior análise, de maneira idêntica ao modo que foram recordados. As oficinas foram realizadas, de maneira bastante descontraída, em locais diversos, majoritariamente nas casas dos moradores, ocorrendo após o agrupamento de um número suficiente de mulheres ou homens. No caso dos grupos de mulheres, sempre havia maior disponibilidade de horário, o que não ocorria com os dos homens, com quem, na maioria das vezes, as oficinas eram realizadas no final da tarde. Após o término da última lista, voltava-se à primeira e começava-se a discutir sobre a serventia dos animais ali colocados. As informações sobre as interações humano-fauna que iam surgindo foram registradas em gravador, após o consentimento dos participantes.

Em relação aos dados contidos nas planilhas de respostas, foi aplicado o cálculo de um índice de similaridade, o Índice de Jaccard, uma média de associação que permitiu identificar a similaridade das respostas entre os diversos grupos. De acordo com Gomes (2004), a fórmula do Índice de Jaccard é IJ = a/a+b+c, sendo que 'a' significa duas colunas com o mesmo animal, 'b' significa a primeira coluna com o animal citado e 'c', a segunda coluna com o animal citado. Essa média de associação exclui a dupla ausência.

Dessa maneira, a análise só foi possível entre duas colunas, relacionando, assim, respectivamente, cada dupla: MJ1/MJ2, MJ1/MA1, MJ1/MA2, MJ1/HJ1, MJ1/HJ2, MJ1/HA1, MJ1/HA2, MJ2/MA1, MJ2/MA2, MJ2/HJ1, MJ2/HJ2, MJ2/HA1, MJ2/HA2, MA1/MA2, MA1/HJ1, MA1/HJ2, MA1/HA1, MA1/HA2, MA2/HJ1, MA2/HJ2, MA2/HA1, MA2/HA2, HJ1/HJ2, HJ1/HA1, HJ1/HA2, HJ2/HA2, HJ2/HA2.

Com um índice de 0 a 1, foi mensurada a similaridade das respostas entre os grupos, avaliando as diferenças de gênero, geração e o conjunto gênero-geração. Para demonstrar essa similaridade entre os grupos, foi utilizado um tipo de análise de agrupamento que permite identificar a formação de grupos na comunidade, conhecido como Método Hierárquico Aglomerativo (ou Unweighted Pair-Group Method, UPGM), com distância média não ponderada. Essa análise é apresentada por uma forma gráfica denominada dendograma e obedece aos seguintes passos: com o valor do Índice de Jaccard (IJ) calculado para todos os pares, dispõem-se os índices em um diagrama de 'Trellis' e, posteriormente, os índices de similaridade são transformados em índices de dissimilaridade, subtraindo-se cada valor de 1 (1 - IJ). Os dendogramas foram construídos a partir dos dados brutos de presença/ausência, com o auxílio do programa MYSTAT (versão para estudantes do SYSTAT). Como descrito acima, as análises foram feitas para cada pergunta com o conjunto de respostas dos oito grupos focais e, ao final, foi feita uma análise com o total das perguntas. No desenho dos dendogramas, o que se deve levar em conta são as distâncias numéricas, pois quanto maior a distância, menor a similaridade.

A separação dos indivíduos em grupos por gênero e faixa etária não apenas permitiu avaliar o grau de conhecimento dos sujeitos sociais em relação à fauna local, como também inferiu sobre as questões de gênero e geração que estão influenciando o processo de socialização e a reprodução cultural dessas associações mentais. Essa avaliação foi feita por meio de informações específicas complementares, obtidas em entrevistas individuais e observações participativas. Esses dados complementares foram fundamentais não só para a etnografia das percepções e práticas sociais dos sujeitos em relação às diversas espécies da fauna local, como também na tentativa de se revelar a influência que gênero e geração exercem sobre a dinâmica da reprodução desses saberes.

ENTREVISTAS

As entrevistas foram realizadas com o objetivo de aprofundar a descrição das interações mais importantes, que surgiram durante as oficinas de grupos focais. O roteiro foi elaborado para a obtenção de respostas abertas, com as quais o entrevistado teve liberdade de contar a sua história. Elas serviram para a obtenção de informações particulares de atores específicos. Alguns itens, como local da entrevista, nome, idade, sexo, tempo de moradia na comunidade e qual(ais) a(s) atividade(s) de renda principal(is), deram o norte ao momento inicial desta etapa da pesquisa. As indicações registradas durante as dinâmicas com os grupos focais foram comparadas com as evidências obtidas de outras fontes empíricas, especialmente as observações diretas e participativas, de forma que cada interação pôde ser descrita com maior profundidade.

AS INTERAÇÕES CULTURALMENTE ESTABELECIDAS COM A FAUNA E O HABITUS

As interações com a fauna silvestre local fazem parte das estratégias de reprodução da vida social engendradas pelos moradores da comunidade Tapiíra. De acordo com Bourdieu (1983), a dinâmica social, necessariamente marcada pela produção e reprodução das condições de sobrevivência, pode ser focalizada por meio da geração de estratégias de reprodução: longe de ser o produto automático de um processo mecânico, a reprodução da ordem social ocorre somente por meio de estratégias. Para esse autor, a estratégia se desenvolve a partir de conhecimentos acumulados, transferidos às gerações futuras por uma prática de oralidade e atividades cotidianas. Ainda de acordo com Bourdieu (1983), enquanto sistema de disposições para atuar, perceber, sentir e pensar de certa maneira, interiorizado e incorporado pelos indivíduos ao longo de sua história, o habitus se manifesta em um sentido prático, isto é, em qualquer situação, sem necessitar recorrer a uma reflexão consciente, tudo isso graças às disposições adquiridas.

O habitus é, ao mesmo tempo, produto e produtor das estruturas, enquanto princípio de geração e estruturação de práticas e representações, que podem estar objetivamente reguladas, sem constituir o produto de obediência a regras explicitamente formuladas. Na comunidade Tapiíra, isso ocorre de forma intensa. É comum a criança acompanhar os pais nas diversas tarefas cotidianas, domésticas ou não. O processo de socialização perpassa, ainda, questões de aprendizagem quanto ao conhecimento e à extração dos recursos da floresta, das cascas e sementes, das essências e óleos, bem como ao habitat de pássaros e tocas de animais 'perigosos', como a onça e o jacaré. De acordo com Cardoso e Souza (2011, p. 168):

(...) as crianças e os jovens, nas comunidades rurais da Amazônia, recebem os meios intelectuais necessários para se utilizarem da natureza, tornando-a um instrumento de trabalho - o trabalho do saber -, como um método pedagógico que acompanha o neófito e sobre ele opera, criando, ao mesmo tempo, um trabalhador pelo saber técnico, capaz de produzir, e também percepções a respeito da idade e do gênero.

Entre as diversas interações humano/animal observadas durante a pesquisa de campo, a atividade da caça evidencia bastante a interação dos moradores com os animais, não sendo, obviamente, a única. Juntamente com a pesca e a captura de quelônios, é a atividade mais intensa de transmissão do 'saber fazer' aos mais jovens, quer seja pela imitação ou pelos ensinamentos orais.

O hábito da caça na Amazônia advém da herança cultural indígena e deve ser pensado englobando outros aspectos da dimensão social e cultural. Segundo Morán (1990), a caça na Amazônia consiste numa atividade sazonal relevante, sendo de extrema importância para a alimentação, além de ser uma atividade de socialização fundamentalmente masculina, mas sem a orientação mercantil (na comunidade pesquisada). Dessa forma, a atividade de caça não pode ser entendida apenas como um processo técnico ou que esteja somente relacionado ao interesse do comunitário em adquirir alimentos. Apesar de esse interesse ser verdadeiro, a caça não pode ser compreendida exclusivamente por esse fato. Essa atividade liga-se a um processo cultural de produção e socialização do conhecimento sobre a natureza, que obviamente orienta a captura dos animais.

As atividades de caça e pesca em Tapiíra possuem uma estética singular, que se apresenta desde a preparação dos utensílios, a serem utilizados para a captura/abate dos animais e a conservação dos mesmos, até o preparo das carnes. Os artefatos de caça e pesca são confeccionados com muito zelo e precisão. Se o objetivo é a confecção de um arco, a madeira empregada deve ter maciez apropriada, da mesma maneira que as lanças e as flechas. Na comunidade, é cotidiana a socialização dos meninos para os procedimentos de confecção e manutenção dos instrumentos de caça e/ou pesca (Figuras 2A e 2B), bem como comentários públicos pós-caçadas acerca de êxitos e fracassos. Quando os caçadores chegam aos portos, os meninos, mesmos os mais novos, compartilham curiosidades e buscam informações de como foi a caçada. Com esses 'ensinamentos' orais e também pela imitação dos adultos, os mais jovens adquirem a destreza necessária para o bom desempenho da arte da pesca e da caça.



Embora a pesca seja uma atividade bastante praticada por mulheres na Amazônia e até exercida comercialmente por elas, em Tapiíra, é uma atividade exclusiva dos homens. Duas características colaboram para isso: primeiramente, não é praticada a pesca comercial neste local, fato que faz com que o esforço de pesca seja menor, pois os moradores pescam apenas para consumo, não havendo necessidade de auxílio das mulheres nessa atividade.

Outro fator que corrobora para que a pesca seja masculina são os instrumentos. A maioria das capturas de peixes ocorre com arcos e flechas, arpões e zagaias, instrumentos que exigem destreza, adquirida desde cedo a partir dos ensinamentos dos pais aos meninos. Se essa socialização ocorresse também com as meninas, fatalmente elas desenvolveriam habilidades para a pesca com esses instrumentos. Apenas peixes grandes são capturados com redes e a pesca com caniço serve para a captura de peixes pequenos, como sardinhas, pacus, aracus etc. A limpeza e o tratamento dos peixes são atividades das mulheres, sendo, no máximo, divididas com os filhos e/ou marido em casos especiais, como os 'ajuris' (relações de ajuda mútua em que o dono da roça convida outras famílias para organizar uma força de trabalho coletiva).

Em relação ao tratamento dos animais provenientes da caça, não há participação feminina. Essa atividade também é tipicamente masculina, desde a preparação inicial da jornada, que começa com a limpeza das armas, a organização dos instrumentos auxiliares, como a lanterna, até a limpeza das carcaças nos portos das casas. O tratamento das carcaças é também um momento de descontração e socialização masculina. Durante a pesquisa de campo, a chegada de caçadores foi observada oito vezes, e uma única vez uma mulher foi observada na atividade de limpeza. Na comunidade, há 'animais do homem' e 'animais da mulher'. Quando os animais presentes nos portos são oriundos da pesca, a presença da mulher não só é permitida, como desejável. Quando os animais são oriundos da caça, raramente há mulheres por perto (Figuras 3A-3C).



Assim como a pesca, a captura de quelônios é uma atividade masculina. Os instrumentos utilizados são o jaticá (tipo de arpão com ponta metálica e sem anzóis), o arco, a flecha e o mergulho. As capturas são feitas em canoas de madeira construídas artesanalmente. Segundo Rebêlo et al. (2005, p. 121):

(...) as combinações de artes ou habilidades de pesca variaram com a idade, exceto a coleta de ovos e a pesca com jaticá praticadas por todos os pescadores entrevistados. Os pescadores mais velhos pescaram apenas com jaticá, os mais jovens pescaram com jaticá e no mergulho, enquanto os pescadores de meia-idade pescaram com jaticá e anzol e linha.

Nas excursões de barco realizadas nos lagos do entorno da comunidade, alguns quelônios foram avistados nas águas e imediatamente identificados pelos moradores. Segundo eles, a identificação da espécie é possível pelo modo como o animal coloca a cabeça para fora da água para respirar e pela sua anatomia. Com os olhos treinados, uma única saída, mesmo que percebida de relance pelo morador, é suficiente para a identificação da espécie. Eles ainda são capazes de prever o tempo necessário para o animal respirar novamente. Apoiados nessa destreza e utilizando o jaticá ou o arco e flecha, a captura é sempre bem sucedida.

Durante a pesquisa de campo, foram registrados, na comunidade, cerca de 20 animais nas casas e nos quintais dos moradores, excetuando-se desse número os animais vistos nos rios e os que estavam 'experimentando' as praias. Segundo a narrativa do menino D. (12 anos), colhida durante um passeio de rabeta (canoa motorizada), margeando as praias, as fêmeas dos bichos de casco 'experimentam' as praias antes da desova. Antes de chegar à areia, o animal nada bem próximo à margem (cerca de 5 metros), colocando a cabeça para fora d'água várias vezes. Segundo o menino, a fêmea faz isso para ver se a praia está segura, livre de outros animais. Ele também identificou vários ninhos falsos, locais onde a terra estava mexida. Ali, segundo o garoto, a fêmea havia 'experimentado', mas, por algum motivo - tipo de compactação da areia ou ainda porque "ela não gostou" -, havia desistido.

Foram identificados diversos ninhos durante a excursão, todos eles de irapuca (Podocnemis erythrocephala), sendo muitos avistados da canoa. A porcentagem de acerto do garoto (locais onde ele colocava o dedo e, estando os ninhos ocos, retirava a areia) foi muito alta, em torno de 90%. As praias, apesar de ainda reduzidas em setembro, foram também identificadas com destreza pelo nome e, sendo conhecidas ou não, por representarem locais onde a desova é intensa.

O morador da comunidade explica que, durante o período de vazante e seca, os quelônios têm uma 'ordem' de desova. Segundo ele, o primeiro a desovar é a irapuca, inaugurando o período de ovos, que faz a alegria da meninada; depois desovam o tracajá (Podocnemis unifilis) e a tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa). Os ovos são coletados durante os deslocamentos dos moradores, incluindo crianças. Os de irapuca são consumidos principalmente de dois modos: no arabu, um tipo de gemada misturada com farinha de mandioca ou tapioca (menos apreciado); e em bolos. Para esse fim, também servem os ovos de tracajá. Já os de tartaruga, embora mais pesados e gordurosos, são usados em gemadas ou pratos quentes.

É importante lembrar que o consumo de ovos de quelônios tem um forte apelo cultural para a comunidade de Tapiíra, onde é rara a presença de galinhas e frangos domésticos. Os moradores alegam que a manutenção desses animais é difícil em razão da presença de predadores naturais que, em pouco tempo, acabam com as matrizes. Também relatam que os regatões cobram caro pelos ovos. Dessa maneira, o único meio de adquirir ovos de granja é trazendo-os de Barcelos, Novo Airão ou Manaus. Assim, a proximidade do período de desova dos quelônios é vista com entusiasmo.

Muito se discute sobre a conservação de quelônios na Amazônia. No rio Unini, não é diferente. Em Tapiíra, entretanto, são raras as ocorrências de comercialização ilegal de quelônios. Segundo Ferrara et al., a preocupação de pesquisadores com a região diz respeito ao intenso consumo de subsistência e à intensidade da coleta de ovos2 2 FERRARA, C. R.; SCABIN, A.; NASCIMENTO, F. R.; SCHNEIDER, L.; SANTOS JUNIOR, L.; GAMA, L.; BERNARDES, V. C. D. Conservação e manejo das tartarugas da Amazônia, dez. 2010. 61 p. Coordenação de Pesquisa em Biologia de Água Doce e Pesca Interior, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Manaus, Amazonas, Brasil. . De acordo com os relatos e registros de caça e pesca, a comunidade Tapiíra é 'oportunista' no que tange à alimentação. Os alimentos são escolhidos de acordo com o período de abundância e/ou facilidade de captura: na vazante/seca, os peixes estão mais concentrados, sendo capturados com maior frequência; na enchente/cheia, os animais terrestres estão confinados à terra firme, sendo capturados com menor esforço. Com os quelônios ocorre da mesma maneira. Também nessa época, aumenta a chance de captura de fêmeas reprodutivamente ativas, o que reduz a taxa de desova das espécies. Todos estes fatores se tornam mais preocupantes se somados à captura de grande quantidade de ovos nas praias, o que, obviamente, acarreta a redução da taxa de nascimento.

Como dito, em Tapiíra, a interação com os animais não ocorre apenas com o intuito de alimentação. O uso de partes de animais para a produção de receitas caseiras é abundante, perdendo apenas para o emprego em soluções, xaropes e banhos produzidos a partir de plantas com propriedades medicinais. Todavia, hoje, a utilização das receitas caseiras é menos comum do que ocorria no passado. Um dos fatores que contribuíram para a diminuição do uso de receitas foi a instalação, em 1999, de um posto de saúde, com a presença de um agente fixo. Mesmo com o decrescente uso de remédios caseiros pelos moradores, ainda é possível observar a prática da reserva de algumas substâncias animais. Por exemplo, quando uma espécie é caçada, os moradores utilizam algumas partes do animal para a confecção de remédios adotados para a cura de doenças ou contusão. Também são consumidos chás para 'tirar olho grande', 'dar coragem'; cremes são produzidos para hidratação do corpo a partir da banha de algumas espécies, como a tartaruga.

Em Tapiíra, as serpentes são mortas quando encontradas próximas à casa, no quintal ou na roça, por representarem perigo. Mesmo quando não peçonhentas, são abatidas para retirar a banha. Nesse caso, jiboias e sucuris (chamadas na comunidade de 'sucuriju') podem ser poupadas se forem jovens, quando não apresentam quantidade de banha suficiente. Não há saídas específicas para a captura desses animais. Geralmente, os animais abatidos são encontrados durante outra atividade ou, por acaso, no roçado e em uma pescaria.

A 'coleta' de animais objetivando a criação doméstica para companhia, embora mais intensa nos anos anteriores, ainda ocorre na comunidade e encanta os moradores, tanto homens como mulheres. Thomas (2010) afirma que três traços particulares distinguem o animal de estimação dos outros animais: o primeiro é que o de estimação tem permissão para entrar em casa; a segunda característica distintiva é que esse animal recebe um nome pessoal e individualizado, que o distingue das outras criaturas; e, por fim, esses animais (indivíduos) jamais serviriam de alimento.

Nas relações com animais de companhia, em Tapiíra, é mais comum observar o apego a um papagaio ou outro animal silvestre do que propriamente aos cães e gatos. Não há muitos cães e gatos no local da pesquisa. A grande maioria dos que existem fica apenas no quintal, pois, curiosamente, não é bem-vinda dentro de casa. Dos três gatos registrados na comunidade, apenas um tem acesso ao interior da casa em que vive. Esses animais não apresentavam bom estado de saúde, provavelmente pela competição por alimento e pela ausência de cuidados mais específicos, ao contrário do que ocorre com as aves registradas como animais de companhia. Duas moradoras em Tapiíra têm papagaios de estimação. Também foi observado um macaco prego como pet (Figura 4A e 4B) e histórias de outros animais que os moradores já tiveram ou que desejariam ter.


Embora os moradores manifestem o desejo de 'cuidar' de animais, vale ressaltar que, pelo menos os mamíferos filhotes que eles citam, são animais cujas mães foram abatidas para alimentação.

Um dos fundadores da comunidade demonstrou, nas entrevistas, sentimento de perda quando os animais filhotes trazidos para a comunidade morrem ou vão embora. O retorno do animal à floresta ocorre devido ao início da fase reprodutiva, já que, com os níveis hormonais alterados, fica mais propenso a seguir os seus instintos de encontrar um parceiro para a procriação. Quando o filhote trazido é macho, também há relatos de que o animal (principalmente primata), ao chegar a essa fase, muda o comportamento, ficando muito agressivo. A fuga de animais (herbívoros) ou a agressividade (carnívoros) ocorre devido ao grau de domesticação dos animais.

Bowman (1980, p. 26) explica que a distinção feita entre domesticação e amansamento consiste no fato de que a primeira inclui o controle da fase reprodutiva, do ciclo de vida e da seleção dos reprodutores. O amansamento é a prática de eliminar o desejo do animal de fugir e, possivelmente, de treiná-lo para uma função útil. A prática tem que ser repetida em cada animal capturado no meio selvagem.

Do que se conhece a respeito do assunto, é razoável supor que os animais que podem ser amansados mais facilmente são os que se reproduzem em cativeiro e, assim, estão aptos a formar a base de um grupo domesticado. Parece, portanto, que as espécies atualmente domesticadas já passaram, em algum período, pelo estágio de amansamento. Nesse sentido, considerando o amansamento como parte do processo de domesticação, Bowman (1980) corrobora a compreensão de duas características dos animais de estimação em Tapiíra. A primeira é que, se o amansamento objetiva a eliminação do desejo de fuga, os animais selvagens criados pelos moradores não chegam a esse estágio. A segunda, e talvez mais importante, é ter ciência de que a 'domesticação' que lá ocorre é do indivíduo, e não da espécie, fato que deve ser considerado caso haja, no futuro, qualquer tipo de proposta de manejo de animais silvestres da região.Todos os animais registrados em fotografia foram antes identificados pelos moradores, inclusive os jovens. A maitaca-de-cabeça-roxa (Pionus sp.) e o papagaio (Amazona sp.) fazem parte de bandos que todo fim de tarde fazem arruaça nas árvores do lugar, impondo sua presença a todos os moradores. As pipiras (Ramphocelus carbo) danificam as frutas dos cajueiros e não existe qualquer tipo de ressentimento dos moradores em relação a isso. Um morador antigo explica:

tem uma porção que a gente planta pros bichos, pois aqui era a casa deles antes. Aqui a gente não planta só pra gente, pra eles também. Daí chega passarinho, tucano... Tem um tempo que estava ruim de comida, de fruta, e os tucanos estavam vindo comer caju aqui.

O conhecimento da fauna pelos moradores, passado aos filhos e netos, que os registram e reestruturam, vem de observações como esta, revelando sabedoria sobre os hábitos alimentares dos animais. Outros exemplos vão mais adiante, incorporando até o conhecimento da biologia da espécie, como no caso dos quelônios.

RELAÇÕES DE GÊNERO E GERAÇÃO

As relações de gênero, como as de poder, são marcadas por hierarquias, obediências e desigualdades. Na Amazônia, essas questões remetem para os limites do patriarcado, para as condições de vida e os trabalhos produzidos pela mulher. No entanto, como são típicas de uma ideologia, essas ações são apresentadas de forma inversa, traduzindo desigualdade por diferença, inversão que está, muitas vezes, presente nas esferas de valores, crenças, benefícios, direitos e privilégios (Barbieri, 1992). A divisão social das tarefas foi, ao longo da história, a categoria explicativa dos papéis de gênero. Estes papéis sexuados são construídos socialmente e vão sendo ressignificados no processo histórico, de acordo com o ethos de cada sociedade (Torres e Rodrigues, 2010).

Em muitas comunidades rurais da Amazônia, a divisão social e sexual do trabalho apresenta, de forma explícita, as diferenças entre os gêneros. Isso pode ser verificado em diversas atividades, como o abastecimento de água na casa, em lugares onde não existe água encanada (a grande maioria das comunidades rurais da Amazônia), o cuidado com as roupas, com as louças, com o almoço, com os filhos pequenos etc. Essa divisão evidencia também, claramente, as tarefas que se relacionam diretamente com a agricultura e/ou a pesca. Dependendo da atividade econômica exercida na localidade, a agricultura pode ser a principal atividade da unidade de produção familiar.

No processo produtivo da farinha de mandioca na comunidade Tapiíra, por exemplo, todas as etapas têm a participação da mulher, até mesmo no início, com a derrubada da mata. Não que elas peguem no machado para cortar as árvores em um dia de 'ajuri', mas são responsáveis pela organização e realização do almoço servido nesse dia, que é fundamental para a implementação do novo roçado, o qual gerará renda para o ano seguinte. Possuem, portanto, uma participação significativa.

Com relação à pesca, há variações. Novamente, dependendo da principal atividade econômica exercida no local, pode haver a participação direta ou indireta da mulher, conforme mostram Castro e Pereira (2009). Nesse estudo, realizado na comunidade rural de Cajueiro, no rio Tocantins, município de Palmeirante (TO), os autores afirmam que "os resultados obtidos ratificam que em comunidades ribeirinhas tradicionais as mulheres têm uma inserção direta e uma longa tradição na pesca (Castro e Pereira, 2009, p. 165). Segundo eles, a experiência e o conhecimento dessas trabalhadoras têm sido essenciais para a manutenção da tradição da pesca. As mulheres do povoado reconhecem as espécies de peixes e os diferentes ambientes aquáticos do rio Tocantins, bem como toda a organização e as práticas de pesca na região. Esse capital cultural decorre de uma longa vivência e uma relação estreita com o ambiente. No entanto, esse processo não significa uma constante readaptação ao meio, que se transforma devido às mudanças ocorridas no ciclo reprodutivo da ictiofauna e no regime hidrológico.

De acordo com Woortmann (1992), o que acontece é um reordenamento na relação com a natureza, principalmente quando se discute espaço, tempo e gênero em comunidades pesqueiras. Isto se torna evidente na comparação entre as percepções de duas gerações de mulheres de Cajueiro. O grau de semelhança de percepções entre adultas e moças foi de 41%, de um total de 51 registradas entre todos os grupos. Moças apresentam o menor grau médio de semelhança quando comparadas aos demais grupos: moças - 40%, adultas - 66%, adultos - 67%, rapazes - 70%. As mulheres adultas de Cajueiro foram mais além nas percepções quando comparadas com o grupo das moças, pois foram capazes de relacionar os impactos locais e a associação entre as dragas, as praias e estradas (Castro e Pereira, 2009, p. 165).

Da mesma maneira que o conhecimento decorre das interações presentes no cotidiano dos seres humanos, e se em comunidades tradicionais e indígenas a divisão de trabalho entre homens e mulheres é presente, as interações que decorrem e o conhecimento gerado também serão influenciados por essa divisão de gênero. Motta-Maués (1999), em artigo sobre hábitos alimentares da comunidade de pescadores de Icaraí, no estado do Ceará, mostra a complementaridade entre atividades do homem e da mulher. O primeiro cuida da manutenção da família; a segunda, da casa e dos filhos. Essa divisão dos espaços, sustentada pelos interditos simbolicamente construídos, impede as mulheres de terem contato com o mar (a praia mesmo) e lhes proíbe a ingestão de tantos peixes (como os 'reimosos'), mas também mobiliza intensamente os homens para localizar as espécies que são do agrado feminino e atender, assim, aos seus 'abusos' e 'desejos'.

Complementaridade entre atividades do homem e da mulher: essa deve ser a melhor sentença para definir as relações de gênero em comunidades rurais na Amazônia, no sentido de dar visibilidade às atividades desenvolvidas por mulheres jovens, adultas e anciãs, que, juntamente com as atividades dos homens, são fundamentais para a (re)produção material e simbólica da vida desses sujeitos sociais, tais como a manutenção da roça e da horta, a pesca, o extrativismo, a criação de pequenos animais, entre outras.

SIMILARIDADE E DISSIMILARIDADE NO CONHECIMENTO DA FAUNA

Tapiíra tem 158 moradores, constituindo 37 famílias. Entre eles, 86 são do sexo masculino e 72 do feminino. A predominância do gênero masculino decorre da maior mobilidade feminina. Em todas as faixas etárias até os 50 anos, a proporção de mulheres ausentes é maior do que a de homens ausentes (Figura 5). Na comunidade, mulheres jovens são incentivadas a migrar para as cidades para prosseguir com a educação escolar, uma vez que, atualmente, a escola local contempla apenas o ensino fundamental. Outra razão para isso seria a predominância do padrão de residência patrilocal, quando elas são preparadas para casar com homens de outras comunidades. Em Tapiíra, muitas jovens (acima de 11 anos) saem para estudar e/ou casar. As que se casam não retornam à comunidade. A saída precoce das meninas para a cidade pode explicar a diferença maior entre as associações mentais encontradas entre as mulheres na maioria dos dendogramas.


No dendograma referente à questão 1 da entrevista aplicada aos moradores, sobre quais animais podem ocorrer na terra firme/floresta (Tabela 2), objetivou-se obter respostas espontâneas acerca da fauna que habita o ecossistema (Tabela 3 e Figura 6). É válido ressaltar que não se optou pelo uso de pranchas, pois isso induziria a resposta do entrevistado. As mesmas questões foram feitas para adultos e jovens. A intenção foi identificar como as associações mentais livres entre elementos da fauna local e os vários habitats e nichos ecológicos evidenciam a forma pela qual cada grupo homogêneo interage e, portanto, representa distintamente suas experiências de contato e interação com a fauna local. Observa-se, na Tabela 3, que a similaridade das respostas entre os grupos focais de homens adultos é alta (0,83). Esse dado é representado no dendograma (Figura 6) pela pequena distância que existe entre esses dois grupos focais de mesmo gênero/geração (HA1/HA2).


Esse resultado de associações muito similares entre os dois grupos poderá ser verificado em outras questões, também demonstrando que a intensidade de interações de homens adultos com a fauna é maior quando comparada aos demais grupos. As mulheres (tanto jovens como adultas) também conhecem a fauna que habita a terra firme, mas a variedade de espécies citadas é relativamente menor em comparação à relatada pelos homens. Esse fato é compreensível ao se recordar a divisão de tarefas: a mulher, responsável pelas tarefas domésticas e pelos filhos, tem menor contato com a mata fechada. Também durante a confecção das listas foi possível notar que muitas das espécies relacionadas pelas mulheres revelavam que o conhecimento foi adquirido a partir da experiência de terceiros, como pai, marido e irmão mais velho.

Com relação à segunda questão da entrevista ("Quais os animais que podem ocorrer na beira?"), o termo 'beira' refere-se à margem do rio Unini (Tabela 4 e Figura 7), pois é desse modo que os moradores denominam as margens do rio. Na beira, são realizadas muitas tarefas do cotidiano, como a captação de água, a lavagem da louça e da roupa e também o banho diário, que, para os meninos e as meninas, vai muito além da simples assepsia corporal. Para eles, a beira é também espaço de sociabilidade e entretenimento, que se dá a partir de um contato lúdico com a água. Contudo, o fato que deve ser destacado é que neste lugar ocorre o tratamento dos animais caçados, como mostrado na Figura 3. As mulheres adultas e jovens têm um contato diário com este ambiente em virtude da lavagem da louça e da roupa. Nesta tarefa, elas estão quase sempre sozinhas, tendo um olhar acurado a respeito dos animais que as cercam, fato que explica o aparecimento de algumas espécies diferentes nas listas, pois os grupos frequentam o lugar com o mesmo objetivo, mas de maneiras diferentes, inclusive quanto ao horário.


Foi comum o aparecimento de insetos nas listas, mencionados pelas mulheres, de modo mais específico, citados como animais que incomodam, dependendo do horário. Já os homens, inclusive os jovens, citam espécies de peixes que podem ser criadas como ornamentais. Embora as listas produzidas nesta questão mostrem associações diferenciadas entre os homens adultos (espécies citadas exclusivamente por homens), fica claro na Figura 7 que, mesmo havendo dissimilaridades, as associações da fauna relacionada ao habitat da beira são compartilhadas entre todos os moradores. Há, no entanto, um efeito de gênero mais pronunciado. Homens (adultos e jovens) são mais parecidos entre si do que com mulheres (adultas e jovens).

Sabe-se que a Amazônia é um mosaico de rios, lagos, furos e igarapés e que, nesses ambientes, reside uma enorme diversidade de espécies faunísticas. Na comunidade Tapiíra, a relação com a água é intensa. A comunidade possui muitos lagos, igarapés e igapós, que são ambientes de grande piscosidade. A pesca artesanal é a principal forma de obtenção de alimento, também podendo ser feita para o incremento da renda (pesca de peixes ornamentais), o que implica grande conhecimento da ictiofauna entre os moradores homens, jovens e adultos. É o que se pode concluir da Tabela 5, sobre a terceira questão das entrevistas: "Que animais podem ocorrer nas águas?". A tabela de similaridade não demonstra nenhuma relação com similaridade menor do que 0,5, revelando também que a informação a respeito das associações entre a fauna e o habitat aquático, embora seja fruto da experiência empírica dos homens, é repassada às mulheres. Por outro lado, a Figura 8 revela que as menores distâncias estão entre homens adultos e entre os jovens; por outro lado, as maiores distâncias estão entre as mulheres adultas, e entre elas e o restante do grupo.


A quarta questão - "quais os animais que podem ser encontrados debaixo da terra?" - foi colocada pressupondo as interações dos moradores com animais que encontram suas fontes de alimento nas raízes ou que passam algum período (seja do ciclo biológico ou do ciclo diário) no subsolo. A comunidade tem muitos agricultores que cultivam mandioca, tubérculo que precisa ser arrancado do solo, imputando um contato mais direto com a terra. Embora a questão tenha gerado índices de similaridades bem variados (0,28 entre homens e mulheres e 0,83 entre os homens), o número de espécies citadas pelos moradores não foi grande, um total de sete espécies (ariranha, tatu, formiga, cupim, calango, minhoca e formiga saúva), o que gerou no dendograma uma diferença que não ultrapassou 0,4 pontos entre os grupos (Tabela 6 e Figura 9). Apenas uma espécie foi citada por todos os grupos, a ariranha. O dendograma revela que o padrão de associações entre os homens (jovens e adultos) é mais similar entre estes e os grupos de mulheres (jovens e adultas), embora os grupos de mulheres adultas também mostrem associações bastante similares entre elas.


Com a questão 5 - "quais os animais que vivem em cima das árvores?", objetivou-se perceber a similaridade das associações entre a fauna e o hábito (nicho) arborícola que pode ser observado nas matas, tanto nas de igapó quanto nas de terra firme (Tabela 7). A caça e o extrativismo obrigatoriamente fazem com que os moradores de Tapiíra adentrem a mata, pois é onde se encontra a castanha (Bertholletia excelsa), por exemplo, um dos principais produtos extrativos. Aves, como a ariramba, o urubu, o papagaio e o tucano, e mamíferos, como a preguiça, o mico-de-cheiro e o macaco-prego, apareceram nas listas de homens e de mulheres, pois frequentam as árvores da floresta, mas também as dos quintais das casas e da beira do rio. Já animais como o acauã, o carcará, o capitão-do-mato, o camaleão, a aranha caranguejeira, a caba-tapiú, a caba-de-igreja, o louva-a-deus e, ainda, o ouriço-cacheiro e a mucura foram citados apenas nas listas produzidas pelos homens. Percebe-se também uma especificação maior em nomear a fauna citada pelos homens, o que pressupõe uma melhor identificação da espécie por causa da maior experiência empírica. Essa pergunta geradora, em particular, revelou uma interação mais diferenciada entre os gêneros, pois existem espécies que foram citadas apenas por homens e outras apenas por mulheres. A Figura 10 demonstra que todos os grupos do mesmo gênero e geração são mais semelhantes entre si em relação aos demais grupos e, ainda, que todos os grupos de mesmo gênero são mais semelhantes entre si em relação ao outro gênero.


Com a questão 6 - "quais os animais que voam?" - objetivou-se inicialmente perceber a similaridade das associações mentais da fauna avícola. No entanto, essa pergunta suscitou associações relacionadas não somente a uma classificação biológica (taxonômica), mas também ao hábito (nicho) 'aéreo'. Os moradores usaram a relação animal-habitat para confeccionar as listas, nas quais foram lembradas espécies bem diversificadas, como o morcego e, principalmente, os insetos (cabas, abelhas, mutucas, borboletas e cigarras) (Tabela 8). Em Tapiíra, há uma grande quantidade de psitacídeos (curicas, papagaios, periquitos) que visitam os quintais, alimentando-se das frutas, com os ruídos típicos dessas aves. Por isso, foram animais muito citados, tanto nessa questão como na anterior. O conhecimento sobre a fauna 'que voa' é bem disseminado na comunidade. As listas somaram um total de 37 espécies diferentes. Doze animais foram citados apenas pelos homens. A Figura 11 apresenta o mesmo padrão anterior, no entanto, com menores distâncias entre os grupos homogêneos (menor efeito de gênero e geração). Mulheres jovens são as que mais se distanciam dos demais grupos.


A questão 7 - "quais os animais que podem ser encontrados no período de vazante/seca?" - está ligada diretamente à sazonalidade do rio Negro e seus afluentes. A dinâmica das águas altera, de maneira significativa, o habitat de muitas espécies (mamíferos, répteis, anfíbios e outros). Altera também a relação dos homens e das mulheres com os animais, no sentido de uma maior facilidade, ou não, de captura. A tabela com os índices de similaridade entre os grupos e o dendograma (Tabela 9 e Figura 12) demonstram uma alta similaridade entre associações dos homens e das mulheres (distância entre as respostas menor que 0,3), jovens ou adultos(as). O dendograma revela um padrão fraco de gênero e geração, resultado de listas muito semelhantes entre si. O binômio vazante/seca não está associado somente à beira do rio, característica que deixou a questão 7 muito ampla, pois abarcou guildas muito distantes, tanto no sentido fenológico quanto ecológico. Esse fato contribuiu para a alta similaridade entre os grupos.


A argumentação da questão 8 - "quais os animais que podem ser encontrados no período de enchente/cheia?" - é a mesma da anterior. Refere-se, entretanto, a outro período, que também altera a relação dos moradores com a fauna local. A cheia é a época dos 'peixes magros', ou seja, nesse período, os corpos d'água se expandem, aumentando significativamente o esforço de pesca (e de caça também), pois as distâncias a serem percorridas para que os animais sejam encontrados são maiores. A caça também rareia. As antas, por exemplo, são facilmente alvejadas na época da seca, pois costumam beber água nas margens dos igarapés ou lagos remanescentes, o que não ocorre na cheia. Como as mulheres visitam a beira com mais frequência na época da cheia (na seca a visita pode significar uma caminhada de 200 metros a mais), é provável que, por esse motivo, o relato do conhecimento da fauna na época da enchente/cheia tenha se mostrado mais apurado.

Mais uma vez, a distância entre as respostas, considerando toda a comunidade, não é grande. Pressupondo as interações com a fauna associadas a essa estação, as respostas são mais amplamente socializadas entre os gêneros e gerações. No entanto, pode-se perceber na Tabela 10 e na Figura 13 a maior semelhança entre grupos homogêneos (isto é, mesmo gênero e geração) do que entre cada grupo e os demais. Pode também ser observado que, antes de o conhecimento se tornar amplo em toda a comunidade, ele é mais similar com os grupos do mesmo gênero, independente de geração. Isso leva a crer que o conhecimento adquirido é transmitido primeiro aos de gênero igual, com idades diferentes, antes de ser transmitido ao outro sexo. Isso também implica dizer que a transmissão vertical do conhecimento entre indivíduos do mesmo sexo é muito valorizada, o que não anula a importância da transmissão horizontal, por exemplo, entre companheiros (marido e mulher).


Há um padrão forte de gênero e geração. O conhecimento é mais uniforme entre indivíduos adultos do que entre indivíduos jovens. Todos os grupos de mesmo gênero e idade são mais semelhantes entre si do que com os demais grupos, e todos os grupos de um gênero são mais semelhantes entre si do que com um grupo de outro gênero.

O dendograma a seguir (Figura 14) foi confeccionado a partir de todas as listas juntas. Para isso, foram unidas todas as planilhas, uma seguida da outra. Como esperado, esse dendograma confirmou a tendência dos outros: mostrar a formação de grupos com conhecimentos específicos, que dependem da atividade exercida em um determinado habitat, embora a distância entre as respostas dos grupos não tenha ultrapassado 0,5 pontos, o que revela o conhecimento sobre a fauna silvestre ser transmitido para todos os grupos. A similaridade de conhecimento entre homens adultos é maior do que entre e dentre os demais grupos; e a similaridade entre as mulheres jovens é a que mais se distancia dos demais, corroborando o resultado encontrado por Castro e Pereira (2009). As semelhanças são maiores entre grupos de mesmo gênero, independente de geração. Homens são mais semelhantes entre si do que mulheres, também independente de geração. Essa similaridade, maior entre os grupos de mesmo gênero, é, provavelmente, decorrente da divisão sexual do trabalho, pressupondo também que ocorra maior socialização das informações entre os indivíduos de sexo masculino.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dos oito primeiros dendogramas, pode-se verificar que em quatro (referentes às questões 1, 2, 5 e 8) a menor distância entre as respostas (maior similaridade) ocorreu entre os homens adultos. Estes resultados corroboram as expectativas de que esses grupos (homens adultos 1 e 2) seriam capazes de associar mais espécies, entre as quais muitas não citadas pelos outros grupos, revelando que interagem com a fauna de forma mais intensa e diversificada. Em dois dendogramas (referentes às questões 3 e 7), observa-se maior semelhança de resultados dos homens adultos com os jovens. Em um dendograma (referente à questão 6), os homens jovens são o grupo de maior similaridade entre si; e, em outro dendograma (referente à questão 4), a similaridade é maior entre homens jovens e mulheres adultas. Também existem espécies que foram citadas apenas pelas mulheres, embora em um número menor do que a lista gerada pelos homens. A relação de geração existente entre os homens não é percebida entre as mulheres com a mesma intensidade.

De maneira geral, embora os resultados demonstrem maior socialização do conhecimento entre os homens mais velhos, o grau de similaridade entre as respostas apresentadas, quando considerada toda a comunidade, é alto, demonstrando que, ainda que em um primeiro momento uma informação seja mais restrita a um grupo, de homens ou mulheres, jovens ou adultos, pouco tempo depois essa informação é socializada para toda a comunidade. Sendo assim, pode-se dizer que, na comunidade Tapiíra, a transmissão dos conhecimentos sobre a fauna silvestre é também intergeracional.

As relações dos moradores com a fauna silvestre é uma contínua fonte geradora de saber tradicional. A socialização desse conhecimento, como visto, é intermediada por relações de gênero e geração durante, principalmente, a atividade da caça, que, sendo essencialmente masculina, promove entre os homens maior intimidade com a mata. Esse conhecimento deve ser preservado, pois é relevante, e deve ser utilizado em projetos de conservação da fauna em áreas protegidas. Programas participativos de monitoramento das espécies que sofrem maior pressão de caça, como os quelônios, e que valorizam o conhecimento local podem contribuir tanto para a conservação das espécies como para a manutenção do modo de vida das comunidades tradicionais inseridas em unidades de conservação.

A compreensão das questões de gênero e geração é importante porque - se os moradores da unidade devem participar das ações de conservação da fauna silvestre - é condição sine qua non que sejam compreendidos e levados em conta o protagonismo de homens e mulheres, pois suas ações/interações revelam estratégias de socialização das práticas de manejo da fauna e também mudanças de comportamento e percepção, que em parte são influenciadas pelas mudanças políticas, como, por exemplo, o recrudescimento das regras internas das áreas protegidas.

As interações socioculturais entre moradores e a fauna local devem ser consideradas e valorizadas na elaboração de propostas de manejo das espécies com maior potencial, observando a viabilidade econômica, social e ecológica, de modo a se alcançarem resultados mais sustentáveis. Partindo-se de rotinas já estabelecidas ou de intervenções que introduzam inovações mais adequadas e adaptáveis ao contexto local, poderão ser planejadas estratégias de manejo participativo, que resultem em ganhos conservacionistas para as espécies da fauna silvestre e para a proteção e valorização das práticas culturais estabelecidas entre os moradores do rio Unini e os de outras unidades de conservação na Amazônia.

Recebido em 06/03/2012

Aprovado em 03/08/2012

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  • Autor para correspondência:

    Luciana Raffi Menegaldo
    Av. José Adriano Arrobas Martins, 790, ap. 23. Condomínio Redenção. Jardim Nova Aparecida
    Jaboticabal, SP, Brasil. CEP 14883-298
    (
  • 1
    Informação também confirmada por J. H. Rebêlo, em 2009, durante aula ministrada no curso de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, disciplina de Ecologia, da Universidade Federal do Amazonas, sobre iniciativas comunitárias de manejo.
  • 2
    FERRARA, C. R.; SCABIN, A.; NASCIMENTO, F. R.; SCHNEIDER, L.; SANTOS JUNIOR, L.; GAMA, L.; BERNARDES, V. C. D. Conservação e manejo das tartarugas da Amazônia, dez. 2010. 61 p. Coordenação de Pesquisa em Biologia de Água Doce e Pesca Interior, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Manaus, Amazonas, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      06 Mar 2012
    • Aceito
      03 Ago 2012
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