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Imagens dobráveis: posição e ubiquidade nos xamanismos ameríndios

Folding images: position and ubiquity in Amerindian shamanisms

Resumo

Este artigo trata da relação entre a configuração da pessoa e as relações espaciais e temporais nos xamanismos das terras baixas da América do Sul. Partindo da análise de depoimentos e relatos etnográficos, busca-se aqui compreender,especificamente, experiências de ubiquidade características de processos de iniciação e de deslocamento. Aspectos das singulares topologias xamânicas estarão, assim, associados a alguns de seus desdobramentos notáveis, como a qualidadeintensiva da luminosidade, característica das concepções xamanísticas de espaço e tempo. Pretende-se, ainda, demonstrar como tais concepções terminam também por produzir uma condição humana marcada pela separação e pela falha, responsáveis pela produção de constantes dinâmicas rituais.

Palavras-chave
Pessoa; Xamanismo; Virtualidade; Espacialidade

Abstract

This article addresses the relationship between the notion of person and the spatial and temporal configurations of Lowland South American shamanisms. Statements and ethnographic descriptions are analyzed to understand the uncannyexperiences of ubiquity involved in processes of shamanic displacement and initiation. Singular aspects of Amazonian shamanic topologies are then associated with some of their unique characteristics, such as the intensive luminosityinvolved in shamanic space-time conceptions. The goal is to demonstrate that such conceptions are also involved in the understanding of the human condition determined by separation and failure, which are responsible for the productionof continuous ritual dynamics.

Keywords
Person; Shamanism; Virtuality; Spatiality

Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais (Rosa, 1964ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: ROSA, João Guimarães. Estas estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964. p. 32., p. 32).

A etnologia das terras baixas da América do Sul tem sido responsável, nas últimas décadas, por problematizar de maneira decisiva a noção de pessoa via um contraste radical com matrizes fundamentais do pensamento moderno, tais como o indivíduo, o solipsismo e as diversas acepções da noção de representação. Na esteira das configurações ontológicas caracterizadas pela recursividade e pela fractalidade que marcaram o seu tratamento por estudos clássicos da Melanésia (Wagner, 1991WAGNER, Roy. The Fractal Person. In: STRATHERN, Marilyn; GODELIER, Maurice (org.). Big men and great men: personifications of power in Melanesia. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. p. 159-173.; Strathern, 1988STRATHERN, Marilyn. The gender of the gift. Berkeley: University of California Press, 1988.; Mimica, 1988MIMICA, Jadran. Intimations of infinity. Oxford: Berg, 1988.), a noção de pessoa passa a ser mobilizada como elemento-chave para a compreensão dos complexos campos posicionais de sociocosmologias das terras baixas, nem sempre bem compreendidos pelas etnografias recentes. Nas páginas que seguem, pretendo articular tal noção ao estudo de aspectos singulares da espacialidade e da temporalidade envolvidas nos processos xamanísticos de iniciação, em especial sobre os efeitos de replicação, ubiquidade e multiposicionalidade que lhes costumam ser característicos. Para tanto, tomarei como referência alguns relatos de iniciação marcados por um problema sui generis, o do espelhamento e da dobra, que parece apontar para um rendimento topológico da noção de pessoa, bem como para um modo especulativo relacionado aos seus limites e fracassos.

ESPELHOS E LIMIARES

No livro “Desana: le symbolisme universel des indiens Tukano du Vaupés”, de 1973, o antropólogo colombiano Reichel-Dolmatoff (1973, p. 180-181, tradução nossa) oferece a seguinte síntese das ideias do desana Guzmán sobre a relação entre visível e invisível:

Segundo o informante, “há um muro, uma camada, que separa o mundo natural do Axpikon-diá. Essa camada impede a visão: os homens que vivem neste mundo não veem o Axpikon-diá. Para que possam vê-lo, eles devem tomar yagé [cujo efeito, gaxpí, é a transposição de um limiar]. Mas logo em seguida... o informante diz que ‘gaxpí é a camada’ e o compara ao ‘muro que divide’, ‘ao que protege’ ou ‘ao que é outra coisa’. Ao fazer a relação entre essa palavra e gaxsíru (pamuri-gaxsíru) [gaxsíru = placenta; pamuri-gaxsíru = cobra-canoa do tempo da criação], ele diz: ‘A canoa é uma coisa estranha à água. Ela não é da água, do contrário não flutuaria. É outra coisa. É uma casca que protege” (séru, ‘camada’, ‘casca’). E então o informante desenvolve aquilo que ele entende por ‘outra coisa’ e utiliza para isso uma imagem bastante significativa. “Se levantamos a camada que há por trás de um espelho, podemos ver através. Não vemos mais esse mundo, ainda que continuemos a ficar refletidos no espelho. Vemos o que há do outro lado”. Enfim, para exemplificar o objetivo dessa comunicação sobrenatural, o informante segue: “Isso acontece para colocar em ligação o que é diferente daquilo que é conhecido. Para que se tenha certeza”. Criando um neologismo adequado para exprimir essa ideia, ele completa: “é para se humanar [s’humaner], isto é, para ter certeza/estar seguro da/sobre a vida humana. Assim se sabe que é outra coisa, mas, então, sabe-se verdadeiramente que se pertence a esta vida1 1 “Selon l’informateur, ‘il y a un mur, une couche, qui sépare le monde naturel d’ Axpikon-diá. Cette couche empêche de voir: les hommes qui vivent dans ce monde ne voient pas Axpikon-diá. Pour pouvoir le faire, ils doivent prendre yagé’ [cujo efeito, gaxpí, é a transposição de um limiar]. Mais tout de suite après... l’informateur ajoute que ‘gaxpí est la couche’ et le compare ‘au mur qui divise’, ‘à ce qui protège’ ou ‘à ce qui est autre chose’. En faisant le rapport entre ce mot et gaxsíru (pamurí-gaxsíru) [gaxsíru = placenta; Pamurí-gaxsíru = cobra-canoa do tempo da criação] il dit: ‘La pirogue est une chose étrangère à l’eau. Cen’est pas de l’eau, autrement elle ne flotterait pas. C’est autre chose. C’est une coque qui protège’ (séru, ‘couche’, ‘coque’). Puis l’informateur développe ce qu’il entend par ‘autre chose’ et utilise pour cela une image très significative. ‘Si on enlève la couche qu’il y a derrière un miroir, on voit à travers. On ne voit plus ce monde, bien qu’on continue à être reflété dans le miroir. Onvoit ce qu’il y a derrière’. Enfin, pour expliquer l’objective de cette communication surnaturelle, l’informateur poursuit: ‘C’est pour mettre en liaison ce qui est différent et ce qui est connu. C’est pour être sûr’. Et, créant un néologisme propre à exprimer cette idée, il ajoute: ‘C’est pour ‘s’humaner’, c’est-à-dire, pour être sûr de la vie humaine. On sait que c’est autre chose, maisalors, on sait vraiment qu’on appartient à cette vie’” (Reichel-Dolmatoff, 1973, p. 180-181). Para mais informações sobre o trecho extraído, ver A onça... (2016). .

A reflexão de Guzmán trata da relação entre o acesso à experiência visionária e a sua falta ou inacessibilidade, que caracteriza a permanência na posição ordinária deste mundo visível. Guzmán mostra como o papel daquele que tem acesso a tal imagem-experiência termina por ser responsável por mediar as duas posições apartadas por uma ‘camada’ ou ‘casca’ e, portanto, por revelar o sentido da condição humana. Mais do que isso, ele diz que é ‘apenas’ através da tomada de consciência de tal cisão (e da possibilidade de sua transposição) que se compreende determinada condição de humanidade: se ‘humanar’ quer, então, dizer algo como ser capaz de experimentar as dobras do real, de se tornar mediador daquilo que se compreende apenas a partir de sua relação com ‘a outra coisa’. Vale dizer que essa dobra não implica uma divisão entre verdade e ficção, entre uma natureza ‘real’ e uma sobrenatureza ‘imaginária’, a menos que essa sobrenatureza se refira, como sugeriu Viveiros de Castro (2015, p. 258-259)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015., ao “[...] elemento do cromatismo crepuscular céu-terra (viagem xamânica), do fundo universalmente humano de todos os seres, e de uma tecnologia das drogas que embaralha radicalmente a distinção entre natureza e cultura”. Trata-se, portanto, de um outro real possível, com o qual o sujeito envolvido em tal processo estabelece uma peculiar relação de contiguidade. O fato de ambos os lados serem separados pelas limitações da experiência ordinária não quer dizer que eles se excluam: eles pertencem, antes, a posições contíguas umas às outras e apenas aparentemente apartadas desde as cisões cosmológicas originárias, responsáveis pelo estabelecimento da atual condição humana e de seus respectivos modos de acesso ao conhecimento. É por isso que, ao passar para o lado de lá, “[...] não vemos mais esse mundo, ainda que continuemos a ficar refletidos no espelho [...]”, dizia Antonio Guzmán (Reichel-Dolmatoff, 1973REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo. Desana: le symbolisme universel des indiens Tukano du Vaupés. Paris: Gallimard, 1973., p. 180-181, tradução nossa). A explicação causa certa perplexidade: não se vê mais este mundo, mas a imagem permanece refletida do lado de cá, muito embora o sujeito visionário já não a veja mais, pois está voltado para o outro lado, vinculado àquele primeiro como sua própria condição de possibilidade. A explicação se contrapõe à posição das pessoas comuns, que costumam ser testemunhas de tantos cantos e narrativas associadas às sessões e às experiências xamanísticas: nestas, o ouvinte-espectador tem acesso às imagens verbais veiculadas pelos cantos dos xamãs ou pajés, que descrevem os aspectos diversos do lado de lá, enquanto permanece atarraxado em sua posição no lado de cá, limitado por essa espécie de camada ou muro (gaxpi).

O relato desana, no entanto, não nos diz se o sujeito poderia olhar simultaneamente para as duas posições, ao experimentar tal dobra do real. De fato, a especulação de Guzmán não é isolada nas paisagens amazônicas. Tampouco são exclusivas daqueles sistemas xamanísticos que fazem amplo uso de substâncias psicoativas (como no caso dos Desana, que se utilizam de yagé, feito a partir do cipó de Banisteriopsis caapi e da folha de Psychotria viridis). Tal especulação se refere, a rigor, ao estatuto peculiar da pessoa que se torna capaz, de modo voluntário ou involuntário, de acessar as outras posições do cosmos. Ela parece, mais do que isso, indicar uma possibilidade complexa de extensão da pessoa a um certo evento-espaço, com relação ao qual ela passará a entreter uma capacidade de conexão e de desdobramento, desencadeada por uma experiência extraordinária, ou então, pelo seu fracasso2 2 Os casos etnográficos aqui discutidos referem-se a sociedades distintas e distantes entre si, tais como os Desana do alto rio Negro, os Marubo do vale do Javari, os Kinsêdjê do Xingu e os Guarani do Sudeste e do Centro-Oeste brasileiros. As afinidades evidentes entre os casos são de ordem estrutural e ontológica, assim permitindo um procedimento comparativo similar ao já realizado por outros autores como Viveiros de Castro (2006), em seus comentários sobre o brilho nos xamanismos amazônicos. Escapa ao escopo e às possibilidadesdo presente artigo aprofundar potenciais afinidades e diferenças referentes aos distintos contextos históricos e etnográficos. O exercício de comparação ora proposto (que se limita aos xamanismos das terras baixas da América do Sul) deve servir, entretanto, para eventuais futuros detalhamentos3 .

Um problema similar encontra-se nos processos vividos por uma figura peculiar dos Kinsêdjê (falantes de Jê do alto Xingu), os ‘homens sem alma’ ou ‘sem espírito’, estudados por Seeger (1987)SEEGER, Anthony. Why Suyá sing? Cambridge: Cambridge University Press, 1987. e, mais recentemente, por Coelho de Souza (2018)COELHO DE SOUZA, Marcela. Cross-twins and outcestous marriages: how kinship (under)determines humanity for the Kĩsêdjê (Central Brazil). In: PITARCH, Pedro; KELLY, José Antonio (ed.). The culture of invention in the Americas: anthropological experiments with Roy Wagner. Londres: Sean Kingston, 2018. p. 187-211.. A condição de tais homens sem espírito ou alma é a incompletude; eles são definidos como pessoas ex-doentes ou cronicamente doentes que assim se tornaram depois de, em sonho, terem visto a sua própria alma (me karon), “[...] tal como em um espelho [...]” (Coelho de Souza, 2018COELHO DE SOUZA, Marcela. Cross-twins and outcestous marriages: how kinship (under)determines humanity for the Kĩsêdjê (Central Brazil). In: PITARCH, Pedro; KELLY, José Antonio (ed.). The culture of invention in the Americas: anthropological experiments with Roy Wagner. Londres: Sean Kingston, 2018. p. 187-211., p. 14). Tais experiências oníricas revelam também um traço essencial desse aspecto singular da pessoa kinsêdjê, o me karon: como escreve Coelho de Souza (2018, p. 193)COELHO DE SOUZA, Marcela. Cross-twins and outcestous marriages: how kinship (under)determines humanity for the Kĩsêdjê (Central Brazil). In: PITARCH, Pedro; KELLY, José Antonio (ed.). The culture of invention in the Americas: anthropological experiments with Roy Wagner. Londres: Sean Kingston, 2018. p. 187-211.:

De toda forma, parece não haver um recurso gramatical para dizer, em kinsêdjê, que uma pessoa tem um karõ sem que se faça referência à sua sombra ou imagem, ao invés de sua ‘alma’. Não há como colocar [...] o karõ no interior do corpo. Pode-se perceber também a questão pela impossibilidade da negativa: isto é, não há como dizer que alguém ‘não tem’ ou ‘está sem’ o seu karõ.

Tal configuração da pessoa se torna notável no seguinte relato sobre um desses sonhos especulares oferecidos pela antropóloga (Coelho de Souza, 2018COELHO DE SOUZA, Marcela. Cross-twins and outcestous marriages: how kinship (under)determines humanity for the Kĩsêdjê (Central Brazil). In: PITARCH, Pedro; KELLY, José Antonio (ed.). The culture of invention in the Americas: anthropological experiments with Roy Wagner. Londres: Sean Kingston, 2018. p. 187-211., p. 194)3 3 Agradeço a Marcela Coelho de Souza por compartilhar a presente tradução do relato kinsêdjê, elaborada pela autora originalmente em português. As passagens aqui citadas de trechos de seu artigo (Coelho de Souza, 2018) foram extraídas do manuscrito original, escrito em português e compartilhado comigo antes da publicação da versão final do trabalho, em inglês. As referências às respectivas páginas são concernentes, contudo, à edição inglesa, à qual os trechos correspondem com exatidão. :

Depois, de noite eu dormi de novo, então alguém disse: “vamos, vamos lá”

Não sei se foi alma/fantasma [mekarõ] falando para mim: “vamos, vamos lá ver a lagoa”

Eu disse: “será que é perto?”

“É logo ali, vamos lá para você ver”

Então no meu sonho eu fui com ele/s

A lagoa ficava atrás de uma parede como esta [aponta para a parede da casa em que estávamos, de vigas de madeira]

Me disseram: “saia por aqui, saia por aqui”

E eu: “não, por onde eu vou sair? Não tem porta!”

“Não, sai por aí mesmo, bate a sua cabeça na parede que não vai machucar, assim você vai conseguir atravessar"

E eu então saí assim por aquele lugar e não me machuquei

Eu saí do outro lado

Então me disse[ram]: “vira para cá”

Então eu virei e vi minha alma [i-katwâni]

Eu fiquei aqui, minha alma ficou lá do outro lado e eu a vi

“Pronto, agora você viu”; [apontando para alma] esse aí é você também

O xexéu contou para mim sobre a minha alma [i-katwâni] assim, para eu saber.

Ao atravessar a parede que separa as duas posições, o aspecto da pessoa pode se ver desdobrado em seu mesmo-outro, a ‘alma que ficou lá do outro lado’. É nesse exato momento que ela toma consciência de si enquanto imagem/duplo ou, antes, daquele seu aspecto de imagem ejetado para fora, o karõ. Aqui, como no caso desana (no qual, no entanto, o sujeito visionário não se via a si mesmo refletido, mas apenas o outro lado), essa consciência especular é alcançada pela experiência imediata e se distingue daquela indireta que, em outros contextos, pode ser formada a partir das explicações de um especialista (um pajé ou curador) sobre o que ocorre com a pessoa, e à sua própria revelia, durante crises ou doenças. É dessa forma que se torna possível compreender o contraste entre karõ, a imagem-duplo tornada externa, e outro aspecto da pessoa kinsêdjê, o katwâni:

O homem que teve essa experiência me explicou que o katwâni é o que torna o corpo vivo e forte. Animais (e outros seres) também têm katwâni, mas quando um me katwâni kêrê os vê, enquanto pessoa, o que ele vê é o seu karõ. Como me disse outro amigo, quando você morre o katwâni parte para a aldeia dos mortos (mekarõ patá txira), mas o que você vê (ou escuta) quando vê (ou escuta) os mortos é o karõ das pessoas, os seus mekarõ.

(Coelho de Souza, 2018COELHO DE SOUZA, Marcela. Cross-twins and outcestous marriages: how kinship (under)determines humanity for the Kĩsêdjê (Central Brazil). In: PITARCH, Pedro; KELLY, José Antonio (ed.). The culture of invention in the Americas: anthropological experiments with Roy Wagner. Londres: Sean Kingston, 2018. p. 187-211., p. 194).

É por isso que os homens sem alma são caracterizados como homens sem interior (Coelho de Souza, 2018COELHO DE SOUZA, Marcela. Cross-twins and outcestous marriages: how kinship (under)determines humanity for the Kĩsêdjê (Central Brazil). In: PITARCH, Pedro; KELLY, José Antonio (ed.). The culture of invention in the Americas: anthropological experiments with Roy Wagner. Londres: Sean Kingston, 2018. p. 187-211.), já que estão distribuídos em outras posições que não as de seus corpos. Não por acaso, como nos mostra Seeger (1987)SEEGER, Anthony. Why Suyá sing? Cambridge: Cambridge University Press, 1987., o homem sem alma kinsêdjê é justamente aquele que traz cantos para a aldeia, ou seja, os cantos daquela gente outra (espíritos de peixes, de pássaros etc.) com a qual vive a sua alma. Mas a explicação de Coelho de Souza (2018)COELHO DE SOUZA, Marcela. Cross-twins and outcestous marriages: how kinship (under)determines humanity for the Kĩsêdjê (Central Brazil). In: PITARCH, Pedro; KELLY, José Antonio (ed.). The culture of invention in the Americas: anthropological experiments with Roy Wagner. Londres: Sean Kingston, 2018. p. 187-211. contém ainda algo de mais essencial: o katwâni (princípio vital, diríamos) só se torna visível enquanto karõ ou, antes, karõ é a condição de visibilidade desse aspecto da pessoa. A experiência do homem sem alma kinsêdjê não é distante daquelas vividas pelos xamãs romeya dos Marubo (falantes de Pano do vale do Javari), que estudei em outros trabalhos (Cesarino, 2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva, 2011.). Ali, o mesmo confronto entre os aspectos da pessoa se dá em um espaço/evento marcado pela multiposicionalidade, como podemos ver no seguinte relato da experiência de transformação vivida pelo xamã Robson Venãpa:

De início narrando algo que teria acontecido a seu vaká (duplo), o jovem romeya Venãpa disse que, certa feita, chegou numa maloca vazia. Havia macaxeira cozida dentro dos paneiros, pendurados nas traves das seções familiares, e pessoa alguma. Ele escutou cantos saiti vindos de longe. Do fundo do roçado, viu gente chegando. Eram os yove, que de pronto disseram: “o que você está fazendo aqui?”. “Não sei, eu cheguei aqui”, ele respondeu. “Não, você vai morrer, não venha para cá!”. “Não, eu estou bem, não vou morrer, você não está vendo?”, disse Venãpa. “Você vai morrer. Nós não estamos te enganando não, venha ver!”, falaram os espíritos. Levaram-no ao hospital em Tabatinga. Venãpa viu álcool nas prateleiras. Viu a si mesmo deitado em uma maca, moribundo. Então entendeu. “Vocês não estavam mesmo me enganando”. “É, em dois dias você vai morrer”, os yove disseram. Ele viu a enfermeira Solange e uma mulher branca chorando, perto de seu corpo deitado na maca.

Foi aí que ele conheceu Isko Osho [japó-branco, seu duplo auxiliar], que veio chegando junto com Kana Ina (rabo-de-arara) e os espíritos do gavião cãocão4 4 Trata-se do Daptrius americanus, caracará-cancã (em português). Escolho aqui empregar o nome regional em português dado pelos próprios Marubo: gavião cãocão. (shãpei vakáras?). Trouxeram um fruto do tamanho de uma laranja e o quebraram em sua cabeça. O fruto entrou nele (naki erekoa). Ele não sabia, não entendia. Ficou com a carne dura como pilastra de maloca, com o sangue novo. Mávia e Solange, as enfermeiras, estavam lá [Venãpa diz apenas isso, mas provavelmente estavam no hospital, o evento acontecendo em duas referências simultâneas]. Os yove enfiaram dardos mágicos rome em seu plexo solar (takaperiti) e em suas costas (petsi). As enfermeiras brigaram porque ele estava com soro nos vasos [Venãpa passa da narrativa do evento dentro da maloca dos espíritos para a narrativa do que ocorria no hospital, como se o processo fosse o mesmo, mas em planos distintos]. As enfermeiras davam cachaça para ele em colheres. Parecia a substância nãko. Alguns nawa romeya (curandeiros/pajés peruanos) é que tinham trazido a cachaça.

(Cesarino, 2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva, 2011., p. 39-40, grifo do autor).

Na circunstância em que recolhi esse relato, o jovem pajé me explicou que a tal maloca em que havia encontrado os espíritos existia “[...] dentro de meu peitopensamento, que até então eu não tinha [ou não conhecia] [...]” (en chinãnamã atiã ea yama) (Cesarino, 2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva, 2011., p. 40). No xamanismo marubo, a pessoa é concebida como uma replicação do espaço externo, que coincide com a estrutura de uma casa habitada por um determinado grupo de parentes (Cesarino, 2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva, 2011.). Dizer que algo ocorre ‘dentro do corpo-maloca’, no entanto, é uma explicação parcialmente completa (e potencialmente equivocável pelas distinções modernas entre corpo e alma, interior e exterior), pois ela só pode fazer sentido como um enunciado válido para quem está de fora desse corpo, isto é, para quem analisa de fora essa propriedade espacial que o tal do ‘corpo’ possui – ou seja, eu e o meu interlocutor naquele momento em que conversávamos. Para quem está dentro do evento, a sua dimensão espacial não aparecerá evidentemente como um corpo repleto de vísceras e ossos, mas como uma dimensão espacial qualquer (ou seja, como uma casa, com seu pátio e seus caminhos): para eles mesmos é uma maloca aquilo que, para mim, é de toda forma um corpo, diziam constantemente os Marubo, empregando o sufixo reflexivo ‘-ri’. A singularidade de ‘Robson’ se divide então em ao menos três aspectos responsáveis pelo evento estendido em questão: o narrador, que toma consciência de tal multiplicidade no momento em que produz o relato, o seu ‘corpo’5 5 ‘Corpo’ é um termo genérico que traduz distintos conceitos empregados pelos Marubo, tais comoshaká (‘carcaça’, ‘invólucro’), kaya (‘extensão corporal’, tal como a área de uma casa ou de uma canoa) e yora (‘corpogente’, produzido pelas relações de parentesco e sociabilidade). deitado na maca do hospital e o seu duplo (vaká, yochin, termos sinônimos neste contexto), que vive a experiência na casa dos espíritos, ou seja, no espaço aberto pela dimensão corporal interna.

Ainda assim, Robson fala sobre uma casa que está alhures desde esse seu ponto de vista de narrador, mas a tal casa dos espíritos coincide com a sua própria extensão corporal. Ora, como vimos, a experiência do duplo se atrela de maneira recursiva à extensão corporal6 6 Ver Vilaça (2005, p. 453) para uma configuração análoga entre os Wari’ de Rondônia. , como se interior e exterior fossem simultaneamente a mesma dimensão – “[...] um continente que não é mais um corpo (e sim ele mesmo um tubo) [...]”, diria Lévi-Strauss (1986, p. 204)LÉVI-STRAUSS, Claude. A oleira ciumenta. São Paulo: Brasiliense, 1986. sobre os mitos em garrafas de Klein. Isso pode ocorrer porque o termo yochin só faz sentido enquanto marcador de reversibilidade posicional (e não como substância singularizada, a alma que se opõe ao corpo): yochin é sempre aquele aspecto espelhado de mim mesmo enquanto corpo-espaço, e vice-versa, pois serei eu o yochin de um determinado corpo-espaço que se espelha em seus aspectos bifurcados (Cesarino, 2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva, 2011.). Dito de outro modo, a percepção do aspecto tornado externo (seu yochin) só pode acontecer no momento em que a pessoa se dobra enquanto espaço, ou seja, enquanto casa. A tomada de consciência da corporalidade do duplo implica necessariamente um espaço de socialidade, pois gente-corpo existe apenas a partir de sua casa. É nesses termos, pois, que se dá o confronto da pessoa consigo mesma em outra posição: através de uma variação espelhada de si (pois o duplo e a pessoa nunca são completamente idênticos) que implica uma dobra-morada, ou seja, um espaço-tempo habitado por pessoas (em ‘n’ posições possíveis).

Mais uma vez, a condição de apercepção da passagem para o ‘outro lado’ depende desse confronto com a imagem espelhada. Do contrário, o sujeito talvez não se desse conta ‘da outra coisa’, como dizia Guzmán. Na falta disso, morreria definitivamente. A morte ‘parcial’, por sua vez, implica tomar consciência da posição de mediação, uma conscientização que só acontece a partir do encontro com e da instituição de uma ‘imagem-duplo’, cujas características indicativas, mais do que propriamente icônicas, foram estudadas por Viveiros de Castro (2006)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 14/15, p. 319-338, 2006. em um denso comentário sobre o xamanismo yanomami. Assim, o duplo, enquanto imagem espelhada, não é exatamente uma representação figurativa de seu outro, mas sim a indicação daquela condição bifurcada, de uma cisão entre a pessoa e seus aspectos, marcada, mais uma vez, por um desequilíbrio potencialmente perpétuo7 7 Essa noção de desequilíbrio perpétuo, como bem se sabe, foi elaborada por Lévi-Strauss (1991) na “Histoire de lynx”, a qual, mais adiante, foi atualizada por Viveiros de Castro (2002b). . Robson costumava descrever um de seus duplos como ‘quase’ idêntico a si mesmo, não fosse por uns óculos escuros, não fosse por um boné que ele insiste em usar, dando, assim, a entender que a variação pela diferença infinitesimal é mais importante do que a substituição pela semelhança. Esse desequilíbrio parece ser responsável pelos relatos aqui referidos, nos quais a pessoa se depara com os aparentes paradoxos desencadeados por sua bifurcação e decorrente instauração de uma passagem espacial.

Modernos poderiam tomar esses relatos por mais outro problema do sujeito. Vimos como, no entanto, essas configurações ameríndias não pressupõem a interioridade como problema ontológico de fundo, mas sim a espacialidade virtual enquanto condição de possibilidade. Não há um ponto de estabilização do processo, como se uma posição fosse mais ou menos duplo ou imagem do que a outra, substituída por sua representação, aquela supostamente mais verdadeira ou real. Além do mais, torna-se necessário também se perguntar pela dimensão em que tais aspectos se desdobram, deslocam-se e produzem relações. Estarão imersos em um campo envolvente do qual, eventualmente, não teriam como se destacar?

Nos mundos ameríndios, a noção de pessoa não existe enquanto entidade conceitual destacada de um campo espaço-temporal, mas sim como uma espécie de função conectiva, de capacidade de desdobramento e de instauração de relações de vizinhança. Topologia e cronologia se implicam uma na outra, valendo-se tomar de empréstimo as reflexões de Simondon (1995)SIMONDON, Gilbert. L’individu et sa genèse physico-biologique. Grenoble: Jérôme Millon, 1995. a propósito do problema da individuação e da reversibilidade das relações entre interior e exterior. Não há exatamente quantidades temporais e distâncias infranqueáveis, como em uma ontologia euclidiana, e nem exatamente formas a priori da sensibilidade, mas sim dimensionalidades, dobras que replicam os seus espaços-tempos intensivos e que projetam, assim, uma outra possibilidade da memória e do conhecimento8 8 Agradeço a Rodrigo Nunes por me relembrar dessa conexão possível com o pensamento de Simondon. . Mas quais seriam, nos mundos das terras baixas da América do Sul, as suas qualidades principais?

A LUZ DOS MUNDOS

Shavá, uma categoria central do pensamento marubo, torna-se especialmente relevante para a compreensão do problema em questão. O termo se refere a aspectos temporais, tais como os dias e sua contagem (aweti shavára min meikatsai, ‘quantos dias você trabalhará?’), mas também a uma era ou época (noken shenirasin shavá, ‘o tempo/época de nossos antepassados’; oi shavá, a ‘estação das chuvas’), a aspectos espaciais (shavá é um terreiro e o termo genérico para aldeia, noken shavá, ‘o nosso lar/aldeia’, e também para espaço, nonti shaváka, ‘canoa espaçosa’) e a aspectos luminosos (shovo shaváka, ‘casa clara/bem iluminada’). Shavá é, mais propriamente, uma dimensão, uma forma de abertura no tempo-espaço para a existência luminosa em sociedade. A categoria se opõe à escuridão (vakíshka) da mata cerrada (ni tsokoska), na qual vivem os espectros dos mortos desgarrados, mudos e desgrenhados que não completaram o Caminho-Morte (Vei ‘vai’) e retornaram desesperados para cá. Não por acaso, uma das imagens mais notáveis de shavá (aliás, usada como um signo nos desenhos-escritura elaborados pelos pajés marubo9 9 Ver Cesarino (2013). ) é a de uma clareira aberta na floresta, com as árvores já reduzidas a tocos queimados; imagem de um espaço que, aos poucos, oferecerá as condições para o estabelecimento daquela temporalidade marcada pela vida entre parentes, ou seja, para a produção de um conhecimento que é, sobretudo, a produção de um ‘corpogente’ (yora). Shavá é, no sentido mais amplo, uma morada: a dimensão instaurada pelo advento do tempo, da luz e do espaço que garante a possibilidade da memória e da socialidade.

A categoria shavá é marcada, ainda, pela multiplicidade posicional. Tal característica se mostra especialmente notável nas explicações sobre a cosmografia, elaboradas pelos xamãs marubo através de suas palavras ou de esquemas gráficos (a pedido do antropólogo ou por livre iniciativa, quando traços paralelos são riscados na areia para produzir determinadas explicações sobre o cosmos). A cosmografia marubo, assim como outras tantas amazônicas, distingue o que se costuma chamar de estratos ou plataformas celestes e terrestres, cada uma delas acompanhada por um nome (Vei Naí Shavaya, Shane Naí Shavaya, Naí Osho Shavaya, Morada do Céu Morte, Morada do Céu Azulão, Morada do Céu Branco, e assim por diante), por um conjunto de habitantes e por determinadas variações em torno de uma base comum: a existência de coletivos que vivem em casas com seus chefes e parentes, ou seja, de uma forma genérica de socialidade humanoide, passível de variar indefinidamente. Esse desenho geral do mundo pode ser enganador: não há a rigor ‘um’ cosmos ou mundo, marcado por um empilhamento de patamares que se sucederiam uns aos outros, como os níveis da atmosfera ou os andares de um edifício. Ainda que a solução gráfica empregada pelos desenhistas e xamãs marubo seja exatamente esta (e similar, aliás, às de outros desenhistas pano, tal como nos casos Shipibo-Conibo10 10 Ver Bertrand-Ricoveri (1994). ), ainda que, em suas especulações, costumem dizer que a Morada do Céu Azulão está logo acima da Morada do Céu Morte e corresponda ao espaço por onde transitam pássaros e aviões, o esquema de fundo não compreende alguma forma de totalização. As distintas ‘moradas’ (shavá) terrestres e celestes são ‘possibilidades’, antes de serem regiões, são posições possíveis com todas as suas respectivas prerrogativas (pessoas, animais, malocas, rios, florestas, céus, corpos celestes e assim por diante). São mundos que existem para si mesmos, mas concebidos como regiões cartografáveis, passíveis de integrar uma planta unificada do cosmos, apenas de acordo com um ponto de vista explicativo externo. As especulações xamanísticas devem conceber que seja possível, para o Povo do Céu Azulão (Shane Naí Nawavo), uma existência social potencialmente análoga à dos viventes. Mas o que ocorre quando a pessoa efetivamente se desdobra? Ela ultrapassa esse esquematismo cosmológico didático e estabelece uma conexão efetiva, que poderá levar a uma transformação radical de seus vínculos ou, então, a um fracasso.

Os casos desana e kinsêdjê acima visitados não explicitam essa multiplicidade cartográfica presente entre os Marubo, pois as descrições e os depoimentos se referem apenas a duas posições separadas por um muro ou casca: o mundo dos viventes com relação ao Apikhon-diá (na narrativa de Guzmán) e a lagoa que está do outro lado da parede no relato dos kinsêdjê. Tampouco encontramos elementos que se aproximem da categoria marubo shavá. Algo análogo a ela se faz presente, entretanto, nos relatos de processos de iniciação dos yanomami descritos por Davi Kopenawa. Esses relatos destacam de maneira emblemática uma certa qualidade ofuscante, característica dos espíritos xapiri, um ‘valor de brilho’ (në mirexi) que emana de suas casas similares a uma “[...] vasta superfície de vidro imaculada, lisa e faiscante [...]” (Kopenawa; Albert, 2010KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. La chute du ciel: paroles d’un chaman yanomami. Paris: Pocket, 2010. (Terre Humaine Poche)., p. 148, tradução nossa), responsável por ofuscar aquele aspecto da pessoa removido de seu corpo pelos espíritos: eles “[...] arrancam a nossa imagem e levam-na para longe [...]” (Kopenawa; Albert, 2010KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. La chute du ciel: paroles d’un chaman yanomami. Paris: Pocket, 2010. (Terre Humaine Poche)., p. 133, tradução nossa), diz Kopenawa através de uma solução tradutória do termo utupë, que, mais uma vez, não deve ser compreendido em seu valor icônico, mas sim indicativo, como sugeria Viveiros de Castro (2006)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 14/15, p. 319-338, 2006..

Lauro Brasil Marubo, um xamã rezador com quem vivi, me explicava certa vez que não fora tão longe quanto seu sobrinho Robson Venãpa, por conta do brilho fulgurante das casas dos espíritos yovevo. A luminosidade era tão intensa que ele, assustado e ofuscado, acabou por voltar atrás, ao passo que Isko Osho, o duplo mais poderoso de Robson, conseguiu de fato avançar e estabelecer uma relação de parentesco com as gentes outras, habitantes da espacialidade luminosa. Tudo se passa, assim, como se experiência luminosa e abertura espaço-temporal fossem um mesmo fenômeno, capaz de estabelecer uma relação de extensão com os agentes que vivem em tais lugares, com os quais um humano vivente pode eventualmente produzir relações. Não por acaso, Heurich (2015, p. 155, grifo do autor)HEURICH, Guilherme Orlandini. Música, morte e esquecimento na arte verbal araweté. 2015. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015., em seu estudo recente sobre os Araweté, sustentou que o “[...] mundo ocupado pelos Mai se define tanto pelo seu aspecto espacial quanto pela presença dos deuses [...]”, de modo a poder ser considerado menos como “[...] um lugar onde os deuses habitam e mais [como] os deuses em forma de lugar”. Reencontramos aqui algo análogo ao caráter reversível da relação corpo/espaço verificado naquele relato da iniciação de Robson. Mas, no que se refere ainda aos Araweté, vale lembrar que os próprios Mai são também caracterizados pelos predicados da intensidade luminosa e ofuscante, que apontam então para uma característica comum dos xamanismos amazônicos. É o que diz Viveiros de Castro (2006, p. 332)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 14/15, p. 319-338, 2006. na seguinte passagem:

Minha impressão, entretanto, é que não se trata, no caso amazônico, de uma concepção de luz como distribuindo relações de visibilidade-cognoscibilidade em um espaço extensivo (estou pensando aqui em algumas passagens de Les mots et les choses), mas da luz como intensidade pura, coração intensivo da realidade que estabelece a distância inextensa entre os seres – sua maior ou menor capacidade mútua de devir. A conexão disto com a ideia da invisibilidade dos espíritos me parece crucial: aquilo que é normalmente invisível é também o que é anormalmente luminoso. A luminosidade intensa dos espíritos indica o caráter super-visível destes seres, que são ‘invisíveis’ ao olho desarmado pela mesma razão que a luz o é – por ser a condição do visível.

Vemos, assim, como a distância a ser ultrapassada nas experiências de passagem sobre as quais falávamos anteriormente não poderia ser uma distância extensiva, dada por algum limite-contorno geométrico, mas sim algo mais próximo de um limite-tensão, entendido “[...] no sentido matemático de ponto para o qual tende uma série ou uma relação [...]” (Viveiros de Castro, 2002a, p. 121). Essa seria a tal ‘distância inextensa’ a que se refere Viveiros de Castro (2002a)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, abr. 2002a. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132002000100005.
https://doi.org/10.1590/S0104-9313200200...
: uma distância característica dos tempos primeiros e das ativações de devires referentes também às possibilidades dos tempos atuais. Não por acaso, na cena inicial descrita pelo Watunna, o conjunto de narrativas dos tempos antigos recolhido entre os Yekuana por De Civrieux (1980)DE CIVRIEUX, Marc. Watunna: an Orinoco creation cycle. Tradução: David M. Guss. San Francisco: North Point Press, 1980., encontramos novamente esse caráter espacial da luz. É o que vemos na seguinte passagem, que trata do demiurgo Wanadi e das pessoas dos tempos primeiros:

Não havia animais, demônios ventos e nuvens. Havia apenas luz. No céu mais alto estava Wanadi, assim como agora. Ele deu a sua luz às pessoas, aos Kahuhana, Ele iluminou tudo, até os extremos mais baixos, até Nono, a Terra. Por causa dessa luz, as pessoas estavam sempre felizes. Elas tinham vida. Elas não podiam morrer. Não havia separação entre Céu e Terra. O Céu não tinha portas, como agora. Não havia noite, como agora. Wanadi é como um sol que jamais se põe. Era sempre dia. A Terra era como uma parte do céu. Os Kahuhana tinham muitas casas e aldeias ali, no Kahuña. Todas elas repletas de luz.

(De Civrieux, 1980DE CIVRIEUX, Marc. Watunna: an Orinoco creation cycle. Tradução: David M. Guss. San Francisco: North Point Press, 1980., p. 21, tradução nossa).

Observe como essa luminosidade inicial da narrativa yekuana é também uma luminosidade social, pois os entes primeiros já viviam entre si em suas casas repletas de luz. Wanadi, então, decide enviar um de seus desdobramentos para estabelecer também na terra uma sociabilidade luminosa análoga à celeste, que então será ameaçada pelo surgimento de Odosha, o irmão trapaceiro de Wanadi, portador da morte e da doença. Os Mbyá-Guarani, por sua vez, postulam uma cena inicial invertida com relação à yekuana, pois Ñanderu vivia em um início marcado por uma espacialidade obscura – o “[...] caos obscuro do começo/tudo oculto em sombras [...]”, na tradução de Vianna Baptista (2011, p. 31)VIANNA BAPTISTA, Josely. Roça barroca. São Paulo: Cosac Naify, 2011.. Ao invés de espalhada pelo espaço, a luminosidade segue presente, mas desta vez contida em seu coração: “A luz de seu próprio coração o revelava;/seu sol era/o saber contido em seu ser-de-céu [...]” (Vianna Baptista, 2011VIANNA BAPTISTA, Josely. Roça barroca. São Paulo: Cosac Naify, 2011., p. 27). É a partir de tal saber luminoso que Ñanderu, de toda forma, ‘desdobrará’ ou ‘aflorará’ a ‘fonte da futura fala’, responsável por compartilhar o ‘amor’ (mborayu) (Vianna Baptista, 2011VIANNA BAPTISTA, Josely. Roça barroca. São Paulo: Cosac Naify, 2011.) – essa qualidade que Clastres (1990)CLASTRES, Pierre. A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios guarani. Tradução: Nícia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1990., por sua vez, traduzia como ‘o um que reúne’, na tentativa de evitar contaminações cristãs.

PASSAGENS FRUSTRADAS

É essa qualidade transmitida pela palavra, derivada da luminosidade interna de Ñanderu, que garante a possibilidade da vida em parentesco e de superação das mazelas deste mundo marcado, de acordo com um estudioso dos Guarani (Pierri, 2013PIERRI, Daniel Calazans. O perecível e o imperecível: lógica do sensível e corporalidade no pensamento guarani-mbya. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.), pelo seu caráter perecível. Através de uma série de condutas rituais, a pessoa guarani pode, se bem-sucedida, livrar-se do peso das ‘imperfeições humanas’ e passar para a Yvy Marã’e’y, situada depois do mar “[...] que separa a terra do paraíso [...]” (Pierri, 2013PIERRI, Daniel Calazans. O perecível e o imperecível: lógica do sensível e corporalidade no pensamento guarani-mbya. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013., p. 118). Pierri (2013, p. 118)PIERRI, Daniel Calazans. O perecível e o imperecível: lógica do sensível e corporalidade no pensamento guarani-mbya. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. observa que esse mar, no entanto, não corresponde ao oceano visível, e sim àquele “[...] mar invisível que atinge as plataformas celestes e espalha-se por todo o cosmos [...]”; cosmos este que também não pode ser compreendido como uma unidade, e sim como “[...] uma multiplicidade de cidades celestes, situadas em ilhas distintas [...]” (Pierri, 2013PIERRI, Daniel Calazans. O perecível e o imperecível: lógica do sensível e corporalidade no pensamento guarani-mbya. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013., p. 118). O etnógrafo reproduz a seguinte conversa entretida com um interlocutor seu, que teria estabelecido sua aldeia em uma ilha no litoral por conta do seguinte anúncio trazido em um sonho:

D: E sobre o sonho que você teve, que estava contando, o que foi que os Nhanderu Kuery contaram para você?

Eles me mostraram esse lugar, para eu vir e ficar plantando milho, só viver disso, só me alimentar das coisas que eu consigo da terra, tem que procurar os queixadas, para me alimentar, por mais ou menos cinco ou seis anos. É assim que eles queriam que eu vivesse.

Eles vão me levar para lá, para outra ilha, lá em yva mirindy amba. É como se fosse em Iguape, mas não é Iguape mesmo, é do lado. Eles me trouxeram até aqui para passar para lá. E como eu disse, vivendo aqui eu via os animais domésticos deles [queixadas], mas nós não soubemos comer as coisas certas. Porque a gente misturou a comida, como se diz. E Nhanderu não queria assim. Nós erramos por muito pouco, como se diz.

Como eu estava contando, se eu tivesse feito como ele queria mesmo, teria me levado há muito tempo. Eu tentei fazer, mas estou aqui ainda.

Eu sinto todo tipo de dor, que voltou pra mim, sinto dor no meu braço, por todo lado sinto, porque eu errei pra Nhanderu.

(Pierri, 2013PIERRI, Daniel Calazans. O perecível e o imperecível: lógica do sensível e corporalidade no pensamento guarani-mbya. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013., p. 213-214).

O trecho parece demonstrar uma forma de resistência às diversas tentativas fracassadas de passagem ao outro mundo (Pierri, 2013PIERRI, Daniel Calazans. O perecível e o imperecível: lógica do sensível e corporalidade no pensamento guarani-mbya. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.), cujas condições são de fato agravadas pela presença infeliz do mundo dos brancos. Vemos aí também, mais uma vez, o problema dos limiares em uma nova formulação: ‘a outra ilha’ não é exatamente uma dessas ilhas visíveis do litoral paulista, embora esteja logo ali, bem ao lado, quase acessível, não fosse pelas falhas e limitações da pessoa11 11 Tratei do problema da falibilidade nas narrativas ameríndias de surgimento do mundo em outro estudo (Cesarino, 2014b). . A tomada de consciência da condição humana, de sua condição desoladora, de seu contraste com a outra condição melhor, parece, então, depender da apercepção dessa possibilidade virtual. Não se trata de algo produzido por uma meditação solitária, mas sim pelo vínculo estabelecido com algum agente mediador responsável por anunciar para a pessoa essa deriva possível. No relato acima, são os Nhanderu Kuery que avisam sobre a possibilidade de uma ilha; o relato kinsêdjê, por sua vez, terminava da seguinte maneira: “[...] o xexéu contou para mim da minha alma [ikatwâni] assim, para eu saber [...]” (Coelho de Souza, 2018COELHO DE SOUZA, Marcela. Cross-twins and outcestous marriages: how kinship (under)determines humanity for the Kĩsêdjê (Central Brazil). In: PITARCH, Pedro; KELLY, José Antonio (ed.). The culture of invention in the Americas: anthropological experiments with Roy Wagner. Londres: Sean Kingston, 2018. p. 187-211., p. 194). O sujeito sonhador kinsêdjê é alertado ou instruído por um mediador (o espírito do pássaro xexéu) sobre a sua condição ubíqua ou desdobrada, de maneira homóloga ao caso de Robson Venãpa, também avisado pelos espíritos sobre o devir iminente.

É curiosa a posição ocupada por tais figuras de mediação. Elas não estão apenas a meio caminho entre territórios, não fazem apenas as vezes de uma função lógica, como diria Lévi-Strauss (1958)LÉVI-STRAUSS, Claude. Anthropologie structurale. Paris: Plon, 1958., em “A estrutura dos mitos”. Elas parecem também ocupar uma espécie de posição onisciente, de consciência expandida das dobras espaço-temporais que a pessoa, cindida em seus aspectos, não consegue por conta própria conquistar. Não se trata de algo similar aos antigos adivinhos gregos, tais como Calcas, Tirésias ou Cassandra, cujo frenesi implica uma ausência do presente imediato e um acesso a outro regime do tempo e da memória (Heidegger, 1978HEIDEGGER, Martin. A sentença de Anaximandro. In: OS PRÉ-socráticos. Tradução: José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 19-47. (Coleção Pensadores).). É que, no caso em pauta, o problema não está em desvelar o ausente ou esquecido (aletheia) que arrastará inexoravelmente os humanos – arrogantes, excessivamente autoconfiantes, tais como Agamêmnon ou Édipo – para o seu daimon implacável. Os mediadores, aqui, indicam antes a possibilidade de um devir sempre aberto para a pessoa; apontam para uma passagem à condição mais favorável dessas entidades que traduzimos por ‘espírito’ e que designam, de acordo com Viveiros de Castro (2006, p. 321)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 14/15, p. 319-338, 2006., uma “[...] multiplicidade virtual intensiva”. Eles apontam não para a falha trágica do sujeito autoritário, que desconhece a sincronia complexa dos eventos aos quais está, de toda forma, submetido, mas, bem ao contrário, para uma dissolução ou impossibilidade mesma desse sujeito. Nos xamanismos das terras baixas sul-americanas, a possibilidade da passagem implica um enfraquecimento progressivo da pessoa, capaz de conduzir a uma morte provisória. Ela depende explicitamente de um desmonte do Eu e sua autoconfiança excessiva:

Eles querem apenas enfraquecer a nossa consciência pois, se fôssemos simplesmente vivos, tais como as pessoas comuns, eles não poderiam nos fazer pensar direito. Sem se tornar outro, permanecendo vigoroso e preocupado com o que nos cerca, seria impossível de ver as coisas como veem os espíritos! É por isso que os xapiri dizem aos iniciados: ‘se ele continuar robusto, não entenderá a nossa voz!’.

(Kopenawa; Albert, 2010KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. La chute du ciel: paroles d’un chaman yanomami. Paris: Pocket, 2010. (Terre Humaine Poche)., p. 127, tradução nossa).

Davi Kopenawa, a quem pertence tal relato, pode efetivamente desencadear o seu devir-multiplicidade, a sua passagem para a condição dos xapiri. Mais adiante, ele produziria, em parceria com Bruce Albert, o livro “La chute du ciel: paroles d’un chaman yanomami” (2010), relato autobiográfico, ensaio de crítica filosófica xamânica endereçado ao potencial destrutivo dos brancos e sua autoconfiança sem limites aparentes (o fim iminente de seu mundo saberá se impor, entretanto, como um freio a tal desmedida). De sua parte, o sujeito guarani ‘errou para Ñanderu’, permaneceu em seu estado de desolação sem que conseguisse ainda, ao menos naquele momento, realizar a tão desejada passagem. Essa dificuldade parece estar associada, de acordo com Pierri (2013)PIERRI, Daniel Calazans. O perecível e o imperecível: lógica do sensível e corporalidade no pensamento guarani-mbya. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013., com a má alimentação derivada da relação com o mundo dos brancos, que impede a dieta necessária para acessar a outra condição. Uma dieta baseada em queixadas, e não na carne proveniente dos açougues dos brancos, é o que, entre outros elementos, garantiria a obtenção do estado de aguyje – “[...] maturação corporal [...]”, de acordo com Pierri (2013, p. 41). No seguinte trecho, a procura pelos queixadas termina em um outro fracasso que, novamente, corresponde à possibilidade frustrada de transposição do limiar que conduziria à ilha melhor, onde vivem Nhandexy Mirin e Nhanderu Mirin:

Naquele lugar, a gente foi seguindo o rastro dos queixadas, buscando saber para onde eles foram. “Vamos por aqui”, rodeamos e chegamos no mesmo lugar. Os queixadas não foram pra lugar nenhum. Só vimos o rastro dos filhotes. Eles deixaram pegadas fortes, mas deram uma volta chegando no mesmo lugar. Não sabíamos para onde foram. Olhamos por todo lado, até que falei “vamos!”. Andamos até ali adiante, e vimos uma canoa, desse tamanho assim. Olhamos e parecia que não estava totalmente na água. Para nós tekoaxy parecia que a canoa estava assim. Naquele instante, se eu tivesse sido mais sábio, eu teria dito “vamos descer nessa canoa”. “Vamos descer no riozinho.” Ela parecia pequena, mas se fôssemos mesmo a canoa seria grande. Olhando era assim que se parecia. Parecia que ela viraria facilmente. Só depois de vir, de chegar aqui, é que fiquei pensando assim. Ah! Como fui burro! Eu errei de não atravessar. Agora já é tarde. Eles mostraram para eu ir. Se eu tivesse atravessado, já teria ido para essa outra ilha. Para isso que ele mostrou. Ah...! Por isso que estou assim, sofrendo, passando por tudo isso. Só estou lembrando mesmo. São muitos desafios para seguir os Nhanderu kuery. Eu vi os queixadas, e quando me levantava já sabia. E já falava: “fica atento”. Eu era assim, era muito sábio. Mas ele falou sobre quando for acontecer uma catástrofe “Se você não errar, pode ser que você escape junto com seu corpo, se não se esquecer. Mas viva sempre lembrando, fique sempre assim”. Então, estou tentando viver seguindo isso.

(Pierri, 2013PIERRI, Daniel Calazans. O perecível e o imperecível: lógica do sensível e corporalidade no pensamento guarani-mbya. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013., p. 232-233).

O efeito de perspectivas que, entre os Kinsêdjê, aparecia em uma passagem supostamente inexistente na parede ressurge, aqui, nessa peculiar instabilidade da canoa, que faz o papel de elemento atravessador. Mas os Guarani estariam destinados à terra para viverem com humildade, por contraposição ao modo opulento e autoconfiante dos brancos que, no entanto, “[...] estão condenados à vida breve por mobilizarem as imagens perecíveis da tecnologia dos deuses [...]” (Pierri, 2013PIERRI, Daniel Calazans. O perecível e o imperecível: lógica do sensível e corporalidade no pensamento guarani-mbya. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013., p. 234). Essa mesma humildade é que poderia oferecer as condições corporais para que se realizasse o transporte, não fosse o erro, não fosse a má escolha do sujeito, consideradas como provas colocadas pelas divindades para testar a pessoa (Pierri, 2013PIERRI, Daniel Calazans. O perecível e o imperecível: lógica do sensível e corporalidade no pensamento guarani-mbya. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.). Nisso pesa o papel da carne proveniente das cidades – o apelo de um mundo outro, o dos brancos, que não apenas implica a negação do mundo guarani, como, em outros casos, também da iminente destruição dos vínculos, da capacidade de transpor os umbrais. É o que dizem com frequência os xamãs marubo, ao se lamentarem do ‘sangue estragado’ (imi ichná) de muitos de seus jovens, excessivamente voltados para o modus vivendi dos brancos, atrapalhados com relação às prescrições de casamento que já não são sempre respeitadas. Os espíritos yovevo, por conta disso, terminam por se afastar, deixam de reconhecer os jovens como potenciais parentes. É por isso que esses últimos se tornam aos poucos incapazes de adquirir consciência de sua dobra interna. A consequência de tal processo é devastadora, pois Kana Voã, o demiurgo marubo, tem anunciado a sua volta em meio a um gigantesco fogo que deverá destruir este mundo atual. Desprovidos de conhecimento sobre a sua capacidade de devir-multiplicidade, sobre os potenciais vínculos que os conectariam às redes de relações sociocósmicas, os jovens não saberão atravessar o Caminho-Morte (Vei Vai) e permanecerão aqui, infestando esta terra como espectros insensatos, causadores de doenças e de outros distúrbios (Cesarino, 2014aCESARINO, Pedro de Niemeyer. Multiple biographies: shamanism and personhood among the Marubo of Western Amazonia. In: OAKDALE, Suzanne; COURSE, Magnus (ed.). Fluent selves: autobiography, person and history in Lowland South America. Lincoln, London: University of Nebraska Press, 2014a. p. 121-144.).

Em um estudo recente, Danowski e Viveiros de Castro (2014)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 14/15, p. 319-338, 2006. apontam para a impossibilidade da concepção de uma destruição última e definitiva do mundo entre os ameríndios. As sucessivas criações e destruições de mundos, lembram ainda os autores, implicam sempre a produção de uma nova humanidade ou forma de vida, que sucede outras já fracassadas. “A humanidade”, escrevem, “é consubstancial ao mundo, ou para melhor dizer, objetivamente ‘correlacional’ com o mundo, relacional como o mundo” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 102, grifos dos autores). Tudo parece indicar, portanto, que o cataclismo anunciado pelos mais diversos pensadores ameríndios implica menos um desaparecimento completo da existência e mais a produção de outra forma possível de vínculo: “[...] falar no fim do mundo é falar na necessidade de imaginar, antes que um novo mundo em lugar desse nosso novo mundo presente, um novo povo; o povo que falta [...]” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 159, grifos dos autores). Já sabemos, entretanto, que o antropocentrismo aqui não teria mais lugar; o novo povo não pode mais ser um povo de homens, pois é exatamente esta a invenção moderna que está em xeque. Novos vínculos, portanto, e necessariamente transespecíficos ou transhumanos, é que estariam por vir.

Ao tratar dos efeitos relacionados à extração da gasolina (‘gordura da terra’, mai sheni), o xamã marubo Armando Cherõpapa previa um desabamento iminente de toda esta superfície, que estaria à beira de colapsar com um vasto lago subterrâneo:

[...] embaixo tem um lago gigante do tamanho desta terra onde tudo vai se desmoronando, e as pessoas acabam, tudo acaba, as árvores acabam, todos estes rios acabam, as sucuris todas acabam, os bichos da terra todos acabam, os espíritos desta terra acabam, é porque fazem assim que as pessoas acabam. (Marubo, 2008MARUBO, Armando Cherõpapa Txano. [Entrevista cedida a] Pedro de Niemeyer Cesarino. Armando Cherõpapa Txano Marubo. In: CESARINO, Pedro de Niemeyer; REZENDE, Renato; COHN, Sergio (org.). Azougue. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. p. 152-156. Edição especial., p. 153).

Essas palavras ecoam outras, não menos sombrias, de Kopenawa e Albert (2010) a respeito dos efeitos relacionados ao desaparecimento da floresta. O que será, então, das conexões possíveis com aqueles mediadores (eles próprios espíritos, por assim dizer) responsáveis por levar a pessoa à travessia dos limiares e à descoberta de suas dobras se, no cataclismo iminente, também eles estariam ameaçados? O comprometimento de tais conexões (e de seus respectivos regimes de conhecimento) parece estar em curso, pois o fim do mundo, observam com frequência os ameríndios, já começou (Danowski; Viveiros de Castro, 2014DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie; São Paulo: Instituto Socioambiental, 2014.). Um ponto, no entanto, deve ser notado. Marubo (2008)MARUBO, Armando Cherõpapa Txano. [Entrevista cedida a] Pedro de Niemeyer Cesarino. Armando Cherõpapa Txano Marubo. In: CESARINO, Pedro de Niemeyer; REZENDE, Renato; COHN, Sergio (org.). Azougue. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. p. 152-156. Edição especial. observa que o risco afeta sobretudo os espíritos desta terra. Ele postula, assim, a existência de muitas outras, acompanhadas de suas respectivas populações e mediadores, quem sabe pouco interessados em nos indicar o caminho correto.

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    “Selon l’informateur, ‘il y a un mur, une couche, qui sépare le monde naturel d’ Axpikon-diá. Cette couche empêche de voir: les hommes qui vivent dans ce monde ne voient pas Axpikon-diá. Pour pouvoir le faire, ils doivent prendre yagé’ [cujo efeito, gaxpí, é a transposição de um limiar]. Mais tout de suite après... l’informateur ajoute que ‘gaxpí est la couche’ et le compare ‘au mur qui divise’, ‘à ce qui protège’ ou ‘à ce qui est autre chose’. En faisant le rapport entre ce mot et gaxsíru (pamurí-gaxsíru) [gaxsíru = placenta; Pamurí-gaxsíru = cobra-canoa do tempo da criação] il dit: ‘La pirogue est une chose étrangère à l’eau. Cen’est pas de l’eau, autrement elle ne flotterait pas. C’est autre chose. C’est une coque qui protège’ (séru, ‘couche’, ‘coque’). Puis l’informateur développe ce qu’il entend par ‘autre chose’ et utilise pour cela une image très significative. ‘Si on enlève la couche qu’il y a derrière un miroir, on voit à travers. On ne voit plus ce monde, bien qu’on continue à être reflété dans le miroir. Onvoit ce qu’il y a derrière’. Enfin, pour expliquer l’objective de cette communication surnaturelle, l’informateur poursuit: ‘C’est pour mettre en liaison ce qui est différent et ce qui est connu. C’est pour être sûr’. Et, créant un néologisme propre à exprimer cette idée, il ajoute: ‘C’est pour ‘s’humaner’, c’est-à-dire, pour être sûr de la vie humaine. On sait que c’est autre chose, maisalors, on sait vraiment qu’on appartient à cette vie’” (Reichel-Dolmatoff, 1973, p. 180-181). Para mais informações sobre o trecho extraído, ver A onça... (2016)A ONÇA e a diferença: Projeto Amazone. [S. l.], 2016. Disponível em: http://amazone.wikia.com/wiki/Projeto_AmaZone#Cita.C3.A7.C3.B5es_.28no_original.29. Acesso em: 25 maio 2016.
    http://amazone.wikia.com/wiki/Projeto_Am...
    .
  • 2
    Os casos etnográficos aqui discutidos referem-se a sociedades distintas e distantes entre si, tais como os Desana do alto rio Negro, os Marubo do vale do Javari, os Kinsêdjê do Xingu e os Guarani do Sudeste e do Centro-Oeste brasileiros. As afinidades evidentes entre os casos são de ordem estrutural e ontológica, assim permitindo um procedimento comparativo similar ao já realizado por outros autores como Viveiros de Castro (2006)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 14/15, p. 319-338, 2006., em seus comentários sobre o brilho nos xamanismos amazônicos. Escapa ao escopo e às possibilidadesdo presente artigo aprofundar potenciais afinidades e diferenças referentes aos distintos contextos históricos e etnográficos. O exercício de comparação ora proposto (que se limita aos xamanismos das terras baixas da América do Sul) deve servir, entretanto, para eventuais futuros detalhamentos3
  • 3
    Agradeço a Marcela Coelho de Souza por compartilhar a presente tradução do relato kinsêdjê, elaborada pela autora originalmente em português. As passagens aqui citadas de trechos de seu artigo (Coelho de Souza, 2018COELHO DE SOUZA, Marcela. Cross-twins and outcestous marriages: how kinship (under)determines humanity for the Kĩsêdjê (Central Brazil). In: PITARCH, Pedro; KELLY, José Antonio (ed.). The culture of invention in the Americas: anthropological experiments with Roy Wagner. Londres: Sean Kingston, 2018. p. 187-211.) foram extraídas do manuscrito original, escrito em português e compartilhado comigo antes da publicação da versão final do trabalho, em inglês. As referências às respectivas páginas são concernentes, contudo, à edição inglesa, à qual os trechos correspondem com exatidão.
  • 4
    Trata-se do Daptrius americanus, caracará-cancã (em português). Escolho aqui empregar o nome regional em português dado pelos próprios Marubo: gavião cãocão.
  • 5
    ‘Corpo’ é um termo genérico que traduz distintos conceitos empregados pelos Marubo, tais comoshaká (‘carcaça’, ‘invólucro’), kaya (‘extensão corporal’, tal como a área de uma casa ou de uma canoa) e yora (‘corpogente’, produzido pelas relações de parentesco e sociabilidade).
  • 6
    Ver Vilaça (2005, p. 453)VILAÇA, Aparecida. Chronically unstable bodies: reflections on Amazonian corporalities. Journal of the Royal Anthropological Institute, Hoboken, v. 11, n. 3, p. 445-464, Sept. 2005. para uma configuração análoga entre os Wari’ de Rondônia.
  • 7
    Essa noção de desequilíbrio perpétuo, como bem se sabe, foi elaborada por Lévi-Strauss (1991)LÉVI-STRAUSS, Claude. Histoire de lynx. Paris: Plon, 1991. na “Histoire de lynx”, a qual, mais adiante, foi atualizada por Viveiros de Castro (2002b)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002b..
  • 8
    Agradeço a Rodrigo Nunes por me relembrar dessa conexão possível com o pensamento de Simondon.
  • 9
    Ver Cesarino (2013)CESARINO, Pedro de Niemeyer. Cartografias do cosmos: conhecimento, iconografia e artes verbais entre os Marubo. Mana, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 437-471, dez. 2013. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132013000300002.
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313201300...
    .
  • 10
    Ver Bertrand-Ricoveri (1994)BERTRAND-RICOVERI, Pierrette. Vision blanche vision indienne: traversée anthropologique d’une culture amazonienne les Shipibo d’Ucayali. 1994. Tese (Doutorado em Letras) – Université de Paris, Paris, 1994..
  • 11
    Tratei do problema da falibilidade nas narrativas ameríndias de surgimento do mundo em outro estudo (Cesarino, 2014bCESARINO, Pedro de Niemeyer. A voz falível: ensaio sobre as formações ameríndias de mundos. Literatura e sociedade, São Paulo, v. 19, n. 19, p. 76-99, 2014b. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2237-1184.v0i19p76-99.
    https://doi.org/10.11606/issn.2237-1184....
    ).

REFERÊNCIAS

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    » http://amazone.wikia.com/wiki/Projeto_AmaZone#Cita.C3.A7.C3.B5es_.28no_original.29
  • BERTRAND-RICOVERI, Pierrette. Vision blanche vision indienne: traversée anthropologique d’une culture amazonienne les Shipibo d’Ucayali. 1994. Tese (Doutorado em Letras) – Université de Paris, Paris, 1994.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2018
  • Aceito
    19 Fev 2019
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