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Termos de parentesco: primeiras reconstruções em Proto-Arara-Ikpeng

Kinship terms: initial reconstructions in Proto-Arara-Ikpeng

Resumo

Sobre a classificação genética da família linguística Karíb, Meira e Franchetto (2005) propõem que o ramo pekodiano é formado pelas línguas Bakairi, Arara e Ikpeng, sendo que estas duas últimas estão no limite do que pode ser considerado como dialetos de uma mesma língua. Por sua vez, os falantes de Arara e Ikpeng alegam ser parentes próximos e relatam um nível razoável de inteligibilidade: conseguem, em geral, conversar com sucesso, embora encontrem, às vezes, dificuldades de compreensão. Para o referido estudo, os autores utilizaram dados lexicais provenientes apenas das línguas Bakairi e Ikpeng, pressupondo esta última como codialeto de Arara. O presente artigo busca realizar um estudo comparativo entre Arara e Ikpeng, utilizando, para isso, termos de parentesco. Para uma compreensão holística das semelhanças e diferenças entre essas duas línguas, buscamos realizar análises tanto do ponto de vista linguístico – comparando as formas dos termos de parentesco – quanto antropológico, cotejando os sistemas apontados por etnografias existentes. Os dados linguísticos, por sua vez, são provenientes de trabalhos de campo realizados nas comunidades Arara e Ikpeng por Ana Carolina Ferreira Alves (nos anos de 2014 a 2017) e por Angela Fabíola Alves Chagas (em 2012), respectivamente.

Palavras-chave
Língua Arara; Língua Ikpeng; Termos de parentesco; Linguística histórica; Reconstrução

Abstract

On the genetic classification of the Cariban language family, Meira and Franchetto (2005) propose a branch they term ‘Pekodian’, which includes Bakairi, Arara, and Ikpeng. The latter two languages are on the border of the language-dialect distinction; speakers of both varieties claim to be close relatives and report a reasonable level of mutual intelligibility, and while they can successfully converse, there are occasional comprehension difficulties. Meira and Franchetto used lexical data from only the Bakairi and Ikpeng languages, implicitly assuming that Arara and Ikpeng are co-dialects. The present work compares Arara and Ikpeng kinship terms. In order to obtain a holistic understanding of the differences between these languages we undertake analyses which are both linguistic (comparing the forms of kinship terms) and anthropological (comparing the systems described in existing ethnographies). The language data come from fieldwork conducted in Arara communities by Ana Carolina Ferreira Alves from 2014 to 2017 and in Ikpeng communities by Angela Fabíola Alves Chagas in 2012.

Keywords
Arara language; Ikpeng language; Kinship terms; Historical linguistics; Reconstruction

INTRODUÇÃO

Este artigo constitui-se em um trabalho com influência de metodologia interdisciplinar (Japiassu, 1976JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.) e busca, a partir da convergência entre antropologia e linguística, a compreensão de termos do sistema de parentesco do Proto-Arara-Ikpeng. O Arara e o Ikpeng são codialetos (Meira; Franchetto, 2005MEIRA, Sérgio; FRANCHETTO, Bruna. The Southern Cariban languages and the Cariban family. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 2, p. 127-192, Apr. 2005. DOI: https://doi.org/10.1086/491633.
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) pertencentes ao ramo pekodiano da família linguística Karíb (Meira, 2006MEIRA, Sérgio. A família linguística Caribe (Karíb). Revista de Estudos e Pesquisas, Brasília, v. 3, n. 1/2, p. 157-174, 2006. Disponível em: http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/journal:funai/meira_2006_familia_Karib.pdf. Acesso em: 20 jan. 2019.
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; Gildea, 2012GILDEA, Spike. Linguistic studies in the Cariban family. In: CAMPBELL, L.; GRONDONA, V. (ed.). Handbook of South American Languages. Berlin: Mouton de Gruyter, 2012. p. 441-494.). Para alcançar o referido objetivo, do ponto de vista da organização dos sistemas de parentesco, foi realizada a comparação entre dados obtidos por Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997. e Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.. A partir de dados primários obtidos por Ana Carolina Ferreira Alves e Angela Fabíola Alves Chagas e do trabalho de reconstrução dos fonemas do Proto-Arara-Ikpeng (em fase de elaboração)1 1 Fonologia segmental do Proto-Arara-Ikpeng”, de autoria de Ana Carolina Ferreira-Alves. , é proposta, neste artigo, a reconstrução de alguns termos de parentesco presentes na protolíngua. Os dados de Ferreira-Alves, coletados no período de 2014 a 2017, foram obtidos a partir de elicitações (Chelliah; De Reuse, 2011CHELLIAH, Shobhana; DE REUSE, Willem. Handbook of descriptive linguistic fieldwork. Netherland: Springer, 2011. DOI: https://doi.org/10.1007/978-90-481-9026-3.
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) com falantes adultos com idades entre 30 e 37 anos, bilíngues em arara e em português, e residentes na comunidade conhecida como Cachoeira-Seca do Iriri. Chagas, por sua vez, obteve seus dados em 2012 utilizando seções de elicitação e/ou entrevistas (Bowern, 2008BOWERN, Claire. Linguistic fieldwork: a practical guide. Nova Iorque: Palgrave: MacMillan, 2008. Disponível em: http://qisar.fssr.uns.ac.id/wp-content/uploads/2015/04/Qisar-Claire-Bowern-Linguistic-Fieldwork-A-Practical-Guide.pdf. Acesso em: 04 dez. 2018.
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) com falantes bilíngues, jovens adultos entre 20 e 35 anos, que habitam a comunidade Moygu. O viés interdisciplinar permitiu associar os termos com relações sociais e usos que apresentam particularidades histórico-culturais. Por outro lado, compreende-se que essa associação, como apresentada neste estudo, longe de ser exaustiva, tem caráter exemplificativo, necessitando ainda de maior aprofundamento.

O povo Arara vive às margens do rio Iriri, um afluente do médio rio Xingu, no estado do Pará. Sua crescente população está em torno de 650 pessoas2 2 Segundo o último censo, os Arara contavam com 571 pessoas e os Ikpeng com 505 (IBGE, 2010). É plausível admitir que este número seja maior atualmente. . Atualmente, o povo que se autodenomina ugrongmo [ugŋroŋ’mo] distribui-se em quatro aldeias: Laranjal, Manggarapi, Arumbi e Iriri. A comunidade residente na aldeia Iriri viveu um processo histórico diferenciado em relação aos grupos Arara residentes das demais comunidades, de modo que, desde o contato, já se verificavam modificações e particularidades (Ferreira-Alves; Barbosa, 2017FERREIRA-ALVES, Ana Carolina; BARBOSA, Leonard. Persistência histórica de processos conflituosos com populações tradicionais: impactos sobre o povo Arara do Pará. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DA AMÉRICA LATINA, 2., 2017, Belém. Anais [...]. Belém: UFPA: NAEA, 2017. p. 1415-1428.). A análise do sistema de parentesco Arara que fundamenta este estudo é encontrada nos estudos antropológicos realizados por Teixeira-Pinto (1989TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Os Arara: tempo, espaço e relações sociais em um povo Karibe. 1989. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1989., 1993TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Relações de substância e classificação social: alguns aspectos da organização social Arara. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, n. 90, p. 169-204, sem. 1993. Disponível em: http://dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/Separatas1990/anuario90_marniopinto.pdf. Acesso em: 18 fev. 2019.
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, 1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997..

O povo Ikpeng habita o Parque Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso, e conta com cerca de 500 indivíduos, que se distribuem em quatro aldeias: Moygu, Rawo e Arayo, às margens do rio Xingu, e Tupara, às margens do rio homônimo. O sistema de parentesco do povo Ikpeng foi analisado por Menget (1977MENGET, Patrick. Au nom des autres. Classification des relations sociales chez les Txicão du haut-Xingu (Brésil). 1977. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Université de Paris X, Nanterre, 1977., 2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.. Os dados que deram origem à pesquisa foram coletados pelo referido autor no início da década de 1970, em um período recente após o contato com os não indígenas. Em 2012, Chagas, em pesquisa de campo, coletou com os residentes da aldeia Moygu uma lista de termos de parentesco que também foram utilizados neste trabalho.

Utiliza-se, neste artigo, a noção de Tornay (1971)TORNAY, Serge. O estudo do parentesco. In: COPANS, J.; Tornay, S.; Godelier, M.; Backès-Clément, C. Antropologia: ciência das sociedades primitivas? Lisboa: Edições 70, 1971. p. 43-89. sobre parentesco, segundo a qual as relações são geradas tanto por fenômenos de consanguinidade – isto é, aquelas em que as pessoas reconhecem ter ao menos um antepassado comum – quanto por fenômenos de aliança – caracterizada pela relação criada por casamento, entre outras situações. Assim, a conceituação de parentesco apresenta uma natureza tanto biológica quanto, e sobretudo, sociocultural. No presente estudo, são apresentados apenas os termos relacionados à consanguinidade, ‘mãe, pai, irmãos, tios, avós etc.’, indicando a necessidade de trabalho futuro que venha a relacionar os demais aspectos que interagem em cada um dos sistemas de parentesco3 3 Sistema de parentesco’ pode ser compreendido como a combinação de ao menos três tipos de relações basilares: de consanguinidade, de descendência e de afinidade. Para uma discussão mais ampliada sobre essa articulação, especialmente como se consolidam em âmbitode grupos de língua Karíb (e outros indígenas brasileiros), ver Viveiros de Castro (1986, 1996) e Rivière (1984). , bem como os processos que configuram as estruturas familiares evidenciadas pelos nomes adotados.

Este artigo organiza-se em duas seções. Na primeira parte, são tecidas algumas considerações sobre possíveis aproximações entre os sistemas de parentesco propostos por Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. e Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997.. No segundo momento, há uma comparação da forma dos termos, para o que são utilizados dados coletados em campo pelas autoras, assim como termos encontrados em literatura prévia (Menget, 2001MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.; Teixeira-Pinto, 1997TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997.; Souza, S., 2010SOUZA, Shirley. The morphology of nouns in the Ugoroŋmo language (Arara of Pará). 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística) – University of North Dakota, North Dakota, 2010.). Apenas fontes de dados secundários são indicadas. Por meio do método histórico comparativo (Campbell, 1998CAMPBELL, Lyle. Historical linguistics: an introduction. Edinburgh: Edinburg University Press, 1998.), foi reconstruído (tentativamente) um conjunto de termos de parentesco do Proto-Arara-Ikpeng.

A seguir, apresentam-se considerações sobre a proximidade dos sistemas de parentesco em Arara e Ikpeng, bem como sobre a proximidade de uso dos dois sistemas, o que deverá estimular mais estudos comparativos entre essas línguas.

SISTEMAS DE CLASSIFICAÇÃO SOCIAL

Apresentam-se, nesta seção, os principais sistemas de classificação social que envolvem os termos de parentesco para o Arara e o Ikpeng. É importante salientar que estes sistemas não são constituídos enquanto verdades absolutas. Como aponta Silva (1999)SILVA, Marcio. Linguagem e parentesco. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 42, n. 1/2, p. 133-161, sem. 1999. DOI: https://doi.org/10.1590/S0034-77011999000100009.
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, as esferas dos estudos de parentesco são compostas de múltiplos campos. O que se busca aqui não é uma correspondência termo a termo entre vocábulos utilizados e as atitudes correspondentes. Outro aspecto a ser reafirmado de antemão é que os sistemas nos quais nos baseamos foram descritos por Teixeira-Pinto e Menget para as duas línguas estudadas, não havendo a possibilidade de contestá-los ou validá-los no atual momento desta pesquisa. Essas afirmativas são relevantes no sentido de que não há, no presente momento, possibilidade de indicarmos com maior clareza quando um dado sistema é horizontal ou oblíquo4 4 Para um panorama de discussões sobre sistemas horizontais e oblíquos em línguas Karíb, consultar Rivière (1984) e Silva (1999, 2010). , uma vez que podem haver variações e lacunas ainda não sanadas em relação aos dados disponíveis.

Algumas características gerais, comuns aos dois grupos étnicos, de importância para o entendimento das classificações sociais, são apresentadas a seguir. Segundo Teixeira-Pinto (1993, 1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Relações de substância e classificação social: alguns aspectos da organização social Arara. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, n. 90, p. 169-204, sem. 1993. Disponível em: http://dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/Separatas1990/anuario90_marniopinto.pdf. Acesso em: 18 fev. 2019.
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e Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001., Arara e Ikpeng apresentam tendência à uxorilocalidade5 5 Os termos uxorilocal ou matrilocal referem-se ao costume tradicional em que, após o casamento, os cônjuges mudam-se para a casa dos pais da esposa ou para a sua comunidade. , porém, em casos de casamento com mais de uma esposa, esta característica se torna variável. Às vezes, opta-se pelo casamento com a irmã da esposa, o que resolve este embaraço e reduz a quantidade de obrigações do marido para com o sogro (Teixeira-Pinto, 1997TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997.).

Teixeira-Pinto (1993, 1997) descreve e justifica a existência de dois modos de classificação social em Arara, aos quais o autor também se refere como um sistema semicomplexo. Já Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001., embora não use a mesma forma de expressão e não explicite a existência de dois ‘sistemas’ em Ikpeng, afirma que há dupla utilização de séries genealógicas, como em um sistema misto. Isso deixa a entender que, possivelmente, o sistema descrito por ele é um resquício de sistemas passados semelhantes ao que se verifica atualmente em Arara, cuja mesma série de termos tem dupla utilização, uma dentro de cada sistema. Esta dupla utilização do mesmo conjunto de termos classificatórios demonstra que a existência de polissemias só pode ser compreendida considerando-se características de mais de um sistema de classificação, ressaltando a complexidade da organização de parentesco dos Arara e dos Ikpeng. Tais sistemas ocorreriam paralelamente, não simultaneamente. Algumas observações iniciais a respeito dos sistemas de classificação alternativos são oferecidas a seguir.

ASPECTOS DOS SISTEMAS DE PARENTESCO CONSANGUÍNEO DOS ARARA E DOS IKPENG

Segundo Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997., as relações sociais dos Arara são por eles classificadas segundo três lógicas: concepções nativas de parentesco; relações de aliança e de afinidade; e relações mais ou menos formais de ‘amizade’, cooperação e solidariedade. Todas essas, segundo o autor, são organizadas pela identidade de substância6 6 Por ‘substância’ entende-se o princípio vital líquido do qual compartilham todos os seres. Alguns exemplos são o sangue, o sêmen, o suor, a saliva etc. É importante mencionar que Menget (1977, 2001) chega a perceber a questão da substância influenciando as relações, porém não aprofunda sua análise. Podemos considerar que, de acordo com Teixeira-Pinto (1997), a substância e o seu ciclo organizam o sistema e promovem ajustes quando necessário; já para Menget (1977, 2001), as incongruências do sistema seriam ordenadas pela onomástica (mais ligada a uma explicação das alianças). Barros (1992) também salienta a importância da substância vital ekuru ou, simplesmente, kuru entre os Bakairi.7 e pelas interações sociais delas decorrentes, que organizariam as relações de parentesco, objeto deste artigo.

As relações de parentesco, segundo Souza, M. (2004)SOUZA, Marcela Coelho de. Parentes de sangue: incesto, substância e relação no pensamento Timbira. Mana, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 25-60, abr. 2004. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132004000100002.
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, podem, de um modo geral, ser demonstradas pela variação proximidade/distância entre as pessoas. Nesse sentido, poderia ser privilegiada uma análise que trate das relações de afinidade potencial, como sugere Viveiros de Castro (2000)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Atualização e contra-efetuação do virtual na socialidade amazônica: o processo de parentesco. Ilha: Revista de Antropologia, Florianópolis, n. 1, p. 5-46, dez. 2000. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/14635/13384. Acesso em: 20 fev. 2019.
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. As unidades que sobressaem, quando se consideram as relações sociais em Arara, são os grupos residenciais, compostos por diversos núcleos familiares. A estrutura da casa, por sua vez, está centrada na figura de um homem já velho, pai da maior parte das mulheres e sogro dos homens adultos. Antes do contato definitivo, o homem velho, a(s) esposa(s), as filhas e filhos solteiros, as filhas casadas e os genros viviam em uma grande casa comunal (Teixeira-Pinto, 1997TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997.). O ‘grupo residencial’ pode ser entendido, de forma simplificada, como a casa, desde que idealmente regida pelas lógicas da uxorilocalidade e da cooperação/serviço a ser prestado aos sogros e aos cunhados. Atualmente, os núcleos familiares passam a morar separadamente, especialmente após as ações de mitigação da Usina Hidrelétrica Belo Monte (Ferreira-Alves; Barbosa, 2017FERREIRA-ALVES, Ana Carolina; BARBOSA, Leonard. Persistência histórica de processos conflituosos com populações tradicionais: impactos sobre o povo Arara do Pará. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DA AMÉRICA LATINA, 2., 2017, Belém. Anais [...]. Belém: UFPA: NAEA, 2017. p. 1415-1428.).

Quanto ao Ikpeng, Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. apresenta a lógica de entendimento do sistema de parentesco como diretamente relacionada ao núcleo familiar que se encontra ligado ao fogo no interior da residência e especialmente ao sistema de nomeação, o que não foi identificado em Arara por Teixeira-Pinto (1993, p. 200)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Relações de substância e classificação social: alguns aspectos da organização social Arara. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, n. 90, p. 169-204, sem. 1993. Disponível em: http://dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/Separatas1990/anuario90_marniopinto.pdf. Acesso em: 18 fev. 2019.
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: “Os Araras nada mostram sobre um ‘sistema de transmissão de nomes’ que operasse na fronteira entre uma dimensão cerimonial e outra marcada pelas relações de ‘sangue’”7 7 Durante um intercâmbio entre os Arara, da aldeia Iriri, e os Ikpeng, foi presenciada a cessão do nome da matriarca da aldeia Iriri a uma jovem Ikpeng. Talvez alguma prática onomástica semelhante à dos Ikpeng tenha existido entre os Arara, embora atualmente tenha caído em desuso. .

Em Arara, há um conjunto de poucos termos de parentesco. Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997. aponta um total de dezoito (18) termos consanguíneos, entre os quais o homem se utiliza de treze (13), sendo oito (8) exclusivos, enquanto a mulher usa apenas dez (10), incluindo cinco (5) de seu uso exclusivo. Mulheres chamam a todos na primeira geração descendente (G-1) de imren, independente do sexo, o que reduz o número de categorias disponíveis. De maneira geral, o autor sintetiza que a classificação social se dá mais por definição de graus de proibição matrimonial do que por prescrição explícita. Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. aborda o mesmo tema, em Ikpeng, dando enfoque maior ao grau de proximidade/distância. Nesses aspectos, Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001., a partir de uma análise diferente da realizada para o Arara, em que ele inclui em sua contagem termos consanguíneos e termos de afinidade, chega a um total de vinte e cinco (25) possibilidades, sendo dez (10) de uso comum a ambos os sexos, dez (10) de uso exclusivo dos homens e apenas cinco (5) de uso exclusivo de mulheres. Desse total, apenas dezenove (19) são utilizados entre parentes consanguíneos. Segundo ele, não há uma classe explícita de parentes interdita para relações sexuais, mas isso não quer dizer que eles não sigam uma lógica de proibições8 8 Quando o autor realizou o estudo genealógico, foi identificado um conjunto de restrições, como “[...] entre pais e filhos (biológicos e adotivos); irmãos que possuam um ou mais ascendentes realmente comuns; entre sogros e genro ou nora, respectivamente ao sexo”(Menget, 2001, p. 184). .

Os níveis geracionais relevantes em Arara são G+2, G+1, G+0, G-1, G-2. Com um único conjunto de termos, as classificações juntam traços ‘havaianos’ (por exemplo, FZS=MBS=B9 9 Neste artigo, faz-se uso de siglas referentes aos termos de parentesco, representadas pelas letras iniciais das palavras em inglês: F = father (pai), M = mother (mãe), S = son (filho), D = daughter (filha), B = brother (irmão), Z = sister (irmã) e suas combinações. Além disso, usa-se y = younger (mais jovem) e e = elder (mais velho). ) com equações semelhantes às equações dos sistemas ditos Crow-Omaha10 10 Refere-se ao tipo de nomeação dos parentes em que mais de uma geração é chamada pelos mesmos termos. Parentes colaterais são aproximados ou afastados da geração de ego. Há, ainda, muita discussão a respeito do que leva este sistema a ser entendido como umsistema semicomplexo, ver mais em Héritier (1981), Viveiros de Castro (1996) e Rivière (1984). (por exemplo, FZ=FM). Veja que o autor aponta ‘traços’ dos referidos sistemas e prefere identificá-los como ‘horizontal’ e ‘oblíquo’, respectivamente. Tais sistemas mostram-se complementares, sendo o primeiro tido como base para o sistema de classificação como um todo, no sentido de que os mesmos dezoito (18) termos referem-se a dois conjuntos classificatórios paralelos. O sistema horizontal opera entre membros de um mesmo grupo residencial, enquanto que o oblíquo atua entre pessoas de grupos residenciais distintos. Por exemplo, ego masculino utiliza o termo eŋpɨ para chamar MM, MF enquanto está solteiro; tendo casado e, por isso, como novo residente da casa dos pais da esposa, chama eŋpɨ agora para FZ, quando FZ=MF=MM. Reitera-se que os termos são os mesmos, o que muda são as relações de parentesco por eles endereçadas. Em Ikpeng, também são descritas equações oblíquas, nas quais parentes colaterais são tratados como membros de gerações posteriores ou anteriores à geração de ego.

No sistema havaianizado, há distinção por sexo e geração, distinção de idade na mesma geração e indistinção de sexo em G-2. Quanto à idade relativa, ego masculino faz distinção entre yB e eB e ego feminino distingue yZ e eZ. Além disso, na primeira geração ascendente, F≠(FB=MB) (imï F; awon FB, MB), mas M=MZ=je. Os termos de parentesco apresentados por Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997., segundo sua classificação com traços havaianos para ego masculino, são oferecidos no modelo arbóreo da Figura 1 11 11 Nas árvores genealógicas, as letras ï, ng e tx representam, respectivamente, os seguintes fonemas: /ɨ/, /ŋ / e /tʃ/. Além disso, cada árvore apresenta dois termos para indicar a distinção de idade na mesma geração. Nesses casos, há um termo sobre o outro em que o de cima representa a geração mais velha e o de baixo representa a geração mais jovem, como em iru = eB e imano = yB. . Na Figura 2, são apresentados os termos em Ikpeng.

Figura 1
Termos de parentesco em Arara, ego masculino.
Figura 2
Termos de parentesco em Ikpeng12, ego masculino.

Como se pode verificar na Figura 1, em Arara, primos e primas cruzados (MBS, MBD, FZS, FZD) e paralelos (MZS, MZD, FBS, FBD) bilaterais são equacionados a irmãos e irmãs. No caso do Ikpeng, verifica-se, na Figura 2, que apenas primos paralelos são assimilados aos irmãos. Veja também que, em Ikpeng, os sobrinhos, os filhos e as filhas do irmão são equiparados aos filhos, enquanto que, em Arara, não há tal relação. Da mesma forma, imun é apenas o filho homem de ego masculino, enquanto que, em Ikpeng, este é também o termo que expressa as relações MBS e BS.

A representação arbórea dos termos utilizados por ego feminino, segundo a classificação horizontal de Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997., é apresentada na Figura 3.

Figura 3
Termos de parentesco em Arara, ego feminino.

Veja que as tentativas de representações para o Ikpeng (ego feminino, na Figura 4), possivelmente, correspondem a um tipo de sistema misto em que ocorrem equações oblíquas, a exemplo da sobreposição do termo inut FM, MM para as mesmas posições de FZ, FZD (FZD=FZ=FM). Conforme Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001., relações oblíquas correspondem à assimetria em torno de um eixo ideal da geração de ego em que os parentes ascendentes são classificados conjuntamente pelos dois sexos (em bloco), e os parentes descendentes e do mesmo nível são classificados em separado. Nessa lógica, categorias distintas se sobrepõem parcialmente nas mesmas utilizações genealógicas.

Figura 4
Termos de parentesco Ikpeng13 13 Quanto às lacunas, MBS é emlejum/emrejum, segundo Menget (2001) e Chagas (trabalho de campo), respectivamente; já com relação ao termo para MBD, não ficou claro nas fontes consultadas se emtxim também pode ser utilizado por ego feminino. , ego feminino.

Em Arara, o sistema com características Crow-Omaha, ou sistema oblíquo, opera na relação entre pessoas de grupos residenciais natais diferentes. Segundo Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997., a principal característica deste sistema é o fato de que nele não se leva em conta um princípio geracional, os parentes patrilaterais são equacionados com os termos da geração imediatamente acima e alguns matrilaterais, com os de uma geração abaixo, sendo mantidas apenas algumas distinções em função do sexo. Isto é, parentes patrilaterais em G+1=G+2, G0=G+1, G-1=G0 etc. Para os parentes matrilaterais, muda a categoria para MB, mas não a de MZ; assim, MZ é sempre igual a M (MZ=M).

Os demais são identificados pelas categorias que, no sistema horizontal, aplicar-se-iam aos de uma geração abaixo. Em outras palavras, os parentes patrilaterais são tratados como os parentes de uma geração acima, no sistema havaiano (por exemplo, awon e je passam a ser chamados de tamko e engpï, disponível no Quadro 1) –, nas palavras do autor, os parentes patrilaterias ‘sobem’ uma geração; enquanto os parentes matrilaterais são identificados como os de uma geração abaixo, exceto MZ e seus descendentes, e ‘descem’ uma geração (por exemplo, awon é chamado de iru).

Quadro 1
Termos para a segunda e a primeira gerações ascendentes.

ASPECTOS FORMAIS DOS TERMOS UTILIZADOS EM RELAÇÕES DE CONSANGUINIDADE E PROPOSTAS DE RECONSTRUÇÕES

Segundo Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. e Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997., há poucos termos vocativos – ou seja, aqueles utilizados como tratamento – tanto em Ikpeng quanto em Arara (a exemplo de papa, jeme, em Arara; e pupa, ime, em Ikpeng – ‘pai’ e ‘mãe’, respectivamente). Por esse motivo, foram levados em consideração, neste artigo, apenas termos referenciais. Em geral, os dois povos não se utilizam dos termos de parentesco no dia a dia, quando preferencialmente o nome próprio do parente é utilizado. Em ambos os sistemas de classificação social há termos que são exclusivos de falantes do sexo masculino (ego masculino) e outros exclusivos do sexo feminino (ego feminino).

Cotejando-se os termos de parentesco encontrados em Arara e Ikpeng, verifica-se que há alguns muito semelhantes, os quais, historicamente, poderiam ser reconstruídos como um único termo em Proto-Arara-Ikpeng. Por outro lado, os dois dialetos ainda não possuem estudos publicados que demonstrem as correspondências segmentais entre eles. Para as reconstruções encontradas no presente estudo, foram utilizados segmentos reconstruídos (preliminarmente) (em fase de elaboração)14 14 “Fonologia segmental do Proto-Arara-Ikpeng”, de autoria de Ana Carolina Ferreira-Alves. . Estes segmentos, bem como as correspondências de sons e de significado observadas no léxico do Arara e do Ikpeng, serviram de base para a reconstrução do léxico referente ao parentesco consanguíneo.

Além dos termos em comum (a maioria), há aqueles usados com exclusividade por cada um dos sistemas. Considerando-se os níveis de parentesco G+1/G+2, G+0, G-1/G-2, apenas os termos para as gerações ascendentes não são considerados cognatos: inut e engpɨ MM, FM, em Ikpeng e Arara, respectivamente. Os termos emrejum MBS e emuje FZD, MBD, da geração de ego, são exclusivos de Ikpeng. E há casos em que um termo formalmente comum a ambos os sistemas identifica relações diferentes em cada um.

As diversas fontes disponíveis apresentam variações com relação a alguns termos, sendo que algumas delas possivelmente são variações dialetais, como no caso dos dados coletados por Ferreira-Alves entre 2014-2017 e por Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997. para o Arara15 15 Identificam-se os dialetos Arara e Iriri, embora seja conhecido que o dialeto Arara constitui-se de subdialetos, provavelmente subdialetos residenciais formados antes do contato, quando as famílias viviam relativamente em isolamento, com rotinas de visitaentre si. . Os termos de parentesco são nomes obrigatoriamente possuídos em ambas as línguas, e os dados apresentados estão flexionados na terceira pessoa do singular16 16 Os prefixos possessivos em Ikpeng e em Arara variam de acordo com a natureza vocálica ou consonantal do segmento que segue. Assim, para os prefixos a seguir, a primeira forma de cada par corresponde ao morfema diante de consoante e a segunda correspondem ao morfema diante de vogal. Ikpeng: 1 ï-, g-; 2 o-, w-, 1+2 wï-, ug(w)-; 3 i-, j-. Arara: 1 ï-, j-; 2 o-, o-; 1+2 uk-, ug(u)-; 3 i-, Ø-. O plural é marcado por um sufixo separado dos morfemas de pessoa. Ver Chagas (2013) e Ferreira-Alves (2017). . Para facilitar ao leitor a identificação dos termos cognatos, os Quadros 1 a 8 apresentam formas fonológicas. Algumas questões relevantes, contudo, são discutidas no decorrer das subseções a seguir, haja vista que nem sempre é clara a análise tomada pelos autores nos casos de dados secundários oriundos de trabalhos de cunho antropológico. Além disso, os Quadros 1 a 8 apresentam polissemias explicáveis por meio de um modelo de organização social, ora havaianizado ora com aspectos Crow-Omaha. Isso explica, por exemplo, porque o termo iru pode representar eB, MBeS, MZeS, FBSe e FZeS, na geração de ego, e MB na primeira geração ascendente. Observe-se, ainda, que foram apresentadas somente as polissemias que se mostraram relevantes para o presente estudo. As subseções seguintes oferecem os termos de acordo com as gerações.

Gerações ascendentes

Nesta subseção, trataremos dos termos referentes às gerações de G+1 e G+2 (Quadro 1).

Como é possível observar no Quadro 1, com relação à segunda geração ascendente, Arara e Ikpeng apresentam termos diferentes para designar os avós de ego. No entanto, ao considerarmos a correspondência formal (fonológica), é possível verificar que, em Arara, há a palavra /i-tamru/, usada como uma forma de citação para ‘velho’ (por exemplo, /ugon tamru/ ‘homem velho’), que é cognata ao termo para avô, em Ikpeng. Ao mesmo tempo, em Bakairi, a língua geneticamente mais próxima a Arara/Ikpeng, a forma utilizada para avós maternos e paternos é tako (Barros, 2003BARROS, Edir Pina de. Os filhos do sol. História e cosmologia na organização social de um povo Karib: os Kurâ-Bakairi. São Paulo: EDUSP, 2003., p. 209, 211), a qual é cognata a /tamko/, em Arara. Isso pode ser visto quando se considera que, segundo as correspondências discutidas por Meira e Franchetto (2005)MEIRA, Sérgio. Reconstructing Pre-Bakairi segmental phonology. Antropological Linguistics, Bloomington, v. 47, n. 3, p. 261-291, Fall 2005. Disponível em: https://www.indiana.edu/~anthling/v47-3.html. Acesso em: 20 dez. 2018.
https://www.indiana.edu/~anthling/v47-3....
, no Bakairi, /tako/ provém de uma forma anterior */tamko/, a qual se tornou /tako/ através da perda do /m/19 19 Meira e Franchetto (2005) propõem uma mudança *VC1C2[-son]V > VC2[-son]V, na qual a primeira consoante de grupos consonantais, mesmo quando nasal, é perdida, deixando a segunda consoante com sua sonoridade inalterada. . Souza, S. (2010, p. 15)SOUZA, Shirley. The morphology of nouns in the Ugoroŋmo language (Arara of Pará). 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística) – University of North Dakota, North Dakota, 2010., por sua vez, apresenta a forma idamgon ‘avô dele/a’ para o Arara, plausivelmente uma forma possuída cuja raiz é /tam/. Diante do exposto e da informação de que /ko/ consiste em uma forma que indica respeito em outras línguas Karíb (Tiriyó: man-ko M, pah-ko F, pih-ko eB, wəi-ko eZ – ego masculino – conforme Meira, 2019MEIRA, Sérgio. [Correspondência]. Destinatário: Ana Carolina Ferreira-Alves. [S. l.], 2019. E-mail.), consideramos os termos aparentemente distintos para MF, FF como cognatos, mesmo que parcialmente, cuja raiz é a mesma em Arara e Ikpeng: {tam}.

Quanto à primeira geração ascendente, observa-se que, em Arara, tanto a tia materna quanto a paterna são codificadas pelo mesmo termo utilizado para designar a mãe de ego – /je/ –, sendo que a tia paterna também pode ser chamada de /eŋpɨ/20 20 Souza, S. (2010) apresenta a forma ideŋbɨn como uma forma possuída de avó, demonstrando a presença de um segmento nasal velar, assim como em nossas transcrições, que, por sua vez, diferem da transcrição de Teixeira-Pinto (1997), empɨ. Por outro lado, revelaum segmento oclusivo alveolar que demanda mais estudos. , mesmo termo usado para designar as avós; paralelamente, em Ikpeng, à irmã do pai também se atribui o mesmo termo utilizado para nomear as avós: /inut/. Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997. deixa claro que os termos não nomeiam as relações ao mesmo tempo, trata-se, antes, de uma questão de sistemas diferentes, em que o uso de um exclui a possibilidade de uso do outro. Assim, FZ só é chamada de eŋpɨ no sistema oblíquo, quando FZ=FM=MM. No sistema horizontal, FZ é referida pelo termo je. Por sua vez, Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. não fornece outro termo para FZ além de inut. Em Ikpeng, os dados apresentam uma oposição entre ego feminino e ego masculino para MB, sendo que, para o tio paterno de ego masculino /iru/, utiliza-se o mesmo termo referente às relações eB, FBeS, MZeS. Em Arara, apenas no sistema oblíquo, ego masculino chama MB de /iru/. No sistema horizontal, egos masculino e feminino chamam MB de awon. Ou seja, /iru/ designa originalmente outras relações (eB, FBeS, MZeS, FZeS, MBeS), como em Ikpeng. Ainda em Arara, uma possível palavra que pode ser interpretada como pai, /imɨ/ ‘macho, grande’, é cognata à forma /imɨ/ ‘pai’, coletada por Menget (1977, 2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. e por Chagas, para o Ikpeng21 21 Outras formas encontradas para ‘pai’ são: uguŋme ‘nosso pai’, uŋme ‘teu pai’ (Souza, S., 2010, p. 18) e t-um-ke-bra [ADV -pai-ADV-NEG] ‘sem pai’, para Arara, e ugume ‘nosso pai de nós dois’ (Menget, 2001, p. 216) e uŋme ‘teu pai’, para Ikpeng (atestada apenas em textos). .

Assim, com relação às gerações desta seção, concluímos que, em termos formais, apenas os termos para MM e FM (inut, em Ikpeng, e eŋpɨ, em Arara) não são cognatos entre as línguas cotejadas, embora alguns cognatos sejam encontrados como correspondentes semânticos, mesmo fora do sistema de parentesco. Alguns casos – como, em Arara, /imɨ/ (‘pai’ > ‘grande’) e /itamru/ (‘avô’ > ‘velho’) – exemplificam mudanças semânticas. Além disso, quando termos cognatos são usados para relações diferentes, supomos que houve extensão semântica, desta vez motivada por processos de organização no sistema de relações de parentesco.

O Quadro 2 apresenta as formas lexicais que, de acordo com os dados até o momento discutidos, mostraram-se reconstruíveis. Note-se que, preferencialmente, são utilizados os dados coletados pelas autoras deste estudo. Além disso, utiliza-se, em alguns casos, a língua Bakairi22 22 Os termos de parentesco do Bakairi foram gentilmente cedidos por Sérgio Meira. , pertencente ao ramo pekodiano da família Karíb, sendo a mais próxima ao Arara (Arr) e ao Ikpeng (Ik), como referência para verificar um estágio anterior ao Proto-Arara-Ikpeng (Proto-A-I), o Proto-Pekodiano (PP). Os cognatos propostos são apresentados em sublinhado.

Quadro 2
Reconstrução de termos da segunda e da primeira gerações em Proto-Arara-Ikpeng

Em Bakairi (Bk), a forma cognata */ũdu/ < PP */nutu/ permite a reconstrução de *i-nutu para MM, FF em Proto-A-I, considerando-se que o reflexo de *n em Bakairi é Ø, mas com a nasalização da vogal à direita. Embora Meira e Franchetto (2005)MEIRA, Sérgio; FRANCHETTO, Bruna. The Southern Cariban languages and the Cariban family. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 2, p. 127-192, Apr. 2005. DOI: https://doi.org/10.1086/491633.
https://doi.org/10.1086/491633...
não apresentem a correspondência (Bk) /s/: /j/ (Ik), a reconstrução do termo para M, MZ pressupõe um *j, que tem como reflexo /s/, em Bakairi, e /j/, nas demais línguas, ou seja, o segmento inicial da raiz de Bakairi passou por fortição. A forma para MB é cognata nas três línguas, embora, em Bakairi, seja aparentemente divergente. Além da forma nesta última língua ser segmentável, ela apresenta alternância conforme o prefixo pessoal com o qual se combina e, na primeira pessoa, a palavra em Bakairi é /wo-ru/, o que demonstra que o glide inicial ainda se manifesta sincronicamente em algumas formas. Assim, /o/ viria de uma raiz */wo/, cognata de /awo/ com a perda da vogal inicial da raiz, possivelmente ocasionada pela interação com prefixos. Por sua vez, a forma i-upɨ é melhor candidata a cognato de eŋpɨ, uma vez que *Np > p, em Bakairi. Não se dispõe de dados para determinar a qualidade da vogal inicial da raiz do termo classificatório para FZ. Assim, reconstruiu-se *[V]ŋpɨ FZ. Inut, em Ikpeng, possivelmente sofreu extensão semântica, passando de FM, MM para FZ.

Geração de ego

A geração G+0 apresenta diferença entre ego feminino e ego masculino, e de idade relativa. Ego masculino faz esta última distinção apenas com relação aos parentes do mesmo sexo. O mesmo ocorre com ego feminino (Quadro 3).

Quadro 3
Termos para a geração de egos masculino e feminino.

Como se observa no Quadro 3, Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997. aponta para cada um dos termos outras relações além daquelas identificadas pelos demais autores. No que diz respeito especificamente a ego masculino, nota-se que o termo referente às relações yB, FByS, MZyS foi registrado de maneira idêntica (imana) por ambos os antropólogos, ou seja, com o segmento final sendo uma vogal central baixa [a]; diferentemente do que foi registrado pelas duas linguistas, que notaram tal segmento como uma vogal posterior média aberta arredondada [ŋ], (imano). Em Arara, é possível que a diferença de qualidade desta vogal se deva à variação dialetal.

Sobre ego feminino, há uma distinção na última vogal do termo correspondente às relações eZ, FBeD, MZeD, que, em Ikpeng, é registrado com /ɨ/ final24 24 Embora estudos acústicos ainda se façam necessários. por Chagas, e com <u> por Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001., enquanto que, em Arara, temos /i/, uma vogal alta anterior não arredondada. Não há informações sobre a qualidade vocálica representada pela ortografia de Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. para tal vogal. Quanto ao Arara, vale observar que o termo ibarɨ eZ é apresentado por Souza, S. (2010, p. 16)SOUZA, Shirley. The morphology of nouns in the Ugoroŋmo language (Arara of Pará). 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística) – University of North Dakota, North Dakota, 2010. e que o termo i-bari /i-pari/ foi observado por Ferreira-Alves como ‘amigo’. Outrossim, o ibari constitui a figura central da cerimônia intitulada Jei bari /jei pari/, em torno da qual está baseada a etnografia de Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997.. Além de designar esta figura cerimonial, o termo representa um ‘afim’, segundo o antropólogo, e está em uma teia complexa de significados. Dessa forma, verificamos que ambos os termos existem em Arara. Ademais, há diferença na qualidade vocálica da primeira vogal dos termos epin B, MB, MZS, FBS, em Ikpeng, e ipin B, em Arara, que aparentemente consiste em uma diferença não apenas fonética, mas morfofonológica, se a vogal presente no termo em Ikpeng for de um morfema de pessoa. Esse fato ainda está sob análise, mas se nota que todos os demais segmentos exemplificam correspondências regulares, de modo que os termos são claramente cognatos.

Por fim, Chagas identificou, em Ikpeng, o termo aruptan fazendo referência às genealogias irmãos intermediários e primos paralelos intermediários, ou seja, aqueles entre mais velhos e mais novos. Até o presente, desconhecemos designações semelhantes em Arara ou Bakairi. Assim, optou-se pela não inclusão desse termo no sistema, bem como nos quadros.

A partir do conjunto de dados da geração de ego já elencados e dos termos de parentesco da língua Bakairi, a última coluna do Quadro 4, a seguir, traz as protoformas dos termos da geração de egos masculino e feminino.

Quadro 4
Reconstrução de termos da geração de egos masculino e feminino.

Quanto a ego masculino, observa-se que iru e imano são inovações do Proto-A-I. No caso de iru, trata-se de inovação semântica por extensão, visto que, em outras línguas da família, significa apenas B. O termo imano, por sua vez, não foi encontrado nessas línguas. As formas para Z, em Arara e Ikpeng, são cognatas. Quanto à forma eaũdu, em Bakairi, o segmento /a/ corresponde a /na/ nas outras duas línguas e se justifica pela correspondência PP *n > /Ø/ (Bk) e /n/ (Ik); o segmento /ũ/ corresponde a /ru/ nas demais línguas e se justifica pela correspondência PP *n > /Ø/ (Bk) e /n, r/ (Ik) (Meira; Franchetto, 2005MEIRA, Sérgio; FRANCHETTO, Bruna. The Southern Cariban languages and the Cariban family. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 2, p. 127-192, Apr. 2005. DOI: https://doi.org/10.1086/491633.
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)25 25 Embora os autores apresentem a correspondência /Ø/: /n, r/, eles não trazem evidências para a nasalidade2008). . Sobre ego feminino, a correspondência entre os cognatos é regular, /w/:/p/ em Bakairi e Ikpeng, respectivamente. Do mesmo modo, em i-wirɨ /r/ (Bk) : /n/ (Ik), ocorrendo a queda da vogal final em Ikpeng (Meira; Franchetto, 2005MEIRA, Sérgio; FRANCHETTO, Bruna. The Southern Cariban languages and the Cariban family. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 2, p. 127-192, Apr. 2005. DOI: https://doi.org/10.1086/491633.
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). As exceções à regularidade são o /i/ final em ipari, do Arara, e a correspondência entre /i/ e /e/ nos dados para yZ e B.

Gerações descendentes

Nesta subseção, apresentamos as gerações G-1 e G-2.

Conforme o Quadro 5, os termos de Arara quanto às palavras para ‘sobrinho’ e ‘sobrinha’ são semelhantes às formas chamadas de arcaicas por Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001., com diferenças facilmente explicáveis, como /l/ após nasal em Ikpeng (/jaramlu/), que forma uma correspondência regular com /r/, em Arara (/jawaramuru/); note-se também a sílaba /wa/, aparentemente perdida em Ikpeng (*/jawaramuru/ > */jaaramru/ > Ik /jaramlu/).

Quadro 5
Termos para a primeira geração descente de egos masculino e feminino.

Quanto aos termos correspondentes a ego feminino, verifica-se outro caso em que Ikpeng faz a distinção entre filhos e sobrinhos utilizando termos específicos para cada um deles umlen/imren e iben/ipen, respectivamente, enquanto Arara apresenta apenas um termo para ambas as relações, imren. Veja-se, porém, que se trata de uma questão de usos de termos em lugares diferentes nos sistemas, pois ipen existe em Arara, mas como referência a outras relações (Quadro 6). Da mesma forma, há também o termo enarut (Quadro 3), cognato de inarut ZD para ego masculino em Ikpeng.

Veja-se, ainda, que a forma para D, S, ZD, ZS apresenta duas versões, uma contraída, tal como apresentada por Menget, e uma não contraída27 27 Ferreira-Alves (2010) analisa acusticamente encontros consonantais como ‘mr’, encontrados em formas contraídas. A autora apresenta a vogal média central [ə] como uma vogal de transição entre /m/ e /r/, mas nunca como uma vogal anterior média-fechada, tal comoreporta Teixeira-Pinto (1997) (imeren). . A forma contraída ocorre apenas quando possuída por um prefixo de pessoa, i-mre-n [3-filho-possd] (Ik), i-mre-n [3-filho-possd] (Arr). Já a forma não contraída ocorre quando não há prefixo de pessoa, ou seja, quando o possuidor é um substantivo ou um sintagma nominal independente, como nos exemplos 1 e 2:

Quadro 6
Termos para a segunda geração descendente
1) Ge-ny wokori mure-n wo urangmo (Arara) dizer-passd cachorro filho-possd ben menino ‘Disse o menino para o cachorrinho’.
2) Kururiku mure-n-pe (Ikpeng) nom.prop filho-possd-atbz ‘É filho de Kururiku’.

Quanto à segunda geração descendente, apenas Arara faz a distinção de sexo, havendo termos exclusivos para ego masculino e para ego feminino, ipen e etamuru, respectivamente, tal como registrado por Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997., o que pode ser observado no Quadro 6. Possivelmente, é uma inovação desta língua, visto que essa oposição não é recorrente nas demais línguas da família ou pelo menos do ramo pekodiano.

O Quadro 7 traz os termos reconstruídos:

Quadro 7
Reconstrução de termos da primeira geração descendente (egos masculino e feminino) e da segunda geração descendente.

Considerando-se as correspondências anteriormente comentadas para ego masculino, primeira geração descendente, cognatos com correspondências regulares permitiram a reconstrução de *i-mu-n S. Para D, foi possível reconstruir *emtʃi-n, com base na correspondência /x/ (Bk): // (Ik), que deve ser reconstruída para PP como *, mas que seria reflexo de Proto-Karíb (PK) *t (Meira; Franchetto, 2005MEIRA, Sérgio; FRANCHETTO, Bruna. The Southern Cariban languages and the Cariban family. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 2, p. 127-192, Apr. 2005. DOI: https://doi.org/10.1086/491633.
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). Além disso, houve a queda de /m/, em Bakairi, cuja correspondência /Ø/ (Bk): /m/ (Ik) também é atestada por Meira e Franchetto (2005)MEIRA, Sérgio; FRANCHETTO, Bruna. The Southern Cariban languages and the Cariban family. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 2, p. 127-192, Apr. 2005. DOI: https://doi.org/10.1086/491633.
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. Quanto a ego feminino, foi possível reconstruir duas formas sintaticamente motivadas para Proto-A-I, no entanto, foi observada apenas uma forma em Bakairi. No que se refere à segunda geração descendente, a distinção de sexo apresenta-se como uma inovação em Arara, não sendo possível a reconstrução da mesma distinção na protolíngua.

De forma geral, o alto número de cognatos (estabelecidos com base em correspondências discutidas em artigo a ser publicado) – que levou à reconstrução de dezenove (19) termos com poucas irregularidades e poucas mudanças fonológicas e semânticas – mostra o grau de proximidade entre o Arara e o Ikpeng, ou seja, mais possivelmente dialetos do que línguas separadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quanto à forma dos termos, entre os dados analisados, identificou-se um conjunto básico de relações consanguíneas, cujos termos referenciais foram reconstruídos em Proto-Arara-Ikpeng. Os termos reconstruídos foram reunidos no Quadro 8.

Quadro 8
Termos reconstruídos

Além das semelhanças mantidas, conforme evidenciado no Quadro 8, sintetiza-se também as inovações no uso de alguns termos encontradas nos sistemas de parentesco aqui apresentados. Em relação ao Arara, sobre os termos para FF e MF em Arara e em Ikpeng, /tamko/ e /itamru/, respectivamente, é possível afirmar que {ko}, presente no termo em Arara, consiste em uma inovação. Esse sufixo é utilizado em algumas línguas Karíb junto aos termos de parentesco para indicar respeito. Assim, ambas as línguas mantêm a mesma raiz {tam}, embora carreguem morfologia distinta para a formação do termo. Outra inovação vista em Arara concerne à utilização de termos distintos para indicar DD, SD ipen e SS, DS etamuru, conforme Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997.. Esta oposição de gênero presente na segunda geração descente (G-2), como já mencionado, não é comum nas demais línguas da família. Além disso, o termo /eŋpɨ/ MM, MF, FZ é identificado como inovação, já que nem Ikpeng nem Bakairi apresentam termos semelhantes.

Sobre as inovações na língua Ikpeng, é possível observar alguns casos de extensão semântica. Nesse aspecto, /inarut/ é usado para se referir a ZD, e não somente a Z, como ocorre em Arara, que possui a forma /ipetʃan/ para ZD. Outra inovação semântica consiste no uso do termo /ipen/, originalmente designando as relações SS, DS, DD, SD, em Arara, mas que, em Ikpeng, passou a ser utilizado também para BS, BD de ego feminino. A partir dessas observações, é possível interpretar que, em Ikpeng, os filhos/as dos irmãos/ãs do mesmo sexo de ego são também designados como ‘filhos/as’ (S, D), mas os filhos/as dos/as irmãos/ãs de sexo diferente do de ego são irmãos (B) para ego masculino e netos (SS, SD) para ego feminino. Em outras palavras, os filhos/as dos irmãos/ãs do sexo oposto ao de ego são movidos uma geração para cima quando ego é homem e uma geração para baixo quando ego é feminino.

Verificou-se que os termos consanguíneos reconstruídos indicam diferença de geração (G+2, G+1, G0, G-1, G-2), de sexo e de idade relativa para sexos opostos ao de ego em G0, e indistinção de sexo na segunda geração descente *i-pen SS, DS, DD, SD. Quanto às características de organização das relações sociais em Proto-Arara-Ikpeng, é possível especular a existência de características apontadas para os sistemas horizontal – cujos princípios básicos são indicados acima, além das relações em que MZS=B=FBS=*V[+ anterior]-pi-n (primos cruzados e paralelos são equacionados aos irmão de ego) – e oblíquo – quando eB=MB=*iru (o mesmo termo é usado em G0 e em G+1, ego masculino). Assim posto, propõe-se que novos estudos busquem o aprofundamento dos sistemas atuais, para que se torne viável vislumbrar também um sistema anterior à divisão dos povos.

É importante salientar que, para Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001., as terminologias de parentesco são função e partes de sistemas de classificação social mais abrangentes, que, em Ikpeng, inclui toda uma complexa teia onomástica, pois todos os Ikpeng possuem diversos nomes dados ao longo da vida, normalmente pelos pais (G+1), mas relativos aos antepassados mais distantes (G+2...), geralmente já falecidos. Em outras palavras, o processo de nomeação de um indivíduo Ikpeng depende estritamente de quem são seus ascendentes. Essa opção afasta Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. de escolas mais tradicionais de estudos de parentesco, talvez esse seja o fato que o leva a não elaborar extensas listas, o que acaba também gerando algumas lacunas observadas nesta análise. Segundo este autor, o processo de ingresso dos Ikpeng no complexo do alto Xingu deu-se de modo traumático a ponto de não gerarem descendentes por um período, e apenas em seguida entrarem na rede estabelecida de matrimônios e rituais, o que os faz comungarem de certos aspectos que podem (atualmente) ter alterado algumas das estruturas de parentesco Ikpeng29 29 É necessário um estudo comparativo do sistema de parentesco Ikpeng com outros de etnias que estão geograficamente próximas a eles para que se tenha uma real noção do quanto o sistema Ikpeng pode ter sido influenciado pelo contato com outras culturas, o quepoderia justificar as inovações no uso de alguns termos. . Ainda segundo Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001., essas alterações, no entanto, não parecem se refletir em variações nos termos de parentesco empregados pelo grupo para sua organização da estrutura social e das possibilidades de casamento.

Por outro lado, os Arara passaram por um processo não menos traumático que, nos dias atuais, é reforçado com a implantação da Usina Hidrelétrica Belo Monte e com o asfaltamento da BR-230 (Ferreira-Alves; Barbosa, 2017FERREIRA-ALVES, Ana Carolina; BARBOSA, Leonard. Persistência histórica de processos conflituosos com populações tradicionais: impactos sobre o povo Arara do Pará. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DA AMÉRICA LATINA, 2., 2017, Belém. Anais [...]. Belém: UFPA: NAEA, 2017. p. 1415-1428.). Esses processos geraram perdas consideráveis, sobretudo aos Arara da aldeia Iriri, que, em nome da sobrevivência, deixaram de praticar algumas regras de interdição de casamentos. Além disso, as análises de parentesco oferecidas por Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997. demonstram maior preocupação com a relação estabelecida no circuito das substâncias, que são apenas parcialmente referidas por Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. para os Ikpeng.

Cabe mencionar que as formas aqui reconstruídas não constituem o sistema completo do parentesco em Proto-Arara-Ikpeng, já que foram considerados prioritariamente os termos consanguíneos, havendo, ainda, a necessidade de se realizar uma discussão sobre termos que incluam, em seus significados, aspectos de outras relações interpessoais, como as de afinidades envolvidas nas atividades que configuram os cotidianos, as relações baseadas na onomástica e estudos a respeito da descendência. Há, ainda, bastante trabalho a fazer sobre essas duas línguas/dialetos, bem como sobre os povos que as falam, tanto nos aspectos antropológicos quanto nos linguísticos.

  • 1
    Fonologia segmental do Proto-Arara-Ikpeng”, de autoria de Ana Carolina Ferreira-Alves.
  • 2
    Segundo o último censo, os Arara contavam com 571 pessoas e os Ikpeng com 505 (IBGE, 2010INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Censo demográfico (indígena). 2010. Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena.html. Acesso em: 27 dez. 2017.
    https://indigenas.ibge.gov.br/estudos-es...
    ). É plausível admitir que este número seja maior atualmente.
  • 3
    Sistema de parentesco’ pode ser compreendido como a combinação de ao menos três tipos de relações basilares: de consanguinidade, de descendência e de afinidade. Para uma discussão mais ampliada sobre essa articulação, especialmente como se consolidam em âmbitode grupos de língua Karíb (e outros indígenas brasileiros), ver Viveiros de Castro (1986VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Sociedades minimalistas: a propósito de um livro de Peter Rivière. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, n. 85, p. 265-282, sem. 1986. Disponível em: http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/Separatas1985/anuario85_viveirosdecastro.pdf. Acesso em: 1 mar. 2019.
    http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario...
    , 1996)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Ambos os três: sobre algumas distinções tipológicas e seu significado estrutural na teoria do parentesco. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, n. 95, p. 9-91, sem. 1996. Disponível em: http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/Separatas1995/anuario95_viveirosdecastro.pdf. Acesso em: 11 fev. 2019.
    http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario...
    e Rivière (1984)RIVIÈRE, Peter. Individual and society in Guiana: a comparative study of amerindian social organization. Cambrigde: Cambridge University Press, 1984. (Cambridge Studies in Social and Cultural Anthropology, 51). DOI: https://doi.org/10.1017/CBO9780511558115.
    https://doi.org/10.1017/CBO9780511558115...
    .
  • 4
    Para um panorama de discussões sobre sistemas horizontais e oblíquos em línguas Karíb, consultar Rivière (1984)RIVIÈRE, Peter. Individual and society in Guiana: a comparative study of amerindian social organization. Cambrigde: Cambridge University Press, 1984. (Cambridge Studies in Social and Cultural Anthropology, 51). DOI: https://doi.org/10.1017/CBO9780511558115.
    https://doi.org/10.1017/CBO9780511558115...
    e Silva (1999SILVA, Marcio. Linguagem e parentesco. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 42, n. 1/2, p. 133-161, sem. 1999. DOI: https://doi.org/10.1590/S0034-77011999000100009.
    https://doi.org/10.1590/S0034-7701199900...
    , 2010)SILVA, Marcio. Um pequeno, mas espinhoso, problema de parentesco. Ilha: Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 12, n. 2, p. 163-207, sem. 2010. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-8034.2010v12n1-2p165.
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    .
  • 5
    Os termos uxorilocal ou matrilocal referem-se ao costume tradicional em que, após o casamento, os cônjuges mudam-se para a casa dos pais da esposa ou para a sua comunidade.
  • 6
    Por ‘substância’ entende-se o princípio vital líquido do qual compartilham todos os seres. Alguns exemplos são o sangue, o sêmen, o suor, a saliva etc. É importante mencionar que Menget (1977MENGET, Patrick. Au nom des autres. Classification des relations sociales chez les Txicão du haut-Xingu (Brésil). 1977. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Université de Paris X, Nanterre, 1977., 2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. chega a perceber a questão da substância influenciando as relações, porém não aprofunda sua análise. Podemos considerar que, de acordo com Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997., a substância e o seu ciclo organizam o sistema e promovem ajustes quando necessário; já para Menget (1977, 2001), as incongruências do sistema seriam ordenadas pela onomástica (mais ligada a uma explicação das alianças). Barros (1992)BARROS, Edir Pina de. História e cosmologia na organização social de um povo Karib: os Bakairi. 1992. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992. também salienta a importância da substância vital ekuru ou, simplesmente, kuru entre os Bakairi.7
  • 7
    Durante um intercâmbio entre os Arara, da aldeia Iriri, e os Ikpeng, foi presenciada a cessão do nome da matriarca da aldeia Iriri a uma jovem Ikpeng. Talvez alguma prática onomástica semelhante à dos Ikpeng tenha existido entre os Arara, embora atualmente tenha caído em desuso.
  • 8
    Quando o autor realizou o estudo genealógico, foi identificado um conjunto de restrições, como “[...] entre pais e filhos (biológicos e adotivos); irmãos que possuam um ou mais ascendentes realmente comuns; entre sogros e genro ou nora, respectivamente ao sexo”(Menget, 2001MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001., p. 184).
  • 9
    Neste artigo, faz-se uso de siglas referentes aos termos de parentesco, representadas pelas letras iniciais das palavras em inglês: F = father (pai), M = mother (mãe), S = son (filho), D = daughter (filha), B = brother (irmão), Z = sister (irmã) e suas combinações. Além disso, usa-se y = younger (mais jovem) e e = elder (mais velho).
  • 10
    Refere-se ao tipo de nomeação dos parentes em que mais de uma geração é chamada pelos mesmos termos. Parentes colaterais são aproximados ou afastados da geração de ego. Há, ainda, muita discussão a respeito do que leva este sistema a ser entendido como umsistema semicomplexo, ver mais em Héritier (1981)HÉRITIER, Françoise. L’exercice de la parenté. Paris: Gallimard: Seuil, 1981., Viveiros de Castro (1996)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Ambos os três: sobre algumas distinções tipológicas e seu significado estrutural na teoria do parentesco. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, n. 95, p. 9-91, sem. 1996. Disponível em: http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/Separatas1995/anuario95_viveirosdecastro.pdf. Acesso em: 11 fev. 2019.
    http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario...
    e Rivière (1984)RIVIÈRE, Peter. Individual and society in Guiana: a comparative study of amerindian social organization. Cambrigde: Cambridge University Press, 1984. (Cambridge Studies in Social and Cultural Anthropology, 51). DOI: https://doi.org/10.1017/CBO9780511558115.
    https://doi.org/10.1017/CBO9780511558115...
    .
  • 11
    Nas árvores genealógicas, as letras ï, ng e tx representam, respectivamente, os seguintes fonemas: /ɨ/, /ŋ / e /tʃ/. Além disso, cada árvore apresenta dois termos para indicar a distinção de idade na mesma geração. Nesses casos, há um termo sobre o outro em que o de cima representa a geração mais velha e o de baixo representa a geração mais jovem, como em iru = eB e imano = yB.
  • 12
    MBD pode ser preenchida pelos termos emtxin ou emuje.
  • 13
    Quanto às lacunas, MBS é emlejum/emrejum, segundo Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. e Chagas (trabalho de campo), respectivamente; já com relação ao termo para MBD, não ficou claro nas fontes consultadas se emtxim também pode ser utilizado por ego feminino.
  • 14
    “Fonologia segmental do Proto-Arara-Ikpeng”, de autoria de Ana Carolina Ferreira-Alves.
  • 15
    Identificam-se os dialetos Arara e Iriri, embora seja conhecido que o dialeto Arara constitui-se de subdialetos, provavelmente subdialetos residenciais formados antes do contato, quando as famílias viviam relativamente em isolamento, com rotinas de visitaentre si.
  • 16
    Os prefixos possessivos em Ikpeng e em Arara variam de acordo com a natureza vocálica ou consonantal do segmento que segue. Assim, para os prefixos a seguir, a primeira forma de cada par corresponde ao morfema diante de consoante e a segunda correspondem ao morfema diante de vogal. Ikpeng: 1 ï-, g-; 2 o-, w-, 1+2 wï-, ug(w)-; 3 i-, j-. Arara: 1 ï-, j-; 2 o-, o-; 1+2 uk-, ug(u)-; 3 i-, Ø-. O plural é marcado por um sufixo separado dos morfemas de pessoa. Ver Chagas (2013)CHAGAS, Angela Fabíola Alves. O verbo Ikpeng: estudo morfossintático e semântico-lexical. 2013. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013. e Ferreira-Alves (2017)FERREIRA-ALVES, Ana Carolina. Morfofonologia, morfossintaxe e o sistema de tempo, aspecto e modo em Arara (Karib). 2017. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017..
  • 17
    Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997. explicita que, segundo sua análise, não haveria oposição fonológica entre oclusivas surdas e sonoras. FerreiraAlves (2010)FERREIRA-ALVES, Ana Carolina. Phonological aspects of Arara (Carib). 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Radboud Universiteit Nijmegen, Nijmegen, 2010., entretanto, identifica oposição entre tais segmentos, sendo que, de acordo com sua hipótese, esta distinção seria apenasrecentemente motivada. Assim, oclusivas se teriam tornado sonoras em ambiente intervocálico, mas se teriam conservado surdas quando adjacentes a outra consoante, formando um grupo consonantal. Fenômeno semelhante é hipotetizado para o Bakairi (Meira,2005MEIRA, Sérgio; FRANCHETTO, Bruna. The Southern Cariban languages and the Cariban family. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 2, p. 127-192, Apr. 2005. DOI: https://doi.org/10.1086/491633.
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    ). Ademais, Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997. deixa claro que os termos não nomeiam as relações ao mesmo tempo. Trata-se, antes, de uma questão de sistemas diferentes. Assim, FZ só é chamada de embɨ no sistema oblíquo, quando FZ=FM. No sistema horizontal, FZ é referida pelo termo jeme/je. Por sua vez, Menget (2001)MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. não nos fornece outro termo para FZ além de inut.
  • 18
    EHá diferença dialetal na qual oclusivas surdas são sonorizadas após nasais apenas no dialeto Arara, o qual foi a base das análises de Teixeira Pinto (1989, 1993, 1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997., enquanto os dados primários principais de Ferreira-Alves são do dialeto Iriri, onde não ocorre tal sonorização
  • 19
    Meira e Franchetto (2005)MEIRA, Sérgio; FRANCHETTO, Bruna. The Southern Cariban languages and the Cariban family. International Journal of American Linguistics, Chicago, v. 71, n. 2, p. 127-192, Apr. 2005. DOI: https://doi.org/10.1086/491633.
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    propõem uma mudança *VC1C2[-son]V > VC2[-son]V, na qual a primeira consoante de grupos consonantais, mesmo quando nasal, é perdida, deixando a segunda consoante com sua sonoridade inalterada.
  • 20
    Souza, S. (2010)SOUZA, Shirley. The morphology of nouns in the Ugoroŋmo language (Arara of Pará). 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística) – University of North Dakota, North Dakota, 2010. apresenta a forma ideŋbɨn como uma forma possuída de avó, demonstrando a presença de um segmento nasal velar, assim como em nossas transcrições, que, por sua vez, diferem da transcrição de Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997., empɨ. Por outro lado, revelaum segmento oclusivo alveolar que demanda mais estudos.
  • 21
    Outras formas encontradas para ‘pai’ são: uguŋme ‘nosso pai’, uŋme ‘teu pai’ (Souza, S., 2010SOUZA, Shirley. The morphology of nouns in the Ugoroŋmo language (Arara of Pará). 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística) – University of North Dakota, North Dakota, 2010., p. 18) e t-um-ke-bra [ADV -pai-ADV-NEG] ‘sem pai’, para Arara, e ugume ‘nosso pai de nós dois’ (Menget, 2001MENGET, Patrick. Em nome dos outros: classificação das relações sociais entre os Txicáo do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001., p. 216) e uŋme ‘teu pai’, para Ikpeng (atestada apenas em textos).
  • 22
    Os termos de parentesco do Bakairi foram gentilmente cedidos por Sérgio Meira.
  • 23
    Na primeira análise fonológica realizada para a língua Ikpeng, foi proposta a existência de um fonema oclusivo bilabial sonoro /b/, que se realizaria foneticamente como uma oclusiva bilabial, sonora lenis explodida [β] (Emmerich, 1972EMMERICH, Charlotte. A fonologia segmental da língua Txikão. 1972. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1972., p. 8). No entanto, em análise posterior, Pachêco (2001)PACHÊCO, Frantomé. Morfossintaxe do verbo Ikpeng (Karíb). 2001. (Doutorado em Linguística) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. apontou um segmento bilabial sonoro lenis apenas como alofone, tanto do glide labiovelar /w/ quanto da oclusiva bilabial surda /p/ (Pachêco, 2001PACHÊCO, Frantomé. Morfossintaxe do verbo Ikpeng (Karíb). 2001. (Doutorado em Linguística) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001., p. 36). Esta última foi a análise seguida no presente estudo. Contudo, observe-se a necessidade de aprofundamento dos processos de alofonia
  • 24
    Embora estudos acústicos ainda se façam necessários.
  • 25
    Embora os autores apresentem a correspondência /Ø/: /n, r/, eles não trazem evidências para a nasalidade2008).
  • 26
    Souza, S. (2010, p. 16)SOUZA, Shirley. The morphology of nouns in the Ugoroŋmo language (Arara of Pará). 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística) – University of North Dakota, North Dakota, 2010. apresenta a forma iwaramuru ‘sobrinho dele’.
  • 27
    Ferreira-Alves (2010)FERREIRA-ALVES, Ana Carolina. Phonological aspects of Arara (Carib). 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Radboud Universiteit Nijmegen, Nijmegen, 2010. analisa acusticamente encontros consonantais como ‘mr’, encontrados em formas contraídas. A autora apresenta a vogal média central [ə] como uma vogal de transição entre /m/ e /r/, mas nunca como uma vogal anterior média-fechada, tal comoreporta Teixeira-Pinto (1997)TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari: sacrifício e vida social entre os índios Arara (Caribe). São Paulo: Hucitec; Curitiba: ANPOCS: UFPR, 1997. (imeren).
  • 28
    Consideramos a forma para ego masculino em Arara como não cognata. Souza, S. (2010, p. 16)SOUZA, Shirley. The morphology of nouns in the Ugoroŋmo language (Arara of Pará). 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística) – University of North Dakota, North Dakota, 2010. apresenta o mesmo termo como idamuru ‘neto dele’.
  • 29
    É necessário um estudo comparativo do sistema de parentesco Ikpeng com outros de etnias que estão geograficamente próximas a eles para que se tenha uma real noção do quanto o sistema Ikpeng pode ter sido influenciado pelo contato com outras culturas, o quepoderia justificar as inovações no uso de alguns termos.

AGRADECIMENTOS

Somos gratos aos colegas linguistas Fernando Órfão de Carvalho e Sanderson Castro Soares de Oliveira, que dedicaram tempo à leitura de versões anteriores e forneceram valiosas colaborações. Agradecemos, ainda, aos pareceristas anônimos pelas sugestões que deram contribuições substanciais ao artigo.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2018
  • Aceito
    21 Mar 2019
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