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A “educação na reconstrução da pátria” e a imagem do indígena

“Education in the reconstruction of the nation” and the image of indigenous people

Resumo

O artigo busca entender as similaridades entre os pensamentos presentes no projeto educacional proposto por José Veríssimo em 1890; nas propostas surgidas na seção de etnografia do 1o Congresso Brasileiro de Geografia, realizado no Rio de Janeiro em 1909; e na fundação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 1910. A análise de A educação nacional (1906 [1890]), de Veríssimo, das atas do 1º Congresso Brasileiro de Geografia, assim como das propostas do SPILTN, indica a recorrência do pensamento sobre permeabilidade do indígena à “civilização” por meio da educação, visando a transformação da identidade étnica do indígena a partir da assimilação dos hábitos e valores da sociedade dita civilizada. Destarte, a partir do exame desses documentos, percebe-se como as concepções de civilização, raça, educação, urbanidade e nação articularam-se em seus discursos na busca de uma identidade nacional e influíram na construção da imagem interdita do indígena. A conclusão é que a inserção do indígena no corpo nacional por meio da educação era admitida, desde que ele se despojasse de sua identidade étnica. Uma atitude que deveria representar respeito ao indígena, como homem, revela-se assim uma forma de desrespeito.

José Veríssimo; Educação; Civilização; Alteridade; Indigenismo

Abstract

This article seeks to understand the similarities among the modes of thinking behind the educational project proposed by José Veríssimo in 1890, the plans that arose in the ethnography section of the 1st Brazilian Congress of Geography in Rio de Janeiro in 1909, and the launching of the Service for the Protection of the Indian and Localization of National Workers (SPILTN) in 1910. The analysis of The National Education (1906 [1890]) by Veríssimo, the minutes of the 1st Brazilian Congress of Geography, as well as the recommendations of SPILTN, reveal repeated discussion about the susceptibility of indigenous people to “civilization.” Such civilization, by means of education, aimed at transforming the identity of indigenous people through the assimilation of so-called “civilized society’s” habits and values. Thus, the analysis of these documents demonstrates how concepts of civilization, race, education, urbanity and nation were embedded in contemporary thinking in the search for a national identity and helped generate a negative perception of the indigenous people. The conclusion is that the insertion of the Indian into the nation through education was permitted, as long as he shed his ethnic identity. An attitude that was meant to represent respect for the indigenous people as human beings, thus, reveals itself as a form of disrespect.

José Veríssimo; Education; Civilization; Otherness; Indigenism

A “EDUCAÇÃO NA RECONSTRUÇÃO DA PÁTRIA” E A IMAGEM DO INDÍGENA

Neste artigo busca-se entender como o projeto educacional proposto por José Veríssimo em A educação nacional (1906 [1890]) e a proposta do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) simultaneamente visavam alcançar a concebida civilização.

Esse tecido discursivo, costurado pela educação, permeou tanto o projeto educacional de José Veríssimo como a fundação do SPILTN, em 1910, ou ainda as discussões presentes na seção de etnografia no 1º Congresso Brasileiro de Geografia, ocorrido no Rio de Janeiro, em 1909, no qual Veríssimo também teve importante participação (Veríssimo, 1906; Souza Lima, 1995SOUZA LIMA, Antonio Carlos de.Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.; Congresso Brasileiro de Geographia, 1911). Ao revisitar-se A educação nacional, as propostas de fundação do SPILTN e as atas do 1º Congresso Brasileiro de Geografia, percebe-se a importância dada à educação, não só na tentativa de construção do “ser brasileiro”, como também de “solucionar” o concebido “problema indígena”, o qual representava uma alteridade interdita em face da busca de um ideal de corpo nacional homogêneo. Destarte, neste artigo analisa-se como os conceitos de civilização, raça, educação, urbanidade e nação foram articulando-se e rearticulando-se nesses discursos, moldando a imagem do indígena, diante da angústia de traçar uma identidade nacional.

A busca da concepção de civilização é nítida nas obras de José Veríssimo. Apesar de, em seus primeiros escritos, o trajeto apontado perpassar pela concepção racial, aos poucos esse caminho foi sendo diluído na concepção de civilização a ser alcançada por meio da educação. Civilização que, para Veríssimo, remetia à urbanização do Rio de Janeiro e de Belém, assim como à homogeneização do corpo nacional por meio do desenvolvimento de uma educação nacional. Civilização que se entrelaçava com a concepção de nação e o ideal de formação da identidade nacional, o que repercutia no desejo de aculturamento do indígena.

Membro de uma elite cultural no contexto da Primeira República, Veríssimo colaborou para a formação da Academia Brasileira de Letras e foi reconhecido pelos seus pares por sua crítica literária. O autor, que escreveu sua primeira obra na década de 1870, desenvolveu também estudos pedagógicos e etnográficos. Este artigo tem como objeto sua contribuição na área pedagógica, a partir da análise de A educação nacional, obra publicada um ano após a proclamação da República. Nesse livro, Veríssimo apresenta, de forma entusiasmada, a possibilidade de um novo direcionamento à educação e ao país. Cabe ponderar que o livro foi reeditado em 1906, incorporando as desilusões e críticas de Veríssimo sobre o caminho tomado pelos gestores da educação no regime republicano.

O indígena, quando olhado pelo prisma do alcance da civilização, por meio da educação, transformava-se em um indivíduo permeável a essa civilização. A percepção de permeabilidade do indígena à civilização repercute na criação do SPILTN, que visava, por meio do seu poder tutelar, transformar o indígena em trabalhador agrícola. Ou seja, o indivíduo indígena poderia inserir-se no corpo nacional por meio da educação, caso assimilasse os hábitos e valores da sociedade dita civilizada, deixando de ser índio.

Convém lembrar que o SPILTN, apesar de ter sido fundado em 1910, era o resultado de diversas discussões que o antecederam como estrutura formal. Entre essas, podem-se mencionar as que aconteceram em 1909, no 1º Congresso Brasileiro de Geografia, na seção de etnografia, presidida por José Veríssimo (Congresso Brasileiro de Geographia, 1911).

A EDUCAÇÃO NACIONAL COMO MODIFICADOR E DIRETOR DE ALMAS

Em 1894, no discurso proferido no Gymnasio Nacional do Rio de Janeiro, José Veríssimo iniciou sua fala dizendo que “cumpre cuidarmos da educação nacional republicana, fazendo do ensino, da educação pública um órgão consciente da reconstrução da Pátria” (Veríssimo, 1894, p. 4).

Atribuindo à educação um papel central na “reconstrução da Pátria” e no despertar do sentimento nacional, Veríssimo avaliou ser um “serviço patriótico da mais alta relevância levantar o nível do nosso ensino público, ou pelo menos, para limitar-nos ao que mais nos interessa, do ensino secundário” (Veríssimo, 1894, p. 6).

Assim, Veríssimo tece em sua escrita a proposta de formação de uma unidade moral no país, regida pela educação, que seria valorizada por cultivar o sentimento nacional. Ao remeter à criação do Ministério da Instrução Pública, na segunda edição da A educação nacional, em 1906, Veríssimo explicita essa relação entre a unidade moral e a educação, mencionando inclusive a criação do Pedagogium1 1 O Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos foi criado em 1890, e Benjamim Constant deixou o cargo de ministro da Defesa para ocupar esse ministério. No ano em que assumiu o cargo, houve uma reforma do ensino para o Distrito Federal do Rio de Janeiro, conhecida como Reforma Benjamim Constant. Entre os aspectos mais relevantes, destaca-se a criação, no Distrito Federal, de escolas de 1º grau, que compreendiam alunos de 7 a 13 anos, e as de 2º grau, que contemplavam alunos dos 13 aos 15 anos. Além dessa mudança, ocorreu também a criação do Pedagogium, que ocupou lugar de destaque na reforma de ensino. Conforme diz Maria Luiza Marcílio, recorrendo ao texto desse documento oficial, o Pedagogium era “destinado a oferecer ao público e aos professores em particular os meios do material de ensino mais aperfeiçoado”, espécie de centro modelar de pesquisas de experimentações pedagógicas e difusor de melhoramentos do ensino (Marcílio, 2005, p. 132). :

[...] E tanto é mais de crer este resultado, não só desejável como, a bem da unidade moral da patria, indispensável, quando a reforma do Sr. Benjamim Constant criou no Pedagogium um órgão que deveria ser o factor consciente dessa obra de unificação moral (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. VIII).

Convém realçar que, do mesmo modo que para Veríssimo, o modelo de sociedade dos novos liberais eram os Estados Unidos, país admirado por sua educação e visto como “bem-sucedido na tarefa de instituir o trabalho livre e a pequena propriedade”, como destaca Angela Alonso (Alonso, 2002, p. 198). José Veríssimo, referindo-se aos Estados Unidos, alega que:

[...] a consciência do trabalho feito e da relevancia dos esforços de envolta com a certeza do triumpho, geraram numa raça já de si soberba o orgulho nacional, revelando-se caracteristicamente na inclinação ao grandioso e collossal. As suas cidades, as suas construcções, os seus edifícios e monumentos á falta de gosto ou arte são ao menos estupendos.

No Brasil não havemos de desgraçadamente de que ter orgulho nacional (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. LIV-LV).

Diante dessas formulações, o Brasil, um país basicamente agrário e que havia abolido recentemente a escravidão, estaria longe das características que ele apontava como forma de enobrecimento dos Estados Unidos, ou seja, o trabalho livre e as cidades estupendas.

No entanto, convém esclarecer que Veríssimo apresentava ressalvas a esse país, enfatizando que o Brasil deveria imitar os Estados Unidos, mas não simplesmente copiá-los2 2 Ver: Baggio, 1998. Baggio, ao abordar o pan-americanismo, conjunto de políticas que visavam ao domínio dos Estados Unidos sobre os países americanos, objetivando aumentar a exportação de produtos estadunidenses para as Américas, perpassa pelos debates intelectuais sobre esse domínio. Entre esses, como a autora pontua, estavam: “De um lado, críticos da política expansionista dos Estados Unidos, como Eduardo Prado (A Ilusão Americana, 1893), Oliveira Lima (Pan-Americanismo, 1907), José Veríssimo (em vários artigos publicados no Imparcial e no Jornal do Comércio, no Rio de Janeiro) e Manoel Bomfim (A América Latina, 1905, e outras obras). De outro, defensores ardorosos do pan-americanismo, como Joaquim Nabuco (em discursos e artigos), Artur Orlando (Pan-Americanismo, 1906) e Euclides da Cunha (em artigos e cartas, mas sem o mesmo entusiasmo dos colegas), situando o tema como um dos mais frequentes do debate intelectual na virada do século” (Baggio, 1998, p. 52). Como Baggio pondera, a visão de mundo europeizante marcou o discurso de Prado, Oliveira Lima e Veríssimo, desvelando ressalvas sobre o “american way of life” (Baggio, 1998, p. 79). . Em suas palavras:

[...] tendo muito a aprender dos Estados-Unidos, não devemos pôr-nos simplesmente a macaqueal-o irreflectivelmente. E a elles especialmente me refiro porque, repito, sente-se que elles são quem nos vae servir de modelo. É preciso não confundir a adaptação intelligente, a assimilação perfeita, com a cópia servil ou arremedo grotesco.

Sejamos brazileiros e não Yankees.

Eu, confesso, não tenho pela desmarcada e apregoadissima civilização Americana, sinão uma medíocre inveja. E no fundo do meu coração de brazileiro alguma coisa há que se desdenha daquela nação tão excessivamente pratica, tão colossalmente egoísta e tão eminentemente, perdoem-me a expressão, strugforlista. Essa civilização sobretudo comercial, arrogante e reclamista, não a nego: admiro-a, mas não a estimo (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 176).

Uma das características de que Veríssimo dizia ter inveja era o orgulho nacional dos estadunidenses, adquirido por meio da educação, justamente o plano educacional que o autor queria implementar no Brasil. Veríssimo assinalava: “Pessimamente organisada, a instrucção publica no Brazil não procurou jamais ter uma funcção na integração do espirito nacional” (Veríssimo, 1906, p. LVIII).

Portanto, em função da ausência tanto do “espírito nacional”, como do pulsar do sentimento de pátria, no Brasil, Veríssimo propunha a educação nacional, dizendo: “Para despertar o sentimento de pátria e acima do principio federativo pôr a unidade moral da nação – impõe-se-nos como o mais urgente dever a criação da educação nacional” (Veríssimo, 1906, p. LXII).

Propondo uma educação que visava construir esse espírito nacional, cujo projeto consolidou-se com a publicação do seu livro A educação nacional (1890), logo após a proclamação da República, pode ser questionada a relação entre essa proposta educacional e a concepção de pátria e a implantação da República.

É importante salientar que a mudança do regime monárquico para o republicano implicou um momento de reelaboração do imaginário social, considerando que é por meio deste que as sociedades delimitam a sua identidade nacional e que este “é parte integrante da legitimação de qualquer regime político” (Carvalho, 1990CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 10). Como esclarece José Murilo de Carvalho, a “manipulação do imaginário social é particularmente importante em momentos de mudança política e social, em momentos de redefinição de identidades coletivas” (Carvalho, 1990, p. 11).

O prisma do olhar com que os mitos, a história nacional, a literatura e a cultura nacional são ensinados, ou apresentados nas escolas, constituem-se em um dos principais meios para a reelaboração desse imaginário social. Considerando-se, como aponta Renato Ortiz, a cultura como um fenômeno de linguagem e, portanto, aberta a interpretações, deve-se ponderar que:

[...] em última instância são os interesses que definem os grupos sociais que decidem sobre o sentido da reelaboração simbólica desta ou daquela manifestação. Os intelectuais têm neste processo um papel relevante, pois são os artífices deste jogo de construção simbólica (Ortiz, 2006ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006., p. 142).

Assim como Ortiz assinala o papel dos intelectuais no processo de construção simbólica dos fenômenos culturais, José Murilo de Carvalho, ao abordar a manipulação dos sentimentos coletivos na Revolução Francesa, também menciona:

Mirabeau disse-o com clareza: não basta mostrar a verdade, é necessário fazer com que o povo a ame, é necessário apoderar-se da imaginação do povo. Para a Revolução, a educação pública significava acima de tudo isto: formar as almas. Em 1792, a seção de propaganda do Ministério do Interior tinha exatamente este nome: Bureau de l’Espirit (Carvalho, 1990CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 11).

Veríssimo utilizou a mesma expressão – formar almas –, empregada com o mesmo sentido que Mirabeau, assim como diversas vezes recorreu em sua escrita ao termo “espírito nacional”, utilizado pela seção de propaganda do Ministério do Interior na França. Talvez esses termos traduzam a grande influência de intelectuais franceses na formação do autor.

Desse modo, a educação, como pregava Veríssimo, desempenharia um papel de destaque nesse moldar da identidade nacional, constituindo-se em uma alavanca portentosa de condução das almas:

A educação não é uma panacéa, um remedio infallivel para todos os males e efficaz em todos os casos e individuos, mas é um poderosissimo modificador e director (e educar quer dizer dirigir)de almas, e póde-se afoitamente asseverar, que, si ella não foi mal dada, seus effeitos não são jámais completamente nullos. E como os seus effeitos se accumulam, passando de umas gerações á outras, e irradiam no meio em que se realizam, a obra collectiva da educação – que é a mesma obra do homem para o seu aperfeiçoamento e melhoria – é eminentemente, primeiro um dever nacional, depois um dever de humanidade (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. XLV).

Para dirigir essas almas moldadas pela educação, como diz Veríssimo, era preciso que ocorresse uma valorização das disciplinas de História e Geografia, uma vez que desempenhariam papel importante no reelaborar da identidade nacional:

[...] o conhecimento do paiz em todos os seus aspectos, que todos podem resumir em dous – geographico e historico – é a base do patriotismo esclarecido e previdente.[...] Por isso a geographia do paiz, intelligentemente comprehendida e ensinada, é por assim dizer a base de toda a educação nacional bem dirigida (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 96).

A valorização do ensino de História era reflexo de estarem a educação e o sentimento nacional simultaneamente atrelados à concepção de nação e à reelaboração do imaginário social. Como Veríssimo pontua, “todas as nações comphrenderam que o sentimento nacional e conseguintemente o patriotismo, se inspiram no conhecimento da patria e da sua história, isto é da sua vida” (Veríssimo, 1906, p. 110). Portanto, o ensino de História, para Veríssimo, era importante devido a

[...] dar-nos pelo conhecimento da origem commum, das difficuldades em commum soffridas e em commum vencidas, da marcha e evolução dos mesmos costumes, das mesmas leis e da mesma organização, dos progressos custosos, lenta, mas seguramente adquiridos, a noção exacta da solidariedade nacional, e com ella o amor da patria que nos legaram os nossos antepassados e o desejo firme de continual-os, para legal-a á gerações vindouras sucessivamente melhoradas (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 133).

Veríssimo, em toda a sua obra, exalta a importância do educador na República como formador do “espírito público”, terminando o seu livro com a seguinte convicção:

Não há país civilizado, não há nação livre, não há cultura, não há grandeza nacional, não há democracia, não há república – senão quando há um povo que tem a consciência de sua força, dos seus deveres e dos seus direitos, em summa, que possui isso que o romano chamou de civismo e que nossas sociedades modernas

chamamos de espírito público social (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 204-205).

O SENTIMENTO NACIONAL E A EDUCAÇÃO

Diante da necessidade de reelaboração da imagem social, não é à toa que a área da educação tenha passado a ser muito abordada por intelectuais no período da Primeira República. Entre as obras dessa área, como lembra Maria Auxiliadora Cavazotti, podem ser mencionadas: “A educação nacional no regime republicano (1907), de Teixeira Brandão; A educação nacional (1890), de José Veríssimo, e as obras de Carneiro Leão, O Brasil e a educação popular (1917) e Problemas da educação (1919)” (Cavazotti, 2003, p. 20).

Porém, como Cavazotti assinala, “é em Raul Bittencourt que encontramos a nota mais enfática às questões educacionais de José Veríssimo” (Cavazotti, 2003, p. 28). Segundo Raul Bittencourt, nas primeiras décadas republicanas, destacaram-se “educadores ilustres” como Caetano de Campos, em São Paulo, e Clemente Pinto e Meyer, no Rio Grande do Sul. Mas, de “todos, o que exerceu influência nacional foi José Veríssimo, especialmente por sua obra ‘A educação nacional’ (1890), reeditada com ampliações em 1906” (Bittencourt, 1953BITTENCOURT, Raul. A educação no Império e na República. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. XIX, n. 49, p. 41-76, jan./mar. 1953., p. 59).

A escrita de Veríssimo traduz muita erudição e propriedade, ao circular pelos debates intelectuais da época. Como Cavazotti afirma:

As características de erudição, domínio científico e qualidade literária presentes em Veríssimo são compartilhadas por toda uma geração de intelectuais brasileiros – entre os quais a denominada ‘geração de 70’ – que viveram e produziram no ocaso do século passado e início deste, ou seja, no período em que se gesta a República (Cavazotti, 2003, p. 40).

Entre os autores que aparecem recorrentemente no discurso de Veríssimo, em A educação nacional (1906 [1890]), assim como no de outros intelectuais desse contexto, podem ser mencionados Spencer e Comte. Conforme Renato Ortiz lembra:

Três tiveram um impacto real junto à intelligentsia brasileira e de uma certa forma delinearam os limites no interior dos quais toda a produção teórica da época se constitui: o positivismo de Comte, o darwinismo social, o evolucionismo de Spencer. Elaboradas na Europa em meados do século XIX, essas teorias, distintas entre si, podem ser consideradas sob um aspecto único: o da evolução histórica dos povos. Na verdade, o evolucionismo se propunha a encontrar um nexo entre as diferentes sociedades humanas ao longo da história; aceitando como postulado que o ‘simples’ (povos primitivos) evolui naturalmente para o mais ‘complexo’ (sociedades ocidentais), procurava-se estabelecer as leis que presidiriam o progresso das civilizações (Ortiz, 2006ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006., p. 14).

A concepção segundo a qual no decorrer da história as sociedades evoluiriam do mais simples – povos primitivos – para o mais complexo – sociedades ocidentais – estava presente na ótica de José Veríssimo, que percebia os diferentes povos sob um único olhar, regido por uma linearidade histórica evolutiva.

Sob o prisma desse olhar, pretendia-se alcançar o estágio das ditas sociedades ocidentais, que eram entendidas como estando inseridas na civilização, na modernidade, no urbano, no industrial e no trabalho assalariado, aspectos considerados resultantes da evolução, dentro dessa mesma percepção que moldava as sociedades primitivas e rurais como atrasadas.

Veríssimo, além de apontar a educação como o meio para pular etapas dessa linearidade histórica evolutiva, a destaca também como uma maneira de alcançar uma coesão social por meio do cultivo do sentimento nacional. Dessa forma, realça que “uma educação para ser nacional precisa que inspire o sentimento de patria, e que a dirija a um fim patriótico” (Veríssimo, 1906, p. 10).

E acrescenta que, para conseguir alcançar essa coesão social, o sentimento regional deveria ser diluído por meio do despertar do sentimento nacional. Diz Veríssimo: “A confederação em si mesma tem os seus perigos que avultam num paiz qual o nosso, onde o sentimento regional prevalece ao nacional e onde – diga-se francamente – é latente em alguns Estados ao menos, o espírito separatista” (Veríssimo, 1906, p. LX).

Ou seja, a concepção de nação regeu o olhar de Veríssimo quando este configurava os problemas nacionais, assim como a acepção de o que seria a educação nacional. Nessa ótica, Veríssimo vislumbrou a educação como o meio de consolidar a desejada coesão social. A partir disso aconteceria a construção da “nação”, entendida como sendo um organismo social moldado pelo sentimento nacional dos seus habitantes.

Compartilhando a concepção de nação de Mulford, Veríssimo cita-o, dizendo:

A nação, como organismo social, suppõe uma unidade orgânica e este organismo é que a ninguém é dado transmittir. Para a confederação artificial a existência da sociedade, formada como uma associação de homens em determinada communidade de interesses, ou apenas como a reunião daquelles que vivendo antes separados, voluntariamente a ellas accederam. É no desenvolvimento da vida histórica do povo na sua unidade, que se origina a nação (Mulford, 1882MULFORD, E. The Nation, the foudation of civil order and political life in United-States. Boston: Houghton Mifflin, 1882., p. 324, apud Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. LXI).

A nação era entendida por Veríssimo como um organismo social, ou seja, um corpo. Essa percepção era recorrente no meio intelectual desse contexto, como Angela Alonso aponta:

A questão social dizia respeito ao “corpo social”. O organicismo é o componente do novo repertório intelectual que encaminha soluções evolucionárias: os problemas são doenças, decrepitudes, degenerações; as reformas são remédios, curativos, regenerações. Assim, a linguagem da política científica ajuda a produzir uma “diagnose” do Brasil [...] (Alonso, 2002ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002., p. 184).

A questão do organicismo que perpassava recorrentemente os discursos intelectuais no Brasil do final do século XIX, como afirma Alonso (2002)ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002., tiveram grande influência de Herbert Spencer.

Para Spencer, essa associação entre organismo social e concepção de nação parte do pressuposto de que a sociedade:

[...] é constituída de indivíduos; tudo o que se faz na sociedade é feito pelas ações combinadas dos indivíduos; e portanto, só nas ações individuais é que se podem encontrar as soluções dos fenômenos sociais. Mas as ações dos indivíduos dependem de leis da sua natureza e as suas ações não podem ser estudadas, sem a prévia compreensão dessas leis; quando a reduzimos às suas expressões mais simples, provam ser corolários das leis gerais do corpo e do espírito. Daqui se segue que a biologia e a psicologia são intérpretes indispensáveis da sociologia (Spencer, [1861SPENCER, Herbert. Educação intelectual, moral e física. São Paulo: Cultura Moderna, [1861].] , p. 56).

Ou seja, como esclarece Maria Auxiliadora Cavazotti, para Spencer, o homem, como “indivíduo singular, precede à sociedade. Daí a crença na viabilização da reforma da sociedade através da educação do indivíduo, vale dizer, da sua formação em bases científicas” (Cavazotti, 2003CAVAZOTTI, Maria Auxiliadora. O projeto republicano de educação nacional na versão de José Veríssimo. São Paulo: Annablume, ٢٠٠٣., p. 59).

Veríssimo desvela a influência de Spencer em diversos trechos de suas formulações em A educação nacional (1906 [1890]). Formulações que, inclusive, desencadearam mudanças por meio da reforma pedagógica que Veríssimo implantou no Colégio Americano (1884-1890), fundado e dirigido por ele no Pará (França, 2004FRANÇA, Maria do Perpetuo Socorro Gomes de Souza Avelino de. José Veríssimo (1857-1916) e a educação brasileira republicana: raízes da renovação escolar conservadora. 2004. 173f. Tese (Doutorado em Educação) – UNICAMP, Campinas, 2004., p. 35).

No discurso proferido na inauguração desse colégio, Herbert Spencer foi mencionado e exaltado por José Veríssimo:

Para um dos espíritos mais poderosos deste século, o eminente filósofo inglês Herbert Spencer, a educação – e sob este título ele compreende também instrução – tem por fim preparar-nos para a vida completa, como se expressa ele, pelo estudo dos principais gêneros de atividade que constituem a vida humana; atividades que ele classifica assim: 1º a que tem por fim direto a conservação do indivíduo, 2º a que, provendo às necessidades de sua existência, contribui indiretamente para a sua conservação, 3º aquela cujo objetivo é a manutenção e educação da família, 4º a que assegura a conservação da ordem social e política, 5º finalmente, a atividade de gênero variado empregada a preencher os ócios da existência pela satisfação dos gostos e sentimento (Veríssimo, 1888VERÍSSIMO, José. Notícia geral sobre o Colégio Americano. Pará: Tipografia de Pinto Barbosa & C., 1888., p. 8-9).

O pensamento de Spencer reverbera em A educação nacional, de Veríssimo, que inclusive divide a sua proposta educacional a partir da mesma classificação que Spencer estabeleceu em sua obra de 1861: educação intelectual, educação moral e educação física. Veríssimo conclui o seu livro dizendo:

Acredito entretanto que sómente a educação – no sentido mais amplo e alevantado desta palavra e desta coisa – póde conjurar os perigos que alludo.

Educação physica que regenerando a nossa raça, nos dará com vigor necessário para a lucta material da existência, a consciência do nosso valor pessoal, do qual se formará o nosso valor collectivo e se alentarão as nossas energias moraes.

Educação moral, educação do caracter, pelo combate a todos os vícios que nos minam e deprimem, e sobretudo pela educação do sentimento do dever, mais necessário e, ouso dizer, mais nobre que a indisciplinada reclamação dos direitos. Porque a liberdade é menos o exercício dos direitos, que os cumprimentos dos deveres, do qual nascem, os sentimentos da responsabilidade e da solidariedade humana.

Educação intellectual, por último, que nos dará elementos indispensáveis ao progresso, á civilização e á grandeza das nações, e nos armará tambem contra as emprezas dos sophistas de toda a casta e contra as illusões de certas doutrinas e theorias tão boas de medrar no feracismo solo da ignorância popular, e finalmente:

Educação nacional, que resumindo todas estas, fal-as servir ao bem, á prosperidade, á glória e á felicidade da patria, para que esta não seja apenas um nome na geographia, mas tenha um papel (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 205-206).

Como se vê, a educação era entendida por Veríssimo como a maneira mais eficaz de desenvolver as potencialidades morais, intelectuais e físicas que proporcionariam a construção desse corpo nacional idealizado e socialmente coeso.

Para desenvolver a separação entre educação intelectual, física e moral, que, juntas, constituem a educação nacional proposta por Veríssimo, ele estabelece, no transcorrer do seu livro, a diferenciação entre educação nacional em face da instrução e sentimento nacional frente ao caráter nacional.

Como já se pôde observar, a educação nacional se estabeleceria a partir da educação, que desenvolveria um sentimento nacional e uma concebida coesão social no corpo da nação. Nesse sentido, a acepção de instrução diferencia-se da de educação e da de cultura, sendo entendida como um vetor para o alcance da educação. Veríssimo pontua essa distinção entre instrução e cultura, afirmando que, enquanto o “primeiro termo leva-nos a considerar materialmente as cousas aprendidas”, o segundo constitui-se a partir do “grau de fertilidade adquirida pelo espírito” (Veríssimo, 1906, p. XLV).

Portanto, como postula Veríssimo, “a educação não deve ser uma simples aquisição de saber”, como acontece através da instrução, e sim ultrapassá-la, propiciando uma “integração do espírito nacional”. Logo, a instrução que lograsse a integração do corpo nacional, despertando um sentimento nacional nos seus habitantes, poderia enquadrar-se no que classificou como educação. Com essa perspectiva, Veríssimo avaliou que “pessimamente organisada, a instrucção publica no Brazil não procurou jamais ter uma funcção na integração do espirito nacional” (Veríssimo, 1906, p. LVIII).

Esse espírito nacional, ou unidade moral da nação, constituir-se-ia por meio do despertar do sentimento nacional, mediado pela educação. Assim como Veríssimo atribuiu ao sentimento nacional um papel determinante para a conquista da unidade moral, ele estabelece também essa relação com o caráter nacional. No entanto, o sentimento nacional diferencia-se do caráter nacional: enquanto o primeiro era concebido como algo extrínseco à hereditariedade, o segundo seria intrínseco a ela.

Veríssimo esclarece essa acepção de sentimento nacional, ao dizer:

Por sentimento nacional entendo eu não só essa maneira especial de sentir, isto é, de receber e reproduzir as impressões recebidas em uma perene comunhão com a pátria e transformadas no cérebro em idéias ou sensações que têm a pátria por origem e fim, causa e efeito. Destarte concebido o sentimento nacional, é ele independente do caráter nacional, antes subordinado a causas extrínsecas de ordem física que a causas morais de ordem psíquicas e é também independente do simples patriotismo político (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. III).

Dessa maneira, o sentimento nacional seria formado pelas impressões que um povo tem sobre a sua nação e a convicção acerca de sua superioridade3 3 Convém realçar que Veríssimo não se considerava um patriota na concepção política, dizendo que “ao menos não o quero ser na acepção política, assevandijado pelo uso desonesto com que com elle se qualificam os mais indignos republicos. Amo a minha terra, a minha gente (para dizer o meu sentimento na formula lapidar de Camões), mas amo-as sem os excessos e a indiscrição do que vulgarmente se chama patriotismo” (Veríssimo, 1906, p. XLVI). Veríssimo diferencia o patriotismo utilizado recorrentemente em discursos sem fundamento, recorrendo à expressão do humorista inglês Dr. Johnston, ao dizer que o “patriotismo é o último refúgio do velhaco”. Realça que o patriotismo seria uma virtude quando fosse “sincero, desinteressado e esclarecido”, ponderando que a educação nacional deveria “despender-se inteiramente de todo o sentimento de egoísmo collectivo, que no fundo, como demonstrou H. Spencer, e o sentimos todos, é o fundamento do patriotismo”. Ilustra esse pensamento recorrendo a um publicista americano que diz: “nós não somos filhos de nossa pátria; nós somos a nossa pátria”. (Veríssimo, 1906, p. XLVII). . Como já mencionado anteriormente, Veríssimo admirava a sociedade estadunidense devido ao orgulho nacional que esta nutria por si mesma, e que teria sido conquistado por meio da educação. Veríssimo sentencia:

A Educação nacional, largamente derramada e difundida com o superior espírito de ser um fator moral de nacionalismo, poderosíssima concorreu para despertar no americano o sentimento patriótico. Teve esse grande povo a intuição de que a escola, isto é, a mesma educação prodigamente distribuída entre todos os cidadãos, devia ser a cadeia que ligasse os elementos heterogêneos da nação. E assim, sem obstáculos da federação e do espírito individualista do elemento anglo-saxônico, ali predominante, a unidade escolar, unidade de espírito, entenda-se, veio a ser um remédio às fundas diversidades de raça, de religião e de costumes (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. LV).

Portanto, a coesão social seria alcançada por meio desse sentimento nacional que proporcionaria a unidade de espírito, sendo um “remédio” para a heterogeneidade. No entanto, outro fator entraria em questão para alcançar essa pretendida coesão social: o caráter nacional.

A EDUCAÇÃO DO CARÁTER NACIONAL E A BUSCA DA COESÃO SOCIAL

Para Veríssimo, o caráter nacional no Brasil estaria vinculado ao atavismo, que subordinava aspectos culturais como algo transmitido hereditariamente para o mestiço. Segundo o autor, o brasileiro seria formado a partir das concebidas três raças:

Somos o producto de tres raças perfeitamente distinctas. Duas selvagens e portanto descuidosas e indifferentes como soem ser nesse estadio da vida, e uma em rapido declinio depois de uma gloriosa, brilhante e fugaz ilustração (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 30).

De acordo com essas formulações, as duas “raças selvagens”, indígena e negra, e a outra em declínio, a portuguesa, transmitiriam atitudes hereditárias. Essa mistura, concebida como heterogênea, caminhava para o homogêneo por meio da mestiçagem, que delimitava o caráter nacional, cujo traço principal seria a apatia.

Ao analisar as causas que teriam desencadeado a concebida apatia do caráter nacional, Veríssimo indica a influência das origens étnicas, históricas, do meio e da educação. No entanto, assinala como fator primordial da formação desse caráter a escravidão. Segundo ele, o caráter brasileiro seria:

Mole pelo clima, mole pela raça, mole por esta precocidade das funções genésicas, mole pela falta de todo o trabalho, de qualquer atividade, o sangue pobre, o caráter nulo ou irritadiço e por isso mesmo inconsequente, os sentimentos deflorados e pervertidos, animado, indisciplinado, mal criado em todo rigor da palavra – eis como de regra começa o jovem brasileiro a vida (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 36).

Como enfatiza Maria do Perpetuo Socorro Gomes de Souza Avelino de França, as reflexões de José Veríssimo sobre o caráter nacional brasileiro:

[...] se fundamentavam em teóricos que, nas últimas décadas do século XIX e princípios do século XX, se voltaram para a explicação da constituição do caráter nacional a partir da influência das raças, do ambiente geográfico, da história e da cultura, proclamando em seus estudos a inferioridade dos povos ditos selvagens e mestiços, e a superioridade da raça branca (França, 2004FRANÇA, Maria do Perpetuo Socorro Gomes de Souza Avelino de. José Veríssimo (1857-1916) e a educação brasileira republicana: raízes da renovação escolar conservadora. 2004. 173f. Tese (Doutorado em Educação) – UNICAMP, Campinas, 2004., p. 66).

Para Veríssimo, o caráter brasileiro era composto de indolência e moleza, como já mencionado, e a educação, em seu olhar, seria uma medida para solucionar essas características intrínsecas ao caráter nacional. E acrescenta:

Dada a passividade do caracter brazileiro, feito de indolencia, de indecisão, de indifferença, de inactividade, é dever não do governo – que é preciso refuguemos de nós esta preocupação do governo, não da administração – que não é sinão nossa delegada, mas de todo brazileiro, pela sua acção domestica e pela sua acção civil, promover com a tenacidade de uma convicção profunda a educação do caracter nacional (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 46).

Dando uma ênfase, como foi visto, diferenciada entre instrução e educação, sublinha que esta última proporcionaria a alteração do caráter, rompendo com posturas intrínsecas a ele; atribui, inclusive, a indiferença do brasileiro em relação à política ao fato de não termos desenvolvido uma educação do caráter.

Depois de analisar as causas históricas, etnográficas, geográficas e educacionais que levaram a essa indiferença, ele recorre à proclamação da República para reafirmar essa característica do povo brasileiro:

Ressaltam da attitude do nosso povo em face do movimento donde saiu a Republica: a sua profunda indifferença, tão dolorosa aos espíritos preoccupados do futuro e da patria, e a falta absoluta de fé nos princípios e de fixidez nas crenças, ainda nas vésperas apregoadas e mantidas (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p.38).

Realça que a proclamação da República, “no Pará ao menos, caiu no meio da mais glacial, da mais profunda, da mais completa indifferença”, citando em nota de rodapé que, assim como lá, “por toda a parte, dizem notícias insuspeitas, foi o mesmo” (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 39). E menciona carta do ministro do Interior da República, Aristides Lobo, para quem o povo do Rio de Janeiro “assistiu bestificado aos acontecimentos” (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 39).

A educação do caráter nacional consistiria em combater essas características hereditárias, como a indolência e a moleza. Portanto, como Veríssimo menciona, sendo o caráter “[...] o conjuncto das qualidades moraes, a educação do caracter é sinão o desenvolvimento do que na pedagogia pratica chamamos de cultura, ou si quizerem, não é sinão a generalização desta fórma da educação escolar” (Veríssimo, 1906, p. 46).

Uma das propostas de Veríssimo para romper com a indolência, a moleza e a inaptidão ao trabalho, por exemplo, era a prática da educação física. Para Veríssimo:

[...] os exercícios physicos são um revigorador das energias physicas e portanto da saúde, é justamente em os climas enervadores e debilitantes como o nosso que convém mediante elles reagir contra a acção do meio physico. Segundo o physiologista francez Langrange, a medida physiologica dos exercícios corporaes é o affrontamento (essouflement) no seu terceiro período ou axphyxico. Sendo assim já temos no Brazil um critério seguro nas praticas desses exercícios (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 83-84).

Com base nessas formulações, Veríssimo fundou e dirigiu o Colégio Americano (1884-1890) no Pará, instituindo a disciplina de educação física no currículo da instrução primária. Essa disciplina era ministrada regularmente no colégio, algo inusitado no Brasil daquela época (Tullio, 1996TULLIO, Guaraciaba Aparecida. Transformação ou modernização? O projeto pedagógico de José Veríssimo para o Brasil República. 1996. 205f. Tese (Doutorado em Educação)-Faculdade de Educação, UNICAMP, São Paulo, 1996., p. 132). Em A educação nacional, menciona que

[...] urge cuidarmos seriamente de introduzir no nosso systema geral de educação physica, e nas nossas escolas, nos nossos collegios, nas nossas academias, nos nossos costumes emfim, os exercícios de corpo, todos esses exercícios que os inglezes conhecem sob o nome collectivo de Sport e os nossos maiores pelo de desportos.

A educação physica é, em todo o rigor da expressão, um problema nacional (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 85).

Para ilustrar a importância dessa atividade na formação de trabalhadores com corpos fortes e robustos, Veríssimo remete às sociedades alemã, francesa, inglesa, e conclui dizendo:

Em todas as demais nações onde o espirito publico não dorme, sinão que vela continuamente pelos interesses da patria, tem a educação physica merecido particular interesse. Na Suecia, na Belgica, na Holanda, na Austria e na Italia faz parte dos programmas escolares (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 79).

E pondera que, na Inglaterra, “cujo povo é, incontestavelmente, o mais forte, o mais energico, o mais viril dos deste fim de século, os exercícios physicos são, digamos assim, uma instituição nacional” (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. 75).

Portanto, com base nessas formulações, a educação física seria algo importante na educação brasileira, por formar corpos trabalhadores e combater as características herdadas do processo de mestiçagem e do clima tórrido, que estariam incorporadas ao nosso caráter nacional.

Destarte, para José Veríssimo a educação seria uma maneira de corrigir o caráter brasileiro, diante da concebida influência atávica e do clima “debilitante”, combatendo tudo o que “deprime nosso caráter, desenvolvendo ao mesmo tempo qualidades contrárias”, ou seja, a vontade e o amor ao trabalho (Veríssimo, 1906, p. 60).

Veríssimo recorre a Fouilée, dizendo que a educação pode “modificar a média normal, para a qual a hereditariedade produzirá a regressão. Se a hereditariedade é a grande força de conservação, a idéa é a grande força de progresso: uma garante a estática e o equilíbrio, a outra a dynamica e o movimento” (Veríssimo, 1906, p. XLIV).

Nesse processo de educação do caráter, Veríssimo salientava no Colégio Americano a importância dos laços entre escola e família para controlar os “maus espíritos”. Como Maria França recorda, para ele as crianças “eram portadoras de traços psicológicos bons ou maus, herdados de seus ancestrais ou adquiridos no próprio ambiente familiar”. Diante disso, convocava com insistência os pais dos alunos a participarem da educação escolar de seus filhos, acreditando que dessa maneira poderiam modificar esses “maus espíritos” (França, 2004, p. 42-43).

Enfim, para Veríssimo, a educação do caráter comporia um aspecto fundamental da educação nacional, e seria “a missão da Família, da Escola, da Sociedade, das Religiões, das Politicas, da Literatura, da Sciencia, da Arte – si bem querem merecer da Patria e da Humanidade” (Veríssimo, 1906, p. 60).

O DESLOCAMENTO DO OLHAR DE VERÍSSIMO PARA O SUJEITO INDÍGENA

Em A educação nacional, como já citado, Veríssimo assinala como possível a permeabilidade do sujeito indígena ao corpo nacional por meio da educação. Nessa ordem discursiva, ressalta a importância do despertar do sentimento nacional, assim como da necessidade de romper com a interferência climática e do atavismo por meio da educação do caráter nacional.

No entanto, no primeiro livro que publicou, Primeiras páginas (1878), o autor configurou uma concepção do sujeito indígena divergente da que delinearia em A educação nacional e em Cenas da vida amazônica (1886). Pode-se perceber o deslocamento desse olhar para o sujeito indígena por meio de suas reconsiderações nesses dois livros posteriores.

Em Primeiras páginas, Veríssimo encerrou o livro considerando que as “raças cruzadas encontram-se profundamente degradadas”, indicando como um dos motivos desse quadro a predominância nessas “raças do elemento tupi, mais do que o portuguez” (Veríssimo, 1878, p. 211). Segundo ele, a única solução para essas “raças selvagens”, seria “olvidal-as nas solidões das florestas que vivem”, e, para as raças degradadas do Pará, seria “esmagal-as sob a pressão enorme de uma grande emigração, de uma raça vigorosa que nessa luta pela existencia de que falla Darwin as aniquile assimilando-as” (Veríssimo, 1878VERÍSSIMO, José. Primeiras páginas: viagens no sertão – quadros paraenses – estudos. Belém: Typographia Guttemberg, 1878., p. 214).

No entanto, em Cenas da vida amazônica, o autor altera essa percepção de impermeabilidade do indígena ao corpo nacional, que predestinava o índio ao fracasso, por causa de sua “raça”:

Estou convencido, com o eminente Littré, que o “problema político consiste em utilisar no maior proveito das sociedades a força natural que lhes é própria”. Aqui a força natural são evidentemente as populações indígenas, puras ou cruzadas com os conquistadores e colonisadores. Si me fora permittido dar um aviso, era que as aproveitassemos em bem da vastíssima e riquíssima região amazônica (Veríssimo, 1886VERÍSSIMO, José. Cenas da vida amazônica. Com um estudo sobre as populações indígenas e mestiças da Amazônia. Lisboa: Tavares Cardoso, 1886., p. 93).

Veríssimo encerra Cenas da vida amazônica indicando esse deslocamento de olhar para o sujeito indígena. Reavalia as colocações feitas em Primeiras páginas e desvela a transformação da imagem que construíra para esse sujeito: de um indivíduo impermeável ao corpo nacional para alguém que deveria tornar-se permeável a esse corpo. Porém, enfatiza que, apesar de ser necessária a utilização da mão de obra indígena para ocupar a vasta e riquíssima região amazônica, não saberia ainda dizer como empregá-la. Considera que caberia a outros profissionais, que faziam parte do mesmo corpo nacional, apontar a maneira pela qual a mão de obra indígena ou mestiça poderia ser utilizada (Veríssimo, 1886VERÍSSIMO, José. Cenas da vida amazônica. Com um estudo sobre as populações indígenas e mestiças da Amazônia. Lisboa: Tavares Cardoso, 1886., p. 93-94).

Como se vê, desde 1886 Veríssimo assinalou a preocupação de incorporar o indígena ao corpo nacional, aproveitando a sua mão de obra. Em 1890, ao publicar A educação nacional, assinalou que todas as “raças” poderiam tornar-se permeáveis ao corpo nacional por meio da educação, enfatizando que, diante do “problema do povoamento do nosso vasto territorio deserto e improdutivo, que é o problema capital do nosso paiz”, ninguém dirá que “não seja o da educação nacional o que mais importa ao nosso futuro” (Veríssimo, 1906VERÍSSIMO, José. A educação nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906., p. XXXIX).

Veríssimo indica a povoação do “vasto território” como o “problema capital” do país. Coincidentemente, nesse mesmo período surgiram as discussões que culminariam na formação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que visava transformar o índio em trabalhador agrícola. Mas, afinal, qual seria a relação e a similaridade entre o projeto educacional de Veríssimo e a tentativa de converter o indígena em trabalhador agrícola?

PERMEABILIDADE DO INDÍGENA AO CORPO NACIONAL

A percepção de permeabilidade do indígena ao corpo nacional por meio da educação, presente na ordem discursiva de Veríssimo, coincide com as discussões levantadas tanto na 8ª Comissão de Etnografia do 1º Congresso Brasileiro de Geografia (1909) como no SPILTN, fundado em 1910 (Congresso Brasileiro de Geographia, 1911; Souza Lima, 1995SOUZA LIMA, Antonio Carlos de.Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.). Pode-se atribuir essa similaridade à influência do positivismo nesses tecidos discursivos, assim como deve-se considerar o cargo de presidente que José Veríssimo exerceu na 8ª Comissão de Etnografia do 1º Congresso Brasileiro de Geografia.

A filosofia positivista começou a ser propagada no Brasil a partir de 1850 pela Escola Militar, e de lá ressoou para os principais centros de ensino do Rio de Janeiro, como o Colégio Pedro II e a Escola Politécnica (Gagliardi, 1989GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, 1989., p. 42-43). No entanto, como assinala Alfredo Bosi, a “militância positivista se fez sentir entre nós mais intensamente a partir do último quartel do século XIX”, considerando que, entre 1850 e 1870, “a presença da doutrina limitou-se a expressões acadêmicas avulsas”, conforme demonstra o resumo cronológico da evolução do positivismo apresentado por Teixeira Mendes em 1924 (Bosi, 2004BOSI, Alfredo. O positivismo no Brasil: uma ideologia de longa duração. In: PERRONE-MOISÉS, Leyla (Org.). Do positivismo à desconstrução: ideias francesas na América. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, p.17-48., p. 19).

O primeiro livro que divulgou o positivismo no Brasil foi publicado apenas em 1874 – As três filosofias, escrito por Luís Pereira Barreto, médico paulista. Barreto participou, juntamente com Benjamim Constant, Miguel Lemos e Teixeira Mendes, da Sociedade Positivista, fundada em 1876 por Antônio Oliveira Guimarães, professor de Matemática do Colégio Pedro II (Bosi, 2004BOSI, Alfredo. O positivismo no Brasil: uma ideologia de longa duração. In: PERRONE-MOISÉS, Leyla (Org.). Do positivismo à desconstrução: ideias francesas na América. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, p.17-48., p. 21).

Miguel Lemos e Teixeira Mendes, após serem desligados da Escola Politécnica por terem escrito um artigo criticando o visconde do Rio Branco, foram morar em Paris em outubro de 1877. Lá, tornaram-se membros do grupo de Pierre Laffitte4 4 Pierre Laffitte, sucessor oficial de Auguste Comte, tornou a sua casa o centro de um culto chamado positivismo ortodoxo, que “aceitava não só a doutrina do Cours de philosophie positive (1830-1842) mas também a ‘religião da Humanidade’ exposta no Système de politique positive ou Traité de Sociologie instituant la religion d l’Humanité (1851-54)” (Bosi, 2004, p. 21). . Em 1881, ao retornarem para o Brasil, Miguel Lemos assumiu a direção da Sociedade Positivista e, poucos meses depois, junto com Teixeira Mendes, transformou-a em Centro ou Igreja Positivista Brasileira, com o propósito de disciplinar a prática positivista entre os brasileiros (Bosi, 2004BOSI, Alfredo. O positivismo no Brasil: uma ideologia de longa duração. In: PERRONE-MOISÉS, Leyla (Org.). Do positivismo à desconstrução: ideias francesas na América. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, p.17-48., p. 21).

O positivismo foi fundado na França por Auguste Comte na primeira metade do século XIX. Comte acreditava que sua doutrina estabeleceria o reequilíbrio social após a revolução de 1789. Como Gagliardi destaca, o positivismo surge como “resposta às rebeliões que haviam tomado conta da Europa Ocidental. Essas rebeliões sociais eram geradas pela industrialização, nova fase do desenvolvimento econômico e momento em que as contradições inerentes ao sistema capitalista se tornaram evidentes” (Gagliardi, 1989, p. 44).

Como sabido, na teoria dos três estados, formulada por Comte, o conhecimento humano passaria por estados evolutivos: o Teológico, o Metafísico e o Positivo. O estágio Teológico, por sua vez, seria dividido em três etapas, a saber: o fetichismo, o politeísmo e o monoteísmo. De acordo com essas formulações, a Europa Ocidental encontrava-se no estágio Positivo, em virtude do desenvolvimento tecnológico e científico, enquanto as populações africanas estariam ainda na primeira etapa do primeiro estágio, ou seja, no fetichismo. Porém, como Gagliardi recorda, as “fases de transição entre o fetichismo e o estado Positivo poderiam ser evitadas se fosse aplicada, no desenvolvimento mental do indivíduo, a educação racional positiva” (Gagliardi, 1989, p. 45).

E era justamente essa concepção – a possibilidade de saltar do estágio fetichista para o Positivo – que delineava o discurso de José Veríssimo em A educação nacional, o mesmo discurso do SPILTN. Como Luís Bueno Horta Barbosa5 5 Luís Bueno Horta Barbosa, positivista, se posicionou contra a proposta de extermínio dos indígenas feita por Heman von Ihering. Por meio de uma carta publicada primeiramente no jornal ‘Cidade de Campinas’, em 12/10/1908, e posteriormente no ‘Jornal do Comércio’, em 11/11/1908, Barbosa afirmou que era “um dever moral protegê-los e socorrê-los”. Além disso, também enfatiza que “certamente as ideias e os sentimentos nobre dos mais sábios e distintos patriotas do Brasil estavam mais próximo da solução do problema indígena do país do que o ‘materialismo sem ideais e sem entranhas do teorista do Museu Paulista’.” (Stauffer, 1960, p. 181-182). menciona: “A fase Teológica foi inevitável na evolução espontânea da Humanidade, mas pode ser dispensada no desenvolvimento da mentalidade de cada indivíduo, o qual, pela educação, pode passar da fase fetichista para a positiva sem se deter no teologismo” (Barbosa, 1972BARBOSA, Luís Bueno Horta. Explicação da lei dos três Estados. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1972., p. 56).

Inspirados nas formulações de Comte, os positivistas defendiam que os indígenas estariam no estado fetichista, vivendo no período da infância da evolução do espírito humano, e que cabia aos missionários positivistas proporcionar o tratamento adequado para que o sujeito indígena evoluísse do estágio fetichista para o positivo, sem se deter nas etapas intermediárias (Gagliardi, 1989GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, 1989., p. 55).

Como Gagliardi expõe, a defesa dos direitos indígenas pelos positivistas apareceu desde a elaboração da primeira Constituição republicana (1891), em que o Apostolado Positivista, por meio da apresentação de um projeto constitucional, elaborado por Miguel Lemos e Teixeira Mendes, delimitou o “relacionamento que deveria ser adotado em relação às populações indígenas, uma vez que constituíam parte integrante da emergente República” (Gagliardi, 1989GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, 1989., p. 55). Esse projeto constitucional dividia o Brasil em dois Estados:

I) Os Estados Ocidentaes Brazileiros sistematicamente confederados e que provêm da fuzão do elemento europeu com o elemento africano e americano aborijene.

II) Os Estados Americanos Brazileiros empiricamente confederados, constituidos pelas ordas fetixistas esparsas pelo territorio de toda a Republica. A federação deles limita-se à manutenção das relações amistozas oje reconhecidas como um dever entre nações distintas e simpaticas, por um lado; e, por outro lado, em garantir-lhes a proteção do Governo Federal contra cualquer violencia, quer em suas pessoas, que em seus territorios. Estes não poderão jamais ser atravessados sem o seu previo consentimento pacificamente solicitado e só pacificamente obtido (Lemos; Mendes, 1890LEMOS, Miguel; MENDES, Teixeira. Bazes de uma constituição politica ditatorial federativa para a republica brasileira. Rio de Janeiro: Apostolado positivista do Brasil, 1890., p. 1).

Porém essa proposta, ao se deparar com os interesses da classe dominante, foi refutada e esquecida. Era inconcebível para a oligarquia conceder autonomia aos povos indígenas, tendo em vista sua concepção de classe agente do progresso e da civilização. Como Gagliardi afirma, apesar de ter sido recusado, esse projeto “lançou as metas fundamentais da política indigenista que os positivistas consideravam mais correta, e pela qual iriam lutar com afã nos anos seguintes”. Sendo esse esforço “coroado, mais tarde, com a fundação do Serviço de Proteção aos Índios” (Gagliardi, 1989, p. 57).

Lutando por um Estado secular, os positivistas tentaram adequar essa concepção às relações sociais, secularizando o ensino, o casamento e o cemitério. Porém, apesar de essas mudanças terem sido realizadas no regime republicano, o sistema de catequese dos índios continuava em vigor, o que instaurava uma contradição. Diante disso, os positivistas, que “acompanhavam com atenção as decisões do governo, aproveitaram essa contradição para exigir, nos anos que antecederam a fundação do Serviço de Proteção aos Índios, uma política indigenista adequada aos pressupostos republicanos” (Gagliardi, 1989GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, 1989., p. 173).

Para os positivistas, o catolicismo já havia cumprido a sua função na evolução mental dos indivíduos e deveria ser substituído pela religião positivista, que cultivava não mais o amor a Deus e sim à Humanidade. Dessa forma, a catequese era entendida pelos positivistas como um estado que havia sido importante, mas deveria ser ultrapassado (Gagliardi, 1989GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, 1989., p. 45).

A partir dessas formulações, a criação do SPILTN gerou intenso debate na imprensa carioca sobre a questão indígena. Como Gagliardi assinala, nos artigos publicados demonstravam-se três tendências políticas distintas: a) a tendência leiga, à qual pertenciam o Apostolado Positivista, o Museu Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, entre outros; b) a tendência clerical, representada pela Igreja Católica, que não queria perder o privilégio da catequização indígena; c) a tendência científica, que, por meio da ciência natural, alegava que os indígenas estavam predestinados a desaparecer (Gagliardi, 1989, p. 184).

Em 1909, Veríssimo participou do 1º Congresso Brasileiro de Geografia, como presidente da seção de Etnografia, a qual levantou discussões fundamentais no desencadeamento e na fundação, no ano seguinte, do SPILTN. Como Gagliardi pondera:

No movimento pela institucionalização de uma entidade que atendesse às necessidades específicas do indígena, também teve destaque a realização do 1º Congresso Brasileiro de Geografia. Em 7 de setembro de 1909 – exatamente um ano antes da instalação do Serviço de Proteção aos Índios – realizou-se no Palácio Monroe, no Rio de Janeiro, a sessão solene de inauguração desse congresso.

[...]

No dia 8, em assembleia-geral, foram eleitas as doze comissões, cujas atividades seriam realizadas nas salas da Sociedade de Geografia. As questões relacionadas com a Antropologia e a Etnologia ficaram a cargo da oitava comissão. Os trabalhos dessa comissão foram coordenados por José Veríssimo (presidente), Arlindo Fragoso (primeiro secretário), Simõens da Silva (segundo secretário), Desembargador Sousa Pitanga e Domingos Jaguaribe (Gagliardi, 1989GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, 1989., p. 124-125).

No dia 15 de setembro de 1909, na assembleia geral, a 8ª Comissão apresentou a seguinte conclusão:

1º) A necessidade urgente de dar proteção aos índios, em todo o país;

2º) O Estado deveria cuidar para que os benefícios da lei fossem estendidos aos índios. Deveria se empenhar, também na sua incorporação à economia nacional, tomando providências para que fosse evitado qualquer tipo de constrangimento;

3º) Os museus brasileiros precisavam do incentivo do governo para aperfeiçoar as suas coleções etnográficas: através do auxílio às explorações científicas; proibindo que artefatos indígenas saíssem do país com destino aos museus estrangeiros e favorecendo a aquisição de coleções particulares pelos museus brasileiros (CONGRESSO BRASILEIRO DE GEOGRAPHIA, 1., 1910, p. 211-212).

Observa-se, nos Anais do 1º Congresso de Geografia, que dois participantes cujos trabalhos foram apresentados na 8ª Comissão de Etnografia assinalaram a necessidade da criação de um órgão governamental que exercesse o poder tutelar sobre o indígena. O primeiro foi Antonio Carlos de Simoens da Silva, membro da Sociedade Nacional de Agricultura do Rio de Janeiro; a segunda, a professora Leolinda de Figueiredo Daltro6 6 A professora Leolinda Daltro, após permanecer quatro anos nas florestas de Goiás, visitando diversos povos indígenas, retornou ao Rio de Janeiro e relatou o abuso dos padres católicos na catequese indígena. Em contraposição à proposta de catequese indígena, decidiu fundar uma colônia indígena em Mato Grosso, próximo da divisa com o Pará, propondo educar leigamente os indígenas, com a finalidade de incorporá-los à sociedade. Apesar de sua proposta ter sido tratada com descaso pelo governo, Daltro continuou defendendo a fundação dessa associação, com o argumento de auxiliar e proteger os indígenas. Em 1906, realizou-se no Rio de Janeiro o Congresso Pan-Americano. Joaquim Nabuco, ocupando o cargo de presidente do Congresso, veio dos Estados Unidos para participar do evento. Na recepção preparada para recebê-lo, a professora Daltro aproveitou a oportunidade para protestar, diante da presença de sete indígenas, exigindo que “fossem concedidos aos índios os meios para que pudessem usufruir dos benefícios da civilização” (Gagliardi, 1989, p. 113). Nabuco “confessou à professora Daltro que a presença dos índios havia-se constituído na parte mais interessante da recepção e que ele admirava a sua vocação para educá-los”. Após o início do Congresso, a professora Daltro escreveu um documento a Nabuco, reivindicando uma educação leiga para os índios. Ele respondeu que, apesar de o assunto não ser de sua competência, iria “providenciar para que o panfleto fosse impresso e distribuído pelas diversas comissões que participavam do evento” (Daltro, 1920, p. 374-375, apud Gagliardi, 1989, p. 114). , que conclui seu trabalho dizendo:

Leolinda Daltro, Delegada pela ‘Associação Protectora dos Indios Brasileiros’, com sede na Cidade do Rio de Janeiro, á rua General Camara, n.385,

- Convicta da vantagem no aproveitamento do elemento indígena para o aproveitamento do solo;

- Convicta da vantagem para o progresso nacional, da civilização dos Selvicolas;

- Convicta da utilidade, para a constituição ethnica da nacionalidade brasileira, da assimilação do elemento autochtone;

- Convicta da necessidade de catechese absoluta leiga para educar e civilizar essas raças primitivas;

- Propõe: - que seja reconhecida a necessidade de delimitar, nas regiões habitadas por indígenas, “Um Territorio autochtone’ e que sejam esses Selvicolas incorporados na sociedade dos homens civilizados, compensando-se assim, em parte, os prejuízos causados aos donos espoliados d’este Paiz que chamamos hoje Patria; - que seja reconhecida a necessidade de uma educação racional, e um processo absolutamente laical, scientífico, industrial e emancipador para a civilização dos Selvicolas brasileiros; - que seja reconhecida, emfim, a necessidade de facilitar-lhes os meios de evoluir sem tolher-lhes a liberdade e os instintos nativos mas organisando núcleos e escolas agrícolas e industriaes onde possam cultivar seus dotes e aptidões e desenvolver suas melhores tendências (CONGRESSO BRASILEIRO DE GEOGRAPHIA, 1., 1910, p. 172-173).

Como Gagliardi lembra:

As conclusões aprovadas pela Comissão de Etnografia eram o reflexo da mobilização de setores da sociedade civil que, havia quase duas décadas, vinham pressionando o Estado, cada vez com mais intensidade, para encontrar uma solução institucional para o impasse existente entre o indígena e a República (Gagliardi, 1989GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, 1989., p. 133-134).

Esse impasse estabelecido entre o indígena e a República reflete, como pondera David H. Stauffer, o avanço do Brasil em seu vasto hinterland durante as primeiras duas décadas da República, 1889-1908 (Stauffer, 1959STAUFFER, David H. Origem e fundação do Serviço de Proteção ao Índio. Tradução de J. Philipson. Revista de História, São Paulo, n. 37, p. 73-95, Primeiro Trimestre. 1959., p. 77). A resultante ocupação de terras, muitas das quais habitadas por povos indígenas, fez com que a alteridade do sujeito autóctone passasse a ocupar espaço no olhar do não indígena, a partir dos conflitos estabelecidos. Os motivos que geraram esse confronto provêm de diversos fatores vinculados à expansão territorial: o crescimento da malha ferroviária, assim como das linhas telegráficas; o aumento das expedições etnológicas a partir de 1884, diante da repercussão da expedição de Karl von den Steinen, na região do Xingu; o despertar intenso do desejo (e da necessidade) de conhecer a geografia dessas terras desconhecidas, refletido inclusive na realização do 1º Congresso Brasileiro de Geografia; assim como a intensa ocupação, por imigrantes no Brasil meridional, de terras pertencentes a povos indígenas (Stauffer, 1959STAUFFER, David H. Origem e fundação do Serviço de Proteção ao Índio. Tradução de J. Philipson. Revista de História, São Paulo, n. 37, p. 73-95, Primeiro Trimestre. 1959., p. 73-95).

O indígena acabou ocupando lugar de destaque também na imprensa, não só pelos conflitos travados nesse processo de ocupação territorial, como pelo pretenso projeto de extermínio dos indígenas apresentado pelo diretor do Museu Paulista, Herman von Ilhering. O posicionamento de Ihering desencadeou intenso debate na imprensa entre 1908-1910, colocando a relação com o sujeito indígena em evidência.

Antonio Carlos de Souza Lima pondera que, nesse debate, “se destacaria a ação pessoal de Cândido de Mariano Silva Rondon”, que se estabelecera por muitos anos no sertão, tendo contato com diversos povos indígenas em função do seu trabalho de expansão das linhas telegráficas (Souza Lima, 1992, p. 156). Ao contrário de Herman von Ihering, que defendia o extermínio dos indígenas, a Comissão Rondon orientava-se pelo lema “Morrer, se necessário for, matar nunca!” (Gagliardi, 1989GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, 1989., p. 148).

No 1º Congresso Brasileiro de Geografia, Antonio Carlos Simoens da Silva apresentou o texto “Proteção aos Índios e Amparo aos seus artefactos e ossadas”. Nesse artigo, presente nos anais da 8ª Comissão, Silva expõe sua indignação com a proposta de Herman von Ihering, dizendo: “O infelicíssimo programa desse homem de sciencia, que ainda attribuo á uma grande erronea interpretação, é: O Exterminio dos Indios” (CONGRESSO DE BRASILEIRO DE GEOGRAPHIA, 1., 1911, p. 17).

Além de classificar a proposta de Ihering como sendo uma tese “desorientada”, com uma ideia “de todo criminosa”, Silva enfatiza o progresso do Brasil nas décadas compreendidas entre 1890 e 1910, apontando simultaneamente o descaso do Estado com os indígenas, ao afirmar que:

Durante a Republica, ou nestes últimos vinte annos, de evidente progresso em todos os ramos de actividade do paiz, um facto é notável, torna-se isolado de todos os outros praticados até agora.

O desprezo dos Indios é patente, nenhum dos Chefes de Governo, nem dos Ministros, cujas pastas têm ligação com o assumpto, se tem incommodado com elles, afim de protegel-os, trazendo-os a civilisação, aproveitando-os nobremente como colonos e assim sabendo utilisal-os, como os melhores braços que são, para vários misteres que o paiz reclama (CONGRESSO DE BRASILEIRO DE GEOGRAPHIA, 1., 1911, p. 14).

Como se pode perceber, os povos indígenas tornaram-se presentes nos discursos que ressoavam no início da Primeira República. Deve-se mencionar, também, como reflete o discurso acima, o papel assinalado preliminarmente pelos positivistas, e posteriormente pelo Estado, da utilização da mão de obra indígena tanto como maneira de ocupação territorial como de formação de trabalhadores nacionais. Deve-se ponderar a influência da recém-ocorrida abolição da escravatura e, portanto, a situação de transição do trabalho escravo para o trabalho livre, nesse deslocamento do olhar para o sujeito indígena como um trabalhador nacional.

O SPILTN, criado em 7 de setembro de 1910, vinculado ao Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), foi legitimado a partir de uma “retórica integracionista”, que visava, como aponta Sonia Regina de Mendonça, “transformar meros contingentes populacionais em produtores mercantis”. O SPILTN objetivava, por meio do poder tutelar do Estado, gerir tanto os conflitos indígenas, que se tornaram recorrentes no período, como distribuir a força de trabalho entre as regiões, diminuindo a intensa concentração da mão de obra no Centro-Sul do Brasil em detrimento das regiões Norte e Nordeste (Mendonça, 1997, p. 168-169).

O ministro da Agricultura, Rodolfo Miranda, em discurso proferido no dia da criação do SPILTN, esclareceu que a data de 7 de setembro havia sido escolhida em função de estar ligada aos ideais liberais propostos por José Bonifácio de Andrada e Silva, defensor de que a liberdade advinda da Independência se estendesse para os índios e os negros, integrando-os ao corpo nacional (Gagliardi, 1989GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, 1989., p. 233).

Como Antonio Carlos de Souza Lima mostra, o ser índio era entendido pelo SPILTN como um estrato social transitório, que alcançaria a categoria de trabalhadores nacionais (Souza Lima, 1995, p. 119). Dessa forma, “para compatibilizar a vastidão geográfica com a temporal, abrangendo-as, o Serviço organizava-se a partir da ideia de fases de ação” (Souza Lima, 1995SOUZA LIMA, Antonio Carlos de.Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995., p. 131). Para exemplificar quais seriam as fases que regiam o SPILTN, Souza Lima menciona o discurso de Lindolpho B. Azevedo:

Quando chamado ao cargo de inspetor deste serviço de 1918 [sic], vindo de outras repartições deste Ministério, estudei a exposição de motivos que levou o governo da República a criar o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, expedindo o decreto n. 8072 de 20 de junho de 1910 e sua respectiva regulamentação, mais tarde modificada com o decreto n.9214 de 15 de novembro de 1911 que ainda hoje acha-se em parte vigorando, e pareceu-me ser o seguinte o espírito dos trabalhos criados.

1. A atração e transformação do índio selvagem, semi-selvagem, de trabalhador semicivilizado em trabalhador rural emancipado, passando pela escala de postos de atração, postos indígenas, povoações indígenas e, finalmente, pela de centros agrícolas.

2. A tutela do governo aos trabalhadores rurais civilizados, que a ela se submetessem, localizando-os nos centros agrícolas.

Estas divisões seriam assim subdivididas: a primeira referente a índios nas quatro fases seguintes:

1. Fase – atração de índios selvagens

2. Fase – transformação e educação dos índios semi-selvagens

3. Fase – ensinamento dos trabalhos agrícolas e industriais derivado aos índios semicivilizados.

4. Fase – estabelecimento dos índios na sua emancipação e definitiva introdução na vida civilizada (SEDOC, RMAIC/SPILTN, 1918, m. 380, f.1255 apud Souza Lima, 1995SOUZA LIMA, Antonio Carlos de.Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995., p. 135-136).

Portanto, ser índio era estar no estado fetichista, era estar atrasado na escala evolutiva do conhecimento humano e da civilização, era estar em uma fase transitória, da qual sairia, por meio da educação, deixando de ser índio e transformando-se em trabalhador nacional. Como consta no Relatório de Diretoria de 1917 do SPILTN: “Indígenas selvagens, isto é – brasileiros reduzidos à condição de brutos inúteis a si e à coletividade, e o que é mais, entravando, em mais de um ponto o aproveitamento da terra e das forças naturais [...]” (SEDOC, RMAIC/SPILTN, 1917, m.380, f.1239 apud Souza Lima, 1995SOUZA LIMA, Antonio Carlos de.Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995., p. 120).

No entanto, essa condição de “inutilidade” dos indígenas poderia ser superada, como mostra outro relatório, de 1912: “Vê-se pois, que a desmoralização é um produto da educação que recebem, a qual, como crianças, fácil e francamente se afeiçoam. Tudo mostra que, havendo educação, os índios selvagens devem progredir, moral, intelectual e praticamente” (RMAIC, 1912, p.124-125, apud Souza Lima, 1995SOUZA LIMA, Antonio Carlos de.Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995., p. 125).

Convém lembrar que, em Cenas da vida amazônica (1886), José Veríssimo compartilhava da concepção de tornar os índios úteis à sociedade por meio do trabalho, dizendo que o conquistador teve que se aproveitar da “raça” conquistada, convertendo-a em um “povo útil, transformando-a pelo trabalho de selvagem em civilizada” (Veríssimo, 1886, p. 16).

Essa noção de transitoriedade acoplada à imagem do indígena reflete a doutrina positivista, segundo a qual caberia aos povos que se encontravam no estado positivo ou científico conduzir os povos do estado fetichista para a etapa que já haviam atingido, na “marcha progressiva do espírito humano”. Como Manuela Carneiro da Cunha aponta, a proposta “positivista para a Primeira Constituição Republicana declarava o Brasil constituído pelos seus Estados e pelas ‘hordas fetichistas empiricamente confederadas’, ou seja, as diversas etnias indígenas (Cunha, 2009, p. 257).

Diante dessas formulações, Cunha conclui:

[...] a tutela passa, portanto, a ser o instrumento da missão civilizadora, uma proteção concedida a essas “grandes crianças” até que elas cresçam e venham a ser “como nós”. Ou seja, respeita-se o índio enquanto homem, mas exige-se que se despoje de sua condição étnica específica. [...]

Essa concepção leva, também, a entender a integração como sinônimo da assimilação cultural (Cunha, 2009, p. 256-257).

Dessa forma, o indivíduo indígena conseguiria atravessar os poros da alteridade e inserir-se no corpo nacional concebido como civilizado. Porém, o sujeito indígena, entendido como sujeito portador de uma cultura diferente da cultura dita civilizada, não conseguiria atravessar essa fronteira da alteridade interdita, constituindo-se assim como impermeável ao corpo nacional. Para inserir-se no corpo nacional, só por meio da educação assimilacionista, que visava transformá-lo em trabalhador nacional; teria, portanto, que deixar de ser índio.

Como se pode ver, ser índio era ser incompatível com o civilizado, o moderno, o urbano. Era pertencer a um outro tempo, diferente do regido pela revolução tecnológica e pela geração de riquezas comerciais. Sob o prisma do olhar nacionalista que remetia para a concepção de nação e de progresso, o sujeito indígena era percebido como um entrave à civilização. Para superar essa condição, Veríssimo diagnosticou que era preciso educá-lo, civilizá-lo, torná-lo útil a si mesmo e à coletividade do corpo nacional.

Esse tecido discursivo se configurava a partir do olhar de intelectuais que se voltavam para as sociedades europeia e estadunidense, e enxergavam-se diante de uma linearidade histórica evolutiva em que o ápice seria a civilização europeia.

Enfim, educar era uma maneira de formar almas, seria uma forma de assimilar o diferente em um sujeito compatível com o comportamento que deveria reger o corpo nacional.

AGRADECIMENTOS

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) pelo apoio no desenvolvimento desta pesquisa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    O Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos foi criado em 1890, e Benjamim Constant deixou o cargo de ministro da Defesa para ocupar esse ministério. No ano em que assumiu o cargo, houve uma reforma do ensino para o Distrito Federal do Rio de Janeiro, conhecida como Reforma Benjamim Constant. Entre os aspectos mais relevantes, destaca-se a criação, no Distrito Federal, de escolas de 1º grau, que compreendiam alunos de 7 a 13 anos, e as de 2º grau, que contemplavam alunos dos 13 aos 15 anos. Além dessa mudança, ocorreu também a criação do Pedagogium, que ocupou lugar de destaque na reforma de ensino. Conforme diz Maria Luiza Marcílio, recorrendo ao texto desse documento oficial, o Pedagogium era “destinado a oferecer ao público e aos professores em particular os meios do material de ensino mais aperfeiçoado”, espécie de centro modelar de pesquisas de experimentações pedagógicas e difusor de melhoramentos do ensino (Marcílio, 2005, p. 132).
  • 2
    Ver: Baggio, 1998. Baggio, ao abordar o pan-americanismo, conjunto de políticas que visavam ao domínio dos Estados Unidos sobre os países americanos, objetivando aumentar a exportação de produtos estadunidenses para as Américas, perpassa pelos debates intelectuais sobre esse domínio. Entre esses, como a autora pontua, estavam: “De um lado, críticos da política expansionista dos Estados Unidos, como Eduardo Prado (A Ilusão Americana, 1893), Oliveira Lima (Pan-Americanismo, 1907), José Veríssimo (em vários artigos publicados no Imparcial e no Jornal do Comércio, no Rio de Janeiro) e Manoel Bomfim (A América Latina, 1905, e outras obras). De outro, defensores ardorosos do pan-americanismo, como Joaquim Nabuco (em discursos e artigos), Artur Orlando (Pan-Americanismo, 1906) e Euclides da Cunha (em artigos e cartas, mas sem o mesmo entusiasmo dos colegas), situando o tema como um dos mais frequentes do debate intelectual na virada do século” (Baggio, 1998, p. 52). Como Baggio pondera, a visão de mundo europeizante marcou o discurso de Prado, Oliveira Lima e Veríssimo, desvelando ressalvas sobre o “american way of life” (Baggio, 1998, p. 79).
  • 3
    Convém realçar que Veríssimo não se considerava um patriota na concepção política, dizendo que “ao menos não o quero ser na acepção política, assevandijado pelo uso desonesto com que com elle se qualificam os mais indignos republicos. Amo a minha terra, a minha gente (para dizer o meu sentimento na formula lapidar de Camões), mas amo-as sem os excessos e a indiscrição do que vulgarmente se chama patriotismo” (Veríssimo, 1906, p. XLVI). Veríssimo diferencia o patriotismo utilizado recorrentemente em discursos sem fundamento, recorrendo à expressão do humorista inglês Dr. Johnston, ao dizer que o “patriotismo é o último refúgio do velhaco”. Realça que o patriotismo seria uma virtude quando fosse “sincero, desinteressado e esclarecido”, ponderando que a educação nacional deveria “despender-se inteiramente de todo o sentimento de egoísmo collectivo, que no fundo, como demonstrou H. Spencer, e o sentimos todos, é o fundamento do patriotismo”. Ilustra esse pensamento recorrendo a um publicista americano que diz: “nós não somos filhos de nossa pátria; nós somos a nossa pátria”. (Veríssimo, 1906, p. XLVII).
  • 4
    Pierre Laffitte, sucessor oficial de Auguste Comte, tornou a sua casa o centro de um culto chamado positivismo ortodoxo, que “aceitava não só a doutrina do Cours de philosophie positive (1830-1842) mas também a ‘religião da Humanidade’ exposta no Système de politique positive ou Traité de Sociologie instituant la religion d l’Humanité (1851-54)” (Bosi, 2004BOSI, Alfredo. O positivismo no Brasil: uma ideologia de longa duração. In: PERRONE-MOISÉS, Leyla (Org.). Do positivismo à desconstrução: ideias francesas na América. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, p.17-48., p. 21).
  • 5
    Luís Bueno Horta Barbosa, positivista, se posicionou contra a proposta de extermínio dos indígenas feita por Heman von Ihering. Por meio de uma carta publicada primeiramente no jornal ‘Cidade de Campinas’, em 12/10/1908, e posteriormente no ‘Jornal do Comércio’, em 11/11/1908, Barbosa afirmou que era “um dever moral protegê-los e socorrê-los”. Além disso, também enfatiza que “certamente as ideias e os sentimentos nobre dos mais sábios e distintos patriotas do Brasil estavam mais próximo da solução do problema indígena do país do que o ‘materialismo sem ideais e sem entranhas do teorista do Museu Paulista’.” (Stauffer, 1960STAUFFER, David Hall. Origem e fundação do Serviço de Proteção aos Índios. Revista de História, São Paulo, n. 43, p. 165-183, jul./ago. 1960., p. 181-182).
  • 6
    A professora Leolinda Daltro, após permanecer quatro anos nas florestas de Goiás, visitando diversos povos indígenas, retornou ao Rio de Janeiro e relatou o abuso dos padres católicos na catequese indígena. Em contraposição à proposta de catequese indígena, decidiu fundar uma colônia indígena em Mato Grosso, próximo da divisa com o Pará, propondo educar leigamente os indígenas, com a finalidade de incorporá-los à sociedade. Apesar de sua proposta ter sido tratada com descaso pelo governo, Daltro continuou defendendo a fundação dessa associação, com o argumento de auxiliar e proteger os indígenas. Em 1906, realizou-se no Rio de Janeiro o Congresso Pan-Americano. Joaquim Nabuco, ocupando o cargo de presidente do Congresso, veio dos Estados Unidos para participar do evento. Na recepção preparada para recebê-lo, a professora Daltro aproveitou a oportunidade para protestar, diante da presença de sete indígenas, exigindo que “fossem concedidos aos índios os meios para que pudessem usufruir dos benefícios da civilização” (Gagliardi, 1989GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, 1989., p. 113). Nabuco “confessou à professora Daltro que a presença dos índios havia-se constituído na parte mais interessante da recepção e que ele admirava a sua vocação para educá-los”. Após o início do Congresso, a professora Daltro escreveu um documento a Nabuco, reivindicando uma educação leiga para os índios. Ele respondeu que, apesar de o assunto não ser de sua competência, iria “providenciar para que o panfleto fosse impresso e distribuído pelas diversas comissões que participavam do evento” (Daltro, 1920, p. 374-375, apud Gagliardi, 1989GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, 1989., p. 114).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2014
  • Aceito
    19 Out 2015
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