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O conflito social como ferramenta teórica para interpretação histórica e sociológica

Social conflict as theoretical tool for historical and sociological interpretation

Resumos

Os conceitos são as ferramentas utilizadas pelos cientistas das Humanidades para a labuta intelectual. Artefatos substantivos, os conceitos diferenciam uma análise científica do senso comum. Este ensaio pretende debater uma dessas ferramentas, o conceito de conflito social. Diante dos últimos acontecimentos no mundo e, mais recentemente, no Brasil, este conceito tende a ganhar cada vez mais destaque. Entretanto, ainda há carências teóricas para organizar o debate acadêmico, sob o risco de superficialidade. Propõe-se aqui, amparado por pensadores como Pierre Bourdieu, Georg Simmel, E. P. Thompson e Axel Honneth, uma abordagem que extrapola a interpretação utilitarista do conceito. Dessa forma, espera-se contribuir para o entendimento dos movimentos sociais pretéritos, históricos, e atuais, sociológicos.

Conflito social; História dos movimentos sociais; Sociologia do conflito


The concepts are tools used by scientists of Humanities for intellectual labor. Relevant artifacts, concepts differentiate scientific analysis from common sense. This essay discusses one of these tools, the concept of social conflict. Considering the recent events in the world and especially in Brazil, this concept will gain prominence. However, the academic debate lacks theoretical approaches, at the risk of superficiality. Supported by authors such as Pierre Bourdieu, Georg Simmel, E. P. Thompson and Axel Honneth, we propose an approach that goes beyond the utilitarian interpretation of the concept. Thus, it is expected to contribute to the understanding of past, historical, and current, sociological, social movements.

Social conflict; History of social movements; Sociology of conflict


ARTIGOS

O conflito social como ferramenta teórica para interpretação histórica e sociológica

Social conflict as theoretical tool for historical and sociological interpretation

Leonardo Bis dos SantosI, II

IInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo. Nova Venécia, Espírito Santo, Brasil

IIUniversidade Federal do Espírito Santo. Vitória, Espírito Santo, Brasil

Autor para correspondência Autor para correspondência Leonardo Bis dos Santos Praça Philogomiro Lannes, 220, edifício Rio Negro, apto. 308. Jardim da Penha Vitória, ES, Brasil. CEP 29060-740 ( leonardo.bis@ifes.edu.br)

RESUMO

Os conceitos são as ferramentas utilizadas pelos cientistas das Humanidades para a labuta intelectual. Artefatos substantivos, os conceitos diferenciam uma análise científica do senso comum. Este ensaio pretende debater uma dessas ferramentas, o conceito de conflito social. Diante dos últimos acontecimentos no mundo e, mais recentemente, no Brasil, este conceito tende a ganhar cada vez mais destaque. Entretanto, ainda há carências teóricas para organizar o debate acadêmico, sob o risco de superficialidade. Propõe-se aqui, amparado por pensadores como Pierre Bourdieu, Georg Simmel, E. P. Thompson e Axel Honneth, uma abordagem que extrapola a interpretação utilitarista do conceito. Dessa forma, espera-se contribuir para o entendimento dos movimentos sociais pretéritos, históricos, e atuais, sociológicos.

Palavras-chave: Conflito social. História dos movimentos sociais. Sociologia do conflito

ABSTRACT

The concepts are tools used by scientists of Humanities for intellectual labor. Relevant artifacts, concepts differentiate scientific analysis from common sense. This essay discusses one of these tools, the concept of social conflict. Considering the recent events in the world and especially in Brazil, this concept will gain prominence. However, the academic debate lacks theoretical approaches, at the risk of superficiality. Supported by authors such as Pierre Bourdieu, Georg Simmel, E. P. Thompson and Axel Honneth, we propose an approach that goes beyond the utilitarian interpretation of the concept. Thus, it is expected to contribute to the understanding of past, historical, and current, sociological, social movements.

Keywords: Social conflict. History of social movements. Sociology of conflict

O surgimento de movimentos sociais depende da

existência de uma semântica coletiva que permite

interpretar as experiências de desapontamento

pessoal como algo que afeta não só o eu individual,

mas também um círculo de muitos outros sujeitos

(Honneth, 2003, p. 258).

O que seria da História se não fossem os conceitos que operacionalizam a sua interpretação? Provavelmente, sem o amparo dos conceitos, o ato de descrever e interpretar situações sociais, passadas ou presentes, se resumiria à reunião de fatos e dados aleatórios, como fazemos em conversas em mesas de bar. Dependendo da companhia, a 'história nos botecos' pode ser muito interessante e produtiva, mas, ainda assim, sobremaneira aleatória, dado que emendamos um assunto no outro e os temas inicial e final da conversa dificilmente convergem. Os relatos que fazemos diariamente são assim. Sem a menor preocupação em concatenar as ideias ao longo de uma exposição detalhada sobre determinado assunto passado. Os conceitos, dessa forma, são ferramentas de análise para operacionalizar a interpretação e descrição do fato estudado. Conferem unicidade e coesão ao relato. Essa máxima é aplicada não só à História, mas a todas as Ciências Humanas - pelo menos! Os conceitos são, em grande maneira, responsáveis pela diferença entre um amontoado de relatos acerca de um determinado fato, ou de um conjunto deles, e uma pesquisa histórica. Esta se preocupa, além da narrativa, com uma forma específica de entender a realidade dada e suas abstrações, sendo as ferramentas - conceitos - elementos operativos e caracterizadores de um determinado trabalho.

Os conceitos, contudo, se inserem em um contexto mais amplo na busca por fontes para as análises. A forma como são selecionados os dados interfere - ou pelo menos deveria interferir - decisivamente na escolha dos conceitos a serem utilizados para instrumentalizar a pesquisa. Nesse sentido, segundo Pierre Bourdieu, método de coleta e teoria utilizada para a interpretação das fontes não podem ser separados epistemologicamente, sob possibilidade de criar antagonismos teórico-metodológicos que podem invalidar os resultados. Bourdieu (2004 [1989], p. 24) declara que:

A divisão "teoria"/"metodologia" constitui em oposição epistemológica uma oposição constitutiva da divisão social do trabalho científico (...). Penso que se deve recusar completamente esta divisão em duas instâncias separadas, pois estou convencido de que não se pode reencontrar o concreto combinando duas abstrações.

Conceitos, teoria e metodologia devem, então, ser visitados de forma coesa, uma vez que sabemos que as escolhas darão pistas de como o historiador vai conduzir seus estudos. Assim, pesquisadores que buscam alcançar a descrição, em alguma medida, de como determinados eventos históricos mantêm relação com os acontecimentos atuais, irão certamente se amparar em conceitos que guardam doses variáveis de similaridade com ideias de continuidade, sequencialização, funcionalidade e estrutura social, só para citar algumas. Da mesma forma que trabalhos científicos afetos à transformação social estarão mais próximos de conceitos que colocam o(s) sujeito(s) pesquisado(s) na condição de protagonista(s). Nesta segunda opção, a ação social é valorizada ao ponto de estabelecer nexos com o porquê da mudança social.

Em termos de pesquisa histórica, dificilmente - para não referendar sua impossibilidade - um estudo vai se desvincular completamente de uma das duas proposições supracitadas. A mudança e a continuidade são aspectos complementares da análise histórica, uma vez que não há ruptura pontual e completa em se tratando de eventos sociais. Da mesma forma, a continuidade de um costume, por exemplo, é acompanhada de doses variáveis de mudança, à medida que as gerações vão se sucedendo. A questão central, então, passa a ser a valorização conferida na pesquisa a um aspecto ou a outro. Dessa forma, mais uma vez revisitando a posição teórica de Bourdieu, lança-se o uso dos conceitos de história reificada e história incorporada. Preocupado com o protagonismo social, mas sabedor do peso das instituições sobre a ação coletiva, este autor destaca que elementos socioculturais são inscritos na sociedade. A história reificada está inscrita no rol das estruturas e das coisas inseridas nas colunas macrossociais que sustentam o convívio social, como as leis, a arquitetura e os sistemas de organização do poder institucionalizado. A história reificada é aquela responsável, em grande medida, pela manutenção do status quo. A história incorporada, por outro lado, é a forma como as estruturas sociais estão inseridas nos indivíduos, considerados pelo autor francês como 'agentes', de forma a explicitar todo o potencial transformador que as pessoas possuem. A história incorporada é absorvida de formas diferentes pelos agentes e é isto que dá pluralidade à ação social, que pode variar entre os extremos da conformidade até a exposição de conflitos sociais visando à mudança.

Para escapar às alternativas mortais nas quais se encerrou a história ou a sociologia e que, tal como a oposição entre o acontecimento e a longa duração ou, noutra ordem, entre os "grandes homens" e as forças coletivas, as vontades singulares e os determinismos estruturais, assentam todas na distinção entre o individual e o social, identificado com o coletivo, basta observar que toda a ação histórica põe em presença dois estados da história (ou do social): a história no seu estado objetivado, quer dizer, a história que se acumulou ao longo do tempo nas coisas, máquinas, edifícios, monumentos, livros, teorias, costumes, direito etc., e a história no seu estado incorporado, que se tornou habitus. Aquele que tira o chapéu para cumprimentar reativa, sem saber, um sinal convencional herdado da Idade Média no qual, como relembra Panofsky, os homens de armas costumavam tirar o seu elmo para manifestar as suas intenções pacíficas. Esta atualização da história é consequência do habitus, produto de uma aquisição histórica que permite a apropriação do adquirido histórico. A história no sentido de res gestae constitui a história feita coisa, a qual é levada, "atuada", reativada pela história feita corpo e que não só atua como traz de volta aquilo que a leva (...). Do mesmo modo que o escrito só escapa ao estado de letra morta pelo ato de leitura o qual supõe nele inscrito, também a história objetivada, instituída, só se transforma em ação histórica, isto é, em história "atuada" e atuante, se for assumida por agentes cuja história a isso os predispõe e que, pelos seus investimentos anteriores, são dados a interessar-se pelo seu funcionamento e dotados das aptidões necessárias para a pôr a funcionar (Bourdieu, 2004 [1989], p. 82-83).

A história exerce um importante papel na constituição do habitus e dos campos, sendo expressa pela história incorporada e pela história reificada ou objetivada. Enquanto a primeira trata de como as formas coletivas são apropriadas pelos indivíduos ao longo da história, cristalizando corporeamente elementos socialmente constituídos, a história incorporada, por outro lado, situa-se no nível individual - subjetivo - e trata de como a história reificada - plano coletivo - objetiva-se nos indivíduos.

Cabe ressaltar que cada indivíduo reage diferentemente à história reificada. Dessa forma, a posição do historiador perante o passado revela a posição latente sobre o presente ou 'contra os adversários do presente'. O historiador, assim, tem diante de si a tarefa de ressuscitar um corpo de fontes, que no seu conjunto fora um fato passado, utilizando seus remédios transvestidos de conceitos/ferramentas de trabalho - e vale destacar que essas ferramentas são constituídas no presente! Afinal, 'o escrito só escapa ao estado de letra morta pelo ato de leitura o qual supõe nele inscrito', e um fato passado só volta à lembrança pelo nível de vivacidade no presente. É no presente que estamos estabelecendo as bases conceituais para a leitura dos fatos passados. Lowenthal (apud Jenkins, 2011 [2001], p. 33) declara que, "para explicarem o passado, os historiadores vão além do efetivamente registrado e formulam hipóteses seguindo os modos de pensar do presente".

Voltando à relação entre história reificada e história incorporada, e estabelecendo um diálogo com Roger Chartier1 1 Roger Chartier e Pierre Bourdieu possuem significativa aproximação teórica. Os indícios dessa relação são relevantes e vão desde a correlação de conceitos até a produção escrita. Após a morte de Bourdieu foi, inclusive, publicada uma série de entrevistas concedidas a Chartier, onde são abordados a relação entre sociologia e história, bem como os desdobramentos dos conceitos fundamentais de Bourdieu para a história. , que operacionaliza o contexto de produção e apropriação de obras escritas a fim de tornar acessível o passado, destaca-se que:

Produzidas em uma ordem específica, as obras fogem delas e adquirem existência ao receber as significações que seus diferentes públicos lhes atribuem, às vezes em muito longa duração. Portanto, o que se tem de pensar é a articulação paradoxal entre uma diferença - aquela pela qual todas as sociedades, com modalidades variáveis, separaram um âmbito concreto de produções textuais de experiências coletivas ou de prazeres estéticos - e dependências - as que inscrevem a invenção literária ou intelectual nos discursos e nas práticas do mundo social, tornando-a possível e inteligível (Chartier, 2010, p. 42-43).

As 'dependências'a que Chartier se refere são, parafraseando Bourdieu, componentes da história reificada. Esta trata da objetivação da história no plano coletivo e leva, em grande medida, os indivíduos a se esquecerem da origem do mundo social, ao mesmo passo que o torna coletivamente inteligível. Entretanto, também somos dotados de um conjunto de signos que nos caracteriza e que nos permite interpretar individualmente a coletividade. É assim que podemos criar novos sentidos e novos signos que podem ser inscritos na coletividade. Essa ação transformadora, elemento central no conjunto metodológico de Bourdieu para compor o cenário de transposição do determinismo social, caracteriza o agente. Da mesma forma, tal ação é grandemente - mas não totalmente - controlada pelas coisas inscritas na história reificada. O plano individual e coletivo, assim, estabelece uma relação de conflito constante.

Neste quadro teórico, o agente é dotado de poder de ação tanto para acionar a história reificada, como para produzir novos significados a partir da história incorporada. Esse embate se processa em um espaço social mais ou menos autônomo, chamado campo. Para Bourdieu, este conceito é delimitado por um conjunto de regras próprias estabelecidas aos agentes, rompendo com determinismos ou regras absolutas para toda a sociedade. Cada campo possui regras próprias para estabelecer legitimidade e relações de poder.

O 'campo' é marcado por disputas constantes por poder. Tomando agora a História como 'campo', são muito evidentes as lutas em seu interior para ver quem será o portador da teoria mais aceita. A legitimidade para ser o pesquisador que revela a 'verdade' científica torna os estudos e as pesquisas alguns dos meios pelos quais se processam as lutas. A legitimidade conferida pelo meio acadêmico é o troféu em disputa no 'campo' científico da História. Para tal, são requeridos elementos - linguajar, teoria mais aceita e reputação - próprios de um historiador (habitus) para sustentar a disputa.

Mais uma vez recorrendo à interpretação de Chartier sobre a obra de Bourdieu, salienta-se que:

A obra, o artista, o filósofo só existem dentro de uma rede de relações visíveis ou invisíveis que definem a posição de cada um em relação à posição dos outros, ou seja, a uma posição social, em relação a uma posição estética. E me parece ser esta uma lição essencial do trabalho de Bourdieu: sempre pensar as relações que podem estar visíveis nas formas de coexistência, de sociabilidade, ou de relações entre indivíduos, ou ainda de relações mais abstratas, mais estruturais, que organizam o campo - conceito essencial, nesse sentido - da produção estética, filosófica, cultural, num momento e num lugar dados. Os campos, segundo Bourdieu, têm suas próprias regras, princípios e hierarquias. São definidos a partir dos conflitos e das tensões no que diz respeito à sua própria delimitação e constituídos por redes de relações ou de oposições entre os atores sociais que são seus membros. Neste livro - e tomo este livro como exemplar dentre muitos textos de Bourdieu -, a ideia do pensamento relacional permite, ao mesmo tempo, repelir a ideia do indivíduo isolado, do gênio singular e também a ideia de uma universalidade das categorias que espontaneamente se utilizam para pensar, discutir, qualificar as obras intelectuais ou estéticas (Bourdieu e Chartier, 2011, p. 82-83).

A estrutura baseada no protagonismo do agente - cuja ação coletiva é derivada do choque de forças pautadas pela história reificada e história incorporada, traduzida no habitus, dentro do 'campo' - será a base metodológica para manipulação das fontes coletadas nesta pesquisa. Vale ressaltar que uma questão específica será crucial: como se processou a consolidação do campo ambiental no período estudado?

Dado o alto potencial interpretativo dos embates, tanto em termos de formação do habitus quanto para a disposição dos agentes em suas ações coletivas transformadoras da sociedade, o conceito de 'conflito' será central para a apropriação de fontes e dados. Contudo, refletir sobre o conceito de 'conflito' pode ser tão elucidativo quanto desastroso. Antes de avançar na interpretação das fontes, vamos propor um debate sobre as suas possibilidades de aplicação, pois se pode facilmente incluir a análise de conflitos em casos tão diversos que, em um primeiro momento, existe o risco de inviabilizar a sua operacionalização enquanto conceito. Seu poder explicativo é, ao mesmo tempo, sua virtude e sua fraqueza. Dadas suas inúmeras aplicações - é factível falar em conflitos desde organismos unicelulares, na disputa pela vida, aplicados aos conhecimentos biológicos, como em situações bélicas, como as Grandes Guerras Mundiais -, é imprescindível justapor um nível de sofisticação considerável ao seu uso.

Propomos um primeiro grau de especialização na utilização do conceito: aqui não nos interessa qualquer tipo de conflito que não seja social. E convenhamos que, com eventos como a Primavera Árabe ou os conflitos sociais ocorridos no Brasil em junho de 2013, o conceito deverá estar em alta nos próximos anos. Esse primeiro nível de particularização - explicitando o interesse pelos conflitos sociais - é necessário para expurgar empregos do conceito como os utilizados na Física (o conflito é analisado, por exemplo, sob o prisma da resiliência), Biologia (de forma intangível, aparece na teoria da evolução, onde o conflito entre espécies é parte da seleção natural) ou mesmo Psicologia (conflitos pessoais entre ego, id e alterego). Esse primeiro corte exclui também conflitos de ordem individual, como aqueles entre marido e esposa, irmãos ou vizinhos. Esses conflitos só entrariam em nossa análise caso influenciassem um conjunto significativo da sociedade.

Dessa forma, utilizaremos o conceito de conflito social para delimitar as disputas em torno de objetivos coletivos, que muitas vezes representam disparidades no modelo - organizado ou não - de desenvolvimento aplicado à sociedade. A ideia de desenvolvimento aqui deve ser encarada em sentido lato e varia bastante em seus parâmetros econômicos e culturais. O conflito social, assim, representa a disputa entre grupos com posições diferentes sobre um determinado tema, tendo como pano de fundo o modelo de desenvolvimento social de um grupo coletivo específico. A discussão conceitual sobre o modelo de desenvolvimento pode ou não ser percebida pelos embatentes em conflito, uma vez que esse conjunto pode fazer parte da história reificada e os agentes, portanto, já não teriam a consciência do próprio modelo de desenvolvimento, perdendo substancialmente sua capacidade crítica.

Os conflitos sociais, por sua natureza, têm o poder de envolver grupos sociais que originalmente não participavam da disputa, mas que, em razão de valores utilitários ou morais, acabam por tomar posição frente ao embate coletivo. Esse envolvimento se dá pela manipulação - consciente ou não, controlada ou não - da agenda pública da sociedade como um todo. Assim, para Axel Honneth (2003, p. 256), "uma luta só pode ser caracterizada de 'social' na medida em que seus objetivos se deixam generalizar para além do horizonte das intenções individuais, chegando a um ponto em que eles podem se tornar a base de um movimento coletivo".

Feita a primeira distinção em termos da dimensão do conflito, excluindo aqueles de ordem pessoal e que não sejam sociais, passa-se à reflexão em nível filosófico acerca da conotação dada ao conflito. Ao longo da história, é possível observar que os conflitos sociais foram - e são - analisados de diversas formas, cuja conotação varia de positiva a negativa, englobando uma infinita área cinzenta entre os polos. Os conflitos sociais também podem se manifestar de diversas formas, por meio de passeatas, greves ou até por luta armada com vistas a uma revolução.

No contexto moderno, podemos claramente iniciar nossa jornada teórica acerca dos conflitos sociais a partir de Karl Marx (1818-1883). Este, amparado na filosofia dialética de Hegel, interpreta a História como sendo a história da luta de classes:

A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história da luta de classes.Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; numa guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em luta (Marx e Engels, 1989 [1848], p. 365-366).

Essa perspectiva marxista do conflito social, a partir do modelo analítico da luta de classes, ainda hoje é muito revisitada no mundo acadêmico e ampara boa parte dos estudos sobre movimentos sociais. Dessa perspectiva também deriva a curiosa tese de Francis Fukuyama, segundo a qual, dadas as condições atuais pelas quais a luta de classes assume novo patamar e não possui a mesma visibilidade que outrora, declara-se então o fim da história no sentido marxista. Daí sua publicação mais conhecida e polêmica, "O fim da história e o último homem" (Fukuyama, 1992).

Segundo Raymond Aron, a perspectiva marxista de luta de classes apresenta pelo menos dois equívocos:

A primeira ideia decisiva de Marx: a história humana se caracteriza pela luta de grupos humanos que chamaremos classes sociais, cuja definição, que por enquanto permanece equívoca, implica uma dupla característica; por um lado, a de comportar o antagonismo dos opressores e dos oprimidos e, por outro lado, de tender a uma polarização em dois blocos, e somente em dois (Aron, 1997 [1967], p. 136).

Sabemos bem que nem Marx nem Aron identificaram os conflitos sociais, per si, como um tema de seus estudos. Contudo, mesmo reduzindo o conceito à fórmula marxista da luta de classes - e de maneira nenhuma, empiricamente, podemos supor tal redução teórica -, tendemos a concordar com Aron. É possível identificar, até com certa facilidade, casos concretos de disputas entre opressores versus opressores ou oprimidos versus oprimidos - ou mesmo outras infinitas combinações possíveis, caso seja abandonada a redução sociológica 'opressores' e 'oprimidos'. Assim, identificar apenas dois grupos, criando uma polarização, principalmente diante da complexidade humana, seria negligenciar a gama de possibilidades propostas pela diversidade social.

Derivada da tradição marxista, destaca-se ainda a posição de Georges Sorel (1847-1922). Teórico francês afeto às lutas proletárias, esse autor estabelece forte relação entre violência e conflito social. Em sua obra mais destacada - e polêmica -, "Reflexões sobre a violência", originalmente publicada em 1908, a ideia de conflito, manifestada concretamente pela violência, é a base do argumento. Sorel discute formas de resistência dos trabalhadores frente à burguesia, e em suas reflexões admite doses variáveis de violência no embate de forças proletárias e burguesas, em desfavor da segunda, para garantir uma sociedade mais igualitária. Para tal, formula a ideia de violência justa ou violência justificada. Para Sorel (1992 [1908], p. 39), "a violência proletária muda o aspecto de todos os conflitos no curso dos quais é observada, pois ela nega a força organizada pela burguesia e pretende suprimir o Estado que forma seu núcleo central". Elevando o tom da ideia marxista de luta de classes a um patamar não admitido nos escritos publicados pelo próprio Marx, Sorel define que a violência proletária é uma variante do conflito social entre classes e é justificado o emprego da força para atingir uma sociedade economicamente mais igual. Entretanto, a violência só é justificada e só possui valor histórico se for "a expressão brutal e clara da luta de classe" (Sorel, 1992 [1908], p. 102).

Na acepção mais clara da ideia marxista de que a luta de classes é o motor da história, Sorel declara que:

A violência proletária entra em cena no exato momento em que a paz social pretende apaziguar os conflitos; a violência proletária encerra os patrões em seu papel de produtores e tende a restaurar a estrutura de classes à medida que estas pareciam confundir-se num marasmo democrático (Sorel, 1992 [1908], p. 103).

Politicamente, em seu tempo, as ideias de Sorel foram apropriadas tanto pela esquerda como pela direita, entretanto, com o avanço das discussões sobre direitos humanos, seu discurso não encontra mais eco na sociedade ou na academia.

Georg Simmel (1858-1918), contemporâneo de Sorel, estabelece outra relação analítica com o conceito de conflito. Ao contrário dos teóricos até agora citados, Simmel propõe uma forma específica de analisar o conceito enquanto ferramenta teórica. Esse autor foi pioneiro na tarefa de interpretar conceitualmente o conflito, isolado de sua origem e suas consequências. Assim, ganha uma dimensão de sociação, de interação entre indivíduos, naturalizando-o, em tese - abstraindo-o de suas tradicionais conotações positiva ou negativa. A abordagem utilitarista atribuída tanto por Marx quanto por Sorel à ideia de conflito social é dissecada axiologicamente, isolando-o teoricamente de seu contexto de apropriação e aplicação empírica. Öelze (2005) destaca que a obra simmeliana, e consequentemente a forma analítica ora mencionada, possui a propriedade de conjugar conceitos e proposições opostos, como metafísica e empiria concentrada em um mesmo substrato social, como forma de alcançar a 'essência' das coisas. Esse ponto de vista aplicado à observação e à análise do conflito resulta na sentença de que "é preciso distanciar os polos extremos o máximo possível, pois tanto mais aumenta, com isso, a tensão. Portanto, com a distância, intensifica-se a relação e cresce a proximidade" (Öelze, 2005, p. 232). Assim, o embate surge como elemento de aproximação entre indivíduos, e não como elemento dissociativo.

O ponto de vista simmeliano declara que a atribuição de valores ao conceito não se dá pelos seus impulsos e pelas suas consequências, e sim pelo conflito por si mesmo. Para Simmel, "toda acción recíproca entre hombres es una socialización, la lucha, que constituye una de las más vivas acciones recíprocas y que es lógicamente imposible de limitar a un individuo, ha de constituir necesariamente una socialización" (Simmel, 1977 [1908], p. 265). Os impulsos geradores, como inimizade, egoísmo, inveja, desejo e suas consequências como, em último grau, o aniquilamento de uma das partes, é o que confere conotação negativa ao conflito. Este, analisado isento de suas causas e consequências, aparece sob novo ângulo e ressignifica formas sociais de interação como o próprio conflito. Simmel, entretanto, ressalva que seus aspectos positivos e negativos estão integrados; podem ser separados conceitualmente, mas não empiricamente.

Para Simmel, em essência, as divergências são componentes inatos às relações humanas, contudo o não equacionamento relativo de forças descaracteriza o conflito. A incapacidade de uma das partes em se defender descompassa a luta, transformando-se em opressão (Simmel, 1977 [1908]). Assim, partindo da análise da natureza humana, o autor declara que a própria unidade é resultado de vários elementos conflitivos, e que estes resolvem questões entre contrastes. Estes elementos se combinam na própria existência do indivíduo, concebido pela absorção de traços da sociedade. Dessa forma, os elementos conflitivos são identificados na essência do instinto humano:

Pero, sobre todo parece inevitable el reconocer un instinto de lucha a priori, si se tiene en cuenta los motivos increíblemente nimios y hasta ridículos, que originan las luchas más serias. (...) La facilidad con que se sugieren sentimientos hostiles, me parece indicar también la existencia de un instinto humano de hostilidad (Simmel, 1977 [1908], p. 279).

Afastamo-nos dessa característica naturalizadora do conflito contida na obra simmeliana. Apesar de concordar com a análise essencialista do conceito, estamos afeitos aos elementos de cunho antropológico da ideia de conflito, que o autor não consegue abarcar com sua proposta. Simmel propõe inovações ao apresentar o conceito per se, diferentemente das proposições contidas nas obras de Sorel ou de Marx, contudo esbarra no limite interpretativo imposto pela naturalização da ação. Esta deixa de ser social para se tornar quase biológica.

Honneth, ao desvelar o cunho moral do conflito social, em contraposição ao utilitarismo de alguns autores, estabelece sua posição, ao declarar que:

Georg Simmel (...) até dedicou um capítulo célebre de sua "Sociologia" à função socializadora da disputa, uma "sensibilidade social para a diferença" encontra realmente, ao lado do "impulso da hostilidade", uma consideração sistemática enquanto fonte de conflitos;

mas essa dimensão da identidade pessoal ou coletiva é tão pouco atribuída por ele aos pressupostos intersubjetivos do reconhecimento, que as experiências morais do desrespeito podem entrar ainda menos no campo de visão como motivos de conflitos sociais (Honneth, 2003, p. 254).

Os "pressupostos intersubjetivos" dos conflitos sociais é um dos pontos basilares da argumentação de Honneth para desvelar sua conotação moral. Essa é a crítica central ao postulado marxista - seja de alguns de seus seguidores ou do próprio Marx - relativo ao embate coletivo. As lutas sociais não podem se reduzir ao seu sentido utilitarista, na acepção econômica ou funcionalista da palavra. Preso ao modelo econômico, "Marx (...) nunca entendeu sistematicamente a luta de classes, que constituiu não obstante uma peça central de sua própria teoria, como uma forma de conflito moralmente motivada" (Honneth, 2003, p. 239). Assim, abre-se caminho para críticas, como as propostas por Fukuyama, por exemplo. Em um contexto em que a democracia é apropriada como um valor generalizado e em que o capitalismo formula novas práticas econômicas, os movimentos sociais - se fossem motivados apenas pelo utilitarismo econômico - simplesmente deixariam de existir. Nitidamente, observa-se que não é o que acontece.

Qual a relevância de toda essa discussão sobre conflito para a história e a historiografia? Qual é a contribuição desse debate? A resposta é amparada por Honneth, que destaca:

Também sob a influência dos motivos conceituais utilitaristas, a pesquisa histórica dos movimentos políticos esteve por longo tempo tão fortemente presa ao modelo referencial da persecução coletiva de interesses, que acabou lhe permanecendo oculta a gramática moral das lutas sociais. Isso só pôde alterar-se definitivamente depois que, com

o entrelaçamento dos métodos de pesquisa da antropologia social e da sociologia da cultura, se originou há duas décadas uma forma de historiografia capaz de pôr em evidência, de maneira mais ampla e adequada, os pressupostos normativos do comportamento que as camadas sociais baixas adotam no conflito (Honneth, 2003, p. 262).

A leitura dos movimentos sociais do passado, sob o prisma do conflito social, desnudada da perspectiva unilateral utilitarista, apresenta novos ângulos aos fatos históricos. Essa é a perspectiva tratada por Thompson (2011 [1994]) para analisar os levantes populares na Inglaterra no século XVIII, como o fez em seu célebre artigo sobre a economia moral dos conflitos sociais - muito criticado por pensadores utilitaristas. Para aquele autor, os levantes sociais relacionados à crise de abastecimento do trigo, classificados como motins da fome, foram uma forma altamente complexa de conflito social e sua explicação é imprecisa, caso pensada apenas sob a ótica econômica. Moralmente, a multidão se sentia legitimada - na melhor acepção bourdieusiana da noção de poder simbólico e a legitimidade para professar a 'verdade' no seio de uma coletividade - para a ação dos motins contra os donos de moinhos e/ou atravessadores na comercialização do trigo. Vale lembrar que o cereal era a base proteica na Inglaterra, e a sua limitação gerava problemas sociais severos, principalmente nas camadas menos abastadas.

Para Thompson (2011 [1994], p. 152):

(...) É certamente verdade que os motins eram provocados pelo aumento dos preços, por maus procedimentos dos comerciantes ou pela fome. Mas essas queixas operavam dentro de um consenso popular a respeito do que eram práticas legítimas e ilegítimas (...). O desrespeito a esses pressupostos morais, tanto quanto a privação real, era o motivo habitual para a ação direta.

Além de estarem diretamente relacionados à reprodução material, a partir da alimentação, os conflitos sociais analisados por Thompson apresentavam uma dimensão clara da economia moral. Não bastava ser expropriada das condições mínimas de subsistência para uma coletividade ser levada ao conflito. Os costumes precisavam dar substrato e legitimidade para as ações coletivas, sob pena de não envolverem a comunidade como um todo ou mesmo serem reprovadas socialmente. A ética popular era invocada para mediar a legitimação conferida pela coletividade, mesmo que fosse contra o arcabouço legal instituído pela, então, Lei dos Cereais.

As ações coletivas possuíam, ainda, uma incrível organização. Os levantes sociais citados pelo autor, que ocorreram em 1709, 1740, 1756-1757, 1766-1767, 1773, 1782,

1795 e 1800-1801, buscavam sobremaneira fixar preços:

notável sobre essas 'insurreições' é, primeiro, a sua disciplina, e, segundo, o fato de mostrarem um padrão de comportamento (...). A ação central nesse padrão não é o saque dos celeiros, nem o furto de grãos e farinha, mas 'fixar o preço' (Thompson, 2011 [1994], p. 176).

Essa perspectiva, fugindo ao fatalismo criado pelo utilitarismo e economicismo exacerbados aplicados aos movimentos sociais, foi muito questionada. Os principais argumentos para a crítica, segundo o próprio Thompson, foram acusar a perspectiva de romântica e tachá-la como sendo de baixo poder analítico frente a um problema de base material, como a fome. Acerca do primeiro grupo de críticas, o autor não descarta que os motins continham doses variáveis de violência e que os eventos estudados por ele eram contextualizados geograficamente - na Inglaterra - e temporalmente - séculos XVII e, principalmente, XVIII -, conformando estruturas sociais particulares e costumes específicos. Com essa proposição, inicia sua resposta ao segundo grupo de críticas, que usualmente comparavam a fome na Ásia ou África com o estudo de caso abordado. Thompson destaca, assim, que a fome não era o único motivo para os motins. Se fosse, todos os que estivessem em privação de alimentos se organizariam em torno de motins ou organizariam conflitos sociais para expor suas mazelas. Obviamente que aqui apresentamos o arcabouço discursivo de forma bastante reduzida, mas o que vale ressaltar é que a proposição de uma leitura que extrapole as variáveis econômicas para a leitura de conflitos sociais é legitimada por autores de expressão na historiografia, como Thompson.

Para Honneth (2003, p. 263):

Thompson se deixou levar pela ideia de que a rebelião social nunca pode ser apenas uma exteriorização direta de experiências da miséria e da privação econômica; ao contrário, o que é considerado um estado insuportável de subsistência econômica se mede sempre pelas expectativas morais que os atingidos expõem consensualmente à organização da coletividade. Por isso o protesto e a resistência prática só ocorrem em geral quando uma modificação da situação econômica é vivenciada como uma lesão normativa desse consenso tacitamente efetivo; nesse sentido, a investigação das lutas sociais está fundamentalmente ligada ao pressuposto de uma análise do consenso moral que, dentro de um contexto social de cooperação, regula de forma não oficial o modo como são distribuídos direitos e deveres entre os dominantes e os dominados.

Assim, estamos afeitos à perspectiva de traçar o escopo de estudos como um campo, no sentido bourdieusiano do conceito, tendo em seu interior os agentes - sujeitos pesquisados - e seus respectivos habitus como centro da ação coletiva. Tal ação é marcada pela relação de conflitos, seja entre história reificada e história incorporada, ou seja, entre agentes - geralmente no interior de um mesmo campo (na busca pela legitimidade de suas ações, resultantes em disputa por poder) ou entre agentes de campos diferentes. Os conflitos que nos interessam são aqueles que atraem um conjunto expressivo da sociedade - seja para a ação coletiva propriamente dita ou para fortalecer a opinião pública - e podem ser classificados como conflitos sociais.

Acerca da ideia de opinião pública, temos a declarar que as manifestações públicas que compõem os conflitos sociais podem ter vários objetivos, entre os quais a busca pela inclusão de sua pauta de reinvindicações na agenda pública. Na verdade, a manifestação pública organizada de um conflito social tem como objetivos principais a sensibilização da sociedade a respeito do problema enfrentado - e com isso alcançar um maior número de simpatizantes de sua causa - e a demonstração de força pública, caso consiga mobilizar um número significativo de adeptos.

Ao longo da história, observam-se várias formas de exposição de conflitos sociais por parte da sociedade. Movimentos como as revoltas camponesas descritas por Thompson, em que moinhos de trigo eram danificados; revoltas armadas; destruição de máquinas por trabalhadores no início da Revolução Industrial; greves; passeatas; autoimolação; distribuição de impressos; enfim, são várias as formas de explicitação de conflitos.

A exposição de conflitos permite, entre outros, tirar da invisibilidade social temas e grupos que não eram, até então, reconhecidos. Contudo, nem todos os conflitos sociais conseguem sensibilizar a sociedade a ponto de entrar na agenda pública. Alguns conflitos sociais naturalizam-se na sociedade, de forma que, mesmo com amplo conhecimento, não atingem o nível ideal que permite o debate amplo e a possibilidade de mudança do status quo.

Em estudo recente, empreendemos a tarefa de mapear os níveis de conflitos associados à agenda pública (Tabela 1).

Os conflitos sociais possuem níveis, do ponto de vista conceitual, e, associados à ideia de (in)visibilidade social e ao conceito de agenda pública ou social, esses níveis podem variar segundo sua capacidade de mobilização e intensidade. Empiricamente, a análise de um dado social pode envolver mais de um tipo de conflito social e mesmo entre os tipos apresentados há uma gama de possibilidades.

O referencial teórico baseado na análise de conflitos sociais se pretende abrangente, uma vez que é possível aplicá-lo a inúmeras situações teóricas e casos concretos. Uma de suas relevantes contribuições teóricas é contrapor mais de uma visão/percepção acerca de um problema de pesquisa. O que interessa a essa perspectiva é o confronto de ideias em si, mais do que o seu resultado final. Assim, é possível conferir visibilidade social a questões e grupos sociais, antes invisíveis, seja do ponto de vista sociológico (análise do presente) ou histórico (análise do pretérito).

Aplicado ao contexto empírico, o instrumental aqui apresentado pode servir de base interpretativa para vários aspectos da vida social. Por exemplo, Gomes (2006) testa a hipótese de que, no Brasil, os conflitos sociais, mais especificamente as lutas de classe, não foram suficientemente intensas ou qualificadas para propor um modelo de desenvolvimento pautado na modernização institucional. Ao analisar o welfare state, o autor não hesita em afirmar que:

(...) A constituição dos Estados de bem-estar desperta vários tipos de interpretação. Acredita-se que a mais convincente seja aquela que tributa às lutas entre classes sociais o dínamo da constituição dos sistemas de seguridade social, sobretudo quando a classe trabalhadora luta por interesses imediatos e não fundamentais, ou seja, por melhores salários, condições de trabalho mais favoráveis, melhores oportunidades de saúde e educação, moradia digna etc. (Gomes, 2006, p. 219).

A despeito da interpretação acima, no Brasil, a análise de conflitos sociais tem sido mais comum quando aplicada a estudos socioambientais. Os exemplos nesse sentido são vastos e têm tornado visíveis populações tradicionais e temas até então invisíveis à sociedade ampla e à esfera das disputas políticas. Assim, ao analisar a criação de áreas ambientalmente protegidas - conhecidas como unidades de conservação e que são uma das ferramentas políticas mais utilizadas em todo o mundo para a proteção dos recursos naturais - e se reportar à relação entre as populações humanas e a Estação Ecológica Jureia-Itatins, em São Paulo, Oliveira (2004) destaca que, no processo de criação e implementação da unidade, houve disputas fundiárias que se materializaram em conflitos pelo uso e pela apropriação dos recursos ambientais daquela região.

Outro exemplo vem de Minas Gerais, onde a proposta de criação da Área de Proteção Ambiental Sul-Região Metropolitana de Belo Horizonte (APA Sul-RMBH) representou um conjunto de forças sociopolíticas que teve no conflito o seu cerne. Segundo Camargos (2004, p. 135), "as diferentes representações de natureza evocadas e a gradual metamorfose dessas mesmas representações são indicativas do papel fundamental do aspecto simbólico do conflito". As disputas centraram-se

entre grupos de moradores, empresários do setor imobiliário e empresários do setor minerador.

Já o caminho trilhado para a criação da APA da Serra do Baturité, nos municípios de Aratuba, Palmácia, Mulungu, Pacoti e Guaramiranga, no estado do Ceará, envolveu basicamente as consequências da política de erradicação de cafezais - substituição de cafezais sombreados por cafezais de sol -, na década de 1970, o que acelerou o processo de desmatamento e degradação dos solos (Durán, 1998, p. 221). Este cenário mostrou-se dramático do ponto de vista social, pois expôs com vigor o dilema da sobrevivência dos habitantes locais, além de influenciar um ecossistema estratégico para o abastecimento de água para a capital cearense, distante cerca de 100 km em relação à APA.

Para citar um último caso - e talvez o mais ilustrativo no que concerne aos conflitos sociais envolvendo a questão ambiental -, mencionamos o processo de criação da Reserva Extrativista (RESEX) Chico Mendes, no estado do Acre. Nesse caso, o artifício de explicitação de conflitos como mecanismo de pressão política foi bastante diretivo. As intensas disputas entre seringueiros, de um lado, e madeireiros e grileiros de terras, de outro, ganharam destaque nacional e internacional, principalmente quando da morte de Francisco Alves Mendes Filho, mais conhecido como Chico Mendes, na cidade de Xapuri (Diegues, 2004). Chico Mendes lutava pela criação de áreas de seringais especialmente protegidas, devido ao acirramento da luta por terras e à intensificação da derrubada de árvores na região amazônica.

A perspectiva dos conflitos sociais aplicada às análises socioambientais também foi identificada com êxito em trabalhos desenvolvidos em Goiás (Neto et al., 2011) e Mato Grosso do Sul (Souza, 2010).

Os conflitos, na prática, podem variar bastante, chegando a casos extremos, como os ocorridos com Chico Mendes ou, mais recentemente, com o assassinato da missionária Dorothy Stang, no Pará. Os atentados à integridade física dos embatentes não necessariamente expõem a questão ao debate amplo. Antes de Chico Mendes ser assassinado, vários outros seringueiros foram mortos (Diegues, 2004). Isso nos remete à conclusão de que nem todo conflito terá força política para entrar na agenda pública e política, sendo ele extremo ou não. Essa conclusão é extrapolada para outros objetos sociais, como os movimentos estudantis contra as ditaduras latino-americanas, conflitos fundiários por reforma agrária, lutas sociais por moradia em grandes centros, como Rio de Janeiro e São Paulo, entre outros tantos exemplos concretos que poderiam ser aqui citados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A narrativa histórica necessita de substrato teórico para diferenciá-la de uma narrativa de estória. Nesse sentido, o aporte teórico foi dividido pela academia em dois grandes blocos - separados artificialmente apenas para fins didáticos, sendo impossível haver separação empírica dos mesmos -, a saber, método e conceitos. O primeiro dá conta do cenário onde e como são coletados os dados, a partir das fontes. Esse contexto é essencial para conferir replicabilidade à interpretação. Já os conceitos são considerados as ferramentas de trabalho na tarefa artesanal de constituição científica. Juntamente com o método, formam a metodologia. Este conjunto confere unicidade e inteligibilidade à pesquisa e deixa claro para o leitor o que se espera da leitura em termos de orientação teórica, que, em grande medida, se traduz também na orientação política do autor. O papel do pesquisador, além do compromisso em produzir conhecimento, é tornar palatável o grande volume de informações a que é exposto durante uma pesquisa, e seduzir seu leitor de forma a convencê-lo de seus resultados.

Nesse sentido, aqui foi apropriada a ideia de metodologia desenvolvida por Bourdieu (2004 [1989]), segundo a qual são traçados espaços mais ou menos autônomos, chamados de campos, onde o habitus dos agentes - inseridos nesses campos - é responsável por caracterizá-los e produzir uma espécie de hierarquia. Os campos e o habitus possuem um conteúdo histórico, representado pela história reificada - aquela que está inserida nas coisas e cuja origem foi, em grande medida, esquecida pelos agentes - e pela história incorporada - aquela que está inscrita nos próprios agentes, representada pela linguagem, posturas, moral etc. Obviamente, essa estrutura é preenchida por uma série de lutas por legitimidade, poder e posições privilegiadas, e as histórias reificada e incorporada estão em constante transformação - seja para reforçar o status quo ou em direção às mudanças. Os recursos discursivos utilizados pelos agentes no interior dos campos e nas interseções entre estes são relevantes na análise, uma vez que a ciência, por exemplo, ocupa papel de destaque nas estratégias.

Como a luta é uma constante nessa proposta, nossa principal ferramenta de trabalho - conceito - é o conflito. Este, contudo, precisa ser circunscrito ao perímetro social - não nos interessam aqui conflitos individuais ou psicológicos, a não ser que interfiram decisivamente numa coletividade ampla, regional, estadual ou nacional. O conflito social, assim definido, possui características que permitem analisar um dado contexto sob o ponto de vista da contradição de discursos e práticas, revelando cenários impossíveis de serem captados sob uma perspectiva unilateral. Obras de autores como Karl Marx e Georg Simmel balizam a discussão geral sobre o conceito, e autores como Axel Honneth e E. P. Thompson circunscrevem o conceito e a sua aplicação histórica. Em recente trabalho, tivemos a oportunidade de aplicar o conceito em pesquisa ambiental e escaloná-lo em termos de intensidade relacionada à agenda pública (Santos, 2012). Essa perspectiva apresenta a vantagem de análise sob o ponto de vista das políticas públicas, porém, como o termo é recente em estudos históricos, datado do final do século XIX, sua aplicabilidade possui restrições.

Recebido em 11/07/2013

Aprovado em 25/04/2014

SANTOS, Leonardo Bis dos. O conflito social como ferramenta teórica para interpretação histórica e sociológica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 9, n. 2, p. 541-553, maio-ago. 2014

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  • Autor para correspondência
    Leonardo Bis dos Santos
    Praça Philogomiro Lannes, 220, edifício Rio Negro, apto. 308. Jardim da Penha
    Vitória, ES, Brasil. CEP 29060-740
    (
  • 1
    Roger Chartier e Pierre Bourdieu possuem significativa aproximação teórica. Os indícios dessa relação são relevantes e vão desde a correlação de conceitos até a produção escrita. Após a morte de Bourdieu foi, inclusive, publicada uma série de entrevistas concedidas a Chartier, onde são abordados a relação entre sociologia e história, bem como os desdobramentos dos conceitos fundamentais de Bourdieu para a história.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Ago 2014

    Histórico

    • Aceito
      25 Abr 2014
    • Recebido
      11 Jul 2013
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