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Uma tradução do clássico de DeBoer e Lathrap: “O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo”

A translation of DeBoer and Lathrap’s classic “The making and breaking of Shipibo-Conibo ceramics”

Resumo

DeBoer e Lathrap discutem a indústria cerâmica dos Shipibo-Conibo do leste peruano, documentando a passagem de objetos gerados pelo seu sistema comportamental atual até sua incorporação ao registro arqueológico. Descrevem a procura por matéria-prima, a manufatura das vasilhas e sua distribuição dentro das habitações, assim como as funções primárias e secundárias das vasilhas e os padrões de descarte da cerâmica. Embora a classificação cerâmica não seja o principal objetivo dos autores, o texto fornece informações úteis sobre a taxonomia dos Shipibo-Conibo (em especial quanto à sua função) e sobre as variações produzidas pelas diferentes oleiras. Ao focar nas variações de uso e na longevidade dos vasilhames, como nos processos que transformam objetos cerâmicos em artefatos arqueológicos, o artigo contribui para uma crescente literatura voltada a iluminar os processos de formação do registro arqueológico, que tem implicações sobre a formulação do planejamento de estratégias de amostragem na Arqueologia (texto introdutório de Carol Kramer para a versão publicada em 1979).

Palavras-chave
Cerâmica Shipibo-Conibo; Processos de formação do registro arqueológico; Arqueologia comportamental

Abstract

DeBoer and Lathrap discuss the ceramic industry of the Shipibo-Conibo of eastern Peru, documenting the passage of objects from their context in a contemporary behavioral system to their incorporation into the archaeological record. They describe the procurement of raw materials, vessel manufacture, and distribution within households, the primary functions and the secondary uses of vessels, and the pattern of ceramic discard. While not primarily concerned with classification, the authors provide useful information about native taxonomy (particularly as it relates to vessel function), and about variations among potters. In focusing on variations in vessel use and longevity, and on the processes which transform ceramic objects into archaeological artifacts, the article contributes to a growing literature illuminating formation processes of the archaeological record, and has implications for the formulations of archaeological sampling design (introduction by Carol Kramer of the 1979 version).

Keywords
Shipibo-Conibo ceramics; Formation processes of the archaeological record.; Behavioral archaeology

NOTA DOS TRADUTORES

A necessidade de traduzir “The making and breaking of Shipibo-Conibo ceramics” ocorreu no momento em que os dois tradutores, professores novatos de disciplinas de análise cerâmica em cursos de Arqueologia, depararam-se com a falta de literatura especializada sobre o tema em língua portuguesa. A Arqueologia brasileira já produziu uma grande quantidade de estudos cerâmicos. A imensa maioria, entretanto, se resume a descrever e comparar elementos encontrados nos fragmentos arqueológicos. Pouco esforço foi feito no sentido de atravessar o imenso abismo entre o registro arqueológico e os processos de busca de matéria-prima, produção, uso e descarte dos vasilhames – o contexto sistêmico da Arqueologia Comportamental. São esses os processos que DeBoer e Lathrap discutem neste artigo.

“The making and breaking” é um clássico e, por isso, foi escolhido para ser traduzido, com o intuito de dar início ao esforço de preenchimento dessa lacuna literária. É um clássico porque possui utilidade múltipla e porque continua atual. O múltiplo advém da capacidade do artigo de subsidiar discussões sobre análise cerâmica, Etnoarqueologia, Arqueologia regional do alto Amazonas e desenvolvimento da Arqueologia Comportamental como uma escola teórica (Schiffer, 1987SCHIFFER, M. B. Formation process of the archaeological record. Salt Lake City: University of Utah Press, 1987.). É justamente em uma compilação de estudos buscando padrões de correlatos entre os comportamentos humanos e o registro arqueológico – “Ethnoarchaeology: implications of ethnology for archaeology”, editado por Carol Kramer (1979)KRAMER, C. (Ed.). Ethnoarchaeology: implications of ethnography for archaeology. New York: Columbia University Press, 1979. – que se encontra a versão original deste artigo. E é de Kramer o parágrafo introdutório do capítulo de DeBoer e Lathrap.

Ainda durante os anos 1950, muito anterior ao surgimento da Arqueologia Comportamental e à difusão dos estudos etnoarqueológicos, Lathrap (1962LATHRAP, Donald W. Yarinacocha: stratigraphic escavations in the Peruvian Montaña. 1962. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de Harvard, Cambridge, 1962., 1970a)LATHRAP, Donald W. The upper Amazon. London: Themes & Hudson, 1970a. integrava de maneira pioneira a visão das oleiras Shipibo e Conibo na interpretação das cerâmicas arqueológicas do alto Amazonas e demonstrava a complexa teia de possibilidades tecnológicas que os arqueólogos não levavam em conta nas suas análises. O texto “The making and breaking” é uma síntese dos estudos de Lathrap, em conjunto com um dos seus discípulos mais antigos e brilhantes: Warren DeBoer. Os trabalhos de Lathrap e DeBoer inauguram a Etnoarqueologia na floresta tropical, uma trilha seguida por muitos dos pesquisadores proeminentes na Arqueologia amazônica atual, como Eduardo Neves, no alto rio Negro; Michael Heckenberger, no alto Xingu; e, em especial, Fabíola Silva, que aplicou conceitos da Arqueologia Comportamental na compreensão da produção de artefatos cerâmicos dos grupos Asurini do Xingu.

A atualidade do artigo se deve, portanto, à sua capacidade de continuar influenciando os arqueólogos através do tempo. O esforço dos tradutores objetiva dar continuidade a essa influência nas novas gerações: um lembrete para que não esqueçam das oleiras por trás dos vasilhames e que a Arqueologia é muito mais complexa do que parece.

Agradecemos a Lavínia Fávero, pela revisão do português; a Eduardo Tamanaha e Erêndira Oliveira, pelo auxílio com as figuras; e aos Editores do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, pelo interesse na publicação.

O fazer e o quebrar da cerâmica Shipibo-Conibo1 1 Texto traduzido para o português por Fernando Ozorio de Almeida e Bruna Rocha. Este artigo foi originalmente publicado em: KRAMER, C. (Ed.). Ethnoarchaeology: implications of ethnography for archaeology. New York: Columbia University Press, 1979. p. 102-138.

Warren R. DeBoer, Donald W. Lathrap

O arqueólogo vive repelido pelo tempo. Nunca verá o comportamento cultural pretérito que busca compreender. Na ausência de uma máquina do tempo, a possibilidade de compreensão depende dos subprodutos gerados pelo comportamento cultural e da premissa de que existe uma padronização desses subprodutos, de maneira a permitir inferências sobre os comportamentos que os produziram. Entretanto, essa premissa pode ser reformulada como uma pergunta: qual é a natureza da relação entre o comportamento cultural e sua manifestação arqueológica? Uma questão que, talvez, não tenha recebido a devida atenção sistemática, merecida, dado seu status fundamental na Epistemologia Arqueológica (Ascher, 1961ASCHER, Robert. Analogy in archaeological interpretation. Southwestern Journal of Anthropology, Chiago, v. 17, n. 4, p. 317-325, 1961., 1962ASCHER, Robert. Ethnography for archaeology: a case study from the Seri Indians. Ethnology, Pittsburgh, v. 1, n. 3, p. 360-369, jul. 1962., 1968ASCHER, Robert. Time’s arrow and the archaeology of a contemporary community. In: CHANG, C. K. (Ed.). Settlement archaeology. Palo Alto: National Press Books, 1968. p. 43-52.; Chang, 1967CHANG, K. C. Major aspects of the interrelationship of archaeology and ethnology. Current Anthropology, Chicago, v. 8, n. 3, p. 227-234, jun. 1967.; David e Hennig, 1972DAVID, Nicholas; HENNIG, Hike. The ethnography of pottery: a Fulani case seen in archaeological perspective. Boston: Addison-Wesley Pub. Co, 1972. p. 1-29. (McCaleb Module in Anthropology, v. 21).; Schiffer, 1972SCHIFFER, Michael B. Archaeological context and systemic context. American Antiquity, Washington, v. 37, n. 2, p. 156-165, abr. 1972., 1975SCHIFFER, Michael B. Archaeology as behavioral science. American Anthropologist, Arlington, v. 77, n. 4, p. 836-848, dez. 1975.).

Na prática, muitas de nossas tentativas de compreender o passado são sabotadas pelos nossos ensaios de estabelecer comparações entre fenômenos dissimilares. Comparamos observações etnográficas do comportamento atual com observações arqueológicas dos vestígios remanescentes de comportamentos culturais pretéritos. Se nosso objetivo é a compreensão do comportamento cultural no passado, tal comparação supõe a existência de uma correspondência relativamente explícita entre um comportamento e sua resultante manifestação arqueológica. Se demonstrado que tal correspondência não se aplica à maioria dos casos, o arqueólogo se encontra em uma de duas situações peculiares. Ou se torna praticante de um uniformitarismo exagerado, no qual o comportamento do passado é “lido” a partir do nosso conhecimento sobre comportamentos do presente, ou deve renunciar à tentativa de compreender o comportamento como um todo e, em vez disso, engajar-se em uma espécie de “física artefatual”, na qual a forma e distribuição dos subprodutos comportamentais são medidas dentro de um vácuo comportamental. Esse é o tradicional dilema de escolher entre uma busca significativa baseada sobre um método falho e outra metodologicamente sólida, mas cujo objetivo é trivial.

A importância de estudar o registro arqueológico de comunidades do presente é evidente quando consideramos esse dilema. Como tanto o comportamento quanto o seu registro arqueológico são observáveis, é possível especificar a relação entre ambos em vez de assumir que o nexo é de correspondência ou “fossilização”. Tal especificidade fornece a base para a comparação de unidades de origem similar: os registros arqueológicos do passado e do presente podem ser vistos como transformações dos respectivos sistemas comportamentais que os produziram.

No presente artigo, apresentamos um esboço sintético e seletivo da indústria cerâmica dos índios Shipibo-Conibo da Amazônia peruana. Nosso objetivo é especificar algumas relações entre comportamentos e padrões formais e de distribuição manifestados em uma classe particular de subprodutos comportamentais. Para tanto, consideramos útil organizar nossas observações de acordo com o modelo geral que Schiffer (1972)SCHIFFER, Michael B. Archaeological context and systemic context. American Antiquity, Washington, v. 37, n. 2, p. 156-165, abr. 1972. desenvolveu para o fluxo de artefatos através de sistemas culturais. O modelo de Schiffer, encontrado em uma versão modificada na Figura 1, delineia a passagem dos artefatos do seu contexto em um sistema comportamental para seu contexto no registro arqueológico em termos de uma sequência de estágios: a busca por matéria-prima; a manufatura que transforma a matéria-prima em uma forma cultural; uso e reutilização do artefato; e, finalmente, o descarte que forma o refugo do registro arqueológico. No entanto, primeiro devemos apresentar de forma resumida os Shipibo-Conibo e sua cerâmica.

Figura 1
Fluxograma que representa a passagem de artefatos por um sistema cultural. Nódulos numerados indicam pontos nos quais a armazenagem (deslocamento temporário) ou transporte (deslocamento espacial) podem ocorrer. Modificado a partir de Schiffer (1972)SCHIFFER, Michael B. Archaeological context and systemic context. American Antiquity, Washington, v. 37, n. 2, p. 156-165, abr. 1972..

OS SHIPIBO-CONIBO E SUA CERÂMICA

Os Shipibo-Conibo habitam a floresta tropical que flanqueia o rio Ucayali, um grande afluente do rio Amazonas, que corre para o norte ao longo do sopé dos Andes peruanos (Figura 2). Os Shipibo ocupam o Ucayali central, ao norte do rio Pachitea, e os Conibo, seus vizinhos cultural e linguisticamente próximos, são encontrados, em especial, no alto Ucayali, ao sul do Pachitea. Os assentamentos, em geral, podem ser encontrados nos terraços que margeiam a calha do Ucayali ou em barrancos de terra firme, na beira das várzeas, áreas que garantem o acesso a terras férteis para a agricultura e a fauna aquática ribeirinha, que é abundante nas planícies de inundação. Grandes afluentes do Ucayali, como os rios Pisqui e Tamaya, também são ocupados por eles. Os produtos básicos de sua subsistência incluem variedades de banana, mandioca, milho e peixe. O tamanho dos assentamentos varia muito. Cerca de mil Shipibo residem em San Francisco de Yarinacocha, uma vila localizada a apenas duas horas da cidade peruana de Pucallpa. Comunidades medianas, como a de Panaillo, com cerca de cem habitantes (Bergman, 1974BERGMAN, Roland. Shipibo subsistence in the upper Amazon rainforest. 1974. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of Wisconsin, Madson, 1974., p. 26), ou Shahuaya, com uma população de 55 pessoas (Bodley, 1967BODLEY, John H. Development of an intertribal mission station in the Peruvian Amazon. 1967. 137 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – University of Oregon, Eugene, 1967., p. 12), são mais comuns. Comunidades pequenas, exemplificadas por Iparia e Sonochenea, no alto Ucayali, são compostas por duas ou três residências matrilocais, cada uma ocupada por uma irmã, seu marido e filhos. Unidades semelhantes, com poucas moradias habitadas por um núcleo de mulheres relacionadas e suas famílias, também ocorrem nos assentamentos maiores. A população total dos Shipibo-Conibo é estimada em quinze mil pessoas (Faust, 1973FAUST, Laura. Lecciones para el aprendizaje del idioma Shipibo-Conibo. Pucallpa: Instituto Lingüístico de Verano, 1973. (Documento de Trabajo I).).

Figura 2
A bacia do alto e médio Ucayali com a localização dos sítios arqueológicos da Tradição Cumancaya, dos assentamentos modernos dos Shipibo-Conibo discutidos no texto, e das fontes de determinadas matérias-primas para a produção cerâmica (adaptado do original por Eduardo Tamanaha).

Os Shipibo-Conibo produzem uma cerâmica estilisticamente distinta, que remete aos antecedentes arqueológicos. Características numerosas e específicas relacionam esse estilo à cerâmica da tradição Cumancaua, bem estabelecia no Ucayali ao fim do primeiro milênio da era cristã (Lathrap, 1970aLATHRAP, Donald W. The upper Amazon. London: Themes & Hudson, 1970a.; Raymond et al., 1975RAYMOND, Scott J.; DEBOER, Warren J.; ROE, Peter G. Cumancaya: a Peruvian archaeological tradition. Calgary: University of Calgary, Department of Archaeology, 1975. (Occasional Papers, n. 2).). Apesar da crescente disponibilidade de recipientes de metal e de plástico, além de um mercado turístico em expansão que busca o artesanato indígena, a tradição cerâmica permanece significativamente intacta. A maioria das mulheres Shipibo-Conibo é oleira, e a maior parte da cerâmica é produzida para ser utilizada na habitação da artesã.

A oleira Shipibo-Conibo distingue duas classes básicas de artefatos cerâmicos: vasilhames para cocção, ou melhor, para serem levados ao fogo, e aqueles que não entrarão em contato com o fogo (Figura 3). Os vasilhames para cocção incluem duas formas distintas: as panelas2 2 DeBoer e Lathrap fazem um uso mesclado dos nomes dos vasilhames, utilizando termos em Pano (mapu ëite, shrania; vide nota de rodapé 17), em inglês (beer mugs e food bowls) e em espanhol (ollas). Na tradução, optou-se por manter os nomes nativos e traduzir os termos em inglês e espanhol para genéricos similares em português (vide as formas na Figura 3) (nota dos tradutores, doravante NT). , ou recipientes para cozinhar (kënti)3 3 Aqui e na discussão que se segue, os termos utilizados pelos Shipibo-Conibo serão apresentados entre parênteses. Optou-se por utilizar o termo traduzido ao longo do texto e nas figuras por uma questão didática, ainda que, nem sempre, a tradução seja o equivalente preciso do significado Shipibo-Conibo. , e os sem fundo (mapú ëite), que são utilizados como um forno para a queima de cerâmica pintada. As panelas aparecem em três tamanhos, cada uma designada a um propósito distinto. Panelas grandes (kënti ani) são utilizadas com mais frequência para a fermentação4 4 Os autores usam o termo “beer”, cuja tradução literal seria “cerveja”. Na tradução, optou-se por utilizar o termo mais neutro, “fermentados”. Nas línguas Pano, o termo para as bebidas fermentadas é masato (ou mashato). Na Amazônia ocidental, utiliza-se muito o termo “chicha”. No restante da Amazônia, o termo mais comum é “caxiri” (NT). de bebidas alcoólicas, que são consumidas em grandes quantidades. As de tamanho mediano (kënti anitama) são o vasilhame padrão para a cocção das refeições diárias, que, em geral, consistem em peixe cozido e banana ou mandioca. As pequenas (këmti vacu) são destinadas a esquentar medicamentos contra artrite e outras doenças.

Figura 3
Classificação paradigmática do estilo cerâmico Shipibo-Conibo, modificada a partir de Lathrap (1970b)LATHRAP, Donald W. A formal analysis of the Shipibo-Conibo pottery and its implication for studies of Panoan prehistory. In: ANNUAL MEETING FOR AMERICAN ARCHAEOLOGY, 35., México. Anais… México: AIA, 1970b. (Unpublished manuscript).. Legenda: X = elementos mais presentes; O = opções frequentemente utilizadas; P = vasilhames pequenos; M = vasilhames médios; G = vasilhames grandes; W = sobre engobo branco; B = opção na base.

Os vasilhames que não são destinados à cocção podem ter quatro formas: jarros (chomo), canecos de fermentado (këmpo), tigelas de comida (këncha) ou uma forma denominada shrania. Os jarros são trimodais em tamanho. Os grandes são o recipiente no qual se costuma servir fermentados durante as frequentes fiestas. São utilizados da mesma maneira que nossa concha para ponche. Os de tamanho médio são, primeiramente, receptores para carregar e armazenar água. Os pequenos servem de cantil para carregar bebidas em viagens fluviais. Assim como as panelas e jarros, os canecos de fermentado podem ter três tamanhos: o caneco grande “comunal”, utilizado durante as fiestas, quando é passado entre as pessoas; a cuia mediana, utilizada no consumo diário dos fermentados; e a cuia pequena, levada em viagens, invertida, com frequência, sobre um jarro pequeno. A terceira categoria de vasilhames que não servem para a cocção são as tigelas de comida. Durante as refeições, o alimento é servido nessas tigelas, e as pessoas, com as mãos, se servem desse recipiente comum. Em geral, homens adultos comem em uma tigela. Mulheres e crianças sentam em separado e comem em outra.

A última categoria de vasilhame é a shrania, que, embora hoje rara, possui uma variedade de usos tradicionais, incluindo seu emprego como recipiente de serviço, ao transferir os fermentados de jarros grandes para canecos5 5 Outras formas cerâmicas, não representadas no nosso censo cerâmico de 1971, foram importantes outrora. Podem-se incluir nessa categoria as tigelas (canecos de fermentado) fálicas e zoomórficas, criadas para serem suspensas por um aparato semelhante a uma vara de pescar, com a finalidade de retirar fermentados de vasilhames grandes (Tessmann, 1928, tabela 58). Essas tigelas individuais eram utilizadas em situações de fiestas por crianças com menos de 12 anos e pelos idosos. A lógica dos Shipibo-Conibo para juntar essas gerações alternadas é de que os mais novos e os mais velhos poderiam babar nas tigelas comunais utilizadas pelo resto da comunidade. .

BUSCA POR MATÉRIA-PRIMA

Ao produzir sua cerâmica distinta, a oleira Shipibo-Conibo explora uma variedade de matérias-primas distribuídas ao longo de centenas de quilômetros do Ucayali (Lathrap, 1973LATHRAP, Donald W. The antiquity and importance of long-distance trade relations in the moist tropics of Pre-Columbian South America. World Archaeology, Abingdon, v. 5, n. 2, p. 170-186, out. 1973.; DeBoer, 1975DEBOER, Warren R. Aspects of trade and transport on the Ucayali River, Eastern Peru. In: CONFERENCE ON ANTHROPOLOGICAL RESEARCH IN AMAZONIA, 1., 1975, Pennsylvania. Anais… Pennsylvania: City University of New York, 1975.; Myers, 1976MYERS, Thomas P. Isolation and ceramic change: a case study from the Ucayali River, Peru. World Archaeology, Abingdon, v. 7, n. 3, p. 333-351, fev. 1976.). A Tabela 1 lista as fontes das matérias-primas reunidas por uma série de oleiras em sete assentamentos. A localização de muitas dessas fontes se encontra plotada na Figura 2. As argilas aluviais utilizadas para a manufatura cerâmica são, em geral, obtidas localmente – em um raio de alguns quilômetros do vilarejo da oleira. Na fonte, grandes partículas vegetais e inclusões de pedras são retiradas da argila com as mãos. O material é, então, embalado em amontoados do tamanho de bolas de vôlei. O barro é transportado de volta para a vila e armazenado dessa forma. A maioria das oleiras faz a distinção entre três tipos de argila, e cada uma delas possui um uso específico para a manufatura cerâmica: a argila preta (huiso mapú), rica em matéria orgânica; a branca, de caulim (oso mapú); e a vermelha (oshin mapú).

Tabela 1
Fontes de matéria-prima utilizadas por diversas oleiras Shipibo-Conibo. Legenda: * = Informação fornecida por Roberta Campo.

Além dessas três argilas básicas, as oleiras Shipibo-Conibo empregam dois principais materiais como tempero (não listados na Tabela 1). Um deles é a casca silicosa de certas árvores, torrada e moída (Licania spp.), denominada mui pelos Shipibo-Conibo e, com frequência, conhecida como caraipé (Carneiro, 1974CARNEIRO, Robert L. “Caraipé”: an instance of the standardization of error in Archaeology. Journal of the Steward Anthropological Society, Urbana, v. 6, n. 1, p. 71-75, 1974.). As árvores de caraipé, apesar de distribuídas esporadicamente, em geral encontram-se a meio dia de viagem do assentamento da oleira. Tendem a ocorrer em terra firme, longe dos rios. Tiras da casca são trazidas de volta à vila em uma cesta. A casca pode ser armazenada sem ser modificada ou ser processada imediatamente para o uso. O processo envolve torrá-la e pulverizá-la torrada com um pilão, para então peneirá-la com um tecido de trama solta. O tempero resultante costuma ser armazenado em um vasilhame antigo até que haja necessidade dele.

O segundo tempero principal é feito de cacos moídos (këng-këshr). O tempero de caco moído consiste na reciclagem de cerâmica moderna quebrada ou, quando disponível, de cerâmica arqueológica. Há uma preferência pela última – a cerâmica antiga é tida como mais macia e mais fácil de ser pulverizada –, e a presença de uma lixeira arqueológica é um dos fatores que influenciam a localização de um assentamento. Os assentamentos modernos de San Francisco de Yarinacocha, Iparia e Shahuaya encontram-se todos sobre depósitos arqueológicos com fragmentos. O tempero de caco moído é produzido em três etapas: os fragmentos cerâmicos são quebrados em pequenos pedaços com um percutor (que é um item importado); os fragmentos pulverizados são moídos em um almofariz feito a partir de um tronco com uma depressão, em geral a partir da madeira da capiruna (Calycophyllum spruceanum) e um pilão de pedra; o tempero granular resultante pode ser peneirado através de um tecido com trama solta. Assim como o caraipé, o caco moído costuma ser armazenado em um pote antigo.

Uma terceira variedade de tempero, de menor importância e uso mais recente, consiste nas cinzas de madeira da árvore shana. O Shana poto, como é chamado, é considerado um substituto inferior do caraipé e utilizado primariamente na confecção de vasilhames para turistas.

Em contraste com as argilas e temperos, que são utilizados em grandes quantidades e costumam ser obtidos localmente, outros componentes cerâmicos são, em geral, obtidos a partir de grandes distâncias. Três principais pigmentos minerais fornecem os engobos e as pinturas utilizadas na decoração cerâmica: um pigmento branco de caulim (maosh); um ocre, cuja queima o deixa vermelho (mashinti); e um pigmento negro de manganês (itanhuana). Desses, o pigmento branco é o mais limitado em sua distribuição, encontrado apenas nas proximidades de Canshauaya, no baixo Ucayali, e em Henespanshea, um tributário oriental do alto Ucayali (Figura 2)6 6 Um pigmento branco de classe inferior, não representado na amostra cerâmica discutida neste trabalho, ocorre, supostamente, em Imariacocha (Lathrap, 1973, p. 172). . O depósito de Canshahuaya pode ser descrito como uma lente de argila branca intercalada entre camadas de argila bruno-avermelhada (Guizado e Girard, 1966GUIZADO, Jorge; GIRARD, D. Reconocimiento por Calizas en la Region de Orellana-Cushabatay. Lima: Comisión Carta Geológica Nacional/Serviço de Geologia y Mineria, 1966. (Compilación de estudios geológicos, Boletim, v. 13). 278 p., p. 268). Em anos recentes, de acordo com Spahni (1966, p. 101)SPAHNI, Jean-Cristian. La cerámica popular en el Perú. Lima: Peruano Suiza, 1966., os depósitos de maosh estão situados em fazendas, e um homem Shipibo ou Conibo pode trocar dois dias de trabalho por três bolas de pigmento.

O pigmento vermelho é menos restrito em sua distribuição e possui duas variedades: uma variante amarelada limonítica (kana mashinti ), encontrada em Contamana, Utoquinea e Henepanshea; e uma variante de cor avermelhada (shahuán mashinti), cuja maior fonte está localizada em Urubamba. Diferente dos pigmentos branco e vermelho encontrados em depósitos de argila, o itanhuana ocorre em pequenos conglomerados expostos em sedimento submerso ou úmido nas margens de rios tributários. É necessário armazená-lo em água ou embrulhá-lo em um pano umedecido para que não perca rapidamente suas propriedades pigmentares.

Outras matérias-primas também são necessárias para a manufatura de cerâmica. Duas variedades de resina costumam ser importadas: yomosho (Protium spp.), que confere um aspecto esmaltado a superfícies com engobo branco, e sënpa (Hymenaea courbaril), que impermeabiliza o interior de vasilhames feitos para conter líquidos. Rochas são raras no Ucayali, e seixos de rio (rëncati), geralmente de cor escura, utilizados para polir a cerâmica, são bens de valor. Tais seixos têm ocorrência limitada: as praias do Aguaitía e Tahuanía são as principais fontes, segundo nossos informantes Shipibo-Conibo.

A aquisição de matérias-primas mais exóticas, utilizadas na produção cerâmica, é possibilitada pela ocupação Shipibo-Conibo na calha do Ucayali, uma “estrada” que facilita o transporte de longa distância. Tanto os Shipibo quanto os Conibo são grandes viajantes, e é comum observá-los no Ucayali navegando em suas tradicionais canoas ou em barcos a motor modernos. Durante nossa estada em agosto de 1971, por exemplo, nossos anfitriões Shipibo, em San Francisco de Yarinacocha, eram visitados com frequência por amigos e parentes de localidades próximas, como do rio Utoquinea, ou de distâncias consideravelmente maiores, como dos rios Pisqui, Tamaya e Shahuaya. As oleiras de San Francisco não raro visitavam parentes em Imaríacocha, no rio Tamaya, em parte para obter resinas. Uma rede de trocas informal como essa é suficiente, por si só, para a circulação de grande parte das matérias-primas utilizada na manufatura cerâmica. Além disso, é comum os homens viajarem grandes distâncias para operações de corte de madeira durante o período chuvoso, de novembro a abril. Materiais para a produção cerâmica são, muitas vezes, obtidos durante esse emprego sazonal.

Portanto, apesar de a cerâmica elaborada que incorpora ingredientes amplamente dispersos nem sempre resultar da ocupação da calha principal do Ucayali pelos Shipibo-Conibo, o processo torna-se possível graças a essa ocupação, e enfatiza o fato de que as várzeas, além de ideais para a pesca e agricultura, conferem acessibilidade a uma extensa zona de recursos, flanqueando o Ucayali e seus principais afluentes.

MANUFATURA

Um estudo detalhado da manufatura cerâmica dos Shipibo-Conibo requer um tratamento detalhado em monografia. Aqui, podem-se apresentar apenas algumas observações. A cerâmica pode ser feita na casa da oleira ou em uma oficina construída para atender a essa função. Os meses secos, de maio a outubro, são os preferidos para a manufatura cerâmica, embora o processo possa ocorrer ao longo do ano. São dois os principais fatores que contribuem para essa sazonalidade: a submersão dos depósitos de argila e a menor quantidade de dias ensolarados adequados para a secagem da cerâmica durante o período das cheias.

A relação entre os volumes de argila e o tempero varia, de forma consistente, entre dois e três. Entretanto, as maneiras que diferentes argilas e temperos são misturados dependem do tipo de vasilhame a ser feito. Recipientes não destinados à cocção – incluindo jarros, canecos de fermentado ou tigelas de comida e shrania – são preferencialmente feitos a partir da mistura de partes iguais de argilas branca e vermelha, temperadas com duas porções de caco moído para uma de caraipé. Vasilhames para cocção são produzidos segundo uma receita mais complicada. Nas panelas, a argila escura temperada com duas porções de caraipé para uma de caco moído costuma ser utilizada para a base e o bojo do vasilhame, e o pescoço do vasilhame é, em geral, feito com argila vermelha temperada com proporções inversas de caraipé e caco moído. Essas regras ou receitas ideais para combinar argilas e temperos, no entanto, nem sempre são cumpridas e, em alguns casos, não são guias confiáveis do comportamento efetivo das oleiras.

As oleiras de Charashmaná do rio Pisqui, por exemplo, usam somente uma argila, e apenas duas argilas são utilizadas em Sonoshenea e Iparia (Tabela 1 e Figura 4). Em San Francisco, misturas entre argila e tempero variam de oleira para oleira e de ocasião para ocasião. A composição da argila para vasilhames não destinados à cocção é especialmente variável. Conforme demonstrado na Figura 4, apenas seis de 24 instâncias observadas se conformam ao ideal expresso de partes iguais de argilas vermelhas e brancas; oito casos representam simplificações dessa fórmula e consistem apenas de argila vermelha ou branca; em sete casos, a argila negra é substituída por argila vermelha ou branca, e em três casos observamos a argila negra ser adicionada a ambas as argilas vermelha e branca. Mesmo que simplificações e substituições possam refletir a indisponibilidade dos materiais prescritos no momento da manufatura, não viciando, assim, a “regra”, é difícil fazer tal inferência com base só na cerâmica. Para fins arqueológicos, a composição da argila seria mais bem considerada como um conjunto variado, contendo diferentes misturas de argila vermelha, branca e preta. Por outro lado, regras para a composição da argila e tempero em recipientes destinados à cocção são traduzidas de forma mais consistente em comportamentos realizados.

Figura 4
Composição da argila e do tempero nos vasilhames cerâmicos feitos por uma série de oleiras Shipibo-Conibo.

A construção ocorre por meio da sobreposição de roletes. A junção dos roletes, o ato de dar forma ao vasilhame em construção e o alisamento da superfície são efetuados com a utilização de raspadores com formato oval (shapa), obtidos a partir de cascas de cabaça, cortadas com facão, cujas bordas são polidas com um osso do peixe paiche (Arapaima gigas), que executa uma ação raspadora7 7 Conchas e fragmentos que sofreram abrasão nas quebras, usados como raspadores de cerâmica, também são relatados (Farabee, 1915, p. 94; Greg Roberts, comunicação pessoal). . O processo de construção é, evidentemente, um comportamento direcionado a um objetivo que culmina na construção de um vasilhame em particular. A visão da oleira desse processo é a de uma sequência de escolhas, resumida no diagrama na Figura 3: a escolha das formas do fundo (poinke), da base (chipón), do bojo (poro), do pescoço (tëshro) e da borda (a kësha, borda não modificada, versus a këshpa, borda extrovertida).

O tratamento de superfície e a decoração variam de acordo com a forma do vasilhame. A decoração de recipientes para cozinhar é restrita a técnicas de manipulação da superfície, tais como a incisão (shëpamán aça), o ponteado (chacha) e os digitados (mëquëmán mëia); superfícies internas podem ser esfumaradas8 8 Tratamento também conhecido como enegrecimento ou brunidura (NT). após a queima9 9 Em tempos antigos, quando as cerimônias de puberdade feminina ainda eram muito comuns, a grande panela utilizada para cozinhar o porco servido na cerimônia era pintada. Em geral, as panelas nunca são pintadas, e essa prática pode ser razoavelmente entendida como uma inversão sagrada da tradicional gramática decorativa. . Vasilhames não destinados à cocção são pintados. O pescoço exterior e os segmentos do bojo dos jarros e dos shrania são, em geral, pintados com vermelho e preto sobre um engobo branco; as faces internas costumam ser revestidas com resina sënpa após a queima. Canecos de fermentado são tratados de maneira similar. A face exterior das tigelas de comida é, em geral, pintada de branco sobre um engobo vermelho; seus interiores podem ser esfumarados ou pintados sobre uma superfície de cor ocre natural. Tigelas de comida com o interior esfumarado são utilizadas para ensopados, sopas e outras comidas “molhadas”, e as com a face interna simples ou pintadas são utilizadas para peixe assado, banana-da-terra e outros alimentos “secos”. Por vezes, uma tigela de comida pode receber engobo branco e ter a mesma forma que o caneco de fermentado (uma variante denominada, com propriedade, kënpo këncha, caneco de fermentado para comida). Nesse caso, a face interna – pintada ou esfumarada, sem resina, nunca encontrada nesses canecos – permanece como característica definidora10 10 Superfícies com resina foram notadas na cerâmica arqueológica da tradição Cumancaya (DeBoer, 1972, p. 36; Roe, 1973, p. 99), mas, em geral, não se preservam. Os pigmentos possuem maior visibilidade arqueológica. Vasilhames com engobo, pintura vermelha e bolotas de argila com retiradas [para barbotina, NT] costumam ocorrer em montículos de sítios arqueológicos no Ucayali (Roe, 1973, p. 96). Um pigmento preto com aparência de itanhuana também foi recuperado (DeBoer, 1972, p. 18-19). O pigmento branco maösh, utilizado pelos Shipibo-Conibo, desaparece com mais facilidade, e sua representação arqueológica é, indubitavelmente, muito deflacionada em relação à sua frequência de uso (Myers, 1970, p. 80-81). .

A cerâmica é queimada de diversas maneiras. As tigelas de comida, os canecos de fermentado, as shrania e os jarros pequenos são queimados individualmente em uma mapu ëite. O vasilhame não queimado é colocado emborcado dentro da mapú ëite e coberto com cinzas de madeira (chimapú). Hoje, a mapu ëite, em geral sustentada por uma grelha de metal, é colocada sobre o fogo. Panelas pequenas e médias são comumente queimadas em uma estrutura especial, que consiste em dois galhos grosso paralelos, entre os quais a panela ou as panelas são colocadas e cobertas por uma pirâmide de combustível de casca de árvore (otukuru) ou cana (tohua), disposta sobre cada um dos vasilhames. Grandes panelas ou jarros são sempre queimados individualmente. O vasilhame, emborcado e sustentado por um trípode de potes velhos, latas de metal ou tijolos, costuma ser aquecido por um fogo baixo feito em uma cova rasa e pequena. Após esta queima preparatória, a queima final envolve cobrir o vasilhame com uma pirâmide de pedaços de casca de árvore ou de tiras de cana, sendo esses os combustíveis preferidos. Resinas são aplicadas imediatamente após a queima. Enquanto o vasilhame ainda está quente o suficiente para derreter resinas, é realizado o revestimento da superfície apropriada, com a aplicação de uma bola de yomosho ou sëmpa, afixada à extremidade de um cabo de costela de peixe-boi, porco-do-mato ou vaca.

A cerâmica é, em geral, queimada em uma fogueira especial perto da casa da oleira ou da oficina, mas às vezes o mapú ëite pode ser utilizado sobre uma fogueira comum de cozinha. Diversas concentrações de cinzas podem ser avistadas no entorno de uma habitação Shipibo-Conibo, cada uma delas representando um episódio ou um conjunto de episódios de queima.

O tempo investido na manufatura varia de acordo com a oleira e com a forma do vasilhame. A Tabela 2 apresenta o tempo investido por uma oleira na produção de cinco vasilhames. O processo foi observado do começo ao fim. O tempo de secagem não foi incluído. Conforme esperado, quanto maior a superfície do vasilhame, maior o tempo despendido na construção dos roletes, na raspagem, no polimento e na pintura. A Tabela 2 também aponta para o fato de que vários vasilhames costumam ser feitos em um só momento.

Tabela 2
Tempo investido da produção de uma série de vasilhames cerâmicos. Legenda: * Não inclui o tempo de amassamento.

Apesar de a manufatura cerâmica ser primeiramente uma empreitada individual, às vezes ocorre de duas ou três mulheres de uma mesma habitação cooperarem em determinadas fases do processo. Elas podem se alternar no polimento ou até na decoração e trabalhar juntas na queima de um jarro grande ou panela.

USO

A maioria dos vasilhames é utilizada nas moradias onde foram fabricados. Exceções notáveis são as cerâmicas feitas para serem vendidas11 11 Em muitas comunidades, esse panorama sofreu uma dramática transformação nas últimas décadas do século XX, quando começou a haver uma demanda internacional pela cerâmica Shipibo-Conibo. Em muitos casos, objetivando o aumento da produtividade, foram estabelecidas linhas de produção dos vasilhames, alterando drasticamente uma tradição milenar de modos de fazer cerâmica (NT). . Em um censo sobre a cerâmica realizado com 18 moradias em 1971, essa categoria abrangeu 34 de um total de 320 vasilhames (Tabela 3). O maior mercado da cerâmica Shipibo-Conibo provém dos turistas12 12 Foi apontado por Lathrap (1970c) que a cerâmica produzida pelos Shipibo para o turismo é facilmente distinguível da produzida para uso próprio. . Também há demanda por jarros pequenos e médios em casas não indígenas locais, onde são utilizados para armazenar água. Dos 286 recipientes listados na Tabela 3, utilizados pelos próprios Shipibo-Conibo, apenas três foram importados, e nove foram feitos em diferentes moradias dentro da comunidade. Entre esse último conjunto, três eram jarros grandes emprestados para uma residência anfitriã de uma fiesta, que precisava de mais recipientes para armazenar fermentados. Quatro eram denominados pasqua këncha, uma variedade especial de tigela para comida utilizada em uma fiesta durante o feriado de Páscoa. Feitas pelas mulheres da casa anfitriã, essas tigelas são presenteadas às mulheres de outras casas que ajudaram na preparação dos alimentos e dos fermentados consumidos durante a fiesta.

Tabela 3
Censo cerâmico de diversas casas Shipibo-Conibo.

Quando não estão em uso, os vasilhames são, em geral, guardados em prateleiras suspensas por caibros de madeira ou em estruturas especiais fora de casa. Vasilhas pesadas, como os recipientes grandes e panelas, costumam ficar no piso de chão batido da cozinha – uma estrutura externa à casa – ou sob o chão elevado das casas.

O censo tabulado na Tabela 3 não sugere nenhuma correlação entre o tamanho ou a composição de uma residência e o número de vasilhames cerâmicos. Um fator que, provavelmente, ofusca qualquer tipo de correlação é a substituição diferenciada de vasilhames cerâmicos por panelas de alumínio e tigelas esmaltadas. Recipientes de metal são hoje encontrados em quase todas as casas. No entanto, não temos informações sobre sua presença numérica. Um segundo fator é que a frequência dos vasilhames cerâmicos não é diretamente influenciada pelas necessidades imediatas da casa. No vilarejo Conibo de Iparia, por exemplo, pelo menos metade dos recipientes inteiros estava guardada nas prateleiras para substituições futuras ou como vasilhas destinadas às “ocasiões especiais”, com disponibilidade imediata para servir visitas. A etiqueta tradicional exige que cada casa possua um ou mais canecos de fermentados novos. Quando um visitante chega pela primeira vez em uma casa, lhe é servida a bebida fermentada em um desses objetos. Seria uma ofensa para a visita, e um reflexo da competência da anfitriã, se o caneco não tiver aspecto de recém-fabricado. Outros fatores também se aplicam a casos individuais. Oleiras hábeis produzem mais cerâmicas do que as menos talentosas. A produção de mulheres em fase de amamentação tende a ser menor do que a de oleiras sem prole ou com filhos mais velhos, que demandam menos atenção. A quantidade de vasilhas encontrada em diferentes residências reflete, portanto, uma série de variáveis, além do número de ocupantes13 13 Na cultura tradicional dos Shipibo-Conibo, a maior instituição que afetava as frequências cerâmicas era a cerimônia de puberdade das meninas. Ainda por volta de 1955, até cerca de metade da produção e quebra de cerâmica era diretamente associada a essa cerimônia e ao entretenimento necessário de parentes e amigos distantes. Toda a cerâmica utilizada nesses eventos precisava ser nova. O número de vasilhas em habitações de famílias anfitriãs logo antes das cerimônias poderia ser dez ou vinte vezes maior do que o montante presente em geral. A maior parte dos canecos de fermentado e das tigelas de comida costumava ser quebrada nos três dias de fiesta, em especial nas brigas etílicas culminantes em uma fiesta bem sucedida. Essa cerâmica era quebrada no mesmo espírito que taças de champanhe eram destruídas pelos ingleses em ocasiões especiais. Em 1971, no período em que as observações nas quais este trabalho se baseia foram realizadas, a cerimônia de puberdade representava, em grande parte, uma cultura memorial. .

Conforme apontado, cada forma de vasilhame Shipibo-Conibo é associada a uma determinada função, fato que fica evidente nas nossas denominações “tigela de comida”, “caneco de fermentado” etc. Na maioria dos casos, essa série de usos ideais é um indicador razoável dos usos de fato. Entretanto, não abrange os inúmeros usos subsidiários e secundários aos quais os vasilhames podem atender. A Figura 1 mostra as principais maneiras que um recipiente pode ser modificado para prolongar ou alterar seu uso. A manutenção se refere aos reparos ou outras modificações que permitem o uso contínuo no mesmo conjunto de atividades. A ciclagem lateral remete ao reuso das vasilhas em uma nova série de atividades. A reciclagem constitui caso especial de ciclagem lateral, em que os fragmentos de potes se tornam ingredientes para a fabricação de novos vasilhames cerâmicos.

Existem duas técnicas principais para o reparo de vasilhas danificadas e ambas são empregadas no conserto de rachaduras na borda do vasilhame. Na primeira, a parede do recipiente cerâmico em qualquer um dos lados da rachadura é perfurada, e um fio – ou, quando disponível, um pedaço de arame – é perpassado pelos furos e amarrado para segurar a quebra. Na segunda, utiliza-se uma cola de resina para vedar a rachadura. A limpeza dos vasilhames se dá pela lavagem com água. As panelas podem ser limpadas com areia.

A Tabela 4 resume os vários usos aos quais 315 vasilhames foram submetidos durante o período de observação14 14 A Tabela 4 inclui informação sobre todos os vasilhames cujo uso foi observado. Essa amostra não coincide inteiramente com a cerâmica tabulada no censo apresentado na Tabela 3. . Cada um desses objetos pode servir como recipiente de uso genérico. Conforme esperado, jarros médios contêm água proveniente de um rio ou lago próximo ou, em casos mais raros, água coletada da chuva recentemente. Jarros grandes, em geral, contêm fermentados. Várias outras funções dos recipientes, no entanto, não são relacionadas de maneira óbvia às funções primárias citadas. Demais exemplos de ciclagem lateral incluem o uso de panelas ou jarros como suportes para vasilhas e de fragmentos grandes de panelas como assadores15 15 Esse uso foi descrito por Tessmann (1928, p. 146) há meio século. , a conversão de panelas grandes ou médias em poleiros de galinhas e a readequação de panelas médias com quebras na base para mapú ëite.

Tabela 4
Uso observado dos vasilhames cerâmicos Shipibo-Conibo.

Conforme observado, tanto fragmentos de potes antigos quanto recentes são frequentemente reciclados como caco moído. Jarros e panelas são as duas formas modernas selecionadas para esse tipo de reciclagem (Tabela 4).

DESCARTE E REFUGO

As atividades de busca por matéria-prima e fabricação das vasilhas incorporadas na cerâmica representam um considerável investimento de tempo e energia, e os recipientes cerâmicos costumam ser mantidos em uso ou são “restaurados” até que o grau do dano esteja além do reparo16 16 Uma exceção ocorre no caso dos enterramentos, nos quais a cerâmica tradicionalmente utilizada pelo finado costuma ser quebrada. O enterramento primário ou secundário tradicional dentro de uma grande panela ou jarro abaixo do piso da casa foi abandonado. Atualmente, o cadáver é colocado em um caixão de madeira ou em uma canoa selada e enterrado em uma área especial de cemitério (DeBoer, 1972, p. 65-68). . A Figura 5 ilustra a longevidade das principais formas de vasilhas Shipibo-Conibo durante o uso. Na Tabela 5, esses dados se encontram reformulados em termos de idade mediana, frequência de uso e frequência projetada no registro arqueológico para cada forma de vasilhame. Os dados de longevidade mostram padrões interessantes. Tigelas de comida e canecos de fermentado têm grande rotatividade – fato que reflete seu uso frequente, sua portabilidade, sua fina espessura e consequente fragilidade. Jarros grandes e panelas são utilizados com menos frequência, são menos movimentados, possuem paredes mais espessas.

Figura 5
Curvas de “sobrevivência” das vasilhas Shipibo-Conibo. Em geral, as curvas são consonantes com o resultado obtido com o censo feito por um de nós com quase dois mil vasilhames Shipibo-Conibo nos anos 1960. Uma diferença com relação ao primeiro censo é a presença de jarros e de panelas grandes com bem mais de uma década de idade.
Tabela 5
Idade média, frequência de uso (N0) e frequência projetada em um montículo arqueológico. Fonte: Essa tabela incorpora e expande a amostra de vasos relatada por DeBoer (1974)DEBOER, Warren R. Binó stile ceramics from Iparia. Nawpa Pacha, v. 10-12, p. 91-108, 1972-1974.. Nota: N100 representa 100 anos de deposição das principais formas de vaso Shipibo-Conibo.

Por isso duram mais. Vasilhas pouco utilizadas, como as panelas pequenas e os mapú ëite, possuem vida útil comparativamente longa. Uma avaliação da importância relativa desses vários fatores levando à quebra e ao descarte das vasilhas exigiria informações detalhadas sobre a história de vida de muitos recipientes17 17 Os Shipibo-Conibo produzem, além das vasilhas, uma série de artefatos cerâmicos. A shërvenante, por exemplo, é um objeto sólido, com formato retangular ou oval, que é inserido na vulva da menina após ela sofrer a clitoridectomia, que faz parte da tradicional cerimônia de puberdade. A shërvenante é feita para a cerimônia e descartada em um montículo da aldeia (vide Figura 6, J6) após um curto período de uso pela garota. Esse artefato oferece uma exceção à generalização sugerida de que itens associados a rituais possuem vidas úteis mais longas do que itens não rituais (Schiffer, 1972, p. 163). .

A maior parte da cerâmica é produzida, utilizada, quebrada e descartada dentro da área doméstica, local delimitado por uma clareira meticulosamente limpa de vegetação, que inclui pelo menos duas estruturas: uma casa e uma cozinha. A plaza18 18 Optamos por manter o original “plaza”, que possui o sentido de “área comunitária” (NT). , limpa todos os dias, é varrida com uma vassoura de folhas de palmeira e rastelada com um implemento de madeira no formato tradicional da enxada. O refugo da cozinha, a cerâmica quebrada e outros restos provenientes de atividades cotidianas são varridos de maneira centrífuga, para longe da habitação, acumulando-se no perímetro imediato no entorno da clareira. Em moradias isoladas, o efeito temporal dessa prática é o surgimento de um montículo em forma de rosca. Quando várias moradias dividem uma plaza, o efeito imediato é um montículo de forma arqueada no entorno da clareira. Variações topográficas podem alterar esse padrão. San Francisco de Yarinacocha, por exemplo, está situada sobre uma ribanceira por cima da qual o refugo pode ser varrido. Ravinas que adentram esse barranco também servem como área de descarte19 19 O preenchimento das ravinas não ocorre por acaso. O aumento desses bueiros com 1,2 a 1,5 metros de profundidade é extremamente rápido, dado o escoamento de uma plaza limpa. A não ser que essa erosão seja freada, a área da plaza restaria dissecada em um ou dois anos. As toras, grandes fragmentos cerâmicos e outros restos jogados dentro desses bueiros servem para estabilizar os sedimentos e retardar o processo de erosão. . Se um vasilhame cerâmico cai ou quebra na área doméstica, os fragmentos resultantes provavelmente serão varridos ou limpos em direção a uma área de refugo secundário dentro de alguns dias. Em alguns casos, entretanto, o clima pode alterar esse destino. Durante ou após chuvas torrenciais, fragmentos pequenos podem ser pisoteados e ficar encravados na superfície da clareira. Com o tempo, a varredura diária rebaixa a superfície da plaza. Esses fragmentos – assim como os fragmentos arqueológicos que podem estar presentes – geralmente se sobressaem do chão.

Os Shipibo-Conibo fornecem um exemplo específico de um padrão geral esperado: em uma comunidade sedentária, onde os locais de utilização e de descarte coincidem, o refugo primário é provavelmente efêmero, e os montículos se acumulam nos locais exatos onde ações comportamentais são mínimas (Schiffer, 1972SCHIFFER, Michael B. Archaeological context and systemic context. American Antiquity, Washington, v. 37, n. 2, p. 156-165, abr. 1972., p. 162). Em Iparia, por exemplo, onde existe uma vibrante indústria cerâmica, sondagens realizadas imediatamente ao lado de uma casa renderam apenas três fragmentos cerâmicos modernos (DeBoer, 1972-1974DEBOER, Warren R. Binó stile ceramics from Iparia. Nawpa Pacha, v. 10-12, p. 91-108, 1972-1974., p. 97). Por outro lado, em uma área de descarte secundário em San Francisco de Yarinacocha encontrou-se repleta de fragmentos: ao longo de um período de cerca de cinquenta anos, acumulou-se refugo cuja profundidade varia entre 7,5 e 15 centímetros (Lathrap, 1962LATHRAP, Donald W. Yarinacocha: stratigraphic escavations in the Peruvian Montaña. 1962. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de Harvard, Cambridge, 1962., p. 144-145). Exceções à impermanência e à invisibilidade de refugo primário ocorrem em regiões de atividade localizadas fora da área doméstica. Fragmentos ocasionados por quebras acidentais de jarros de transporte de água, por exemplo, são avistados ao longo do caminho que conecta cada residência ao rio ou ao lago.

Para examinar melhor os padrões de descarte, é interessante considerar um exemplo específico com maior detalhe. A Figura 6 mapeia a distribuição de superfície de categorias selecionadas de refugo, incluindo fragmentos cerâmicos, no entorno das casas 9 e 10, em San Francisco de Yaranicocha. Na Figura 7, uma representação esquemática da mesma área é apresentada com uma plotagem da densidade de fragmentos cerâmicos. Embora essa plotagem não seja necessariamente representativa, revela certos processos de acúmulo de refugo que operam em todos os assentamentos dos Shipibo-Conibo. Note-se que as áreas de habitação e a plaza são virtualmente estéreis em termos de refugo. Os que de fato ocorrem (e.g. os ossos de peixe centralizados em O17) resultam de atividades que imediatamente precederam a elaboração do mapa, em locais que ainda não haviam sido limpados. Conforme esperado, o refugo secundário se acumula entre as árvores que marcam a fronteira ocidental da plaza e ao longo da cerca que marca sua fronteira oriental. Devido à presença de mato e de pilhas de cascas de mandioca e banana, que também se acumulam nessas áreas e tendem a esconder itens pequenos como fragmentos cerâmicos, a quantidade de fragmentos nessas regiões limítrofes representam frequências mínimas.

Figura 6
Distribuição de superfície e categorias selecionadas de refugo no entorno das casas 9 e 10, San Francisco de Yaranicocha.
Figura 7
Densidade de fragmentos cerâmicos, casas 9 e 10, San Francisco de Yaranicocha (X indica a presença de uma densidade indeterminada).

Outros fenômenos relacionados à distribuição também se tornam evidentes nas Figuras 6 e 7. Um acidente comum é a queda de vasilhames de estantes de armazenagem externas, o que torna esses locais “focos” periódicos de produção de fragmentos (U17, G24, G27). A queda da chuva nos beirais gera uma trincheira rasa, onde pode haver acúmulo de fragmentos (H17, J19, N18). Fragmentos que ocorrem ao longo de trilhas, ligando às choupanas (oficinas cerâmicas), tendem a possuir tamanho menor do que os encontrados em áreas de refugo secundário resultantes de varreduras centrífugas (Figura 8). Esse fato pode ser facilmente explicado pelo pisoteio das peças por pessoas andando pelos caminhos20 20 Outras tentativas de correlacionar o grau de fragmentação da cerâmica com a intensidade da ação humana podem ser encontradas em Meggers e Evans (1957, p. 247-248) e Grebinger (1971, p. 48). . O grande agrupamento de fragmentos na coordenada J9 é resultado de uma quebra acidental recente de um grande vasilhame e está inserido na categoria de “evento especial” da Figura 7.

Figura 8
Dimensões máximas em centímetros dos fragmentos cerâmicos em dois contextos deposicionais.

Outro elemento da Figura 6 merece ser comentado. A moradia mais ao norte foi abandonada após vários suportes do telhado terem rachado durante um grande temporal. Os ocupantes construíram a casa 10 imediatamente ao sul. Nesse caso, é evidente que não houve problema algum em mover todos os móveis e utensílios para a casa nova. Mesmo dilapidada, a antiga estrutura continuou sendo utilizada como oficina por membros da casa 10. Em outros casos, quando distâncias maiores separam as habitações nova e velha, poderíamos esperar que uma quantidade maior de material fosse deixada para trás.

SÍNTESE

Conforme Taylor (1948, p. 145)TAYLOR, Walter W. A study of archaeology. Washington: American Anthropological Association, 1948. (Memoir 69). sublinhou há trinta anos, todas as inferências arqueológicas acabam dependendo de três tipos de dados: (1) a frequência, (2) as propriedades formais e (3) a distribuição espacial de subprodutos comportamentais. Tentamos fornecer esses dados para a indústria cerâmica dos Shipibo-Conibo. Nossa discussão focou-se na procura por matérias-primas amplamente dispersas, na manufatura cerâmica que junta essas matérias-primas em uma forma acabada, no uso de cerâmica tanto em contextos primários quanto secundários e no comportamento que leva à formação de refugo e age como editor supremo do registro arqueológico. O último estágio de formação de refugo tem sido negligenciado por estudos sobre a produção cerâmica tradicional presentes na literatura antropológica geral que, aparte isso, são esplêndidos e muito úteis em termos arqueológicos (Guthe, 1925GUTHE, Carl E. Pueblo pottery making. Andover: Phillips Academy, Department of Archaeology, 1925.; Bunzel, 1929BUNZEL, Ruth L. The pueblo potter: a study of creative imagination in primitive art. New York: Columbia University Press, 1929.; Fontana et al., 1962FONTANA, Bernard L.; ROBINSON, William J.; CORMACK, Charles W.; LEAVITT JR., Ernest E. Papago indian pottery. Seattle: University of Washington Press, 1962.). Tal negligência pode ter contribuído para gerar a afirmação otimista de que o registro arqueológico representa uma “estrutura fossilizada do sistema cultural total” que o produziu (Binford, 1964BINFORD, Lewis R. A consideration of Archaeological research design. American Antiquity, Washigton, v. 29, n. 4, p. 425-441, abr. 1964., p. 425). Uma apreciação mais razoável seria a de que o registro arqueológico reflete primariamente o comportamento que gerou o refugo. Um fato curioso sobre o refugo é que, enquanto que os arqueólogos o buscam de forma obsessiva, a maioria das pessoas, incluindo os Shipibo-Conibo, tenta se livrar dele.

AGRADECIMENTOS

Este artigo faz parte de um programa de pesquisa a longo prazo sobre a história cultural do alto Amazonas, lançado por Donald Lathrap em 1956. Nossas investigações acerca da Etnografia Shipibo-Conibo foram generosamente apoiadas por diversas agências, incluindo a Comissão Fullbright-Hays, a Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos e a Fundação de Pesquisa da Cidade de Nova York. Devemos especial gratidão aos nossos anfitriões Shipibo-Conibo, cuja hospitalidade, cooperação e paciência tornaram o trabalho de campo uma experiência não apenas informativa, mas agradável.

  • 1
    Texto traduzido para o português por Fernando Ozorio de Almeida e Bruna Rocha. Este artigo foi originalmente publicado em: KRAMER, C. (Ed.). Ethnoarchaeology: implications of ethnography for archaeology. New York: Columbia University Press, 1979. p. 102-138.
  • 2
    DeBoer e Lathrap fazem um uso mesclado dos nomes dos vasilhames, utilizando termos em Pano (mapu ëite, shrania; vide nota de rodapé 17), em inglês (beer mugs e food bowls) e em espanhol (ollas). Na tradução, optou-se por manter os nomes nativos e traduzir os termos em inglês e espanhol para genéricos similares em português (vide as formas na Figura 3) (nota dos tradutores, doravante NT).
  • 3
    Aqui e na discussão que se segue, os termos utilizados pelos Shipibo-Conibo serão apresentados entre parênteses. Optou-se por utilizar o termo traduzido ao longo do texto e nas figuras por uma questão didática, ainda que, nem sempre, a tradução seja o equivalente preciso do significado Shipibo-Conibo.
  • 4
    Os autores usam o termo “beer”, cuja tradução literal seria “cerveja”. Na tradução, optou-se por utilizar o termo mais neutro, “fermentados”. Nas línguas Pano, o termo para as bebidas fermentadas é masato (ou mashato). Na Amazônia ocidental, utiliza-se muito o termo “chicha”. No restante da Amazônia, o termo mais comum é “caxiri” (NT).
  • 5
    Outras formas cerâmicas, não representadas no nosso censo cerâmico de 1971, foram importantes outrora. Podem-se incluir nessa categoria as tigelas (canecos de fermentado) fálicas e zoomórficas, criadas para serem suspensas por um aparato semelhante a uma vara de pescar, com a finalidade de retirar fermentados de vasilhames grandes (Tessmann, 1928TESSMANN, Günter. Menschen ohne Gott. Stuttgart: Strecker und Schröder, 1928., tabela 58). Essas tigelas individuais eram utilizadas em situações de fiestas por crianças com menos de 12 anos e pelos idosos. A lógica dos Shipibo-Conibo para juntar essas gerações alternadas é de que os mais novos e os mais velhos poderiam babar nas tigelas comunais utilizadas pelo resto da comunidade.
  • 6
    Um pigmento branco de classe inferior, não representado na amostra cerâmica discutida neste trabalho, ocorre, supostamente, em Imariacocha (Lathrap, 1973LATHRAP, Donald W. The antiquity and importance of long-distance trade relations in the moist tropics of Pre-Columbian South America. World Archaeology, Abingdon, v. 5, n. 2, p. 170-186, out. 1973., p. 172).
  • 7
    Conchas e fragmentos que sofreram abrasão nas quebras, usados como raspadores de cerâmica, também são relatados (Farabee, 1915FARABEE, William C. Conebo pottery. Museum Journal, v. 6, p. 94-99, 1915., p. 94; Greg Roberts, comunicação pessoal).
  • 8
    Tratamento também conhecido como enegrecimento ou brunidura (NT).
  • 9
    Em tempos antigos, quando as cerimônias de puberdade feminina ainda eram muito comuns, a grande panela utilizada para cozinhar o porco servido na cerimônia era pintada. Em geral, as panelas nunca são pintadas, e essa prática pode ser razoavelmente entendida como uma inversão sagrada da tradicional gramática decorativa.
  • 10
    Superfícies com resina foram notadas na cerâmica arqueológica da tradição Cumancaya (DeBoer, 1972DEBOER, Warren R. Archaeological explorations on the Upper Ucayali River, Peru. 1972. 217 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of California, Berkeley, 1972., p. 36; Roe, 1973ROE, Peter G. Cumancaya: archaeological excavation and ethnographic analogy in the Peruvian Montaña. 1973. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of Illinois, Urbana-Champaign, 1973., p. 99), mas, em geral, não se preservam. Os pigmentos possuem maior visibilidade arqueológica. Vasilhames com engobo, pintura vermelha e bolotas de argila com retiradas [para barbotina, NT] costumam ocorrer em montículos de sítios arqueológicos no Ucayali (Roe, 1973ROE, Peter G. Cumancaya: archaeological excavation and ethnographic analogy in the Peruvian Montaña. 1973. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of Illinois, Urbana-Champaign, 1973., p. 96). Um pigmento preto com aparência de itanhuana também foi recuperado (DeBoer, 1972DEBOER, Warren R. Archaeological explorations on the Upper Ucayali River, Peru. 1972. 217 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of California, Berkeley, 1972., p. 18-19). O pigmento branco maösh, utilizado pelos Shipibo-Conibo, desaparece com mais facilidade, e sua representação arqueológica é, indubitavelmente, muito deflacionada em relação à sua frequência de uso (Myers, 1970MYERS, Thomas P. The prehistoric period at Yarinacocha, Peru. 1970. 160 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of Illinois, Urbana-Champaign, 1970., p. 80-81).
  • 11
    Em muitas comunidades, esse panorama sofreu uma dramática transformação nas últimas décadas do século XX, quando começou a haver uma demanda internacional pela cerâmica Shipibo-Conibo. Em muitos casos, objetivando o aumento da produtividade, foram estabelecidas linhas de produção dos vasilhames, alterando drasticamente uma tradição milenar de modos de fazer cerâmica (NT).
  • 12
    Foi apontado por Lathrap (1970c)LATHRAP, Donald W. Shipibo tourist pottery. In: ANNUAL MEETING OF THE AMERICAN ANTHROPOLOGICAL ASSOCIATION, 69., 1970, San Diego. Anais… San Diego: AAA, 1970c. que a cerâmica produzida pelos Shipibo para o turismo é facilmente distinguível da produzida para uso próprio.
  • 13
    Na cultura tradicional dos Shipibo-Conibo, a maior instituição que afetava as frequências cerâmicas era a cerimônia de puberdade das meninas. Ainda por volta de 1955, até cerca de metade da produção e quebra de cerâmica era diretamente associada a essa cerimônia e ao entretenimento necessário de parentes e amigos distantes. Toda a cerâmica utilizada nesses eventos precisava ser nova. O número de vasilhas em habitações de famílias anfitriãs logo antes das cerimônias poderia ser dez ou vinte vezes maior do que o montante presente em geral. A maior parte dos canecos de fermentado e das tigelas de comida costumava ser quebrada nos três dias de fiesta, em especial nas brigas etílicas culminantes em uma fiesta bem sucedida. Essa cerâmica era quebrada no mesmo espírito que taças de champanhe eram destruídas pelos ingleses em ocasiões especiais. Em 1971, no período em que as observações nas quais este trabalho se baseia foram realizadas, a cerimônia de puberdade representava, em grande parte, uma cultura memorial.
  • 14
    A Tabela 4 inclui informação sobre todos os vasilhames cujo uso foi observado. Essa amostra não coincide inteiramente com a cerâmica tabulada no censo apresentado na Tabela 3.
  • 15
    Esse uso foi descrito por Tessmann (1928, p. 146)TESSMANN, Günter. Menschen ohne Gott. Stuttgart: Strecker und Schröder, 1928. há meio século.
  • 16
    Uma exceção ocorre no caso dos enterramentos, nos quais a cerâmica tradicionalmente utilizada pelo finado costuma ser quebrada. O enterramento primário ou secundário tradicional dentro de uma grande panela ou jarro abaixo do piso da casa foi abandonado. Atualmente, o cadáver é colocado em um caixão de madeira ou em uma canoa selada e enterrado em uma área especial de cemitério (DeBoer, 1972DEBOER, Warren R. Binó stile ceramics from Iparia. Nawpa Pacha, v. 10-12, p. 91-108, 1972-1974., p. 65-68).
  • 17
    Os Shipibo-Conibo produzem, além das vasilhas, uma série de artefatos cerâmicos. A shërvenante, por exemplo, é um objeto sólido, com formato retangular ou oval, que é inserido na vulva da menina após ela sofrer a clitoridectomia, que faz parte da tradicional cerimônia de puberdade. A shërvenante é feita para a cerimônia e descartada em um montículo da aldeia (vide Figura 6, J6) após um curto período de uso pela garota. Esse artefato oferece uma exceção à generalização sugerida de que itens associados a rituais possuem vidas úteis mais longas do que itens não rituais (Schiffer, 1972SCHIFFER, Michael B. Archaeological context and systemic context. American Antiquity, Washington, v. 37, n. 2, p. 156-165, abr. 1972., p. 163).
  • 18
    Optamos por manter o original “plaza”, que possui o sentido de “área comunitária” (NT).
  • 19
    O preenchimento das ravinas não ocorre por acaso. O aumento desses bueiros com 1,2 a 1,5 metros de profundidade é extremamente rápido, dado o escoamento de uma plaza limpa. A não ser que essa erosão seja freada, a área da plaza restaria dissecada em um ou dois anos. As toras, grandes fragmentos cerâmicos e outros restos jogados dentro desses bueiros servem para estabilizar os sedimentos e retardar o processo de erosão.
  • 20
    Outras tentativas de correlacionar o grau de fragmentação da cerâmica com a intensidade da ação humana podem ser encontradas em Meggers e Evans (1957, p. 247-248)MEGGERS, Betty J.; EVANS, Clifford. Archaeological investigations in the mouth of the Amazon. Washington: Smithsonian Institution, Government Printing Press, 1957. e Grebinger (1971, p. 48)GREBINGER, Paul. The potrero creek site: activity structure. Kiva, Tucson, v. 37, n. 1, p. 30-52, 1971..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2015
  • Aceito
    29 Abr 2016
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