Acessibilidade / Reportar erro

Cauim: entre comida e ebriedade

Cauim: food or intoxicant?

Resumo

Tradicionalmente, as bebidas fermentadas da América do Sul são classificadas entre os narcóticos e os intoxicantes. Revisando os textos dos primeiros cronistas e recentes estudos antropológicos, é possível mostrar que as bebidas fermentadas eram fundamentalmente alimentos líquidos, ricos em elementos minerais, em pré-bióticos e pró-bióticos, contendo forte proteção contra doenças intestinais. O componente ‘etílico’, apesar de importante pelas suas implicações sociais, era, na maior parte dos casos, inexistente ou baixo, sendo originário de uma fermentação lática e não sacaromicética.

Palavras-chave
Cauim; Caxiri; Chicha; Bebidas fermentadas; Alimentos fermentados

Abstract

South American fermented beverages have traditionally been classified among narcotics and intoxicants. In a review of the first chronicles and recent ethnological studies of South American history, we show that fermented beverages were fundamentally liquid food, rich in minerals, probiotics, and prebiotics, and offered strong protection against intestinal diseases. The alcoholic component, although important for its social implications, was for the most part lacking or minimal, and originated from non-saccharomycetic lactic acid fermentation.

Keywords
Cauim; Caxiri; Chicha; Fermented drinks; Fermented foods

But to my mind, though I am native here

And to the manner born, it is a custom

More honour’d in the breach than the observance.

This heavy-headed revel east and west

Makes us traduced and tax’d of other nations:

They clepe us drunkards, and with swinish phrase

Soil our addition; and indeed it takes.

From our achievements, though perform’d at height,

The pith and marrow of our attribute1 1 “Oh, sim, como não. Mas, pro meu sentimento – e sou nascido aqui, criado nesses hábitos – é uma tradição que seria mais honroso romper, não respeitar. Esse deboche brutal nos transforma em alvo de insultos e achincalhes de todas as nações, do Oriente ao Ocidente, nos dá fama de bêbados, mancha nossa reputação; dinamarqueses suínos. Todos os nossos feitos, por mais belos que sejam, ficam ofuscados por esse costume inglório” (Shakespeare, 2012, ato I, cena IV, tradução de Millôr Fernandes).

(Shakespeare, 1899SHAKESPEARE, William.The Works of Shakespeare the Tragedy of Hamlet. Edited by Edward Dowden. London: Methuen and co., 1899., p. 37).

Os mitos de que os índios viviam em estado de perpétua ebriedade, comiam os inimigos e não tinham alma, sendo necessária uma bula do papa Paulo III (1537)PAULO III, Papa. Sublimis Deus. 1537. In: Cathopedia. Disponível em: <http://it.cathopedia.org/wiki/Sublimis_Deus>. Acesso em: 10 jan. 2018.
http://it.cathopedia.org/wiki/Sublimis_D...
2 2 Bula Veritas Ipsa, conhecida também como Sublimis Deus. para confirmar que eram homens como a gente, eram comuns entre os primeiros viajantes. Às vezes, parte desses mitos continua sendo repetida entre antropólogos e arqueólogos, por conta do viés de relatos que tendem a descrever eventos excepcionais, como festas, batalhas, ritos, enterros, mas com dificuldade para descrever a vida cotidiana, a qual, por outro lado, também quando documentada, é frequentemente esquecida, em favor de uma visão mais heroica.

Especialmente nos últimos anos, a imagem de sociedades de ébrios descrita pelos missionários dos primeiros séculos parece retornar na literatura científica, por meio de frases como “[...] a grande profusão de culturas da embriaguez [...]” (Sztutman, 1998SZTUTMAN, Renato. Cauinagem, uma comunicação embriagada: apontamentos sobre uma festa tipicamente ameríndia. Sexta Feira, São Paulo, n. 2, p. 120-131, 1998., p. 45) ou “[...] a etílica história dos Tupi-Guarani [...]” (Almeida, F., 2015ALMEIDA, Fernando Ozorio de. A arqueologia dos fermentados: a etílica história dos Tupi-Guarani. Estudos Avançados, São Paulo, v. 29, n. 83, p. 87-118, jan.-abr. 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142015000100006.
https://doi.org/10.1590/S0103-4014201500...
, p. 87), sendo tecidas interpretações profundas sobre a ‘cauinagem’ e as ‘colossais’ bebedeiras dos índios.

Naturalmente, não se pretende negar as reuniões paroxísticas do sacrifício de um inimigo ou as mais recentes, na ocasião de uma festa ou de um luto, regadas com abundantes doses de bebidas fermentadas, com suas inevitáveis consequências. O que se afirma é que as bebidas fermentadas, encontradas sob diferentes nomes na América do Sul pelos missionários e pelos viajantes – cauim, chicha, caxiri ou quantos outros nomes podem ser encontrados entre as diferentes etnias –, eram, sobretudo, alimentos líquidos fermentados altamente nutritivos, com efeitos de desintoxicação de metabólitos secundários das plantas e com poder de proteção da flora intestinal. Apenas em situações excepcionais, essas bebidas transformavam-se em excitantes, com alto conteúdo alcoólico.

Para entendermos o significado desta afirmação, precisamos, em primeiro lugar, nos livrar da visão etnocêntrica, que observa com repulsa os estranhos costumes das outras populações. Para isso, neste trabalho, seguirei o caminho indicado por Michel de Montaigne – que Lévi-Strauss (1991)LÉVI-STRAUSS, C. Histoire de Lynx. Paris: Plon, 1991. definiu como sendo o progenitor das ciências humanas e pioneiro do relativismo cultural –, e como fez Michel de Montaigne, ler com atenção as fontes e recorrer a testemunhas simples. Apesar de dispor dos textos de Thévet (1558)THÉVET, André. Les singularitez de la France antarctique, autrement nommée Amérique. Paris: Chez les Héritiers de Maurice de La Porte, 1558., Léry (1578)LÉRY, Jean de. Histoire d’un voyage fait en la terre du Bresil, autrement dite Amerique. La Rochelle, France: Pour Antoine Chuppin, 1578. e de Las Casas (2010 [1552])LAS CASAS, Bartolomeu de, Frei. Liberdade e justiça para os povos da América: oito tratados impressos em Sevilha em 1552. São Paulo: Paulus, 2010 [1552]., Michel de Montaigne preferiu as informações fornecidas por um de seus criados, que tinha vivido uma década entre os Tupinambá (Lestringant, 2006LESTRINGANT, Frank. O Brasil de Montaigne. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 49, n. 2, p. 515-556, jul.-dez. 2006. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77012006000200001.
https://doi.org/10.1590/S0034-7701200600...
), porque:

Esse homem que eu tinha comigo era homem simples e grosseiro, o que é uma condição própria para dar testemunho verdadeiro, pois as pessoas finas observam muito mais cuidadosamente e mais coisas, mas as glosam e, para fazerem valer sua interpretação e torná-la convincente, não conseguem evitar alterar um pouco a História, nunca vão apresentar as coisas puras, curvam-nas e mascaram-nas de acordo com a feição que lhes viram; e, para dar crédito a seu raciocínio e atrair-vos para ele, facilmente forçam a matéria para esse lado e alargam-na.

(Montaigne, 2000-2001MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. Tradução de Abílio Costhek. São Paulo: Martins Fontes, 2000-2001., p. 306-307).

Feitas essas premissas, Montaigne (2000-2001)MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. Tradução de Abílio Costhek. São Paulo: Martins Fontes, 2000-2001. chega à conclusão de que o cauim é uma bebida agradável, devendo indiretamente pensar ser um alimento, como pode-se compreender pelo texto:

Levantam-se com o sol e comem imediatamente depois de se levantar, para o dia todo, pois não fazem outra refeição além dessa. Não bebem então, como conta Suidas sobre alguns outros povos do Oriente que bebem fora das refeições; bebem várias vezes por dia, e muito. Sua bebida é feita de uma raiz e tem a cor de nossos vinhos claretes. Só a bebem quente; essa beberagem só se conserva por dois ou três dias; tem o gosto um pouco picante, não exala vapores, é salutar para o estômago e laxativa para os que não estão acostumados; é uma bebida muito agradável para quem está habituado a ela.

(Montaigne, 2000-2001MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. Tradução de Abílio Costhek. São Paulo: Martins Fontes, 2000-2001., p. 313).

Postas estas premissas, podemos começar a ler com mais atenção os textos.

Almeida, F. (2015, p. 90)ALMEIDA, Fernando Ozorio de. A arqueologia dos fermentados: a etílica história dos Tupi-Guarani. Estudos Avançados, São Paulo, v. 29, n. 83, p. 87-118, jan.-abr. 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142015000100006.
https://doi.org/10.1590/S0103-4014201500...
, para justificar o epíteto de ‘etílica’ na história dos Tupi-Guarani, inicia seu artigo com a descrição de “[...] um dia na vida dos Jívaro [...]”, que registra um contínuo pedido de cerveja do índio à sua esposa. Almeida, F. (2015)ALMEIDA, Fernando Ozorio de. A arqueologia dos fermentados: a etílica história dos Tupi-Guarani. Estudos Avançados, São Paulo, v. 29, n. 83, p. 87-118, jan.-abr. 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142015000100006.
https://doi.org/10.1590/S0103-4014201500...
, porém, apesar de traduzir bem duas páginas do texto de Harner (1972)HARNER, M. The Jívaro: people of the Sacred Waterfalls. Berkeley: University of California Press, 1972., não cita o parágrafo inicial da página 52:

A rough estimate of the daily beer consumption of the adult male is three to four gallons; of an adult female, approximately one or two gallons; and of a nine- to ten-year-old children, about half a gallon. The beer must ferment for four or five days to reach its maximum alcoholic content, but this is usually intentionally done only for feasts planned in advance. On the other hand, a jar or two of beer may reach such a strength simply because it has not been consumed, in which case its availability provides an occasion to invite neighbors to come for a drinking and dancing party.

(Harner, 1972HARNER, M. The Jívaro: people of the Sacred Waterfalls. Berkeley: University of California Press, 1972., p. 52).

Neste trecho, Harner (1972) HARNER, M. The Jívaro: people of the Sacred Waterfalls. Berkeley: University of California Press, 1972.confirma que a fermentação de quatro ou cinco dias é realizada intencionalmente só quando uma festa é planejada com antecedência. Por outro lado, na página anterior, o autor, descrevendo o preparo da ‘cerveja’, escreveu:

Although the fermentation takes place rapidly, the beer is usually too much in demand to be allowed to sit very long. In being served, the beer is strained through a tree-gourd sieve to remove manioc fiber, and about one part of water is added to two parts of beer.

(Harner, 1972HARNER, M. The Jívaro: people of the Sacred Waterfalls. Berkeley: University of California Press, 1972., p. 51).

Da leitura completa do texto, é possível inferir que a ‘cerveja’ de cada dia descrita por Harner (1972) era de curta fermentação, provavelmente de não mais de 24 horas, e que a ela era adicionada água, diluindo em 30% a bebida. Só nas grandes festas a fermentação realmente durava de quatro a cinco dias. A ‘cerveja’ de cada dia, portanto, era uma bebida de baixíssimo conteúdo alcoólico, diluída com água.

Apesar de Harner (1972)HARNER, M. The Jívaro: people of the Sacred Waterfalls. Berkeley: University of California Press, 1972. não indicar, entre os Jívaros, na realidade, existiam conceitualmente duas cervejas: a primeira, a bebida de cada dia, levemente alcoólica e diluída com água, e a segunda realmente alcoólica, com uma fermentação de quatro a cinco dias. Esse fato é confirmado por Karsten (1935a, p. 132-133, p. 373-379)KARSTEN, Rafael. The head hunters of Western Amazonas. The life and culture of the Jíbaro Indians of Eastern Ecuador and Perú. Elsingfors: Societas Scientiarum Litterarum, 1935a. v. 7.. De fato, Karsten (1935a)KARSTEN, Rafael. The head hunters of Western Amazonas. The life and culture of the Jíbaro Indians of Eastern Ecuador and Perú. Elsingfors: Societas Scientiarum Litterarum, 1935a. v. 7. distingue claramente duas bebidas fermentadas, dando a cada uma um nome diferente. A primeira, o nihanánchi, era uma bebida fermentada tradicional, da qual Karsten (1935a, p. 121)KARSTEN, Rafael. The head hunters of Western Amazonas. The life and culture of the Jíbaro Indians of Eastern Ecuador and Perú. Elsingfors: Societas Scientiarum Litterarum, 1935a. v. 7. salienta “[...] being served both as beverage and as food [...]”, adicionando:

When the Indian goes out on a journey, on a hunting, fishing, or war expedition, he never fails to take with him a quantity of the fermented manioc substance enveloped in banana leaves. By diluting some of the substance with water he can, while on a journey, prepare the beer whenever he likes, and as long as he has his nihanánchi he is able to do without any other food for days.

Exactly the same may be said of the Canelos Indians, who call the fermented manioc-beer asua.

(Karsten, 1935a, p. 121).

A segunda bebida fermentada, a sangucha shiki, era realmente alcoólica, fermentada por muitos dias, seguindo um complexo ritual realizado por ocasião da redução da cabeça de um inimigo morto (Karsten, 1935aKARSTEN, Rafael. The head hunters of Western Amazonas. The life and culture of the Jíbaro Indians of Eastern Ecuador and Perú. Elsingfors: Societas Scientiarum Litterarum, 1935a. v. 7., p. 327-333).

Nas quinhentas e noventa e oito páginas do livro de Karsten (1935a)KARSTEN, Rafael. The head hunters of Western Amazonas. The life and culture of the Jíbaro Indians of Eastern Ecuador and Perú. Elsingfors: Societas Scientiarum Litterarum, 1935a. v. 7. encontra-se menção de bebedeira apenas uma vez, na página 354, na ocasião do último dia do ritual da redução da cabeça de um inimigo morto, quando, de fato, é tomada angucha shiki, a bebida fermentada por quatro dias.

A distinção das duas bebidas fermentadas, apesar de frequentemente ser utilizado o mesmo nome – chicha, caxiri, cauim e similares –, exige uma concisa explicação biológica. Em ambiente tropical, com os produtos vegetais ricos em metabólitos secundários tóxicos, a fermentação, prevalentemente lática, representa um importante mecanismo de desintoxicação e de conservação dos alimentos, que foi provavelmente utilizada ainda antes do início da agricultura. Nos Andes, a fermentação era utilizada para o tratamento do Solanum andigenum Juz. & Bukasov e do Lupinus mutabilis Sweet (Aubert, 1985AUBERT, C. Les aliments fermentés traditionnels. Paris: Terre Vivante, 1985.; Katz, 2015KATZ, Sandor Ellix. The art of fermentation: an in-depth exploration of essential concepts and processes from around the world. White River Junction, Vermont: Chelsea Green Publishing, 2015.); nas terras baixas, provavelmente para o tratamento de produtos como Canavalia ensiformis (L.) DC. e C. plagiosperma Piper (Piperno; Pearsall, 1998PIPERNO, Dolores R; PEARSALL, Deborah M. The origins of agriculture in the lowland neotropics. San Diego: Academic Press, 1998.), além de também ser aplicada para a mandioca. O processo de fermentação mais demorado de alguns produtos pode levar a uma produção significativa de álcool. Em processo de curta duração, principalmente com fermentação lática, há a produção de um verdadeiro alimento de fácil digestão, rico em pré-bióticos e pró-bióticos, que oferecem proteção para o desenvolvimento de uma flora intestinal sadia, além de ser de fácil conservação em um ambiente quente, no qual os alimentos tendem a se deteriorar (Barghini, 2004BARGHINI, Alessandro. O milho na América do Sul pré-colombiana. Uma história natural. Pesquisas-Antropologia, São Leopoldo, n. 61, p. 1-170, 2004.).

Do ponto de vista nutricional, os elementos mais importantes são a duração da fermentação e o nível de filtragem do produto. Quando ele é filtrado após longa fermentação, deve ser considerado como uma verdadeira bebida alcoólica, com um conteúdo de álcool da ordem de 4 a 7%, sais minerais, baixo conteúdo de proteínas e vitaminas (principalmente do grupo B, originárias dos restos de Saccharomyces cerevisiae (Desm.) Meyen). Nessas condições, o produto oferece uma complementação calórica da ordem de 35 cal/100 ml. Quando é resultado de curta fermentação e pouco filtrado, este produto deve ser considerado basicamente como alimento, contendo baixo conteúdo alcoólico ou, na maioria dos casos, não contendo álcool. Apresenta maior conteúdo calórico, nessas condições, na ordem de 75 cal/100 ml, sendo rico em sais minerais (Steinkraus, 1983STEINKRAUS, Keith H. Handbook of indigenous fermented foods. 3rd ed. New York: Marcel Dekker, 1983.; Campbell-Platt, 1987CAMPBELL-PLATT, Geoffrey. Fermented foods of the World: a dictionary and guide. London/Boston: Butterworths, 1987.; FAO, 1999aFOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). Fermented cereals: a global perspective. Roma: FAO, 1999a. (FAO Agricultural Service Bulletin, n. 138)., 1999bFOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). Fermented fruits and vegetables: a global perspective. Roma: FAO, 1999b. (FAO Agricultural Service Bulletin, n. 134).; Katz, 2015KATZ, Sandor Ellix. The art of fermentation: an in-depth exploration of essential concepts and processes from around the world. White River Junction, Vermont: Chelsea Green Publishing, 2015.).

Na literatura, a distinção entre os dois preparos nem sempre é esclarecida, como em Karsten (1935a)KARSTEN, Rafael. The head hunters of Western Amazonas. The life and culture of the Jíbaro Indians of Eastern Ecuador and Perú. Elsingfors: Societas Scientiarum Litterarum, 1935a. v. 7., mas nas terras altas é explicitamente reconhecida por padre José Acosta, quando escreve:

La bebida de maíz que en el Perú es llamada “azua” pero que generalmente es conocida como “chicha” se elabora de diferentes formas. Para obtener la cerveza más fuerte llamada “sora”, se remojan primero los granos de maíz hasta que comiencen a germinar, luego se los cocina de modo que la bebida alcance un alto contenido alcohólico. En el Perú, el consumo de “sora” está actualmente prohibido por ley debido a los grandes daños que ocasionan los ebrios [...]

(Acosta, 1954 [1588]ACOSTA, José de. Historia natural y moral de las Indias. Estudio preliminar y edición del P. Francisco Mateos. Madrid: Atlas, 1954 [1588]., p. 110).

Para o autor, portanto, existiam duas bebidas fermentadas, sendo que a alcoólica era proibida e a outra permanecia em uso. Note-se que Karsten (1935a)KARSTEN, Rafael. The head hunters of Western Amazonas. The life and culture of the Jíbaro Indians of Eastern Ecuador and Perú. Elsingfors: Societas Scientiarum Litterarum, 1935a. v. 7., ao descrever a ‘cerveja’ dos Canelos, usa o termo andino asua, o que não deve surpreender, porque os Canelos eram uma etnia de origem andina e de fala quíchua. Descrições não muito diferentes podem ser encontradas em Vega (1985 [1609])VEGA, Inca Garcilaso de la. Comentarios reales de los Incas. 2. ed. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1985 [1609]. e Poma (1980 [1615])POMA DE AYALA, Felipe Guamán. El primer nueva corónica y buen gobierno. Edición de J. V. Murra e R. Adorno. Traducciones del quechua por Jorge L. Urioste. Mexico, D.F: Siglo Veintiuno Editores, 1980 [1615]. 3 tomos.. Para os primeiros cronistas andinos, assim, existia uma nítida distinção entre as duas bebidas.

No caso das terras baixas, as opiniões dos primeiros cronistas não são unânimes. O próprio Staden (1557, p. 150)STADEN, Hans. Wahrhaftige Historia. Mandenburg: [s.n.], 1557. Available in: <http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Astaden-1557-warhaftige/staden_1557_warhaftige.pdf>. Access in: 15 June 2012.
http://etnolinguistica.wdfiles.com/local...
, que destaca os comportamentos mais violentos dos Tupinambás, escreveu, em relação ao caxiri: “ Jst dicke / speisset auch wol”, ou em alemão moderno “ Es ist dick flässig und nahraft [...]”3 3 “É uma bebida grossa e nutritiva [...]” (Staden, 1557, p. 150, tradução nossa). Cito a edição alemã porque, na tradução portuguesa de 1974, o termo nahraft é traduzido como “[...] bom gosto [...]” (Staden, 1974, livro II, cap. 14).

A maioria dos primeiros cronistas, como Thévet (1558)THÉVET, André. Les singularitez de la France antarctique, autrement nommée Amérique. Paris: Chez les Héritiers de Maurice de La Porte, 1558., Léry (1578)LÉRY, Jean de. Histoire d’un voyage fait en la terre du Bresil, autrement dite Amerique. La Rochelle, France: Pour Antoine Chuppin, 1578., Montoya (1876 [1640])MONTOYA, Antonio Ruiz de. Vocabulario y tesoro de la lengua guarani, ó más bien tupi. Viena: Faesy y Frick; Paris: Maisonneuve y Cia., 1876 [1640]., considerava o cauí como uma bebida intoxicante. No próprio “Handbook of South American Indians” (Cooper, 1948), a bebida fermentada é categorizada entre os narcóticos e os intoxicantes. Uma posição diferente é, porém, assumida pelo padre José de Anchieta, que escreve:

[...] seus vinhos em que são muito continuos e em tirar-lhos ha ordinariamente mais dificuldade que em todo o mais, por ser como seu mantimento, e assim não lhos tiram os Padres de todo, senão o excesso que neles ha, porque assim moderado quasi nunca se embebedam nem fazem outros desatinos.

(Anchieta, 1933ANCHIETA, José de, Padre. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933 [1580c]. [1580c], p. 333).

Padre Anchieta (1933 [1580c])ANCHIETA, José de, Padre. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933 [1580c]., portanto, apesar de não distinguir as fases de fermentação, reconhece que a chicha era também um alimento.

Até padre João Daniel, fortemente crítico das bebedeiras, considerando tal hábito um dos três grandes vícios dos índios, após condenar as consequências desses excessos, descreve com linguagem original dois preparos. A descrição merece ser citada por extenso:

Quando falarmos de mandioca direi os vários usos desta admirável planta: por agora só nos pertence dizer que entre os mais usos dela é um o fazerem uns bolos espalmados, a que chamam [...] beijus secos, e outros beijus de água. Os do segundo modo, isto é, de água, são os mais ordinários, e estimados por servirem para sua cerveja, e aguardente, vinho, e mocororó, desta sorte. Põem estes bolos na quantidade que querem sobre a palma ou palha de suas palhoças, como a fermentar, melhor diremos a apodrecer, já ao sol, e chuva, e já de dia, e de noute, até criarem bolor, e cabeleira, apodrecerem, e bem se azedarem. Em chegando ao ponto de azedo, se não em grau sumo, saltem4 4 Latim: ao menos. , como rabo de gato, então se ajuntam as velhas, e a bocados os vão mastigando até os desfazerem em papas, e os vão deitando nas talhas até a sua medida, e depois desta asquerosa diligência lhes lançam água (não sei se mais algum ingrediente) e está feita a vinhaça, e pode logo beber. Porém a esta, que chamam doce, não festejam tanto como à outra, azeda e esperta, que para o ser não requer mais do que deixá-la estar azedando por alguns dias, e sem diferença de mais ingredientes, sai tão esperta, que faz fazer visagens, quando se bebe, e então é que está de vez ou capaz e digna de festejar-se; e assim a conduzem para a casa do Paricá nos grandes iguaçabas, e convidam para a festa, e danças os mais, porque, enquanto dura, não há parente pobre.

(Daniel, 2004DANIEL, João, Padre. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltd., 2004 [1757-1776]. v. 1. [1757-1776], p. 285-286, grifo do autor).

Na narração coloquial de padre João Daniel, é possível reconhecer claramente as duas bebidas: a primeira, de curta fermentação ou até sem fermentação, “[...] lhes lançam água [...] e está feita a vinhaça, e pode logo beber” (Daniel, 2004DANIEL, João, Padre. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltd., 2004 [1757-1776]. v. 1. [1757-1776], p. 285-286), a segunda, por sua vez, deve fermentar por alguns dias, pois “[...] azeda e esperta, que para o ser não requer mais do que deixá-la estar azedando por alguns dias [...]” (Daniel, 2004DANIEL, João, Padre. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltd., 2004 [1757-1776]. v. 1. [1757-1776], p. 285-286). A primeira era a bebida de cada dia; a segunda era preparada só para eventos especiais.

Entre os antropólogos, Baldus (1950),BALDUS, Herbert. Bebidas e narcóticos dos índios do Brasil. Sociologia, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 161-169, maio 1950. com ampla experiência de campo no Brasil, comentava que o cauí era uma sopa, comparável com um porridge, consumido como alimento até por crianças, mas que, após fermentação, tornava-se uma bebida inebriante.

O mesmo antropólogo, ao comentar a respeito da alimentação dos Tapirapés, com os quais teve ampla experiência de campo, escreveu:

As bebidas cuja fermentação é provocada pela mastigação, podem ser divididas em embriagantes e não embriagantes. À segunda espécie pertence o cauí tapirapé, pois é tomado [...] antes de passarem 24 horas depois da mastigação. O mesmo se dá com o iolorukuá dos Umutína do alto Paraguai [...]

(Baldus, 1970BALDUS, Herbert. Tapirapé: tribo tupí no Brasil Central. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970. (Brasiliana Gigante, 17)., p. 201).

[...] tanto os Tapirapé como os Kamayurá não fabricam bebidas embriagantes, designando aqueles com a palavra kauí as suas sopas de amendoim, milho, mandioca, semente de algodão, abóbora e banana, e até água pura para beber (y-kauí) [...]

(Baldus, 1970BALDUS, Herbert. Tapirapé: tribo tupí no Brasil Central. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970. (Brasiliana Gigante, 17)., p. 197).

A caracterização do cauim como bebida não alcoólica é confirmada por recentes estudos bromatológicos realizados (Colehour et al., 2014COLEHOUR, Alese M; MEADOW, James F; LIEBERT, Melissa A; CEPON-ROBINS, Tara J; GILDNER, Theresa E; URLACHER, Samuel S; BOHANNAN, Brendan J. M; SNODGRASS, J. Josh; SUGIYAMA, Lawrence S. Local domestication of lactic acid bacteria via cassava beer fermentation. PeerJ, San Diego, n. 2, p. e479, Feb. 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.7717/peerj.479.
https://doi.org/10.7717/peerj.479...
; Almeida, E. et al., 2007ALMEIDA, Euziclei G; RACHID, Caio C. T. C; SCHWAN, Rosane F. Microbial population present in fermented beverage ‘cauim’ produced by Brazilian Amerindians. International Journal of Food Microbiology, Amsterdam, v. 120, n. 1-2, p. 146-151, Nov. 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2007.06.020.
https://doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.20...
), entre os quais é possível citar um trecho de Lacerda Ramos et al. (2010, p. 225)LACERDA RAMOS, Cíntia; ALMEIDA, Euziclei Gonzaga de; PEREIRA, Gilberto Vinícius de Melo; CARDOSO, Patrícia Gomes; DIAS, Eustáquio Souza; SCHWAN, Rosane Freitas. Determination of dynamic characteristics of microbiota in a fermented beverage produced by Brazilian Amerindians using culture-dependent and culture-independent methods. International Journal of Food Microbiology, Amsterdam, v. 140, n. 2-3, p. 225-231, June 2010. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2010.03.029.
https://doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.20...
:

Cauim (kawi) is a non-alcoholic beverage produced by Brazilian Indians of the Tapirapé tribe from various substrates such as rice, cassava, corn, peanut, cotton seed, banana, and pumpkin. The nonalcoholic beverage is a staple food for adults and children.

A caracterização do caxiri como alimento líquido é confirmada por outras fontes, por exemplo Silva (1962, p. 224-225)SILVA, Álcionílio Brüzzi Alves da. A civilização indígena do Uaupés. São Paulo: Missão Salesiana do Rio Negro, 1962., que escreve:

O caxiri assemelha-se a uma cerveja ou vinho de fruta, pelo paladar, tão grosso, porém, que mais parece um mingau ou papa rala, alongada. São bebidas fermentadas, e em muitos casos dá-se, outrossim, fermentação alcoólica. O paladar é agradável, especialmente quando se lhe acrescenta caldo de cana. Torna-se, então, mais doce, porém com maior teor de álcool e mais inebriante.

Em seguida, Silva (1962) SILVA, Álcionílio Brüzzi Alves da. A civilização indígena do Uaupés. São Paulo: Missão Salesiana do Rio Negro, 1962.menciona o preparo de sete diferentes tipos de caxiri, sendo seis claramente bebidas alcoólicas, preparadas em ocasiões especiais. Todos eles, com diversos tipos de matéria-prima e, às vezes, com adição de cana, são fermentados por muitos dias, de três a quatro ou até por uma semana. O quarto tipo é o Pêru kaxitié: “É o caxiri habitual, porque se prepara de um dia para o outro, apenas com a minicuera fresca, sem cana. Consome-se num espaço de 24 horas, de meio-dia a meio-dia” (Silva, 1962SILVA, Álcionílio Brüzzi Alves da. A civilização indígena do Uaupés. São Paulo: Missão Salesiana do Rio Negro, 1962., p. 226). Com essa descrição, confirma-se que a bebida habitual, apesar de fermentada, é praticamente sem álcool, em razão da curta fermentação.

Stradelli (1929, p. 127)STRADELLI, Ermano. Vocabularios da lingua geral portuguez-nheêngatú e nheêngatú-portuguez, precedidos de um esboço de Grammatica nheênga-umbuê-sáua mirî e seguidos de contos em lingua geral nheêngatú poranduua. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo 104, n. 158, p. 9-768, 1929., no dicionário da língua nheengatu, escreveu, na definição de beber:

Beber -U, U-y. Em geral não se faz distincção [sic.] entre beber e comer, e U pode dizer uma cousa como outra; todavia, no Rio Negro, reservam U exclusivamente para dizer beber, e então dizem: Embaú – comer. No Solimões, ao contrário, usando U, com o significado de comer, dizem U-y beber, quando se precisa especificar e evitar confusões.

Esse curioso jogo de palavras recorda o hábito de, na antiga Babilônia, dizer ser a cerveja um pão que se bebe, e o pão, uma cerveja que se come (Maurizio, 1932). Também o grande bioquímico do século XIX, Justus Liebig, definia, como escreveu Maurizio (1932, p. 508)MAURIZIO, Adam. Histoire de l’alimentation végétale depuis la préhistoire jusqu’à nos jours. Paris: Payot, 1932., a cerveja como “[...] um pão líquido [...]”.

Viveiros de Castro (1986)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté. Os deuses canibais. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 1986., nas minuciosas descrições que fez sobre os ritos dos Araweté, salienta a variedade das bebidas obtidas do milho: a primeira, uma simples sopa de milho verde, “[...] mingau de milho verde [...]” (Viveiros de Castro, 1986VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté. Os deuses canibais. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 1986., p. 151); logo em seguida, ele fala do cauim doce, feito sempre com milho verde, um mingau menos espesso e de baixa fermentação (por 24 horas), que o próprio autor reconhece ainda ser um alimento; a terceira bebida, feita com milho maduro (de junho a setembro-outubro), o cauim alcoólico, preparado só em eventos excepcionais, de longa fermentação e parcialmente filtrado, este sim reconhecido como uma bebida alcoólica. Curiosamente, porém, o próprio Viveiros de Castro (1992)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 35, p. 21-74, quad. 1992., que bem descreve os hábitos dos Araweté, na excelente análise dos textos dos primeiros cronistas sobre a “[...] inconstância da alma selvagem [...]” (Viveiros de Castro, 1992VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 35, p. 21-74, quad. 1992., p. 24), reportando por extenso a frase de Anchieta que citei anteriormente, por bem duas vezes, omite a frase “[...] por ser como seu mantimento, e assim non lhos tiram os padres de todo, senão o excesso que neles há, porque assim moderado quase nunca se embebedam nem fazem outros desatinos [...]” (Viveiros de Castro, 1992VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 35, p. 21-74, quad. 1992., p. 53). Assim, acentua, provavelmente de forma não intencional, a impressão de se tratar de uma sociedade de ébrios.

Noelli e Brochado (1998)NOELLI, Francisco Silva; BROCHADO, José Proenza. O cauim e as beberagens dos Guarani e Tupinambá: equipamentos, técnicas de preparação e consumo. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n. 8, p. 117-128, sem. 1998. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.1998.109531.
https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750....
, em uma ampla revisão das fontes sobre equipamentos, técnicas e consumo das beberagens dos guarani e dos tupinambá, fazem uma clara descrição entre bebidas alcoólicas e não alcoólicas, comentando a respeito destas últimas:

Pode-se considerar estas bebidas como uma outra maneira de ingerir estes mesmos vegetais que eram consumidos fervidos, assados ou torrados, quebrando a monotonia dietária.

Este tipo de fermentação interrompida do amido produzia açúcar, mas não em quantidade suficiente para gerar um teor alcoólico embriagante. Estas bebidas quando azedam não são mais consumidas, por isso devem ser produzidas diariamente, como se constata na etnografia sul-americana.

(Noelli; Brochado, 1998NOELLI, Francisco Silva; BROCHADO, José Proenza. O cauim e as beberagens dos Guarani e Tupinambá: equipamentos, técnicas de preparação e consumo. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n. 8, p. 117-128, sem. 1998. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.1998.109531.
https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750....
, p. 118).

Recentemente, Henkel (2004)HENKEL, Terry W. Manufacturing procedures and microbiological aspects of Parakari, a novel fermented beverage of the Wapisiana Amerindians of Guyana. Economic Botany, Berlin, v. 58, n. 1, p. 25-37, Mar. 2004. DOI: https://doi.org/10.1663/0013-0001(2004)058[0025:MPAMAO]2.0.CO;2.
https://doi.org/10.1663/0013-0001(2004)0...
, estudando os processos de produção do Parakari, uma bebida fermentada dos Wapisiana, na Guiana, e efetuando a análise microbiológica do produto, descobriu que no processo são utilizados mofos, como Rhizopus sp., Mucoraceae, Zygomycota, tradicionalmente utilizados no oriente para preparação de bebidas e de alimentos fermentados (como o saké, no Japão, e o tempeh, na Indonésia), os quais são definidos como mofos orientais (Josephsen; Jespersen, 2004JOSEPHSEN, Jytte; JESPERSEN, Lene. Starter cultures and fermented products. In: HUI, Y. H; MEUNIER-GODDIK, L; JOSEPHSEN, J; NIP, W.-K; STANFIELD, P. S. (Ed.). Handbook of food and beverage fermentation technology. New York: Marcel Dekker, Inc., 2004. p. 23-50.; Steinkraus, 1983STEINKRAUS, Keith H. Handbook of indigenous fermented foods. 3rd ed. New York: Marcel Dekker, 1983.; Campbell-Platt, 1987CAMPBELL-PLATT, Geoffrey. Fermented foods of the World: a dictionary and guide. London/Boston: Butterworths, 1987.). Até o momento, era desconhecido o uso desta técnica na América do Sul. Neste estudo, Henkel (2004, p. 26)HENKEL, Terry W. Manufacturing procedures and microbiological aspects of Parakari, a novel fermented beverage of the Wapisiana Amerindians of Guyana. Economic Botany, Berlin, v. 58, n. 1, p. 25-37, Mar. 2004. DOI: https://doi.org/10.1663/0013-0001(2004)058[0025:MPAMAO]2.0.CO;2.
https://doi.org/10.1663/0013-0001(2004)0...
observou dois usos diferentes da mandioca fermentada:

The Wapisiana manufacture two cassava beverages, sarawau and parakari, with differing fermentation techniques. Fully fermented parakari is consumed throughout the day by adults, and the sweet, weakly fermented form is relished and consumed by children.

É interessante notar que o estudo experimental de Henkel (2004)HENKEL, Terry W. Manufacturing procedures and microbiological aspects of Parakari, a novel fermented beverage of the Wapisiana Amerindians of Guyana. Economic Botany, Berlin, v. 58, n. 1, p. 25-37, Mar. 2004. DOI: https://doi.org/10.1663/0013-0001(2004)058[0025:MPAMAO]2.0.CO;2.
https://doi.org/10.1663/0013-0001(2004)0...
permite compreender alguns processos de fermentação nativos, narrados pelos cronistas, que apareciam exóticos e ainda esperavam por uma interpretação biológica. Por exemplo, o processo citado por padre Daniel (2004 [1757-1776], p. 285-286)DANIEL, João, Padre. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltd., 2004 [1757-1776]. v. 1.:

Põem estes bolos na quantidade que querem sobre a palma ou palha de suas palhoças, como a fermentar, melhor diremos a apodrecer, já ao sol, e chuva, e já de dia, e de noite, até criarem bolor, e cabeleira, apodrecerem, e bem se azedarem.

Isto nada mais era do que a formação de mofos amilolíticos, que permitiam a quebra de carboidratos complexos em carboidratos mais simples, com maior capacidade de assimilação. O processo é descrito também no manuscrito sobre as missões entre os Omágua, atribuído a padre Maroni (1889 [1738])MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía de Jesús de la provincia de Quito en los dilatados bosques de dicho río, escríbalas por los años 1738 un Misionero de la misma compañía; y las publica ahora por primera vez Marcos Jiménez De La Espada. Madrid: Establecimiento Tipográfico Fortanet, 1889 [1738]. Disponible en: <http://bibliotecadigital.aecid.es/bibliodig/es/consulta/registro.cmd?id=647>. Acceso en: 24 oct. 2017.
http://bibliotecadigital.aecid.es/biblio...
, que compreende também o diário de padre Samuel Fritz:

Hácese desta manera: desolladas las yucas, se ponen a cocinar en una olla grande con poca agua (los napos y otros sin quitarles la cáscara las tuestan en un ahumadero); de allí las ponen una por una en el suelo o barbacoa sobre hojas limpias de plátano; al segundo día las aspergean con unos polvos colorados, que es aquel moho que crían los palos de las chacras o raigones de la misma yuca, medio quemados, y cubren con otras hojas de plátano; déjense así unos cuatro días, en el cual tiempo se van tomando de aquellos polvos y crían un como vello del mismo color, y esto es lo que comunica a la Chaburaza un no se que dulce y saboroso, de modo que sin esos polvos suele ser desabrida.

(Maroni, 1889MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía de Jesús de la provincia de Quito en los dilatados bosques de dicho río, escríbalas por los años 1738 un Misionero de la misma compañía; y las publica ahora por primera vez Marcos Jiménez De La Espada. Madrid: Establecimiento Tipográfico Fortanet, 1889 [1738]. Disponible en: <http://bibliotecadigital.aecid.es/bibliodig/es/consulta/registro.cmd?id=647>. Acceso en: 24 oct. 2017.
http://bibliotecadigital.aecid.es/biblio...
[1738], p. 135-136, grifo do autor).

Não só os Omágua utilizavam a fermentação amilolítica, mas até inoculavam o mofo no substrato de mandioca – “[…] al segundo día las aspergean con unos polvos colorados, que es aquel moho que crían los palos de las chacras […]” (Maroni, 1889MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía de Jesús de la provincia de Quito en los dilatados bosques de dicho río, escríbalas por los años 1738 un Misionero de la misma compañía; y las publica ahora por primera vez Marcos Jiménez De La Espada. Madrid: Establecimiento Tipográfico Fortanet, 1889 [1738]. Disponible en: <http://bibliotecadigital.aecid.es/bibliodig/es/consulta/registro.cmd?id=647>. Acceso en: 24 oct. 2017.
http://bibliotecadigital.aecid.es/biblio...
[1738], p. 135) –, com este processo, alteravam o sabor da massa de mandioca – “[…] lo que comunica a la Chaburaza un no se que dulce y saboroso […]” (Maroni, 1889MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía de Jesús de la provincia de Quito en los dilatados bosques de dicho río, escríbalas por los años 1738 un Misionero de la misma compañía; y las publica ahora por primera vez Marcos Jiménez De La Espada. Madrid: Establecimiento Tipográfico Fortanet, 1889 [1738]. Disponible en: <http://bibliotecadigital.aecid.es/bibliodig/es/consulta/registro.cmd?id=647>. Acceso en: 24 oct. 2017.
http://bibliotecadigital.aecid.es/biblio...
[1738], p. 136). Ao mesmo tempo, Maroni (1889 [1738])MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía de Jesús de la provincia de Quito en los dilatados bosques de dicho río, escríbalas por los años 1738 un Misionero de la misma compañía; y las publica ahora por primera vez Marcos Jiménez De La Espada. Madrid: Establecimiento Tipográfico Fortanet, 1889 [1738]. Disponible en: <http://bibliotecadigital.aecid.es/bibliodig/es/consulta/registro.cmd?id=647>. Acceso en: 24 oct. 2017.
http://bibliotecadigital.aecid.es/biblio...
confirma que a bebida, no fundo, é um alimento: “A veces también se mantienen muchos días con sola bebida, lo cual no hay que admirar, por ser de ordinario sus bebidas muy espesas á modo de mazamorras” (Maroni, 1889MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía de Jesús de la provincia de Quito en los dilatados bosques de dicho río, escríbalas por los años 1738 un Misionero de la misma compañía; y las publica ahora por primera vez Marcos Jiménez De La Espada. Madrid: Establecimiento Tipográfico Fortanet, 1889 [1738]. Disponible en: <http://bibliotecadigital.aecid.es/bibliodig/es/consulta/registro.cmd?id=647>. Acceso en: 24 oct. 2017.
http://bibliotecadigital.aecid.es/biblio...
[1738], p. 136).

Com pesquisa mais ampla, seria possível encontrar outras citações de processos similares que, antes da descoberta dos mofos amilolíticos, eram vistas em certo sentido como incompreensíveis. Sem entrar em maiores detalhes, processos similares de conservação da massa para subsequente fermentação em base seca podem ser encontrados no relato do explorador francês Biet (1664)BIET, Antoine. Voyage de la France eqvinoxiale en l’isle de Cayenne entrepris par les François en l’année M.DC.LII. Diuisé en trois livres. Le premier, contient l’etablissement de la colonie. Le second, ce qui s’est passé pendant quinze mois que l’on a demeuré dans la païs. Le troisiesme, traitte du temperament du païs, de la fertilité de sa terre, & des murs & façons de faire des sauuages de cette contrée. Avec vn dictionnaire de la langue du mesme païs. Paris: F. Clovzier, 1664., ao tratar de uma bebida da Guiana chamada Oücou; ou do botânico francês Fusée-Aublet (1775)FUSÉE-AUBLET, Jean Baptiste Christian. Histoire des plantes de la Guiane Française rangées suivant la méthode sexuelle. Londres/Paris: P.-F. Didot Jeune, 1775., ao descrever duas bebidas, o vicou e o kouapaya-vouarou.

Naturalmente, a descoberta de novos processos de fermentação praticados pelos indígenas não deve levar a se negar a produção e o uso de bebidas alcoólicas inebriantes. Em eventos especiais, geralmente bastante raros, as bebidas de cada dia poderiam ser fermentadas ulteriormente, até se transformarem em produtos inebriantes, podendo resultar em reuniões paroxísticas. A frequência, contudo, deveria ser rara, não mais frequente em relação às festas em homenagem a Dionísio ou a Baco, dos mundos grego e romano, mas com consequências similares. Presumivelmente, o fato de que originariamente essas festas, em muitos casos, estavam ligadas ao sacrifício ritual de um inimigo e ao subsequente banquete canibalesco acentuou o repúdio a estas cerimônias. Todavia, precisamos lembrar, como bem escreveu Montaigne (2000-2001)MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. Tradução de Abílio Costhek. São Paulo: Martins Fontes, 2000-2001., falando dos indígenas:

[...] bem podemos chamá-los de bárbaros com relação às regras da razão, mas não com relação a nós, que os sobrepujamos em toda espécie de barbárie. Sua guerra é totalmente nobre e generosa, e tem tanta justificativa e beleza quanto pode receber essa doença humana: seu único fundamento entre eles é o zelo pela virtude. (p. 314).

[...]

Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo do que comê-lo morto, em dilacerar por tormentos e torturas um corpo ainda cheio de sensibilidade, assá-lo aos poucos, fazê-lo ser mordido e rasgado por cães e por porcos (como não apenas lemos mas vimos de recente memória, não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e concidadãos, e, o que é pior, sob pretextos de piedade e de religião), do que assá-lo e comê-lo depois que ele morreu. (p. 315).

Neste artigo, é demonstrada a existência de dois grupos de bebidas fermentadas entre as sociedades pré-colombianas: de baixa fermentação, verdadeiros alimentos, com teor alcoólico baixo ou inexistente, e de longa fermentação, com alto teor alcoólico. Na maior parte dos casos, as duas bebidas tinham o mesmo nome, este fato gerou ambivalência na interpretação dos seus usos por parte dos testemunhos ocidentais. Algumas fontes mostram claramente que o uso das duas bebidas era diferente, sendo que as de alto teor alcoólico eram utilizadas só em ocasiões especiais: em casos de guerra, de lutos, de nascimentos ou em ritos de iniciação. Destes dados, seria possível concluir que, de fato, as bebidas alcoólicas eram, nas sociedades pré-colombianas, um componente ritual, e as bebedeiras eram um fenômeno ritual, bem diferente do uso imoderado encontrado entre alguns grupos étnicos. Não se pode ignorar que o uso imoderado relatado pelos missionários e pelos antropólogos seja originário da perda de referência em comunidades desestruturadas pelo contato com a sociedade envolvente.

A afirmação da existência de bebidas com diferente nível de graduação alcoólica pode ser demonstrada factualmente. A hipótese de que o uso de bebidas efetivamente alcoólicas, com suas propriedades inebriantes, foi essencialmente ritual, ao contrário, é que deveria ser demonstrada na base da análise mais aprofundada dos ritos nativos, algo difícil de ser realizado neste artigo, fundamentalmente orientado a demostrar as características nutricionais das bebidas, mais do que os aspectos culturais do uso delas. Ainda assim, as razões que induzem a essa afirmação merecem uma rápida menção.

Dentro da mentalidade animista das populações nativas, as bebidas fermentadas eram essencialmente um modo de entrar em contato com as forças vitais da natureza. Como escreveu Karsten (1935b)KARSTEN, Rafael. The origins of religion. London: Kegan Paul, Trench, Trubner W Co. Ltd., 1935b., sintetizando uma visão compartilhada em parte por escritores como Frazer (1923)FRAZER, James George. The golden bough: a study in magic and religion. Abridged Edition. London: Macmillan and Co., 1923., Eliade (1964)ELIADE, Mircea. Shamanism: archaic techniques of ecstasy. Translated from the french by Willard R. Trask. New York: Pantheon Books, 1964. (Bollingen Series, v. 76). e Schultes e Hofmann (1979)SCHULTES, Richard Evans; HOFMANN, Albert. Plants of the gods: origins of hallucinogenic use. New York: McGraw-Hill, 1979.:

That a person intoxicated by a fermented drink is thought to enter into intimate relation with the spiritual world is a natural primitive idea. Like all abnormal or unusual states of mind, the very state of exaltation is explained by the savage according to his “possession” theory. The fact that fermentation is achieved by mixing the fruit with saliva, is also significant. The saliva, which shares the natural magical power of the whole body, is supposed to influence favourably the spirit active in the drink.

(Karsten, 1935bKARSTEN, Rafael. The origins of religion. London: Kegan Paul, Trench, Trubner W Co. Ltd., 1935b., p. 108).

Neste aspecto, é possível comparar essa visão com a originária dos ritos dionisíacos da antiga Grécia. Dionísio era originalmente um deus arcaico da vegetação, ligado à linfa vital que corre nas plantas; a ebriedade da linfa fermentada levava a êxtase e a um contato íntimo com a natureza (Otto, 2005OTTO, Walter Friedrich. Dioniso: mito e culto. Genova: Il Melangolo, 2005 [1933]. [1933]). Como notou Frazer (1923, p. 498)FRAZER, James George. The golden bough: a study in magic and religion. Abridged Edition. London: Macmillan and Co., 1923., “[…] the drinking of wine in the rites of a vine-god like Dionysus is not an act of revelry, it is a solemn sacrament”. A ebriedade, que prefiro como termo em lugar de bebedeira, era, portanto, um fato estritamente ritual, que não poderia ser realizada cada dia, como, por outro lado, amplamente confirmado por Métraux (1979)MÉTRAUX, Alfred. A religião dos Tupinambás e suas relações com a das demais tribos tupi-guaranis. Prefácio, tradução e notas do Prof. Estêvão Pinto; apresentação do Prof. Egon Schaden. São Paulo, SP: Companhia Editora Nacional, 1979..

Nessa opinião do uso parcimonioso das bebidas alcoólicas, encontro confirmação nos escritos de Alexander von Humboldt, que conheceu bem a Amazônia:

It is true that the Ottomacs, the Jaruros, the Achaguas, and the Caribs, are often intoxicated by the immoderate use of chiza (Chicha [ sic.]) and many other fermented liquors, which they know how to prepare with cassava, maize, and the saccharine fruit of the palm-tree; but travellers have as usual generalized what belongs only to the manners of some tribes. We were frequently unable to prevail upon the Gruahibos, or the Maco-Piroas, to taste brandy while they were labouring for us, and seemed exhausted by fatigue. It will require a longer residence of Europeans in these countries to spread there the vices that are already common among the Indians on the coast. In the huts of the natives of Maypures we found an appearance of order and neatness, rarely met with in the houses of the missionaries.

(Humboldt, 1852HUMBOLDT, Alexander von. Personal narrative of travels to the equinoctial regions of America, during the year 1799-1804. Translated and edited by Thomasina Ross. London: Henry G. Bohn, 1852., p. 306).

Por outro lado, uma argumentação que me parece conclusiva sobre a improbabilidade de uso imoderado de bebidas alcóolicas entre os nativos em época pré-colonial parece vir do uso das outras substâncias psicotrópicas. As sociedades nativas, apesar de ricas em substâncias psicotrópicas, como tabaco, coca, Banisteriopsis, Piptadenia, Datura, entre outras (Cooper, 1948COOPER, John M. Estimulants and narcotics. In: STEWARD, Julian Haynes (Ed.). Handbook of South American Indians. Washington: Smithsonian Institution Bureau of American Ethnology, 1948. p. 525-558. (Bulletin 143).), as utilizaram unicamente dentro de um contexto ritual, sendo que nunca foram registrados fenômenos de adição. Ao contrário, chegando na sociedade ocidental, essas mesmas substâncias transformaram-se em drogas, com claras manifestações de adição. Os exemplos mais claros são o tabaco e a coca.

Com um pouco de paciência, poderiam ser encontrados outros exemplos, mas tais citações deveriam ser suficientes para sustentar a tese apresentada no começo deste artigo: as bebidas fermentadas eram, sobretudo, alimentos líquidos fermentados, altamente nutritivos, com efeitos de desintoxicação de metabólitos secundários das plantas e com poder de proteção da flora intestinal. Apenas em situações excepcionais, transformavam-se em bebidas excitantes, com alto conteúdo alcoólico. O aspecto mais importante desta interpretação não reside tanto na negação da importância do álcool na produção de bebidas fermentadas, mas sim na recuperação do significado nutricional dos processos fermentativos.

Vivendo em um continente no qual a vegetação é especialmente rica em metabólitos secundários das plantas (Levin, 1976LEVIN, Donald A. Alkaloid-bearing plants: an ecogeographic perspective. The American Naturalist, Chicago, v. 110, n. 972, p. 261-284, Mar.-Apr. 1976.; Moody, 1978MOODY, Scott. Latitude, continental drift, and the percentage of alkaloid-bearing plants in flora. The American Naturalist, Chicago, v. 112, n. 987, p. 965-968, Sept.-Oct. 1978.), alguns tóxicos, outros medicamentosos, as populações nativas das Américas descobriram muitas propriedades das plantas, criando uma verdadeira cultura que permitia elaborar preparos alucinógenos, sofisticados venenos, tonificantes poderosos, que hoje a etnobotânica e a etnomedicina tentam recuperar. As fermentações, em base líquida e em base sólida, fazem parte deste padrão, que precisamos assimilar, encontrando seu significado dentro da ciência moderna. Em vista dos atuais conhecimentos biológicos, processos como os relatados por padre João Daniel ou padre Moroni, citados neste artigo, que a uma leitura ingênua podem parecer aberrantes (e assim, provavelmente, apareciam aos cronistas), revestem-se, uma vez compreendido o aspecto biológico, de um profundo significado nutricional. Com fermentação em base sólida, a massa de mandioca, de difícil digestão e pobre em proteína, graças aos mofos amilolíticos, tinha os amidos dissociados em açúcares e era enriquecida com proteínas. Exemplos como estes mostram que uma leitura dos processos nativos feita com esta perspectiva nos ensina a entender ainda mais as sofisticadas formas de conhecimento desenvolvidas ao longo dos séculos pelas populações indígenas das Américas.

  • 1
    “Oh, sim, como não. Mas, pro meu sentimento – e sou nascido aqui, criado nesses hábitos – é uma tradição que seria mais honroso romper, não respeitar. Esse deboche brutal nos transforma em alvo de insultos e achincalhes de todas as nações, do Oriente ao Ocidente, nos dá fama de bêbados, mancha nossa reputação; dinamarqueses suínos. Todos os nossos feitos, por mais belos que sejam, ficam ofuscados por esse costume inglório” (Shakespeare, 2012SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2012., ato I, cena IV, tradução de Millôr Fernandes).
  • 2
    Bula Veritas Ipsa, conhecida também como Sublimis Deus.
  • 3
    “É uma bebida grossa e nutritiva [...]” (Staden, 1557STADEN, Hans. Wahrhaftige Historia. Mandenburg: [s.n.], 1557. Available in: <http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Astaden-1557-warhaftige/staden_1557_warhaftige.pdf>. Access in: 15 June 2012.
    http://etnolinguistica.wdfiles.com/local...
    , p. 150, tradução nossa). Cito a edição alemã porque, na tradução portuguesa de 1974, o termo nahraft é traduzido como “[...] bom gosto [...]” (Staden, 1974STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1974., livro II, cap. 14).
  • 4
    Latim: ao menos.

REFERÊNCIAS

  • ACOSTA, José de. Historia natural y moral de las Indias Estudio preliminar y edición del P. Francisco Mateos. Madrid: Atlas, 1954 [1588].
  • ALMEIDA, Euziclei G; RACHID, Caio C. T. C; SCHWAN, Rosane F. Microbial population present in fermented beverage ‘cauim’ produced by Brazilian Amerindians. International Journal of Food Microbiology, Amsterdam, v. 120, n. 1-2, p. 146-151, Nov. 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2007.06.020.
    » https://doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2007.06.020
  • ALMEIDA, Fernando Ozorio de. A arqueologia dos fermentados: a etílica história dos Tupi-Guarani. Estudos Avançados, São Paulo, v. 29, n. 83, p. 87-118, jan.-abr. 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142015000100006.
    » https://doi.org/10.1590/S0103-40142015000100006
  • ANCHIETA, José de, Padre. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933 [1580c].
  • AUBERT, C. Les aliments fermentés traditionnels Paris: Terre Vivante, 1985.
  • BALDUS, Herbert. Tapirapé: tribo tupí no Brasil Central. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970. (Brasiliana Gigante, 17).
  • BALDUS, Herbert. Bebidas e narcóticos dos índios do Brasil. Sociologia, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 161-169, maio 1950.
  • BARGHINI, Alessandro. O milho na América do Sul pré-colombiana. Uma história natural. Pesquisas-Antropologia, São Leopoldo, n. 61, p. 1-170, 2004.
  • BIET, Antoine. Voyage de la France eqvinoxiale en l’isle de Cayenne entrepris par les François en l’année M.DC.LII Diuisé en trois livres. Le premier, contient l’etablissement de la colonie. Le second, ce qui s’est passé pendant quinze mois que l’on a demeuré dans la païs. Le troisiesme, traitte du temperament du païs, de la fertilité de sa terre, & des murs & façons de faire des sauuages de cette contrée. Avec vn dictionnaire de la langue du mesme païs. Paris: F. Clovzier, 1664.
  • CAMPBELL-PLATT, Geoffrey. Fermented foods of the World: a dictionary and guide. London/Boston: Butterworths, 1987.
  • COLEHOUR, Alese M; MEADOW, James F; LIEBERT, Melissa A; CEPON-ROBINS, Tara J; GILDNER, Theresa E; URLACHER, Samuel S; BOHANNAN, Brendan J. M; SNODGRASS, J. Josh; SUGIYAMA, Lawrence S. Local domestication of lactic acid bacteria via cassava beer fermentation. PeerJ, San Diego, n. 2, p. e479, Feb. 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.7717/peerj.479.
    » https://doi.org/10.7717/peerj.479
  • COOPER, John M. Estimulants and narcotics. In: STEWARD, Julian Haynes (Ed.). Handbook of South American Indians Washington: Smithsonian Institution Bureau of American Ethnology, 1948. p. 525-558. (Bulletin 143).
  • DANIEL, João, Padre. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltd., 2004 [1757-1776]. v. 1.
  • ELIADE, Mircea. Shamanism: archaic techniques of ecstasy. Translated from the french by Willard R. Trask. New York: Pantheon Books, 1964. (Bollingen Series, v. 76).
  • FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). Fermented cereals: a global perspective. Roma: FAO, 1999a. (FAO Agricultural Service Bulletin, n. 138).
  • FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). Fermented fruits and vegetables: a global perspective. Roma: FAO, 1999b. (FAO Agricultural Service Bulletin, n. 134).
  • FRAZER, James George. The golden bough: a study in magic and religion. Abridged Edition. London: Macmillan and Co., 1923.
  • FUSÉE-AUBLET, Jean Baptiste Christian. Histoire des plantes de la Guiane Française rangées suivant la méthode sexuelle Londres/Paris: P.-F. Didot Jeune, 1775.
  • HARNER, M. The Jívaro: people of the Sacred Waterfalls. Berkeley: University of California Press, 1972.
  • HENKEL, Terry W. Manufacturing procedures and microbiological aspects of Parakari, a novel fermented beverage of the Wapisiana Amerindians of Guyana. Economic Botany, Berlin, v. 58, n. 1, p. 25-37, Mar. 2004. DOI: https://doi.org/10.1663/0013-0001(2004)058[0025:MPAMAO]2.0.CO;2.
    » https://doi.org/10.1663/0013-0001(2004)058[0025:MPAMAO]2.0.CO;2
  • HUMBOLDT, Alexander von. Personal narrative of travels to the equinoctial regions of America, during the year 1799-1804 Translated and edited by Thomasina Ross. London: Henry G. Bohn, 1852.
  • JOSEPHSEN, Jytte; JESPERSEN, Lene. Starter cultures and fermented products. In: HUI, Y. H; MEUNIER-GODDIK, L; JOSEPHSEN, J; NIP, W.-K; STANFIELD, P. S. (Ed.). Handbook of food and beverage fermentation technology New York: Marcel Dekker, Inc., 2004. p. 23-50.
  • KARSTEN, Rafael. The head hunters of Western Amazonas The life and culture of the Jíbaro Indians of Eastern Ecuador and Perú. Elsingfors: Societas Scientiarum Litterarum, 1935a. v. 7.
  • KARSTEN, Rafael. The origins of religion London: Kegan Paul, Trench, Trubner W Co. Ltd., 1935b.
  • KATZ, Sandor Ellix. The art of fermentation: an in-depth exploration of essential concepts and processes from around the world. White River Junction, Vermont: Chelsea Green Publishing, 2015.
  • LACERDA RAMOS, Cíntia; ALMEIDA, Euziclei Gonzaga de; PEREIRA, Gilberto Vinícius de Melo; CARDOSO, Patrícia Gomes; DIAS, Eustáquio Souza; SCHWAN, Rosane Freitas. Determination of dynamic characteristics of microbiota in a fermented beverage produced by Brazilian Amerindians using culture-dependent and culture-independent methods. International Journal of Food Microbiology, Amsterdam, v. 140, n. 2-3, p. 225-231, June 2010. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2010.03.029.
    » https://doi.org/10.1016/j.ijfoodmicro.2010.03.029
  • LAS CASAS, Bartolomeu de, Frei. Liberdade e justiça para os povos da América: oito tratados impressos em Sevilha em 1552. São Paulo: Paulus, 2010 [1552].
  • LÉRY, Jean de. Histoire d’un voyage fait en la terre du Bresil, autrement dite Amerique La Rochelle, France: Pour Antoine Chuppin, 1578.
  • LESTRINGANT, Frank. O Brasil de Montaigne. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 49, n. 2, p. 515-556, jul.-dez. 2006. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77012006000200001.
    » https://doi.org/10.1590/S0034-77012006000200001
  • LEVIN, Donald A. Alkaloid-bearing plants: an ecogeographic perspective. The American Naturalist, Chicago, v. 110, n. 972, p. 261-284, Mar.-Apr. 1976.
  • LÉVI-STRAUSS, C. Histoire de Lynx Paris: Plon, 1991.
  • MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía de Jesús de la provincia de Quito en los dilatados bosques de dicho río, escríbalas por los años 1738 un Misionero de la misma compañía; y las publica ahora por primera vez Marcos Jiménez De La Espada Madrid: Establecimiento Tipográfico Fortanet, 1889 [1738]. Disponible en: <http://bibliotecadigital.aecid.es/bibliodig/es/consulta/registro.cmd?id=647>. Acceso en: 24 oct. 2017.
    » http://bibliotecadigital.aecid.es/bibliodig/es/consulta/registro.cmd?id=647
  • MAURIZIO, Adam. Histoire de l’alimentation végétale depuis la préhistoire jusqu’à nos jours Paris: Payot, 1932.
  • MÉTRAUX, Alfred. A religião dos Tupinambás e suas relações com a das demais tribos tupi-guaranis Prefácio, tradução e notas do Prof. Estêvão Pinto; apresentação do Prof. Egon Schaden. São Paulo, SP: Companhia Editora Nacional, 1979.
  • MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios Tradução de Abílio Costhek. São Paulo: Martins Fontes, 2000-2001.
  • MONTOYA, Antonio Ruiz de. Vocabulario y tesoro de la lengua guarani, ó más bien tupi Viena: Faesy y Frick; Paris: Maisonneuve y Cia., 1876 [1640].
  • MOODY, Scott. Latitude, continental drift, and the percentage of alkaloid-bearing plants in flora. The American Naturalist, Chicago, v. 112, n. 987, p. 965-968, Sept.-Oct. 1978.
  • NOELLI, Francisco Silva; BROCHADO, José Proenza. O cauim e as beberagens dos Guarani e Tupinambá: equipamentos, técnicas de preparação e consumo. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n. 8, p. 117-128, sem. 1998. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.1998.109531.
    » https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.1998.109531
  • OTTO, Walter Friedrich. Dioniso: mito e culto. Genova: Il Melangolo, 2005 [1933].
  • PAULO III, Papa. Sublimis Deus 1537. In: Cathopedia Disponível em: <http://it.cathopedia.org/wiki/Sublimis_Deus>. Acesso em: 10 jan. 2018.
    » http://it.cathopedia.org/wiki/Sublimis_Deus
  • PIPERNO, Dolores R; PEARSALL, Deborah M. The origins of agriculture in the lowland neotropics San Diego: Academic Press, 1998.
  • POMA DE AYALA, Felipe Guamán. El primer nueva corónica y buen gobierno Edición de J. V. Murra e R. Adorno. Traducciones del quechua por Jorge L. Urioste. Mexico, D.F: Siglo Veintiuno Editores, 1980 [1615]. 3 tomos.
  • SCHULTES, Richard Evans; HOFMANN, Albert. Plants of the gods: origins of hallucinogenic use. New York: McGraw-Hill, 1979.
  • SHAKESPEARE, William. Hamlet Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2012.
  • SHAKESPEARE, William.The Works of Shakespeare the Tragedy of Hamlet Edited by Edward Dowden. London: Methuen and co., 1899.
  • SILVA, Álcionílio Brüzzi Alves da. A civilização indígena do Uaupés São Paulo: Missão Salesiana do Rio Negro, 1962.
  • STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1974.
  • STADEN, Hans. Wahrhaftige Historia Mandenburg: [s.n.], 1557. Available in: <http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Astaden-1557-warhaftige/staden_1557_warhaftige.pdf>. Access in: 15 June 2012.
    » http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Astaden-1557-warhaftige/staden_1557_warhaftige.pdf
  • STEINKRAUS, Keith H. Handbook of indigenous fermented foods 3rd ed. New York: Marcel Dekker, 1983.
  • STRADELLI, Ermano. Vocabularios da lingua geral portuguez-nheêngatú e nheêngatú-portuguez, precedidos de um esboço de Grammatica nheênga-umbuê-sáua mirî e seguidos de contos em lingua geral nheêngatú poranduua. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo 104, n. 158, p. 9-768, 1929.
  • SZTUTMAN, Renato. Cauinagem, uma comunicação embriagada: apontamentos sobre uma festa tipicamente ameríndia. Sexta Feira, São Paulo, n. 2, p. 120-131, 1998.
  • THÉVET, André. Les singularitez de la France antarctique, autrement nommée Amérique Paris: Chez les Héritiers de Maurice de La Porte, 1558.
  • VEGA, Inca Garcilaso de la. Comentarios reales de los Incas 2. ed. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1985 [1609].
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 35, p. 21-74, quad. 1992.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté Os deuses canibais. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 1986.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2018
  • Aceito
    06 Jul 2018
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação, Av. Perimetral. 1901 - Terra Firme, 66077-830 - Belém - PA, Tel.: (55 91) 3075-6186 - Belém - PA - Brazil
E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br