Acessibilidade / Reportar erro

Coleções etnográficas e Arqueologia: uma relação pouco explorada

Ethnographic collections and archaeology: an unexplored connection

Resumo

O uso de observações e relatos etnográficos na Arqueologia é um fato comum na história da disciplina. No entanto, a exploração de questões arqueológicas através de análises de coleções etnográficas tem sido feita de maneira incipiente no Brasil, apesar da importância desses conjuntos de objetos na construção de uma história indígena de longa duração por meio da materialidade. Este artigo discute as relações entre objetos etnográficos e arqueológicos, ressaltando o potencial que os primeiros possuem no desenvolvimento de problemas relacionados aos segundos. A partir das abordagens de estudos de tecnologia, são apresentadas análises de coleções etnográficas de cerâmicas e trançados de povos falantes de línguas Karib na Amazônia guianense. Por fim, as contribuições desse aporte teórico-metodológico são discutidas para essa área do conhecimento.

Palavras-chave
Coleções etnográficas; Arqueologia; Cerâmica; Trançados; Povos de línguas Karib

Abstract

Throughout the history of archaeology, ethnographic observations and reports have been commonly used. However, the use of ethnographic collections to explore archaeological questions is only emerging in Brazil, despite the importance of these groups of objects in constructing long-term indigenous history through materiality. This article discusses the relations between ethnographic and archaeological objects, highlighting the potential of the former in developing problems related to the latter. An approach based on technology studies is used to analyze ethnographic collections of ceramics and basketry produced by Cariban-speaking peoples in the Guyanese Amazon. We conclude by discussing the contributions of this theoretical-methodological proposal to archaeology.

Keywords
Ethnographic collections; Archaeology; Ceramics; Basketry; Cariban-speaking peoples

INTRODUÇÃO

Coleções de objetos etnográficos produzidos por povos indígenas estão abrigadas em diferentes museus do mundo. Sua história de formação é interligada tanto com a trajetória dos próprios museus, inegavelmente colonialista e muitas vezes violenta, quanto com a história dos povos que produziram esses objetos (Clifford, 1994Clifford, J. (1994). Colecionando arte e cultura. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, (23), 69-89.; Grupioni, 1998Grupioni, L. D. B. (1998). Coleções e expedições vigiadas: os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil. São Paulo: HUCITEC.; Fabian, 2004Fabian, J. (2004). On recognizing things: the “ethnic artefact” and the “ethnographic object”. L’Homme, (170), 47-60.; Abreu, 2005Abreu, R. (2005). Museus etnográficos e práticas de colecionamento: antropofagia dos sentidos. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, (31), 101-125.; Velthem, 2012Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201200...
). Recentemente, a reaproximação desses povos com as coleções etnográficas tem feito os museus repensarem suas práticas de armazenamento, acesso, exibição e estudo, incentivando sua divulgação, a guarda compartilhada de objetos, a criação de museus e de exposições indígenas (Abreu, 2005Abreu, R. (2005). Museus etnográficos e práticas de colecionamento: antropofagia dos sentidos. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, (31), 101-125.; Velthem, 2012Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201200...
; Velthem et al., 2017Velthem, L. H., Kukawka, K., & Joanny, L. (2017). Museus, coleções etnográficas e a busca do diálogo intercultural. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 13(3), 735-748. doi: 10.1590/1981.81222017000300004
https://doi.org/10.1590/1981.81222017000...
).

Tais coleções também servem como um ponto de encontro entre diferentes disciplinas, com abordagens e interesses específicos. A Antropologia, por exemplo, tem feito análises do ponto de vista de sua história de formação, do contexto de uso e de produção dos objetos que as compõem, das relações entre os modos de vida humanos e a materialidade. Apesar do interesse de muitas dessas questões para a Arqueologia, esta disciplina ainda não está habituada a utilizar coleções etnográficas como fonte primária para seus questionamentos, mesmo que esteja acostumada a dialogar com outras fontes etnográficas.

Assim, este artigo aproxima Antropologia e Arqueologia, por meio de paralelos entre objetos etnográficos e arqueológicos. Os limites entre estas duas categorias são explorados, no sentido de destacar o potencial do estudo de coleções etnográficas para o desenvolvimentos de problemas arqueológicos (Hardin & Mills, 2000Hardin, M. A., & Mills, B. J. (2000). The social and historical context of short-term stylistic replacement: a Zuni case study. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 139-163. doi: 10.1023/A:1026554403077
https://doi.org/10.1023/A:1026554403077...
; Stone, 2011Stone, E. A. (2011). The role of ethnographic museum collections in understanding bone tool use. In J. Baron & B. Kufel-Diakowska (Eds.), Written in bones: studies on technological and social contexts of past faunal skeletal remains (pp. 25-37). Wroc?aw: Uniwersytet Wroc?awski.; Torrence & Clarke, 2013Torrence, R., & Clarke, A. (2013). Creative colonialism: locating indigenous strategies in ethnographic museum collections. In R. Harrison, S. Byrne & A. Clarke (Eds.), Reassembling the collection: ethnographic museums and indigenous agency (pp. 171-198). Santa Fé: School for Advanced Research Press.; F. Silva & Noelli, 2017Silva, F. A., & Noelli, F. S. (2017). Arqueologia e linguística: construindo as trajetórias histórico-culturais dos povos Tupí. Revista Crítica e Sociedade, 7(1), 55-87. doi: 10.14393/RCS-v7n1-2017-39256
https://doi.org/10.14393/RCS-v7n1-2017-3...
). O argumento central deste artigo é de que os objetos etnográficos podem ser abordados através de noções desenvolvidas no âmbito da Antropologia e da Arqueologia da Tecnologia (Lemonnier, 1992Lemonnier, P. (1992). Elements for an Anthropology of Technology (Anthropological Papers, 88). Michigan: Museum of Anthropology.; Schiffer & Skibo, 1997Schiffer, M. B., & Skibo, J. M. (1997). The explanation of artifact variability. American Antiquity, 62(1), 27-50. doi: 10.2307/282378
https://doi.org/10.2307/282378...
; Roux, 2016Roux, V. (2016). Ceramic manufacture: the chaîne opératoire approach. In A. Hunt (Ed.), The Oxford Handbook of Archaeological Ceramic Analysis (pp. 101-113). doi: 10.1093/oxfordhb/9780199681532.013.8
https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780199...
), o que será exemplificado aqui por meio de estudos de caso sobre objetos cerâmicos e trançados produzidos por povos falantes de línguas Karib na Amazônia guianense. O objetivo é indicar que a Arqueologia pode ampliar suas fontes de pesquisa, ao superar as divisões entre objetos arqueológicos e etnográficos, bem como entre materiais perecíveis e não perecíveis.

OBJETOS ETNOGRÁFICOS, QUESTÕES ARQUEOLÓGICAS

Artefatos “representativos da criatividade e da habilidade técnica dos povos indígenas”, armazenados em museus, receberam o rótulo de “objetos etnográficos” a partir do século XIX (Velthem, 2012Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201200...
, p. 52), opondo-se temporalmente aos denominados de artefatos arqueológicos, que incluem aqueles produzidos por estes mesmos povos, só que no passado. Ambas categorias foram delimitadas em um momento de profissionalização da Antropologia e da Arqueologia, quando vários museus se especializaram em coleções arqueológicas e etnográficas (Schwarcz, 2008Schwarcz, L. M. (2008). O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.). O limite entre etnográfico e arqueológico, no entanto, é uma construção ocidental, podendo ser questionado tanto pelas noções ameríndias quanto por uma abordagem centrada nos objetos.

Coleções etnográficas foram fundamentais para a construção da noção de alteridade na Antropologia (Fabian, 2004Fabian, J. (2004). On recognizing things: the “ethnic artefact” and the “ethnographic object”. L’Homme, (170), 47-60.). Mesmo que não representem uma cultura em sua totalidade – já que são compostas por fragmentos de uma visão também fragmentada –, essas coleções são formadas por itens tidos como ‘tradicionais’ e merecedores de ser guardados e protegidos (Clifford, 1994Clifford, J. (1994). Colecionando arte e cultura. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, (23), 69-89.; Abreu, 2005Abreu, R. (2005). Museus etnográficos e práticas de colecionamento: antropofagia dos sentidos. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, (31), 101-125.). Geralmente, elas são formadas como reflexo de interesses acadêmicos e pessoais dos coletores e das instituições, de seus objetivos e abordagens da cultura material, e das condições práticas de transporte e armazenamento dos objetos (Pearce, 1994Pearce, S. M. (1994). Thinking about things. In S. M. Pearce (Ed.), Interpreting objects and collections (pp. 125-132). London: Routledge.; Grupioni, 1998Grupioni, L. D. B. (1998). Coleções e expedições vigiadas: os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil. São Paulo: HUCITEC.; Velthem, 2012Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201200...
). A prática arqueológica em relação aos objetos também está longe de ser neutra e objetiva (Shanks & Hodder, 1995Shanks, M., & Hodder, I. (1995). Processual, postprocessual and interpretative archaeologies. In I. Hoder et al. (Eds.), Interpreting Archaeology: finding meaning in the past (pp. 3-29). Londres: Routledge.; Shanks, 2008Shanks, M. (2008). Postprocessual archaeology and after. In R. A. Bentley, H. D. G. Maschner & C. Chippindale (Eds.), Handbook of Archaeological theories (pp. 133-144). Lanham: AltaMira Press.; Colwell-Chanthaphonh, 2009Colwell-Chanthaphonh, C. (2009). The archaeologist as a world citizen: on the morals of heritage preservation and destruction. In L. Meskell (Ed.), Cosmopolitan Archaeologies (pp. 140-165). Durham: Duke University Press.). Desde as escolhas de métodos de escavação, o registro e a coleta até o estudo, a interpretação e o armazenamento, é possível perceber que o registro arqueológico é também uma construção definida e produzida por pesquisadores com suas teorias, objetivos, conhecimentos e experiências (Edgeworth, 2006Edgeworth, M. (Ed.). (2006). Ethnographies of Archaeological practices: cultural encounters, material transformations. Lanham: Altamira Press.).

Removidos de seu contexto original de manufatura, consumo e categorização, os objetos etnográficos são incorporados nos museus a partir de sistemas de classificação e de descrição taxonômica (Fabian, 2004Fabian, J. (2004). On recognizing things: the “ethnic artefact” and the “ethnographic object”. L’Homme, (170), 47-60.). No geral, os critérios desses sistemas variam conforme as orientações teóricas vigentes nas instituições museológicas e os aspectos práticos de armazenamento – como a separação por áreas culturais ou a partir da matéria-prima (B. Ribeiro & Velthem, 1998Ribeiro, B. G., & Velthem, L. H. (1998). Coleções etnográficas: documentos materiais para a história indígena e a etnologia. In M. C. Cunha (Ed.), História dos índios no Brasil (2 ed., pp. 103-112). São Paulo: Companhia das Letras.; Velthem, 2012Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201200...
). Da mesma maneira, objetos retirados do contexto arqueológico são incluídos nos sistemas classificatórios e tipológicos da Arqueologia (Meggers & Evans, 1970Meggers, B. J., & Evans, C. (1970). Como interpretar a linguagem da cerâmica: manual para arqueólogos. Washington, D.C.: Smithsonian Institution.; Adovasio, 1977Adovasio, J. M. (1977). Basketry technology: a guide to identification and analysis. Chicago: Aldine Publishing Company.) para responder a determinados problemas de pesquisa e para facilitar seu acondicionamento em instituições museológicas.

É também notória a semelhança de alguns aspectos do estudo de objetos etnográficos e arqueológicos. Na introdução do “Dicionário do artesanato indígena”, B. Ribeiro (1988)Ribeiro, B. G. (1988). Dicionário do artesanato indígena. Belo Horizonte: Itatiaia., ao argumentar sobre a importância da classificação e da definição de glossários em estudos de cultura material, recorre, em diversos momentos, à obra dos arqueólogos Meggers e Evans (1970)Meggers, B. J., & Evans, C. (1970). Como interpretar a linguagem da cerâmica: manual para arqueólogos. Washington, D.C.: Smithsonian Institution., apontando que a sistematização adequada dos objetos etnográficos poderá contribuir também para pesquisas na Arqueologia1 1 Segundo as próprias palavras de B. Ribeiro (1988, p. 14): “Estudos e glossários dessa natureza representarão uma contribuição inestimável também para a pesquisa arqueológica. Não só os arqueólogos desenvolveram técnicas sofisticadas para a classificação tipológica de seus materiais, . . ., como buscam avidamente informações etnográficas que clarifiquem suas análises”. . Para o estudo de objetos etnográficos, Pearce (1994)Pearce, S. M. (1994). Thinking about things. In S. M. Pearce (Ed.), Interpreting objects and collections (pp. 125-132). London: Routledge. propõe uma análise a partir de quatro áreas principais: material, história, ambiente e significado. No que se refere às relações espaciais, a autora reforça a necessidade de plotar a distribuição dos artefatos na paisagem, uma técnica padrão da Arqueologia (Pearce, 1994Pearce, S. M. (1994). Thinking about things. In S. M. Pearce (Ed.), Interpreting objects and collections (pp. 125-132). London: Routledge., p. 130). Velthem (2012, p. 57)Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201200...
considera que uma análise clássica de objetos etnográficos deve abranger matéria-prima, técnicas de confecção, aspecto formal e função, necessitando ser complementada pelo estudo de seus aspectos estéticos, econômicos e de significação epistemológica.

Observa-se, então, que, mesmo com distintas procedências, estudar uma coleção etnográfica não é tão diferente de estudar objetos escavados arqueologicamente (B. Ribeiro & Velthem, 1998Ribeiro, B. G., & Velthem, L. H. (1998). Coleções etnográficas: documentos materiais para a história indígena e a etnologia. In M. C. Cunha (Ed.), História dos índios no Brasil (2 ed., pp. 103-112). São Paulo: Companhia das Letras.; Torrence & Clarke, 2013Torrence, R., & Clarke, A. (2013). Creative colonialism: locating indigenous strategies in ethnographic museum collections. In R. Harrison, S. Byrne & A. Clarke (Eds.), Reassembling the collection: ethnographic museums and indigenous agency (pp. 171-198). Santa Fé: School for Advanced Research Press.): ambos devem ser analisados em contexto, apesar de informações fragmentadas ou mesmo inexistentes sobre eles e do distanciamento (geográfico e temporal) de suas circunstâncias originais de produção e uso. Ainda que em alguns casos seja possível conseguir parte dessas informações em alguma fonte escrita, uma abordagem centrada nos objetos pode contribuir para o entendimento destas coleções de modo mais amplo.

Objetos etnográficos também não diferem tanto de arquivos e documentos etnográficos. Estes, além de serem resultado de atos de coleta, comunicação e trocas, formam “uma coleção de textos cuja produção começa em campo, com trocas e performances registradas, e que continua com a transcrição, tradução, comentário e talvez análise formal” (Fabian, 2010Fabian, J. (2010). Colecionando pensamentos: sobre os atos de colecionar. Mana, 16(1), 59-73. doi: 10.1590/S0104-93132010000100003
https://doi.org/10.1590/S0104-9313201000...
, p. 65). É nesse sentido que o uso de objetos etnográficos na Arqueologia não deveria ser pouco explorado, já que ela está, desde longa data, acostumada a lidar com fontes etnográficas.

A observação e os relatos de populações indígenas contemporâneas orientaram o estudo de objetos etnográficos e arqueológicos, em um primeiro momento, como testemunhas de etapas de desenvolvimentos lineares da humanidade e, posteriormente, como reflexos de normas culturais essenciais, delimitadas e estáticas, que poderiam ser descritas para formar tipologias (Webster, 2008Webster, G. S. (2008). Culture history: a culture-historical approach. In R. A. Bentley, H. D. G. Maschner & C. Chippindale (Eds.), Handbook of Archaeological theories (pp. 11-27). Lanham: AltaMira Press.). Em meados do século XX, o uso de fontes etnográficas na Arqueologia passou a ser feito não apenas como ilustração de teorias. Leroi-Gourhan (1971)Leroi-Gourhan, A. (1971). Evolução e técnicas: I - o homem e a matéria. Lisboa: Edições 70. valeu-se de exemplos e espécimes etnográficos e arqueológicos de vários lugares do mundo para abordar o que chamou de “documentos tecnológicos” (p. 9). Por volta de 1960, a subdisciplina Etnoarqueologia foi desenvolvida para produzir etnografias orientadas por questões arqueológicas, preocupando-se com o entendimento da relação entre o comportamento humano e os vestígios materiais relacionados a ele (David & Kramer, 2001David, N., & Kramer, C. (2001). Ethnoarchaeology in action (Cambridge World Archaeology). Cambridge: Cambridge University Press.; F. Silva, 2009aSilva, F. A. (2009a). A etnoarqueologia na Amazônia: contribuições e perspectivas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 4(1), 27-37. doi: 10.1590/S1981-81222009000100004
https://doi.org/10.1590/S1981-8122200900...
). A partir da década de 1980, aspectos simbólicos e identitários da cultura material passaram a ser enfatizados nos estudos arqueológicos em geral (Shanks & Hodder, 1995Shanks, M., & Hodder, I. (1995). Processual, postprocessual and interpretative archaeologies. In I. Hoder et al. (Eds.), Interpreting Archaeology: finding meaning in the past (pp. 3-29). Londres: Routledge.; Shanks, 2008Shanks, M. (2008). Postprocessual archaeology and after. In R. A. Bentley, H. D. G. Maschner & C. Chippindale (Eds.), Handbook of Archaeological theories (pp. 133-144). Lanham: AltaMira Press.). Recentemente, o diálogo e a colaboração com povos indígenas, bem como a inserção destes na academia têm contribuído para ampliar conceitos e entendimentos sobre o papel da Arqueologia na sociedade (F. Silva, 2012Silva, F. A. (2012). O plural e o singular das arqueologias indígenas. Revista de Arqueologia, 25(2), 24-42. doi: 10.24885/sab.v25i2.353
https://doi.org/10.24885/sab.v25i2.353...
; Silliman, 2015Silliman, S. W. (2015). Comparative colonialism and indigenous archaeology: exploring the intersections. In C. N. Cipolla & K. H. Hayes (Eds.), Rethinking colonialism: comparative archaeological approaches (pp. 213-233). Gainesville: University Press of Florida.).

É neste contexto que coleções etnográficas em museus ganham novos significados nos estudos arqueológicos. Sendo entendidas como parte da trajetória de diferentes povos indígenas e de suas relações com os diversos coletores (Velthem, 2012Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201200...
, p. 54), seu estudo pode revelar estratégias nativas e ocidentais para a criação, manutenção ou prevenção destas relações (Torrence & Clarke, 2013Torrence, R., & Clarke, A. (2013). Creative colonialism: locating indigenous strategies in ethnographic museum collections. In R. Harrison, S. Byrne & A. Clarke (Eds.), Reassembling the collection: ethnographic museums and indigenous agency (pp. 171-198). Santa Fé: School for Advanced Research Press., p. 173). Essas coleções também podem estabelecer ligações entre as escalas temporais de estudos etnográficos e arqueológicos (Hardin & Mills, 2000Hardin, M. A., & Mills, B. J. (2000). The social and historical context of short-term stylistic replacement: a Zuni case study. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 139-163. doi: 10.1023/A:1026554403077
https://doi.org/10.1023/A:1026554403077...
).

Análises de coleções etnográficas foram feitas para identificar especificidades individuais na cestaria que pudessem ser aplicadas à Arqueologia (Adovasio & Gunn, 1977Adovasio, J. M., & Gunn, J. (1977). Style, basketry and basketmakers. In J. N. Hill & J. Gunn (Eds.), The individual in prehistory: studies of variability in style in prehistoric technologies (pp. 137-153). New York: Academic Press.). A partir de coleções, Hardin e Mills (2000)Hardin, M. A., & Mills, B. J. (2000). The social and historical context of short-term stylistic replacement: a Zuni case study. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 139-163. doi: 10.1023/A:1026554403077
https://doi.org/10.1023/A:1026554403077...
notaram mudanças estilísticas na cerâmica Zuni em um período de seis anos, enfatizando a importância da classificação das cerâmicas dentro de distintas categorias de uso para tratar de aspectos estilísticos em curto prazo. Stone (2011)Stone, E. A. (2011). The role of ethnographic museum collections in understanding bone tool use. In J. Baron & B. Kufel-Diakowska (Eds.), Written in bones: studies on technological and social contexts of past faunal skeletal remains (pp. 25-37). Wroc?aw: Uniwersytet Wroc?awski. recorreu aos objetos etnográficos ósseos de povos de diversos continentes para identificar padrões específicos de marcas de uso que pudessem auxiliar na interpretação de artefatos ósseos arqueológicos, assim como na inferência de manipulação de objetos ainda mais perecíveis, como trançados e tecidos. Segundo Stone (2011)Stone, E. A. (2011). The role of ethnographic museum collections in understanding bone tool use. In J. Baron & B. Kufel-Diakowska (Eds.), Written in bones: studies on technological and social contexts of past faunal skeletal remains (pp. 25-37). Wroc?aw: Uniwersytet Wroc?awski.: “Ao enfatizar o estudo de objetos físicos com as metodologias desenvolvidas no âmbito da Arqueologia e estruturando uma análise em nível do artefato, padrões comparativos úteis podem ser construídos a partir de coleções etnográficas” (p. 34).

No Brasil, aproximar a Arqueologia dos objetos etnográficos é deveras significativo, se ela for considerada como história indígena. Esta perspectiva parte da Arqueologia como ‘história de longa duração’ (Heckenberger, 2001Heckenberger, M. J. (2001). Estrutura, história e transformação: a cultura xinguana na longue durée, 1000-2000 d.C. In B. Franchetto & M. J. Heckenberger (Orgs.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura (pp. 21-62). Rio de Janeiro: Editora UFRJ.; Neves, 2011Neves, E. G. (2011). Archaeological cultures and past identities in the Pre-colonial Central Amazon. In A. Hornborg & J. Hill (Eds.), Ethnicity in ancient amazonia: reconstructing past identities from archaeology, linguistics, and ethnohistory (pp. 31-56). Boulder, CO: University Press of Colorado.) e da Arqueologia do Contato Cultural e do Colonialismo (Lightfoot, 1995Lightfoot, K. G. (1995). Culture contact studies: redefining the relationship between prehistoric and historical archaeology. American Antiquity, 60(2), 199-217. doi: 10.2307/282137
https://doi.org/10.2307/282137...
; Silliman, 2015Silliman, S. W. (2015). Comparative colonialism and indigenous archaeology: exploring the intersections. In C. N. Cipolla & K. H. Hayes (Eds.), Rethinking colonialism: comparative archaeological approaches (pp. 213-233). Gainesville: University Press of Florida.), pensando a trajetória contínua de povos indígenas desde um passado longínquo até o presente.

A separação entre indígenas do presente e do passado é uma divisão que balizou o discurso degeneracionista (Noelli & Ferreira, 2007Noelli, F. S., & Ferreira, L. M. (2007). A persistência da teoria da degeneração indígena e do colonialismo nos fundamentos da arqueologia brasileira. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 14(4), 1239-1264. doi: 10.1590/S0104-59702007000400008
https://doi.org/10.1590/S0104-5970200700...
; Gnecco & Rocabado, 2010Gnecco, C., & Rocabado, P. A. (2010). ¿Qué hacer? Elementos para una discusión. In C. Gnecco & P. A. Rocabado (Comps.), Pueblos indígenas y arqueología en América Latina (pp. 23-47). Bogotá: Universidad de Los Andes.), também caracterizado como “perversão arqueológica” (Viveiros de Castro, 2002Viveiros de Castro, E. (2002). Imagens da natureza e sociedade. In E. Viveiros de Castro. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia (pp. 319-344). São Paulo: CosacNaify., p. 341). Isso contribuiu para a violência e a manutenção das metanarrativas colonizadoras sobre as histórias locais desses povos, favorecendo a criação de histórias e identidades nacionais (Gnecco & Rocabado, 2010Gnecco, C., & Rocabado, P. A. (2010). ¿Qué hacer? Elementos para una discusión. In C. Gnecco & P. A. Rocabado (Comps.), Pueblos indígenas y arqueología en América Latina (pp. 23-47). Bogotá: Universidad de Los Andes.). Ao considerar os povos indígenas como sujeitos históricos dotados de escolhas, é possível construir visões múltiplas e não estáticas sobre sua trajetória, tanto antes como depois da colonização (Lightfoot, 1995Lightfoot, K. G. (1995). Culture contact studies: redefining the relationship between prehistoric and historical archaeology. American Antiquity, 60(2), 199-217. doi: 10.2307/282137
https://doi.org/10.2307/282137...
; Rubertone, 2000Rubertone, P. E. (2000). The historical archaeology of native americans. Annual Review of Anthropology, 29, 425-446. doi: 10.1146/annurev.anthro.29.1.425
https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.2...
; L. Ribeiro & Jácome, 2014Ribeiro, L., & Jácome, C. (2014). Tupi ou não Tupi? Predação material, ação coletiva e colonialismo no Espírito Santo, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 9(2), 465-486. doi: 10.1590/1981-81222014000200012
https://doi.org/10.1590/1981-81222014000...
).

Nesse sentido, romper a barreira entre objetos etnográficos e arqueológicos na construção de histórias indígenas faz-se mais do que necessário, como indicam alguns exemplos. O primeiro deles refere-se às lâminas de machados semilunares, muito comuns em coleções arqueológicas. Mencionadas em 1628 por D’Evreux (1874)D’Evreux, Y. (1874). Viagem ao norte do Brasil: entre os anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias., na guerra dos Tremembé contra os Tupinambá, no Maranhão, existem pelo menos dois exemplares coletados no século XVII que estão depositados em coleções etnográficas na Europa (B. Ribeiro & Velthem, 1998Ribeiro, B. G., & Velthem, L. H. (1998). Coleções etnográficas: documentos materiais para a história indígena e a etnologia. In M. C. Cunha (Ed.), História dos índios no Brasil (2 ed., pp. 103-112). São Paulo: Companhia das Letras., p. 105; Museum für Völkerkunde Dresden, 2019Museum für Völkerkunde Dresden. (2019). Catálogo online. Recuperado de https://skd-online-collection.skd.museum/Details/Index/1655271
https://skd-online-collection.skd.museum...
). Essas lâminas são idênticas à coletada entre os Krahô em 1947, reivindicada e apropriada pelo referido povo em 1986 (Melo, 2010Melo, J. H. T. L. (2010). Kàjré: a vida social de uma machadinha krahô (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.). Outro exemplo é fornecido por Velthem (2012, p. 62)Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201200...
, que, ao estudar coleções dos séculos XIX e XX, observou ampliações e permanências da tecnologia e estética na produção de redes Wayana e Aparai, mesmo com a introdução de itens industriais. Observações similares foram feitas por F. Silva (2013)Silva, F. A., & Gordon, C. (2013). Anthropology in the museum: reflections on the curatorship of the Xikrin Collection. Vibrant-Virtual Brazilian Anthropology, 10(1). Recuperado de http://www.vibrant.org.br/issues/v10n1/fabiola-a-silva-cesar-gordon-anthropology-in-the-museum/
http://www.vibrant.org.br/issues/v10n1/f...
, em relação ao uso de materiais industrializados para a produção de colares e pulseiras entre os Asurini do Xingu. Por fim, B. Ribeiro (1989)Ribeiro, B. G. (1989). Arte indígena, linguagem visual (Coleção Reconquista do Brasil, Série especial, No. 3, Vol. 9). Belo Horizonte: Itatiaia. informou que o estilo da plumária de povos de língua Tupi, caracterizado pelo “emprego de pequenas plumas associadas a tecidos” (pp. 43-44), pode ser observado tanto em exemplares Tupinambá da costa, datados do início do período colonial, quanto entre exemplares de povos tais como os Munduruku, dos afluentes do Tapajós e Madeira, e Urubu-Kaapor do Gurupi, do século XX. Isso poderia ser um indicativo de permanência temporal estilística da tecnologia plumária de povos de um mesmo tronco linguístico por aproximadamente quinhentos anos.

Embora redes, colares, pulseiras e plumárias não sejam categorias que costumam ser encontradas em contextos arqueológicos, estes exemplos pensam os objetos na diacronia, não havendo motivos para crer que a tecnologia da plumária de povos Tupi, por exemplo, tenha sido desenvolvida justamente nos primórdios do contato. Ao encontro do que afirmaram Barreto e Machado (2001)Barreto, C., & Machado, J. S. (2001). Exploring the Amazon, explaining the unknown: views from the past. In C. McEwan, C. Barreto & E. G. Neves (Eds.), Unknown Amazon: studies in visual and material culture (pp. 232-251). London: The British Museum Press., este artigo concorda ser possível assumir certa continuidade histórica entre o passado arqueológico desconhecido e as realidades etnográficas observadas.

No Brasil, ainda são poucos os trabalhos que dialogam com coleções etnográficas mediante problemas arqueológicos. Wüst (1999)Wüst, I. (1999). Etnicidade e tradições ceramistas: algumas reflexões a partir das antigas aldeias Bororo do Mato Grosso [Suppl.]. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (3), 303-317. doi: 10.11606/issn.2594-5939.revmaesupl.1999.113475
https://doi.org/10.11606/issn.2594-5939....
comparou cerâmicas arqueológicas e etnográficas dos Bororo, sugerindo a possibilidade de que alguns povos atualmente no centro-oeste brasileiro sejam fruto de incorporação recente de distintas etnias. Reflexões sobre a tradição cerâmica de povos falantes de línguas Tupi (especificamente Tupi-Guarani) têm sido feitas há tempos a partir da comparação entre cerâmica arqueológica, dados históricos, etnográficos, linguísticos e coleções etnográficas (Â. Corrêa, 2014Corrêa, Â. A. (2014). Pindorama de mboî e îakaré: continuidade e mudança na trajetória das populaões Tupi (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.; F. Silva & Noelli, 2017Silva, F. A., & Noelli, F. S. (2017). Arqueologia e linguística: construindo as trajetórias histórico-culturais dos povos Tupí. Revista Crítica e Sociedade, 7(1), 55-87. doi: 10.14393/RCS-v7n1-2017-39256
https://doi.org/10.14393/RCS-v7n1-2017-3...
; Noelli et al., 2018Noelli, F. S., Brochado, J. P., & Corrêa, Â. A. (2018). A linguagem da cerâmica Guarani: sobre a persistência das práticas e materialidade (parte 1). Revista Brasileira de Linguística Antropológica, 10(2), 167-200. doi: 10.26512/rbla.v10i2.20935
https://doi.org/10.26512/rbla.v10i2.2093...
). Ao tratar da variabilidade formal das flechas Xikrin, Bueno (2003)Bueno, L. M. R. (2003). Estilo, forma e função: das flechas Xikrin aos artefatos líticos. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (13), 211-226. frisou a necessidade de rever o modo de classificação de pontas de projétil arqueológicas. Taveira (2005)Taveira, E. L. M. (2005). Análise do material de fibras e palhas vegetais trabalhadas. In A. V. Vialou (Org.), Pré-história do Mato Grosso: Santa Elina (Vol. 1, pp. 215-239). São Paulo: Edusp. recorreu à coleções de museus para inferir forma e função de vestígios de trançados arqueológicos no Mato Grosso. Coleções arqueológicas e etnográficas de Pernambuco foram comparadas entre si por Costa e Lima (2016)Costa, R. L., & Lima, T. A. (2016). A arte e a técnica de trançar na Pré-história de Pernambuco: a cestaria dos sítios Alcobaça e Furna do Estrago. Clio Arqueológica, 32(2), 102-152. doi: 10.20891/clio.v31i2p102-152
https://doi.org/10.20891/clio.v31i2p102-...
, que indicaram a continuidade da técnica cruzada até os trançados etnográficos dos Fulni-ô.

Separados pelo critério temporal ocidental, bem como pelas distintas proveniências circunstanciais responsáveis por adjetivá-los, objetos etnográficos e arqueológicos indígenas compartilham diversas semelhanças. Ao analisar objetos etnográficos de um ou mais povos, podem ser obtidas informações que permitem transitar por diferentes escalas de análise: desde as micro, envolvendo pessoas e comunidades, até as macro, ampliando os espectros geográfico e temporal. Recorrer a eles, portanto, não deixa de ser uma ampliação de fontes para a Arqueologia.

AMPLIANDO FONTES: TECNOLOGIA E COLEÇÕES ETNOGRÁFICAS

Uma análise de coleções centrada nos objetos é auxiliada pela abordagem tecnológica, que leva em conta aspectos de seu processo produtivo, usos e significados. Através dessa abordagem, é possível identificar, em lugares e situações específicas, como diferentes aspectos identitários e culturais podem ser observados em objetos, questão de total interesse para a Arqueologia. Haja vista que, na perspectiva de uma história de longa duração indígena é essencial articular objetos etnográficos e arqueológicos, os primeiros, na maior parte dos casos, possuem a vantagem de o local de proveniência e o povo que os produziu serem conhecidos.

Tratar a relação entre cultura material e fronteiras etnolinguísticas através dos artefatos não é novidade na Arqueologia. Embora não caiba aqui apresentar um panorama histórico do desenvolvimento dessa trajetória, é importante ressaltar alguns pontos relevantes para esta discussão. Coletâneas de estudos destinados a esse tema têm indicado que não há correlação simples e direta entre cultura, etnia, língua e artefatos, e que aspectos identitários se entrelaçam de várias formas a distintos aspectos da cultura material, em situações particulares (Stark, 1998Stark, M. T. (1998). Technical choices and social boundaries in material culture patterning: an introduction. In M. T. Stark (Ed.), The Archaeology of social boundaries (pp. 1-11). Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press.; Insoll, 2007Insoll, T. (Ed.). (2007). The archaeology of identities: a reader. London: Routledge.). O estilo na cultura material deixou de ser visto como um simples reflexo passivo de normas culturais ideais, e a tecnologia foi entendida para além de uma visão utilitária. Conforme Hegmon (1998)Hegmon, M. (1998). Technology, style and social practices: archaeological approaches. In M. T. Stark (Ed.), The Archaeology of social boundaries (pp. 264-279). Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press., um dos maiores desenvolvimentos teóricos na Arqueologia anglo-americana na década de 1990 foi a constatação de que “tecnologia possui estilo” e “estilo possui função” (p. 264). Isso só foi possível, nesse período, após o contato com traduções de obras de André Leroi-Gourhan e Pierre Lemonnier (Stark, 1998Stark, M. T. (1998). Technical choices and social boundaries in material culture patterning: an introduction. In M. T. Stark (Ed.), The Archaeology of social boundaries (pp. 1-11). Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press.), além do trabalho de Lechtman (1977)Lechtman, H. (1977). Style in technology - some early thoughts. In H. Lechtman & R. S. Merrill (Eds.), Material culture: styles, organization, and dynamics of technology (pp. 3-20). St Paul: West Publishing..

É importante, então, frisar que as perspectivas anglófonas e francófonas, mesmo com suas particularidades, propuseram conceitos semelhantes entre si para o estudo de tecnologias e artefatos, sendo plenamente possível articulá-las (F. Silva, 2000Silva, F. A. (2000). As tecnologias e seus significados: um estudo da cerâmica dos Asuriní do Xingu e da cestaria dos Kayapó-Xikrin sob uma perspectiva etnoarqueológica (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.). As noções de cadeia operatória (Leroi-Gourhan, 1965Leroi-Gourhan, A. (1965). O gesto e a palavra: II - memória e ritmos. Lisboa: Edições 70.; Lemonnier, 1992Lemonnier, P. (1992). Elements for an Anthropology of Technology (Anthropological Papers, 88). Michigan: Museum of Anthropology.; Roux, 2016Roux, V., & Courty, M.-A. (2016). Des céramiques et des hommes. Paris: Presses Universitaires de Paris Ouest.) e de cadeia comportamental (Schiffer & Skibo, 1997Schiffer, M. B., & Skibo, J. M. (1997). The explanation of artifact variability. American Antiquity, 62(1), 27-50. doi: 10.2307/282378
https://doi.org/10.2307/282378...
), por exemplo, foram formuladas basicamente para pensar todas as etapas de produção dos artefatos">. Para o estudo de objetos etnográficos, Pearce (1994)Pearce, S. M. (1994). Thinking about things. In S. M. Pearce (Ed.), Interpreting objects and collections (pp. 125-132). London: Routledge. propõe uma análise a partir de quatro áreas principais: material, história, ambiente e significado. No que se refere às relações espaciais, a autora reforça a necessidade de plotar a distribuição dos artefatos na paisagem, uma técnica padrão da Arqueologia (Pearce, 1994Pearce, S. M. (1994). Thinking about things. In S. M. Pearce (Ed.), Interpreting objects and collections (pp. 125-132). London: Routledge., p. 130). Velthem (2012, p. 57)Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201200...
considera que uma análise clássica de objetos etnográficos deve abranger matéria-prima, técnicas de confecção, aspecto formal e função, necessitando ser complementada pelo estudo de seus aspectos estéticos, econômicos e de significação epistemológica.

Observa-se, então, que, mesmo com distintas procedências, estudar uma coleção etnográfica não é tão diferente de estudar objetos escavados arqueologicamente (B. Ribeiro & Velthem, 1998Ribeiro, B. G., & Velthem, L. H. (1998). Coleções etnográficas: documentos materiais para a história indígena e a etnologia. In M. C. Cunha (Ed.), História dos índios no Brasil (2 ed., pp. 103-112). São Paulo: Companhia das Letras.; Torrence & Clarke, 2013Torrence, R., & Clarke, A. (2013). Creative colonialism: locating indigenous strategies in ethnographic museum collections. In R. Harrison, S. Byrne & A. Clarke (Eds.), Reassembling the collection: ethnographic museums and indigenous agency (pp. 171-198). Santa Fé: School for Advanced Research Press.): ambos devem ser analisados em contexto, apesar de informações fragmentadas ou mesmo inexistentes sobre eles e do distanciamento (geográfico e temporal) de suas circunstâncias originais de produção e uso. Ainda que em alguns casos seja possível conseguir parte dessas informações em alguma fonte escrita, uma abordagem centrada nos objetos pode contribuir para o entendimento destas coleções de modo mais amplo.

Objetos etnográficos também não diferem tanto de arquivos e documentos etnográficos. Estes, além de serem resultado de atos de coleta, comunicação e trocas, formam “uma coleção de textos cuja produção começa em campo, com trocas e performances registradas, e que continua com a transcrição, tradução, comentário e talvez análise formal” (Fabian, 2010Fabian, J. (2010). Colecionando pensamentos: sobre os atos de colecionar. Mana, 16(1), 59-73. doi: 10.1590/S0104-93132010000100003
https://doi.org/10.1590/S0104-9313201000...
, p. 65). É nesse sentido que o uso de objetos etnográficos na Arqueologia não deveria ser pouco explorado, já que ela está, desde longa data, acostumada a lidar com fontes etnográficas.

A observação e os relatos de populações indígenas contemporâneas orientaram o estudo de objetos etnográficos e arqueológicos, em um primeiro momento, como testemunhas de etapas de desenvolvimentos lineares da humanidade e, posteriormente, como reflexos de normas culturais essenciais, delimitadas e estáticas, que poderiam ser descritas para formar tipologias (Webster, 2008Webster, G. S. (2008). Culture history: a culture-historical approach. In R. A. Bentley, H. D. G. Maschner & C. Chippindale (Eds.), Handbook of Archaeological theories (pp. 11-27). Lanham: AltaMira Press.). Em meados do século XX, o uso de fontes etnográficas na Arqueologia passou a ser feito não apenas como ilustração de teorias. Leroi-Gourhan (1971)Leroi-Gourhan, A. (1971). Evolução e técnicas: I - o homem e a matéria. Lisboa: Edições 70. valeu-se de exemplos e espécimes etnográficos e arqueológicos de vários lugares do mundo para abordar o que chamou de “documentos tecnológicos” (p. 9). Por volta de 1960, a subdisciplina Etnoarqueologia foi desenvolvida para produzir etnografias orientadas por questões arqueológicas, preocupando-se com o entendimento da relação entre o comportamento humano e os vestígios materiais relacionados a ele (David & Kramer, 2001David, N., & Kramer, C. (2001). Ethnoarchaeology in action (Cambridge World Archaeology). Cambridge: Cambridge University Press.; F. Silva, 2009aSilva, F. A. (2009a). A etnoarqueologia na Amazônia: contribuições e perspectivas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 4(1), 27-37. doi: 10.1590/S1981-81222009000100004
https://doi.org/10.1590/S1981-8122200900...
). A partir da década de 1980, aspectos simbólicos e identitários da cultura material passaram a ser enfatizados nos estudos arqueológicos em geral (Shanks & Hodder, 1995Shanks, M., & Hodder, I. (1995). Processual, postprocessual and interpretative archaeologies. In I. Hoder et al. (Eds.), Interpreting Archaeology: finding meaning in the past (pp. 3-29). Londres: Routledge.; Shanks, 2008Shanks, M. (2008). Postprocessual archaeology and after. In R. A. Bentley, H. D. G. Maschner & C. Chippindale (Eds.), Handbook of Archaeological theories (pp. 133-144). Lanham: AltaMira Press.). Recentemente, o diálogo e a colaboração com povos indígenas, bem como a inserção destes na academia têm contribuído para ampliar conceitos e entendimentos sobre o papel da Arqueologia na sociedade (F. Silva, 2012Silva, F. A. (2012). O plural e o singular das arqueologias indígenas. Revista de Arqueologia, 25(2), 24-42. doi: 10.24885/sab.v25i2.353
https://doi.org/10.24885/sab.v25i2.353...
; Silliman, 2015Silliman, S. W. (2015). Comparative colonialism and indigenous archaeology: exploring the intersections. In C. N. Cipolla & K. H. Hayes (Eds.), Rethinking colonialism: comparative archaeological approaches (pp. 213-233). Gainesville: University Press of Florida.).

É neste contexto que coleções etnográficas em museus ganham novos significados nos estudos arqueológicos. Sendo entendidas como parte da trajetória de diferentes povos indígenas e de suas relações com os diversos coletores (Velthem, 2012Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201200...
, p. 54), seu estudo pode revelar estratégias nativas e ocidentais para a criação, manutenção ou prevenção destas relações (Torrence & Clarke, 2013Torrence, R., & Clarke, A. (2013). Creative colonialism: locating indigenous strategies in ethnographic museum collections. In R. Harrison, S. Byrne & A. Clarke (Eds.), Reassembling the collection: ethnographic museums and indigenous agency (pp. 171-198). Santa Fé: School for Advanced Research Press., p. 173). Essas coleções também podem estabelecer ligações entre as escalas temporais de estudos etnográficos e arqueológicos (Hardin & Mills, 2000Hardin, M. A., & Mills, B. J. (2000). The social and historical context of short-term stylistic replacement: a Zuni case study. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 139-163. doi: 10.1023/A:1026554403077
https://doi.org/10.1023/A:1026554403077...
).

Análises de coleções etnográficas foram feitas para identificar especificidades individuais na cestaria que pudessem ser aplicadas à Arqueologia (Adovasio & Gunn, 1977Adovasio, J. M., & Gunn, J. (1977). Style, basketry and basketmakers. In J. N. Hill & J. Gunn (Eds.), The individual in prehistory: studies of variability in style in prehistoric technologies (pp. 137-153). New York: Academic Press.). A partir de coleções, Hardin e Mills (2000)Hardin, M. A., & Mills, B. J. (2000). The social and historical context of short-term stylistic replacement: a Zuni case study. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 139-163. doi: 10.1023/A:1026554403077
https://doi.org/10.1023/A:1026554403077...
notaram mudanças estilísticas na cerâmica Zuni em um período de seis anos, enfatizando a importância da classificação das cerâmicas dentro de distintas categorias de uso para tratar de aspectos estilísticos em curto prazo. Stone (2011)Stone, E. A. (2011). The role of ethnographic museum collections in understanding bone tool use. In J. Baron & B. Kufel-Diakowska (Eds.), Written in bones: studies on technological and social contexts of past faunal skeletal remains (pp. 25-37). Wroc?aw: Uniwersytet Wroc?awski. recorreu aos objetos etnográficos ósseos de povos de diversos continentes para identificar padrões específicos de marcas de uso que pudessem auxiliar na interpretação de artefatos ósseos arqueológicos, assim como na inferência de manipulação de objetos ainda mais perecíveis, como trançados e tecidos. Segundo Stone (2011)Stone, E. A. (2011). The role of ethnographic museum collections in understanding bone tool use. In J. Baron & B. Kufel-Diakowska (Eds.), Written in bones: studies on technological and social contexts of past faunal skeletal remains (pp. 25-37). Wroc?aw: Uniwersytet Wroc?awski.: “Ao enfatizar o estudo de objetos físicos com as metodologias desenvolvidas no âmbito da Arqueologia e estruturando uma análise em nível do artefato, padrões comparativos úteis podem ser construídos a partir de coleções etnográficas” (p. 34).

No Brasil, aproximar a Arqueologia dos objetos etnográficos é deveras significativo, se ela for considerada como história indígena. Esta perspectiva parte da Arqueologia como ‘história de longa duração’ (Heckenberger, 2001Heckenberger, M. J. (2001). Estrutura, história e transformação: a cultura xinguana na longue durée, 1000-2000 d.C. In B. Franchetto & M. J. Heckenberger (Orgs.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura (pp. 21-62). Rio de Janeiro: Editora UFRJ.; Neves, 2011Neves, E. G. (2011). Archaeological cultures and past identities in the Pre-colonial Central Amazon. In A. Hornborg & J. Hill (Eds.), Ethnicity in ancient amazonia: reconstructing past identities from archaeology, linguistics, and ethnohistory (pp. 31-56). Boulder, CO: University Press of Colorado.) e da Arqueologia do Contato Cultural e do Colonialismo (Lightfoot, 1995Lightfoot, K. G. (1995). Culture contact studies: redefining the relationship between prehistoric and historical archaeology. American Antiquity, 60(2), 199-217. doi: 10.2307/282137
https://doi.org/10.2307/282137...
; Silliman, 2015Silliman, S. W. (2015). Comparative colonialism and indigenous archaeology: exploring the intersections. In C. N. Cipolla & K. H. Hayes (Eds.), Rethinking colonialism: comparative archaeological approaches (pp. 213-233). Gainesville: University Press of Florida.), pensando a trajetória contínua de povos indígenas desde um passado longínquo até o presente.

A separação entre indígenas do presente e do passado é uma divisão que balizou o discurso degeneracionista (Noelli & Ferreira, 2007Noelli, F. S., & Ferreira, L. M. (2007). A persistência da teoria da degeneração indígena e do colonialismo nos fundamentos da arqueologia brasileira. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 14(4), 1239-1264. doi: 10.1590/S0104-59702007000400008
https://doi.org/10.1590/S0104-5970200700...
; Gnecco & Rocabado, 2010Gnecco, C., & Rocabado, P. A. (2010). ¿Qué hacer? Elementos para una discusión. In C. Gnecco & P. A. Rocabado (Comps.), Pueblos indígenas y arqueología en América Latina (pp. 23-47). Bogotá: Universidad de Los Andes.), também caracterizado como “perversão arqueológica” (Viveiros de Castro, 2002Viveiros de Castro, E. (2002). Imagens da natureza e sociedade. In E. Viveiros de Castro. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia (pp. 319-344). São Paulo: CosacNaify., p. 341). Isso contribuiu para a violência e a manutenção das metanarrativas colonizadoras sobre as histórias locais desses povos, favorecendo a criação de histórias e identidades nacionais (Gnecco & Rocabado, 2010Gnecco, C., & Rocabado, P. A. (2010). ¿Qué hacer? Elementos para una discusión. In C. Gnecco & P. A. Rocabado (Comps.), Pueblos indígenas y arqueología en América Latina (pp. 23-47). Bogotá: Universidad de Los Andes.). Ao considerar os povos indígenas como sujeitos históricos dotados de escolhas, é possível construir visões múltiplas e não estáticas sobre sua trajetória, tanto antes como depois da colonização (Lightfoot, 1995Lightfoot, K. G. (1995). Culture contact studies: redefining the relationship between prehistoric and historical archaeology. American Antiquity, 60(2), 199-217. doi: 10.2307/282137
https://doi.org/10.2307/282137...
; Rubertone, 2000Rubertone, P. E. (2000). The historical archaeology of native americans. Annual Review of Anthropology, 29, 425-446. doi: 10.1146/annurev.anthro.29.1.425
https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.2...
; L. Ribeiro & Jácome, 2014Ribeiro, L., & Jácome, C. (2014). Tupi ou não Tupi? Predação material, ação coletiva e colonialismo no Espírito Santo, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 9(2), 465-486. doi: 10.1590/1981-81222014000200012
https://doi.org/10.1590/1981-81222014000...
).

Nesse sentido, romper a barreira entre objetos etnográficos e arqueológicos na construção de histórias indígenas faz-se mais do que necessário, como indicam alguns exemplos. O primeiro deles refere-se às lâminas de machados semilunares, muito comuns em coleções arqueológicas. Mencionadas em 1628 por D’Evreux (1874)D’Evreux, Y. (1874). Viagem ao norte do Brasil: entre os anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias., na guerra dos Tremembé contra os Tupinambá, no Maranhão, existem pelo menos dois exemplares coletados no século XVII que estão depositados em coleções etnográficas na Europa (B. Ribeiro & Velthem, 1998Ribeiro, B. G., & Velthem, L. H. (1998). Coleções etnográficas: documentos materiais para a história indígena e a etnologia. In M. C. Cunha (Ed.), História dos índios no Brasil (2 ed., pp. 103-112). São Paulo: Companhia das Letras., p. 105; Museum für Völkerkunde Dresden, 2019Museum für Völkerkunde Dresden. (2019). Catálogo online. Recuperado de https://skd-online-collection.skd.museum/Details/Index/1655271
https://skd-online-collection.skd.museum...
). Essas lâminas são idênticas à coletada entre os Krahô em 1947, reivindicada e apropriada pelo referido povo em 1986 (Melo, 2010Melo, J. H. T. L. (2010). Kàjré: a vida social de uma machadinha krahô (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.). Outro exemplo é fornecido por Velthem (2012, p. 62)Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201200...
, que, ao estudar coleções dos séculos XIX e XX, observou ampliações e permanências da tecnologia e estética na produção de redes Wayana e Aparai, mesmo com a introdução de itens industriais. Observações similares foram feitas por F. Silva (2013)Silva, F. A. (2013). Tecnologias em transformação: inovação e (re)produção dos objetos entre os Asurini do Xingu. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 8(3), 729-744. doi: 10.1590/S1981-81222013000300014
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201300...
, em relação ao uso de materiais industrializados para a produção de colares e pulseiras entre os Asurini do Xingu. Por fim, B. Ribeiro (1989)Ribeiro, B. G. (1989). Arte indígena, linguagem visual (Coleção Reconquista do Brasil, Série especial, No. 3, Vol. 9). Belo Horizonte: Itatiaia. informou que o estilo da plumária de povos de língua Tupi, caracterizado pelo “emprego de pequenas plumas associadas a tecidos” (pp. 43-44), pode ser observado tanto em exemplares Tupinambá da costa, datados do início do período colonial, quanto entre exemplares de povos tais como os Munduruku, dos afluentes do Tapajós e Madeira, e Urubu-Kaapor do Gurupi, do século XX. Isso poderia ser um indicativo de permanência temporal estilística da tecnologia plumária de povos de um mesmo tronco linguístico por aproximadamente quinhentos anos.

Embora redes, colares, pulseiras e plumárias não sejam categorias que costumam ser encontradas em contextos arqueológicos, estes exemplos pensam os objetos na diacronia, não havendo motivos para crer que a tecnologia da plumária de povos Tupi, por exemplo, tenha sido desenvolvida justamente nos primórdios do contato. Ao encontro do que afirmaram Barreto e Machado (2001)Barreto, C., & Machado, J. S. (2001). Exploring the Amazon, explaining the unknown: views from the past. In C. McEwan, C. Barreto & E. G. Neves (Eds.), Unknown Amazon: studies in visual and material culture (pp. 232-251). London: The British Museum Press., este artigo concorda ser possível assumir certa continuidade histórica entre o passado arqueológico desconhecido e as realidades etnográficas observadas.

No Brasil, ainda são poucos os trabalhos que dialogam com coleções etnográficas mediante problemas arqueológicos. Wüst (1999)Wüst, I. (1999). Etnicidade e tradições ceramistas: algumas reflexões a partir das antigas aldeias Bororo do Mato Grosso [Suppl.]. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (3), 303-317. doi: 10.11606/issn.2594-5939.revmaesupl.1999.113475
https://doi.org/10.11606/issn.2594-5939....
comparou cerâmicas arqueológicas e etnográficas dos Bororo, sugerindo a possibilidade de que alguns povos atualmente no centro-oeste brasileiro sejam fruto de incorporação recente de distintas etnias. Reflexões sobre a tradição cerâmica de povos falantes de línguas Tupi (especificamente Tupi-Guarani) têm sido feitas há tempos a partir da comparação entre cerâmica arqueológica, dados históricos, etnográficos, linguísticos e coleções etnográficas (Â. Corrêa, 2014Corrêa, Â. A. (2014). Pindorama de mboî e îakaré: continuidade e mudança na trajetória das populaões Tupi (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.; F. Silva & Noelli, 2017Silva, F. A., & Noelli, F. S. (2017). Arqueologia e linguística: construindo as trajetórias histórico-culturais dos povos Tupí. Revista Crítica e Sociedade, 7(1), 55-87. doi: 10.14393/RCS-v7n1-2017-39256
https://doi.org/10.14393/RCS-v7n1-2017-3...
; Noelli et al., 2018Noelli, F. S., Brochado, J. P., & Corrêa, Â. A. (2018). A linguagem da cerâmica Guarani: sobre a persistência das práticas e materialidade (parte 1). Revista Brasileira de Linguística Antropológica, 10(2), 167-200. doi: 10.26512/rbla.v10i2.20935
https://doi.org/10.26512/rbla.v10i2.2093...
). Ao tratar da variabilidade formal das flechas Xikrin, Bueno (2003)Bueno, L. M. R. (2003). Estilo, forma e função: das flechas Xikrin aos artefatos líticos. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (13), 211-226. frisou a necessidade de rever o modo de classificação de pontas de projétil arqueológicas. Taveira (2005)Taveira, E. L. M. (2005). Análise do material de fibras e palhas vegetais trabalhadas. In A. V. Vialou (Org.), Pré-história do Mato Grosso: Santa Elina (Vol. 1, pp. 215-239). São Paulo: Edusp. recorreu à coleções de museus para inferir forma e função de vestígios de trançados arqueológicos no Mato Grosso. Coleções arqueológicas e etnográficas de Pernambuco foram comparadas entre si por Costa e Lima (2016)Costa, R. L., & Lima, T. A. (2016). A arte e a técnica de trançar na Pré-história de Pernambuco: a cestaria dos sítios Alcobaça e Furna do Estrago. Clio Arqueológica, 32(2), 102-152. doi: 10.20891/clio.v31i2p102-152
https://doi.org/10.20891/clio.v31i2p102-...
, que indicaram a continuidade da técnica cruzada até os trançados etnográficos dos Fulni-ô.

Separados pelo critério temporal ocidental, bem como pelas distintas proveniências circunstanciais responsáveis por adjetivá-los, objetos etnográficos e arqueológicos indígenas compartilham diversas semelhanças. Ao analisar objetos etnográficos de um ou mais povos, podem ser obtidas informações que permitem transitar por diferentes escalas de análise: desde as micro, envolvendo pessoas e comunidades, até as macro, ampliando os espectros geográfico e temporal. Recorrer a eles, portanto, não deixa de ser uma ampliação de fontes para a Arqueologia.

AMPLIANDO FONTES: TECNOLOGIA E COLEÇÕES ETNOGRÁFICAS

Uma análise de coleções centrada nos objetos é auxiliada pela abordagem tecnológica, que leva em conta aspectos de seu processo produtivo, usos e significados. Através dessa abordagem, é possível identificar, em lugares e situações específicas, como diferentes aspectos identitários e culturais podem ser observados em objetos, questão de total interesse para a Arqueologia. Haja vista que, na perspectiva de uma história de longa duração indígena é essencial articular objetos etnográficos e arqueológicos, os primeiros, na maior parte dos casos, possuem a vantagem de o local de proveniência e o povo que os produziu serem conhecidos.

Tratar a relação entre cultura material e fronteiras etnolinguísticas através dos artefatos não é novidade na Arqueologia. Embora não caiba aqui apresentar um panorama histórico do desenvolvimento dessa trajetória, é importante ressaltar alguns pontos relevantes para esta discussão. Coletâneas de estudos destinados a esse tema têm indicado que não há correlação simples e direta entre cultura, etnia, língua e artefatos, e que aspectos identitários se entrelaçam de várias formas a distintos aspectos da cultura material, em situações particulares (Stark, 1998Stark, M. T. (1998). Technical choices and social boundaries in material culture patterning: an introduction. In M. T. Stark (Ed.), The Archaeology of social boundaries (pp. 1-11). Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press.; Insoll, 2007Insoll, T. (Ed.). (2007). The archaeology of identities: a reader. London: Routledge.). O estilo na cultura material deixou de ser visto como um simples reflexo passivo de normas culturais ideais, e a tecnologia foi entendida para além de uma visão utilitária. Conforme Hegmon (1998)Hegmon, M. (1998). Technology, style and social practices: archaeological approaches. In M. T. Stark (Ed.), The Archaeology of social boundaries (pp. 264-279). Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press., um dos maiores desenvolvimentos teóricos na Arqueologia anglo-americana na década de 1990 foi a constatação de que “tecnologia possui estilo” e “estilo possui função” (p. 264). Isso só foi possível, nesse período, após o contato com traduções de obras de André Leroi-Gourhan e Pierre Lemonnier (Stark, 1998Stark, M. T. (1998). Technical choices and social boundaries in material culture patterning: an introduction. In M. T. Stark (Ed.), The Archaeology of social boundaries (pp. 1-11). Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press.), além do trabalho de Lechtman (1977)Lechtman, H. (1977). Style in technology - some early thoughts. In H. Lechtman & R. S. Merrill (Eds.), Material culture: styles, organization, and dynamics of technology (pp. 3-20). St Paul: West Publishing..

É importante, então, frisar que as perspectivas anglófonas e francófonas, mesmo com suas particularidades, propuseram conceitos semelhantes entre si para o estudo de tecnologias e artefatos, sendo plenamente possível articulá-las (F. Silva, 2000Silva, F. A. (2000). As tecnologias e seus significados: um estudo da cerâmica dos Asuriní do Xingu e da cestaria dos Kayapó-Xikrin sob uma perspectiva etnoarqueológica (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.). As noções de cadeia operatória (Leroi-Gourhan, 1965Leroi-Gourhan, A. (1965). O gesto e a palavra: II - memória e ritmos. Lisboa: Edições 70.; Lemonnier, 1992Lemonnier, P. (1992). Elements for an Anthropology of Technology (Anthropological Papers, 88). Michigan: Museum of Anthropology.; Roux, 2016Roux, V. (2016). Ceramic manufacture: the chaîne opératoire approach. In A. Hunt (Ed.), The Oxford Handbook of Archaeological Ceramic Analysis (pp. 101-113). doi: 10.1093/oxfordhb/9780199681532.013.8
https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780199...
) e de cadeia comportamental (Schiffer & Skibo, 1997Schiffer, M. B., & Skibo, J. M. (1997). The explanation of artifact variability. American Antiquity, 62(1), 27-50. doi: 10.2307/282378
https://doi.org/10.2307/282378...
), por exemplo, foram formuladas basicamente para pensar todas as etapas de produção dos artefatos2 2 Essas perspectivas são utilizadas tanto para objetos ditos tradicionais, ou arqueológicos, quanto para objetos industriais contemporâneos. . A primeira enfatiza mais o processo de produção e a segunda, os aspectos de performance dos objetos e dos materiais, com foco no produto final. Essas abordagens são aqui postas em diálogo, por meio de algumas ideias presentes na ‘teoria de médio alcance do design do artefato’, expressas no trabalho de Pryor e Carr (1995)Pryor, J., & Carr, C. (1995). Basketry of Northern California Indians: interpreting style hierarchies. In C. Carr & J. E. Neitzel (Eds.), Style, society, and person: Archaeological and Ethnological perspectives (pp. 259-296). New York: Plenum Press., e as noções de ‘estilo tecnológico’ (Lechtman, 1977Lechtman, H. (1977). Style in technology - some early thoughts. In H. Lechtman & R. S. Merrill (Eds.), Material culture: styles, organization, and dynamics of technology (pp. 3-20). St Paul: West Publishing.; Lemonnier, 1992Lemonnier, P. (1992). Elements for an Anthropology of Technology (Anthropological Papers, 88). Michigan: Museum of Anthropology.) e de ‘identidade técnica’ (Gosselain, 2000Gosselain, O. P. (2000). Materializing identities: an African perspective. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 187-217. doi: 10.1177/1359183511424835
https://doi.org/10.1177/1359183511424835...
). Tal articulação é possível no estudo de objetos produzidos com diferentes materiais, como os exemplos de cestaria e cerâmica a seguir.

Transitando da escala individual à comparações regionais entre a cestaria Pomo e dos povos adjacentes na costa californiana, Pryor e Carr (1995)Pryor, J., & Carr, C. (1995). Basketry of Northern California Indians: interpreting style hierarchies. In C. Carr & J. E. Neitzel (Eds.), Style, society, and person: Archaeological and Ethnological perspectives (pp. 259-296). New York: Plenum Press. argumentaram que o estilo deve ser entendido, em parte, como efeito da interação entre níveis de processos individuais, familiares e comunitários. Segundo os autores, é necessário analisar diferentes atributos e suas visibilidades no produto final para entender o alcance e os limites dos compartilhamentos de forma, desenhos e técnicas. Esses três elementos podem estar ligados a fatores de interação e distância entre pessoas e comunidades que, por sua vez, apresentam ligação com a geografia, sistemas de aprendizado, relações de parentesco, amizade e casamentos. Eles ressaltaram que pensar a relação entre cultura material e fronteiras linguísticas deve considerar múltiplas dimensões: identidades étnicas, área cultural, estilos de comunidade, relações entre pessoas e preferências pessoais (vinculadas à habilidade e à dedicação pessoal ao longo do histórico de relações individuais).

Pesquisas sobre cerâmica na África Subsaariana foram sistematizadas por Gosselain (2000Gosselain, O. P. (2000). Materializing identities: an African perspective. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 187-217. doi: 10.1177/1359183511424835
https://doi.org/10.1177/1359183511424835...
, 2018)Gosselain, O. P. (2018). Pottery chaînes opératoires as historical documents. Oxford Research Encyclopedia of African History. Publicação online. doi: 10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
, que propôs diversas maneiras de interpretar a distribuição espacial de comportamentos técnicos e fronteiras culturais, sociais e linguísticas. As sequências e técnicas utilizadas em cada etapa da cadeia operatória foram categorizadas de acordo com sua visibilidade no produto final, sua suscetibilidade a mudanças e seu contexto de interação com demais ceramistas e/ou consumidores das vasilhas. Ou seja, há aspectos produtivos que podem ser mais facilmente emulados conforme sua visibilidade e as relações entre ceramistas e outros grupos sociais. Assim, é mais fácil um motivo decorativo se dispersar geograficamente (por meio de interações pontuais ou mediadas, mesmo que reproduzido com técnicas diferentes) do que uma determinada forma de construir uma vasilha (processo aprendido em contextos culturais específicos, por meio de relações diretas e constantes).

Esses exemplos ilustram como a relação entre cultura material e fronteiras etnolinguísticas é mais complexa do que a simples constatação da presença ou da ausência de determinados atributos visuais em objetos. Reforçam, ainda, a necessidade de abranger diferentes escalas de análise, níveis de visibilidade de atributos técnicos e relações interpessoais entre produtores. Se a escala macro permite compreender amplas fronteiras, a micro é fulcral no entendimento das escolhas tecnológicas que as moldaram.

Tanto no caso da cestaria quanto no da cerâmica, nota-se que atributos menos visíveis no produto final são medidas de maior interação social (Pryor & Carr, 1995Pryor, J., & Carr, C. (1995). Basketry of Northern California Indians: interpreting style hierarchies. In C. Carr & J. E. Neitzel (Eds.), Style, society, and person: Archaeological and Ethnological perspectives (pp. 259-296). New York: Plenum Press., p. 288), sendo especialmente resistentes à mudança (Gosselain, 2000Gosselain, O. P. (2000). Materializing identities: an African perspective. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 187-217. doi: 10.1177/1359183511424835
https://doi.org/10.1177/1359183511424835...
, p. 192). Adicionando interpretações referentes às ‘características de performance’ (Schiffer & Skibo, 1997Schiffer, M. B., & Skibo, J. M. (1997). The explanation of artifact variability. American Antiquity, 62(1), 27-50. doi: 10.2307/282378
https://doi.org/10.2307/282378...
), é possível também entender as escolhas feitas pelos artesãos em relação às performances pretendidas dos objetos.

Essas propostas interpretativas foram postas em diálogo, neste artigo, considerando o potencial de sua aplicação na compreensão de diferentes tecnologias no contexto amazônico. Enquanto os materiais líticos e cerâmicos podem ser comparados etnográfica e arqueologicamente em relação a seus atributos, tipologia, continuidades e mudanças, os objetos de plumária, fibras vegetais, tecidos, entre outros materiais orgânicos, dificilmente encontram correspondentes arqueológicos. Entretanto, todos eles integram as vivências humanas e o estudo deles auxilia na compreensão da relação entre seres humanos e materialidade, questão cara à Arqueologia.

Assim, também pode ser questionada uma separação de objetos de interesse para pesquisas arqueológicas a partir de critérios de materiais não perecíveis, que, portanto, resistiriam mais facilmente às intempéries no registro arqueológico, e materiais perecíveis, encontrados em sítios somente em condições especiais de preservação ou de maneira indireta, a partir de outros vestígios. Tal divisão não significa que os objetos tenham sido concebidos e classificados a partir deste critério pelos povos que os produziram. Por exemplo, Velthem (2003)Velthem, L. H. (2003). O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia. observa que, para os Wayana, os objetos são diferenciados a partir de seu modo de produção, ou seja, os que são feitos usando as duas mãos ao mesmo tempo (de maior complexidade técnica) e os que são feitos usando apenas uma mão.

Essa separação ainda pode ser repensada a partir da relação entre cerâmicas e trançados, como mencionado anteriormente. Para além da explicação um tanto quanto evolucionista de que a “cestaria é a mãe da cerâmica” (James, 1902James, G. W. (1902). Indian Basketry. 2 ed. New York: Dove Publications., p. 17), a origem de ambas classes artefatuais pode estar relacionada a suas funções de conter, transportar, preparar, consumir e armazenar (Rice, 1999Rice, P. M. (1999). On the origins of pottery. Journal of Archaeological Method and Theory, 6(1), 1-54.). Cestos podem ser usados para cozinhar e até transportar líquidos (O’Neale, 1986O’Neale, L. (1986). Cestaria. In B. G. Ribeiro (Ed. & Coord.), Suma etnológica brasileira: tecnologia indígena (Vol. 2, pp. 323-349). Petrópolis: Vozes.), atividades geralmente associadas aos recipientes de barro. Ambos objetos participam como envoltório e/ou acompanhamento funerário, ou do processamento de alimentos como a mandioca (no preparo do beiju ou de bebidas fermentadas).

Além disso, cerâmica e trançados também se relacionam em alguns momentos de suas respectivas cadeias de produção. Durante a coleta de argila, frequentemente são utilizados cestos para seu transporte e, para a manufatura das vasilhas cerâmicas, o suporte utilizado pode ser algum velho trançado (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark., p. 171). Alguns povos revestem suas grandes vasilhas de fermentar bebidas alcóolicas com trançados para evitar que as paredes quebrem com a pressão da fermentação, além de circundar com trançados algumas vasilhas menores, para facilitar seu transporte (Roth, 1924Roth, W. E. (1924). An introductory study of the arts, craft, and customs of the Guiana indians. Washington: United States Government Print Office., p. 134; Linke & Velthem, 2017Linke, I. L. V., & Velthem, L. H. (2017). O livro da argila: Ëliwë Pampila: Orino Papeh. São Paulo: IEPÉ., p. 75). Inversamente, há cestos que podem ser revestidos com argila para impermeabilizar as paredes, como observado por K. von den Steinen, entre povos do alto Xingu (B. Ribeiro, 1980Ribeiro, B. G. (1980). A civilização da palha: a arte do trançado dos índios do Brasil (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil., p. 92). Para tingir de preto o arumã que será usado na produção de trançados marchetados, os Wayana podem recolher fuligem de panelas cerâmicas (Velthem, 1998Velthem, L. H. (1998). A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi., p. 72), prática comum na produção de pigmentos para a pintura, como na cerâmica Katxuyana (“Nationalmuseet 2”, 1959Nationalmuseet 2. (1959). Ekspedition til British Guyana og Brasilien 1958-1959. Catálogo do acervo.). Entre os Waiwai, os homens produzem cestos e pintam os grafismos na cerâmica e nos raladores, sendo estes manufaturados pelas mulheres (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark., p. 177).

É preciso também considerar elaborações simbólicas, sociais e rituais que conectam as origens e os significados desses objetos (Rice, 1999Rice, P. M. (1999). On the origins of pottery. Journal of Archaeological Method and Theory, 6(1), 1-54.). Em uma revisão bibliográfica, Velthem (1998, p. 122)Velthem, L. H. (1998). A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi. observou que, para diversos povos de língua Karib, há uma relação cosmológica entre serpente sobrenatural, obtenção da cestaria e motivos gráficos. Entre os Waiwai e Hixkaryana, os grafismos reproduzidos nos trançados foram obtidos, respectivamente, das cobras uruperi e hurihuri (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark., p. 258). Entre os Katxuyana, os padrões gráficos presentes no couro de marmaru-imó, uma cobra sobrenatural que foi morta, foram empregados em “peneiras, tipitis, balaios e cestinhas” (Frikel, 1970Frikel, P. (1970). Os Kaxúyana: notas etno-históricas (Publicações avulsas, No. 14). Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi., p. 16). Para os Wayana, “trançar não é outra coisa a não ser a reprodução da pele pintada de Tuluperê” (Velthem, 1998Velthem, L. H. (1998). A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi., p. 125), inclusive, os trançados são a “categoria artesanal que permite reproduzir a totalidade do repertório das pinturas corporais do sobrenatural” (Velthem, 2009Velthem, L. H. (2009). Mulheres de cera, argila e arumã: princípios criativos e fabricação material entre os Wayana. Mana, 15(1), 213-236. doi: 10.1590/S0104-93132009000100008
https://doi.org/10.1590/S0104-9313200900...
, p. 217). Nesse sentido, não seria exagero pensar que os motivos executados em outros suportes, incluindo a cerâmica, seriam oriundos dos trançados.

Outros vínculos entre essas duas categorias estão nos estudos sobre técnicas de trançados através de impressões em cerâmicas (Micou et al., 2014Micou, C. B. P., Campeny, S. M. L., & Costa, R. L. (2014). Basketry of South America. In H. Selin (Ed.), Encyclopaedia of the History of Science, Technology, and Medicine in Non-Western Cultures (2 ed., Vol. 1, pp. 1-22). Netherlands: Springer.; Costa, 2016Costa, R. L. (2016). Palha e tala: estudo da tecnologia do trançado entre grupos pré-históricos brasileiros (Tese de doutorado). Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.), na adaptação de algumas terminologias usadas na cerâmica para a classificação dos trançados (B. Ribeiro, 1988Ribeiro, B. G. (1988). Dicionário do artesanato indígena. Belo Horizonte: Itatiaia.) e na comparação entre as economias da cestaria e da cerâmica (Silvestre, 2000Silvestre, R. E. J. (2000). The Ethnoarchaeology of Kalinga basketry: when men weave baskets and women make pots (Tese de doutorado). University of Arizona, Tucson, EUA.).

A seguir, são apresentados dois estudos de caso de pesquisas paralelas, ainda em andamento, que abordam objetos etnográficos armazenados em museus a partir de perspectivas arqueológicas. O primeiro é referente a vasilhas cerâmicas de diferentes povos falantes de língua Karib (doravante PFK), para compreender as relações entre fronteiras sociais e produção cerâmica entre esses povos. O segundo é sobre os trançados, uma categoria fundamental para a compreensão mais ampla das tecnologias e da materialidade entre povos indígenas. Este exemplo se fundamenta na análise de objetos etnográficos e na etnoarqueologia entre os Waiwai, valendo-se rapidamente de comparações com outros PFK guianenses.

UM ESTUDO DE VASILHAS CERÂMICAS

Conjuntos de fragmentos cerâmicos arqueológicos na Amazônia foram classificados, principalmente, a partir das características do antiplástico, da decoração e da forma, sendo, então, utilizados na construção de tipologias culturais e em cronologias. Especialmente no Brasil, esses conjuntos foram os principais grupos de artefatos na criação de Tradições e Fases (Meggers & Evans, 1970Meggers, B. J., & Evans, C. (1970). Como interpretar a linguagem da cerâmica: manual para arqueólogos. Washington, D.C.: Smithsonian Institution.), que posteriormente foram relacionados às principais famílias linguísticas indígenas. A Tradição Inciso-Ponteado, por exemplo, foi associada à família Karib especialmente por causa das características e da dispersão da cerâmica (Lathrap, 1970Lathrap, D. W. (1970). O alto Amazonas. Lisboa: Verbo.; Neves, 2011Neves, E. G. (2011). Archaeological cultures and past identities in the Pre-colonial Central Amazon. In A. Hornborg & J. Hill (Eds.), Ethnicity in ancient amazonia: reconstructing past identities from archaeology, linguistics, and ethnohistory (pp. 31-56). Boulder, CO: University Press of Colorado.). No entanto, pouco se sabe sobre as características das vasilhas cerâmicas que os PFK conhecidos posteriormente à colonização produzem e utilizam, ou mesmo se formariam um conjunto tão definido, como o da cerâmica de povos falantes de línguas da família Tupi-Guarani (Â. Corrêa, 2014Corrêa, Â. A. (2014). Pindorama de mboî e îakaré: continuidade e mudança na trajetória das populaões Tupi (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.; F. Silva & Noelli, 2017Silva, F. A., & Noelli, F. S. (2017). Arqueologia e linguística: construindo as trajetórias histórico-culturais dos povos Tupí. Revista Crítica e Sociedade, 7(1), 55-87. doi: 10.14393/RCS-v7n1-2017-39256
https://doi.org/10.14393/RCS-v7n1-2017-3...
; Noelli et al., 2018Noelli, F. S., Brochado, J. P., & Corrêa, Â. A. (2018). A linguagem da cerâmica Guarani: sobre a persistência das práticas e materialidade (parte 1). Revista Brasileira de Linguística Antropológica, 10(2), 167-200. doi: 10.26512/rbla.v10i2.20935
https://doi.org/10.26512/rbla.v10i2.2093...
).

O exemplo a seguir faz uma breve comparação entre a produção cerâmica">. A primeira enfatiza mais o processo de produção e a segunda, os aspectos de performance dos objetos e dos materiais, com foco no produto final. Essas abordagens são aqui postas em diálogo, por meio de algumas ideias presentes na ‘teoria de médio alcance do design do artefato’, expressas no trabalho de Pryor e Carr (1995)Pryor, J., & Carr, C. (1995). Basketry of Northern California Indians: interpreting style hierarchies. In C. Carr & J. E. Neitzel (Eds.), Style, society, and person: Archaeological and Ethnological perspectives (pp. 259-296). New York: Plenum Press., e as noções de ‘estilo tecnológico’ (Lechtman, 1977Lechtman, H. (1977). Style in technology - some early thoughts. In H. Lechtman & R. S. Merrill (Eds.), Material culture: styles, organization, and dynamics of technology (pp. 3-20). St Paul: West Publishing.; Lemonnier, 1992Lemonnier, P. (1992). Elements for an Anthropology of Technology (Anthropological Papers, 88). Michigan: Museum of Anthropology.) e de ‘identidade técnica’ (Gosselain, 2000Gosselain, O. P. (2000). Materializing identities: an African perspective. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 187-217. doi: 10.1177/1359183511424835
https://doi.org/10.1177/1359183511424835...
). Tal articulação é possível no estudo de objetos produzidos com diferentes materiais, como os exemplos de cestaria e cerâmica a seguir.

Transitando da escala individual à comparações regionais entre a cestaria Pomo e dos povos adjacentes na costa californiana, Pryor e Carr (1995)Pryor, J., & Carr, C. (1995). Basketry of Northern California Indians: interpreting style hierarchies. In C. Carr & J. E. Neitzel (Eds.), Style, society, and person: Archaeological and Ethnological perspectives (pp. 259-296). New York: Plenum Press. argumentaram que o estilo deve ser entendido, em parte, como efeito da interação entre níveis de processos individuais, familiares e comunitários. Segundo os autores, é necessário analisar diferentes atributos e suas visibilidades no produto final para entender o alcance e os limites dos compartilhamentos de forma, desenhos e técnicas. Esses três elementos podem estar ligados a fatores de interação e distância entre pessoas e comunidades que, por sua vez, apresentam ligação com a geografia, sistemas de aprendizado, relações de parentesco, amizade e casamentos. Eles ressaltaram que pensar a relação entre cultura material e fronteiras linguísticas deve considerar múltiplas dimensões: identidades étnicas, área cultural, estilos de comunidade, relações entre pessoas e preferências pessoais (vinculadas à habilidade e à dedicação pessoal ao longo do histórico de relações individuais).

Pesquisas sobre cerâmica na África Subsaariana foram sistematizadas por Gosselain (2000Gosselain, O. P. (2000). Materializing identities: an African perspective. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 187-217. doi: 10.1177/1359183511424835
https://doi.org/10.1177/1359183511424835...
, 2018)Gosselain, O. P. (2018). Pottery chaînes opératoires as historical documents. Oxford Research Encyclopedia of African History. Publicação online. doi: 10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
, que propôs diversas maneiras de interpretar a distribuição espacial de comportamentos técnicos e fronteiras culturais, sociais e linguísticas. As sequências e técnicas utilizadas em cada etapa da cadeia operatória foram categorizadas de acordo com sua visibilidade no produto final, sua suscetibilidade a mudanças e seu contexto de interação com demais ceramistas e/ou consumidores das vasilhas. Ou seja, há aspectos produtivos que podem ser mais facilmente emulados conforme sua visibilidade e as relações entre ceramistas e outros grupos sociais. Assim, é mais fácil um motivo decorativo se dispersar geograficamente (por meio de interações pontuais ou mediadas, mesmo que reproduzido com técnicas diferentes) do que uma determinada forma de construir uma vasilha (processo aprendido em contextos culturais específicos, por meio de relações diretas e constantes).

Esses exemplos ilustram como a relação entre cultura material e fronteiras etnolinguísticas é mais complexa do que a simples constatação da presença ou da ausência de determinados atributos visuais em objetos. Reforçam, ainda, a necessidade de abranger diferentes escalas de análise, níveis de visibilidade de atributos técnicos e relações interpessoais entre produtores. Se a escala macro permite compreender amplas fronteiras, a micro é fulcral no entendimento das escolhas tecnológicas que as moldaram.

Tanto no caso da cestaria quanto no da cerâmica, nota-se que atributos menos visíveis no produto final são medidas de maior interação social (Pryor & Carr, 1995Pryor, J., & Carr, C. (1995). Basketry of Northern California Indians: interpreting style hierarchies. In C. Carr & J. E. Neitzel (Eds.), Style, society, and person: Archaeological and Ethnological perspectives (pp. 259-296). New York: Plenum Press., p. 288), sendo especialmente resistentes à mudança (Gosselain, 2000Gosselain, O. P. (2000). Materializing identities: an African perspective. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 187-217. doi: 10.1177/1359183511424835
https://doi.org/10.1177/1359183511424835...
, p. 192). Adicionando interpretações referentes às ‘características de performance’ (Schiffer & Skibo, 1997Schiffer, M. B., & Skibo, J. M. (1997). The explanation of artifact variability. American Antiquity, 62(1), 27-50. doi: 10.2307/282378
https://doi.org/10.2307/282378...
), é possível também entender as escolhas feitas pelos artesãos em relação às performances pretendidas dos objetos.

Essas propostas interpretativas foram postas em diálogo, neste artigo, considerando o potencial de sua aplicação na compreensão de diferentes tecnologias no contexto amazônico. Enquanto os materiais líticos e cerâmicos podem ser comparados etnográfica e arqueologicamente em relação a seus atributos, tipologia, continuidades e mudanças, os objetos de plumária, fibras vegetais, tecidos, entre outros materiais orgânicos, dificilmente encontram correspondentes arqueológicos. Entretanto, todos eles integram as vivências humanas e o estudo deles auxilia na compreensão da relação entre seres humanos e materialidade, questão cara à Arqueologia.

Assim, também pode ser questionada uma separação de objetos de interesse para pesquisas arqueológicas a partir de critérios de materiais não perecíveis, que, portanto, resistiriam mais facilmente às intempéries no registro arqueológico, e materiais perecíveis, encontrados em sítios somente em condições especiais de preservação ou de maneira indireta, a partir de outros vestígios. Tal divisão não significa que os objetos tenham sido concebidos e classificados a partir deste critério pelos povos que os produziram. Por exemplo, Velthem (2003)Velthem, L. H. (2003). O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia. observa que, para os Wayana, os objetos são diferenciados a partir de seu modo de produção, ou seja, os que são feitos usando as duas mãos ao mesmo tempo (de maior complexidade técnica) e os que são feitos usando apenas uma mão.

Essa separação ainda pode ser repensada a partir da relação entre cerâmicas e trançados, como mencionado anteriormente. Para além da explicação um tanto quanto evolucionista de que a “cestaria é a mãe da cerâmica” (James, 1902James, G. W. (1902). Indian Basketry. 2 ed. New York: Dove Publications., p. 17), a origem de ambas classes artefatuais pode estar relacionada a suas funções de conter, transportar, preparar, consumir e armazenar (Rice, 1999Rice, P. M. (1999). On the origins of pottery. Journal of Archaeological Method and Theory, 6(1), 1-54.). Cestos podem ser usados para cozinhar e até transportar líquidos (O’Neale, 1986O’Neale, L. (1986). Cestaria. In B. G. Ribeiro (Ed. & Coord.), Suma etnológica brasileira: tecnologia indígena (Vol. 2, pp. 323-349). Petrópolis: Vozes.), atividades geralmente associadas aos recipientes de barro. Ambos objetos participam como envoltório e/ou acompanhamento funerário, ou do processamento de alimentos como a mandioca (no preparo do beiju ou de bebidas fermentadas).

Além disso, cerâmica e trançados também se relacionam em alguns momentos de suas respectivas cadeias de produção. Durante a coleta de argila, frequentemente são utilizados cestos para seu transporte e, para a manufatura das vasilhas cerâmicas, o suporte utilizado pode ser algum velho trançado (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark., p. 171). Alguns povos revestem suas grandes vasilhas de fermentar bebidas alcóolicas com trançados para evitar que as paredes quebrem com a pressão da fermentação, além de circundar com trançados algumas vasilhas menores, para facilitar seu transporte (Roth, 1924Roth, W. E. (1924). An introductory study of the arts, craft, and customs of the Guiana indians. Washington: United States Government Print Office., p. 134; Linke & Velthem, 2017Linke, I. L. V., & Velthem, L. H. (2017). O livro da argila: Ëliwë Pampila: Orino Papeh. São Paulo: IEPÉ., p. 75). Inversamente, há cestos que podem ser revestidos com argila para impermeabilizar as paredes, como observado por K. von den Steinen, entre povos do alto Xingu (B. Ribeiro, 1980Ribeiro, B. G. (1980). A civilização da palha: a arte do trançado dos índios do Brasil (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil., p. 92). Para tingir de preto o arumã que será usado na produção de trançados marchetados, os Wayana podem recolher fuligem de panelas cerâmicas (Velthem, 1998Velthem, L. H. (1998). A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi., p. 72), prática comum na produção de pigmentos para a pintura, como na cerâmica Katxuyana (“Nationalmuseet 2”, 1959Nationalmuseet 2. (1959). Ekspedition til British Guyana og Brasilien 1958-1959. Catálogo do acervo.). Entre os Waiwai, os homens produzem cestos e pintam os grafismos na cerâmica e nos raladores, sendo estes manufaturados pelas mulheres (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark., p. 177).

É preciso também considerar elaborações simbólicas, sociais e rituais que conectam as origens e os significados desses objetos (Rice, 1999Rice, P. M. (1999). On the origins of pottery. Journal of Archaeological Method and Theory, 6(1), 1-54.). Em uma revisão bibliográfica, Velthem (1998, p. 122)Velthem, L. H. (1998). A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi. observou que, para diversos povos de língua Karib, há uma relação cosmológica entre serpente sobrenatural, obtenção da cestaria e motivos gráficos. Entre os Waiwai e Hixkaryana, os grafismos reproduzidos nos trançados foram obtidos, respectivamente, das cobras uruperi e hurihuri (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark., p. 258). Entre os Katxuyana, os padrões gráficos presentes no couro de marmaru-imó, uma cobra sobrenatural que foi morta, foram empregados em “peneiras, tipitis, balaios e cestinhas” (Frikel, 1970Frikel, P. (1970). Os Kaxúyana: notas etno-históricas (Publicações avulsas, No. 14). Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi., p. 16). Para os Wayana, “trançar não é outra coisa a não ser a reprodução da pele pintada de Tuluperê” (Velthem, 1998Velthem, L. H. (1998). A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi., p. 125), inclusive, os trançados são a “categoria artesanal que permite reproduzir a totalidade do repertório das pinturas corporais do sobrenatural” (Velthem, 2009Velthem, L. H. (2009). Mulheres de cera, argila e arumã: princípios criativos e fabricação material entre os Wayana. Mana, 15(1), 213-236. doi: 10.1590/S0104-93132009000100008
https://doi.org/10.1590/S0104-9313200900...
, p. 217). Nesse sentido, não seria exagero pensar que os motivos executados em outros suportes, incluindo a cerâmica, seriam oriundos dos trançados.

Outros vínculos entre essas duas categorias estão nos estudos sobre técnicas de trançados através de impressões em cerâmicas (Micou et al., 2014Micou, C. B. P., Campeny, S. M. L., & Costa, R. L. (2014). Basketry of South America. In H. Selin (Ed.), Encyclopaedia of the History of Science, Technology, and Medicine in Non-Western Cultures (2 ed., Vol. 1, pp. 1-22). Netherlands: Springer.; Costa, 2016Costa, R. L., & Lima, T. A. (2016). A arte e a técnica de trançar na Pré-história de Pernambuco: a cestaria dos sítios Alcobaça e Furna do Estrago. Clio Arqueológica, 32(2), 102-152. doi: 10.20891/clio.v31i2p102-152
https://doi.org/10.20891/clio.v31i2p102-...
), na adaptação de algumas terminologias usadas na cerâmica para a classificação dos trançados (B. Ribeiro, 1988Ribeiro, B. G. (1988). Dicionário do artesanato indígena. Belo Horizonte: Itatiaia.) e na comparação entre as economias da cestaria e da cerâmica (Silvestre, 2000Silvestre, R. E. J. (2000). The Ethnoarchaeology of Kalinga basketry: when men weave baskets and women make pots (Tese de doutorado). University of Arizona, Tucson, EUA.).

A seguir, são apresentados dois estudos de caso de pesquisas paralelas, ainda em andamento, que abordam objetos etnográficos armazenados em museus a partir de perspectivas arqueológicas. O primeiro é referente a vasilhas cerâmicas de diferentes povos falantes de língua Karib (doravante PFK), para compreender as relações entre fronteiras sociais e produção cerâmica entre esses povos. O segundo é sobre os trançados, uma categoria fundamental para a compreensão mais ampla das tecnologias e da materialidade entre povos indígenas. Este exemplo se fundamenta na análise de objetos etnográficos e na etnoarqueologia entre os Waiwai, valendo-se rapidamente de comparações com outros PFK guianenses.

UM ESTUDO DE VASILHAS CERÂMICAS

Conjuntos de fragmentos cerâmicos arqueológicos na Amazônia foram classificados, principalmente, a partir das características do antiplástico, da decoração e da forma, sendo, então, utilizados na construção de tipologias culturais e em cronologias. Especialmente no Brasil, esses conjuntos foram os principais grupos de artefatos na criação de Tradições e Fases (Meggers & Evans, 1970Meggers, B. J., & Evans, C. (1970). Como interpretar a linguagem da cerâmica: manual para arqueólogos. Washington, D.C.: Smithsonian Institution.), que posteriormente foram relacionados às principais famílias linguísticas indígenas. A Tradição Inciso-Ponteado, por exemplo, foi associada à família Karib especialmente por causa das características e da dispersão da cerâmica (Lathrap, 1970Lathrap, D. W. (1970). O alto Amazonas. Lisboa: Verbo.; Neves, 2011Neves, E. G. (2011). Archaeological cultures and past identities in the Pre-colonial Central Amazon. In A. Hornborg & J. Hill (Eds.), Ethnicity in ancient amazonia: reconstructing past identities from archaeology, linguistics, and ethnohistory (pp. 31-56). Boulder, CO: University Press of Colorado.). No entanto, pouco se sabe sobre as características das vasilhas cerâmicas que os PFK conhecidos posteriormente à colonização produzem e utilizam, ou mesmo se formariam um conjunto tão definido, como o da cerâmica de povos falantes de línguas da família Tupi-Guarani (Â. Corrêa, 2014Corrêa, Â. A. (2014). Pindorama de mboî e îakaré: continuidade e mudança na trajetória das populaões Tupi (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.; F. Silva & Noelli, 2017Silva, F. A., & Noelli, F. S. (2017). Arqueologia e linguística: construindo as trajetórias histórico-culturais dos povos Tupí. Revista Crítica e Sociedade, 7(1), 55-87. doi: 10.14393/RCS-v7n1-2017-39256
https://doi.org/10.14393/RCS-v7n1-2017-3...
; Noelli et al., 2018Noelli, F. S., Brochado, J. P., & Corrêa, Â. A. (2018). A linguagem da cerâmica Guarani: sobre a persistência das práticas e materialidade (parte 1). Revista Brasileira de Linguística Antropológica, 10(2), 167-200. doi: 10.26512/rbla.v10i2.20935
https://doi.org/10.26512/rbla.v10i2.2093...
).

O exemplo a seguir faz uma breve comparação entre a produção cerâmica3 3 Foram consideradas para análise somente as vasilhas cerâmicas, de uso diário ou ritual, mas não outros objetos, como figuras, bancos ou instrumentos musicais. de alguns PFK a partir de vasilhas armazenadas em museus no Brasil, na Europa, na Guiana, no Suriname e na Guiana Francesa, procurando entender a possibilidade de existência de uma tradição cerâmica associada a esses povos, comparável a determinados conjuntos arqueológicos. Apesar de outros povos terem sido incluídos na pesquisa original, este artigo apresenta as análises que já foram finalizadas de 472 vasilhas dos Kari’na, que habitam hoje próximo ao litoral das Guianas e à Venezuela">de alguns PFK a partir de vasilhas armazenadas em museus no Brasil, na Europa, na Guiana, no Suriname e na Guiana Francesa, procurando entender a possibilidade de existência de uma tradição cerâmica associada a esses povos, comparável a determinados conjuntos arqueológicos. Apesar de outros povos terem sido incluídos na pesquisa original, este artigo apresenta as análises que já foram finalizadas de 472 vasilhas dos Kari’na, que habitam hoje próximo ao litoral das Guianas e à Venezuel 4 4 Por questões de acesso às coleções, os povos na Venezuela não estão incluídos nesta análise. ; 234 vasilhas dos Wayana e Aparai, localizados no eixo do rio Paru de Leste no Brasil e no interior da Guiana Francesa e Suriname; e 61 vasilhas dos Waiwai, que habitam a região entre os rios Nhamundá, Trombetas e Mapuera, e no sul da Guiana. As coleções abrangem um período datado entre a metade do século XIX e o final do século XX. Devido ao tempo de pesquisa em cada museu, foi adotada uma análise mais geral, com tomadas de fotografias, priorizando atributos possíveis de serem comparados com os já observados nas cerâmicas arqueológicas. Informações adicionais foram obtidas por meio de relatos históricos, etnográficos e linguísticos, além das informações presentes nos catálogos dos museus.

A abordagem da cadeia operatória permitiu comparar as sequências de produção utilizadas por cada povo, visualizando as mudanças e as continuidades ao longo do tempo em cada uma delas, e as similaridades e as diferenças entre sequências distintas, sendo necessário ressaltar que a cerâmica entre os PFK é uma produção doméstica, para consumo próprio, realizada por mulheres com o auxílio dos homens em etapas específicas. Utilizando os níveis de interpretação propostos por Gosselain (2000, 2018)Gosselain, O. P. (2000). Materializing identities: an African perspective. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 187-217. doi: 10.1177/1359183511424835
https://doi.org/10.1177/1359183511424835...
, foi também possível começar a compreender qual a conexão entre determinadas etapas da produção e dos atributos, e aspectos identitários no contexto dos PFK na Amazônia.

Em uma categoria de relações pontuais entre ceramistas, desenvolvidas durante atividades compartilhadas ou por contatos temporários com outros grupos, é possível incluir as etapas de procura e de tratamento da matéria-prima e de queima (Gosselain, 2018Gosselain, O. P. (2018). Pottery chaînes opératoires as historical documents. Oxford Research Encyclopedia of African History. Publicação online. doi: 10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
, p. 11). Essas etapas têm certa flexibilidade para mudanças, já que alterações nelas dentro do repertório da ceramista não necessariamente acarretam mudanças em toda a cadeia operatória. São também etapas menos visíveis no produto final, por isso seu aprendizado e alteração requer certo grau de interação social.

Entre os Kari’na (Roth, 1924Roth, W. E. (1924). An introductory study of the arts, craft, and customs of the Guiana indians. Washington: United States Government Print Office.; Coutet, 2009Coutet, C. (2009). Archéologie du littoral de Guyane Française: une approche ethnoarchéologique des techniques céramiques amérindiennes (Tese de doutorado). Université Paris I Panthéon-Sorbonne, Paris, França.), a argila é coletada no fundo de igarapés, deixada secando em bolas que depois são trituradas, limpas, peneiradas e utilizadas somente com os minerais já presentes nela (na Guiana), misturadas com as cinzas do caraipé (no Suriname e na Guiana Francesa), ou caco moído (na Guiana Francesa, no século XVII). Entre os Wayana e Aparai (Linke & Velthem, 2017Linke, I. L. V., & Velthem, L. H. (2017). O livro da argila: Ëliwë Pampila: Orino Papeh. São Paulo: IEPÉ.), a argila é também coletada do fundo dos rios, seca, limpa e peneirada, sendo utilizada sem a adição de antiplásticos. Entre os Waiwai (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark.), a argila do fundo de igarapés é amassada e misturada com as cinzas do caraipé.

A disponibilidade de fontes adequadas de argila e de materiais antiplásticos é um fator que deve ser considerado para explicar a variabilidade da pasta. No entanto, a percepção da qualidade e da adequação dos materiais é aprendida pelas ceramistas, que consideram as opções disponíveis a partir de seu repertório de conhecimentos, também em relação à performance dos materiais. O preparo da pasta entre os Kari’na pode ser um exemplo de diferenciação regional entre grupos. Já o não uso de caco moído pode indicar o abandono de receitas ou da produção de tipos de vasilhas que necessitavam desse material.

Outra categoria proposta por Gosselain (2018, p. 12)Gosselain, O. P. (2018). Pottery chaînes opératoires as historical documents. Oxford Research Encyclopedia of African History. Publicação online. doi: 10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
é a de interações mediadas, quando o conhecimento é adquirido por meio da manipulação do objeto em si, produzido fora do contexto da ceramista. Podem ser incluídos aí aspectos visíveis do produto final, como morfologia e acabamentos de superfície. Esses atributos podem ser mais facilmente manipulados e alterados, já que diferentes técnicas e ferramentas de produção podem produzir resultados e aparências semelhantes.

À parte das vasilhas para cozinhar, que são usualmente alisadas ou cobertas de resina, os acabamentos de superfície e grafismos são bastante distintos entre os três povos. A cerâmica Kari'na possui apliques plásticos e alguns estilos de pintura: geralmente é pintada com faixas vermelhas ou brancas, que, às vezes, são o fundo para desenhos de linhas finas ou grossas em preto, cobertos com resina transparente; são também feitos desenhos de resina preta, às vezes utilizada para cobrir toda a superfície. A cerâmica Wayana e Aparai possui pinturas de faixas vermelhas, brancas e amarelas, que também servem de fundo para a aplicação de desenhos em uma dessas cores, cobertos com uma resina transparente. Na cerâmica Waiwai, a superfície é geralmente pintada de vermelho, para então serem desenhados grafismos em preto, também cobertos com resina transparente.

Além de performances práticas, como a impermeabilização das superfícies por resinas ou engobos, é preciso considerar as performances visuais dos acabamentos de superfície, em sua dimensão estética e/ou comunicativa (Barreto, 2010Barreto, C. (2010). As culturas são feitas para dialogar? In A. Borges & C. Barreto (Orgs.), Pavilhão das culturas brasileiras: puras misturas (pp. 208-236). São Paulo: Terceiro Nome.; F. Silva, 2013Silva, F. A. (2013). Tecnologias em transformação: inovação e (re)produção dos objetos entre os Asurini do Xingu. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 8(3), 729-744. doi: 10.1590/S1981-81222013000300014
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201300...
). Esses aspectos são ressaltados justamente por serem mais visíveis e mais fáceis de serem modificados, podendo ser utilizados tanto para expressar aspectos estéticos e simbólicos compartilhados (como no exemplo africano) quanto para demarcar diferentes identidades visualmente. Entre estes três PFK, aparentemente a combinação de motivos e cores nos acabamentos de superfície pode ser um aspecto que indique suas identidades enquanto povos distintos. As variações regionais observadas entre os Kari’na podem, assim como as receitas de preparo da pasta, mostrar diferenças identitárias regionais e/ou diferentes trajetórias. No entanto, para melhor compreender a relação entre os grafismos de cada povo, são necessários estudos iconográficos mais aprofundados e comparativos, que não são feitos aqui.

Uma última categoria estaria relacionada a interações diretas e contínuas entre ceramistas, tipicamente associadas com comunidades de prática (Gosselain, 2018Gosselain, O. P. (2018). Pottery chaînes opératoires as historical documents. Oxford Research Encyclopedia of African History. Publicação online. doi: 10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
, p. 11). Podem ser aí incluídas habilidades como o uso de ferramentas, a apreciação sensorial de materiais e a etapa de manufatura, aspectos que não são visíveis no produto final, estreitamente relacionados com o processo de ensino e aprendizagem de tecnologias.

A manufatura é uma etapa considerada bastante conservadora entre ceramistas e também a mais propensa a materializar aspectos mais enraizados de identidades, como identidades etnolinguísticas, por causa do processo de ensino-aprendizagem ali envolvido (Roux, 2016Roux, V., & Courty, M.-A. (2016). Des céramiques et des hommes. Paris: Presses Universitaires de Paris Ouest.). Essa etapa, à primeira vista, parece seguir sequências bastante genéricas entre os povos na Amazônia: a partir de uma base moldada ou roletada, segue a sobreposição de roletes, unidos pelos movimentos das mãos e ferramentas, que, ao mesmo tempo, afinam as paredes, alisam a superfície e dão forma à vasilha.

Antes de descartar a possibilidade de que sequências de manufatura possam representar identidades mais enraizadas no caso amazônico, é necessário aprofundar muito mais a análise dessa etapa. Isso é possível de ser feito por meio do estudo de relevo, perfil, modos de fratura, topografia e superfície da cerâmica (Roux & Courty, 2016Roux, V., & Courty, M.-A. (2016). Des céramiques et des hommes. Paris: Presses Universitaires de Paris Ouest.), o que normalmente não é feito em descrições etnográficas, análises de coleções etnográficas, ou mesmo arqueológicas, justamente por sua baixa visibilidade na vasilha pronta.

Sabe-se, pela bibliografia, que entre estes três PFK existem variações que já podem indicar uma distinção mais profunda nesta etapa. Entre os Kari’na, na Guiana Francesa, foram observadas duas maneiras de unir os roletes (Coutet, 2009Coutet, C. (2009). Archéologie du littoral de Guyane Française: une approche ethnoarchéologique des techniques céramiques amérindiennes (Tese de doutorado). Université Paris I Panthéon-Sorbonne, Paris, França.): por alisamento horizontal ou adicionando argila entre eles antes do alisamento. As ceramistas Wayana (Duin, 2000Duin, R. S. (2000-2001). A Wayana potter in the tropical rain forest of Surinam/French Guyana. Newsletter Department of Pottery Technology, 18/19, 45-58.-2001) não sobrepõem os roletes exatamente um em cima do outro, mas de maneira que parte do rolete seguinte cubra parte do rolete anterior pelo lado de fora, técnica denominada ring building. Já entre os Waiwai, antes que os roletes sejam sobrepostos, são feitas incisões em toda sua circunferência para facilitar sua união (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark.).

Um olhar para a cadeia operatória como um todo é essencial para classificar conjuntos cerâmicos. Tomando-se apenas os critérios de acabamento de superfície e antiplástico, é possível que os fragmentos de cerâmica alisados de cada povo fossem separados em tipologias diferentes das dos fragmentos com grafismos. Ainda, fragmentos de cerâmica Wayana poderiam ser agrupados com os dos Asurini (F. Silva, 2000Silva, F. A. (2000). As tecnologias e seus significados: um estudo da cerâmica dos Asuriní do Xingu e da cestaria dos Kayapó-Xikrin sob uma perspectiva etnoarqueológica (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.), povo de língua Tupi, pela presença de apenas minerais na pasta e grafismos geométricos vermelhos e pretos pintados sobre um fundo amarelo. É, por isso, fundamental atentar também para os indícios do processo de manufatura (Gosselain, 2018Gosselain, O. P. (2018). Pottery chaînes opératoires as historical documents. Oxford Research Encyclopedia of African History. Publicação online. doi: 10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
; Roux, 2016Roux, V. (2016). Ceramic manufacture: the chaîne opératoire approach. In A. Hunt (Ed.), The Oxford Handbook of Archaeological Ceramic Analysis (pp. 101-113). doi: 10.1093/oxfordhb/9780199681532.013.8
https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780199...
; Roux & Courty, 2016Roux, V., & Courty, M.-A. (2016). Des céramiques et des hommes. Paris: Presses Universitaires de Paris Ouest.).

Os três povos aqui apresentados possuem estilos cerâmicos distintos entre si, tanto nos aspectos mais visíveis como nos menos visíveis, sendo difícil, neste momento, indicar se existiria uma tradição tecnológica comum aos PFK a partir dessa amostra. Além disso, cada estilo cerâmico pode apresentar elementos comuns com os estilos de povos falantes de outras línguas (como explicitado entre os Wayana, Aparai e Asurini), indicando outros tipos de interação social que devem ser levados em conta. É preciso considerar, no caso amazônico, como operam as interações entre ceramistas em cada etapa da cadeia operatória, de acordo com os níveis de visibilidade das técnicas e dos atributos, as relações de ensino-aprendizagem e significados atribuídos às etapas e aos materiais. As escolhas simbólicas e as práticas por trás de cada sequência também precisam ser ponderadas. O estudo de cerâmicas etnográficas, portanto, é essencial para complexificar os entendimentos arqueológicos relativos à variabilidade cerâmica e sua relação com identidades etnolinguísticas. Principalmente no caso dos PFK, em que quase 500 anos separam as observações etnográficas dos conjuntos cerâmicos arqueológicos associados a eles.

UM ESTUDO DE OBJETOS TRANÇADOS

Trançados são objetos de grande significância cultural e, juntamente com os têxteis, são tidos como culturalmente mais ‘sensíveis’ para realizar estudos comparativos (Adovasio & Gunn, 1977Adovasio, J. M., & Gunn, J. (1977). Style, basketry and basketmakers. In J. N. Hill & J. Gunn (Eds.), The individual in prehistory: studies of variability in style in prehistoric technologies (pp. 137-153). New York: Academic Press.; Jolie & McBrinn, 2010Jolie, E. A., & McBrinn, M. E. (2010). Retrieving the perishable past: experimentation in fiber artifact studies. In J. R. Ferguson (Ed.), Designing experimental research in archaeology: examining technology through production and use (pp. 153-193). Boulder, CO: University Press of Colorado.). Em contraste com a cerâmica, a importância deles nas Américas reside em sua antiguidade">; 234 vasilhas dos Wayana e Aparai, localizados no eixo do rio Paru de Leste no Brasil e no interior da Guiana Francesa e Suriname; e 61 vasilhas dos Waiwai, que habitam a região entre os rios Nhamundá, Trombetas e Mapuera, e no sul da Guiana. As coleções abrangem um período datado entre a metade do século XIX e o final do século XX. Devido ao tempo de pesquisa em cada museu, foi adotada uma análise mais geral, com tomadas de fotografias, priorizando atributos possíveis de serem comparados com os já observados nas cerâmicas arqueológicas. Informações adicionais foram obtidas por meio de relatos históricos, etnográficos e linguísticos, além das informações presentes nos catálogos dos museus.

A abordagem da cadeia operatória permitiu comparar as sequências de produção utilizadas por cada povo, visualizando as mudanças e as continuidades ao longo do tempo em cada uma delas, e as similaridades e as diferenças entre sequências distintas, sendo necessário ressaltar que a cerâmica entre os PFK é uma produção doméstica, para consumo próprio, realizada por mulheres com o auxílio dos homens em etapas específicas. Utilizando os níveis de interpretação propostos por Gosselain (2000Gosselain, O. P. (2000). Materializing identities: an African perspective. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 187-217. doi: 10.1177/1359183511424835
https://doi.org/10.1177/1359183511424835...
, 2018)Gosselain, O. P. (2018). Pottery chaînes opératoires as historical documents. Oxford Research Encyclopedia of African History. Publicação online. doi: 10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
, foi também possível começar a compreender qual a conexão entre determinadas etapas da produção e dos atributos, e aspectos identitários no contexto dos PFK na Amazônia.

Em uma categoria de relações pontuais entre ceramistas, desenvolvidas durante atividades compartilhadas ou por contatos temporários com outros grupos, é possível incluir as etapas de procura e de tratamento da matéria-prima e de queima (Gosselain, 2018Gosselain, O. P. (2018). Pottery chaînes opératoires as historical documents. Oxford Research Encyclopedia of African History. Publicação online. doi: 10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
, p. 11). Essas etapas têm certa flexibilidade para mudanças, já que alterações nelas dentro do repertório da ceramista não necessariamente acarretam mudanças em toda a cadeia operatória. São também etapas menos visíveis no produto final, por isso seu aprendizado e alteração requer certo grau de interação social.

Entre os Kari’na (Roth, 1924Roth, W. E. (1924). An introductory study of the arts, craft, and customs of the Guiana indians. Washington: United States Government Print Office.; Coutet, 2009Coutet, C. (2009). Archéologie du littoral de Guyane Française: une approche ethnoarchéologique des techniques céramiques amérindiennes (Tese de doutorado). Université Paris I Panthéon-Sorbonne, Paris, França.), a argila é coletada no fundo de igarapés, deixada secando em bolas que depois são trituradas, limpas, peneiradas e utilizadas somente com os minerais já presentes nela (na Guiana), misturadas com as cinzas do caraipé (no Suriname e na Guiana Francesa), ou caco moído (na Guiana Francesa, no século XVII). Entre os Wayana e Aparai (Linke & Velthem, 2017Linke, I. L. V., & Velthem, L. H. (2017). O livro da argila: Ëliwë Pampila: Orino Papeh. São Paulo: IEPÉ.), a argila é também coletada do fundo dos rios, seca, limpa e peneirada, sendo utilizada sem a adição de antiplásticos. Entre os Waiwai (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark.), a argila do fundo de igarapés é amassada e misturada com as cinzas do caraipé.

A disponibilidade de fontes adequadas de argila e de materiais antiplásticos é um fator que deve ser considerado para explicar a variabilidade da pasta. No entanto, a percepção da qualidade e da adequação dos materiais é aprendida pelas ceramistas, que consideram as opções disponíveis a partir de seu repertório de conhecimentos, também em relação à performance dos materiais. O preparo da pasta entre os Kari’na pode ser um exemplo de diferenciação regional entre grupos. Já o não uso de caco moído pode indicar o abandono de receitas ou da produção de tipos de vasilhas que necessitavam desse material.

Outra categoria proposta por Gosselain (2018, p. 12)Gosselain, O. P. (2018). Pottery chaînes opératoires as historical documents. Oxford Research Encyclopedia of African History. Publicação online. doi: 10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
é a de interações mediadas, quando o conhecimento é adquirido por meio da manipulação do objeto em si, produzido fora do contexto da ceramista. Podem ser incluídos aí aspectos visíveis do produto final, como morfologia e acabamentos de superfície. Esses atributos podem ser mais facilmente manipulados e alterados, já que diferentes técnicas e ferramentas de produção podem produzir resultados e aparências semelhantes.

À parte das vasilhas para cozinhar, que são usualmente alisadas ou cobertas de resina, os acabamentos de superfície e grafismos são bastante distintos entre os três povos. A cerâmica Kari'na possui apliques plásticos e alguns estilos de pintura: geralmente é pintada com faixas vermelhas ou brancas, que, às vezes, são o fundo para desenhos de linhas finas ou grossas em preto, cobertos com resina transparente; são também feitos desenhos de resina preta, às vezes utilizada para cobrir toda a superfície. A cerâmica Wayana e Aparai possui pinturas de faixas vermelhas, brancas e amarelas, que também servem de fundo para a aplicação de desenhos em uma dessas cores, cobertos com uma resina transparente. Na cerâmica Waiwai, a superfície é geralmente pintada de vermelho, para então serem desenhados grafismos em preto, também cobertos com resina transparente.

Além de performances práticas, como a impermeabilização das superfícies por resinas ou engobos, é preciso considerar as performances visuais dos acabamentos de superfície, em sua dimensão estética e/ou comunicativa (Barreto, 2010Barreto, C. (2010). As culturas são feitas para dialogar? In A. Borges & C. Barreto (Orgs.), Pavilhão das culturas brasileiras: puras misturas (pp. 208-236). São Paulo: Terceiro Nome.; F. Silva, 2013Silva, F. A., & Gordon, C. (2013). Anthropology in the museum: reflections on the curatorship of the Xikrin Collection. Vibrant-Virtual Brazilian Anthropology, 10(1). Recuperado de http://www.vibrant.org.br/issues/v10n1/fabiola-a-silva-cesar-gordon-anthropology-in-the-museum/
http://www.vibrant.org.br/issues/v10n1/f...
). Esses aspectos são ressaltados justamente por serem mais visíveis e mais fáceis de serem modificados, podendo ser utilizados tanto para expressar aspectos estéticos e simbólicos compartilhados (como no exemplo africano) quanto para demarcar diferentes identidades visualmente. Entre estes três PFK, aparentemente a combinação de motivos e cores nos acabamentos de superfície pode ser um aspecto que indique suas identidades enquanto povos distintos. As variações regionais observadas entre os Kari’na podem, assim como as receitas de preparo da pasta, mostrar diferenças identitárias regionais e/ou diferentes trajetórias. No entanto, para melhor compreender a relação entre os grafismos de cada povo, são necessários estudos iconográficos mais aprofundados e comparativos, que não são feitos aqui.

Uma última categoria estaria relacionada a interações diretas e contínuas entre ceramistas, tipicamente associadas com comunidades de prática (Gosselain, 2018Gosselain, O. P. (2018). Pottery chaînes opératoires as historical documents. Oxford Research Encyclopedia of African History. Publicação online. doi: 10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
, p. 11). Podem ser aí incluídas habilidades como o uso de ferramentas, a apreciação sensorial de materiais e a etapa de manufatura, aspectos que não são visíveis no produto final, estreitamente relacionados com o processo de ensino e aprendizagem de tecnologias.

A manufatura é uma etapa considerada bastante conservadora entre ceramistas e também a mais propensa a materializar aspectos mais enraizados de identidades, como identidades etnolinguísticas, por causa do processo de ensino-aprendizagem ali envolvido (Roux, 2016Roux, V., & Courty, M.-A. (2016). Des céramiques et des hommes. Paris: Presses Universitaires de Paris Ouest.). Essa etapa, à primeira vista, parece seguir sequências bastante genéricas entre os povos na Amazônia: a partir de uma base moldada ou roletada, segue a sobreposição de roletes, unidos pelos movimentos das mãos e ferramentas, que, ao mesmo tempo, afinam as paredes, alisam a superfície e dão forma à vasilha.

Antes de descartar a possibilidade de que sequências de manufatura possam representar identidades mais enraizadas no caso amazônico, é necessário aprofundar muito mais a análise dessa etapa. Isso é possível de ser feito por meio do estudo de relevo, perfil, modos de fratura, topografia e superfície da cerâmica (Roux & Courty, 2016Roux, V., & Courty, M.-A. (2016). Des céramiques et des hommes. Paris: Presses Universitaires de Paris Ouest.), o que normalmente não é feito em descrições etnográficas, análises de coleções etnográficas, ou mesmo arqueológicas, justamente por sua baixa visibilidade na vasilha pronta.

Sabe-se, pela bibliografia, que entre estes três PFK existem variações que já podem indicar uma distinção mais profunda nesta etapa. Entre os Kari’na, na Guiana Francesa, foram observadas duas maneiras de unir os roletes (Coutet, 2009Coutet, C. (2009). Archéologie du littoral de Guyane Française: une approche ethnoarchéologique des techniques céramiques amérindiennes (Tese de doutorado). Université Paris I Panthéon-Sorbonne, Paris, França.): por alisamento horizontal ou adicionando argila entre eles antes do alisamento. As ceramistas Wayana (Duin, 2000-2001Duin, R. S. (2000-2001). A Wayana potter in the tropical rain forest of Surinam/French Guyana. Newsletter Department of Pottery Technology, 18/19, 45-58.) não sobrepõem os roletes exatamente um em cima do outro, mas de maneira que parte do rolete seguinte cubra parte do rolete anterior pelo lado de fora, técnica denominada ring building. Já entre os Waiwai, antes que os roletes sejam sobrepostos, são feitas incisões em toda sua circunferência para facilitar sua união (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark.).

Um olhar para a cadeia operatória como um todo é essencial para classificar conjuntos cerâmicos. Tomando-se apenas os critérios de acabamento de superfície e antiplástico, é possível que os fragmentos de cerâmica alisados de cada povo fossem separados em tipologias diferentes das dos fragmentos com grafismos. Ainda, fragmentos de cerâmica Wayana poderiam ser agrupados com os dos Asurini (F. Silva, 2000Silva, F. A. (2000). As tecnologias e seus significados: um estudo da cerâmica dos Asuriní do Xingu e da cestaria dos Kayapó-Xikrin sob uma perspectiva etnoarqueológica (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.), povo de língua Tupi, pela presença de apenas minerais na pasta e grafismos geométricos vermelhos e pretos pintados sobre um fundo amarelo. É, por isso, fundamental atentar também para os indícios do processo de manufatura (Gosselain, 2018Gosselain, O. P. (2018). Pottery chaînes opératoires as historical documents. Oxford Research Encyclopedia of African History. Publicação online. doi: 10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
; Roux, 2016Roux, V., & Courty, M.-A. (2016). Des céramiques et des hommes. Paris: Presses Universitaires de Paris Ouest.; Roux & Courty, 2016Roux, V., & Courty, M.-A. (2016). Des céramiques et des hommes. Paris: Presses Universitaires de Paris Ouest.).

Os três povos aqui apresentados possuem estilos cerâmicos distintos entre si, tanto nos aspectos mais visíveis como nos menos visíveis, sendo difícil, neste momento, indicar se existiria uma tradição tecnológica comum aos PFK a partir dessa amostra. Além disso, cada estilo cerâmico pode apresentar elementos comuns com os estilos de povos falantes de outras línguas (como explicitado entre os Wayana, Aparai e Asurini), indicando outros tipos de interação social que devem ser levados em conta. É preciso considerar, no caso amazônico, como operam as interações entre ceramistas em cada etapa da cadeia operatória, de acordo com os níveis de visibilidade das técnicas e dos atributos, as relações de ensino-aprendizagem e significados atribuídos às etapas e aos materiais. As escolhas simbólicas e as práticas por trás de cada sequência também precisam ser ponderadas. O estudo de cerâmicas etnográficas, portanto, é essencial para complexificar os entendimentos arqueológicos relativos à variabilidade cerâmica e sua relação com identidades etnolinguísticas. Principalmente no caso dos PFK, em que quase 500 anos separam as observações etnográficas dos conjuntos cerâmicos arqueológicos associados a eles.

UM ESTUDO DE OBJETOS TRANÇADOS

Trançados são objetos de grande significância cultural e, juntamente com os têxteis, são tidos como culturalmente mais ‘sensíveis’ para realizar estudos comparativos (Adovasio & Gunn, 1977Adovasio, J. M., & Gunn, J. (1977). Style, basketry and basketmakers. In J. N. Hill & J. Gunn (Eds.), The individual in prehistory: studies of variability in style in prehistoric technologies (pp. 137-153). New York: Academic Press.; Jolie & McBrinn, 2010Jolie, E. A., & McBrinn, M. E. (2010). Retrieving the perishable past: experimentation in fiber artifact studies. In J. R. Ferguson (Ed.), Designing experimental research in archaeology: examining technology through production and use (pp. 153-193). Boulder, CO: University Press of Colorado.). Em contraste com a cerâmica, a importância deles nas Américas reside em sua antiguidade5 5 No que se refere às Américas, existe um provável fragmento de trançado datado diretamente em 19.600 ± 2.400 AP, além de outros trançados encontrados em camadas datadas entre 12.800 ± 870 BP e 11.300 ± 700 AP (Adovasio et al., 2014, p. 336). Portanto, estão presentes desde o povoamento inicial das Américas. e na amplitude de atributos diagnósticos. Há poucas classes de artefatos que apresentam tantas variáveis capazes de tratar questões culturais e idiossincráticas ao ponto de se argumentar que, independente da técnica, “parece ser um fato estabelecido que não existem duas populações que fabricaram cestarias precisamente da mesma maneira” (Adovasio & Gunn, 1977Adovasio, J. M., & Gunn, J. (1977). Style, basketry and basketmakers. In J. N. Hill & J. Gunn (Eds.), The individual in prehistory: studies of variability in style in prehistoric technologies (pp. 137-153). New York: Academic Press., p. 138). Ao acrescentar o ponto de vista indígena, delinda-se o quão significativo eles podem ser no pensamento desses povos. Para os Wayana, a cestaria está mais próxima das tecnologias demiúrgicas, já que é caracterizada pela simultaneidade na ação de sua produção, isto é, ao trançar com ambas as mãos, se obtém concomitantemente objeto e padrão gráfico, o que não ocorre na cerâmica (Velthem, 2009Velthem, L. H. (2009). Mulheres de cera, argila e arumã: princípios criativos e fabricação material entre os Wayana. Mana, 15(1), 213-236. doi: 10.1590/S0104-93132009000100008
https://doi.org/10.1590/S0104-9313200900...
, p. 226).

Para compreender a imensa variedade de matérias-primas, técnicas e objetos trançados existentes, é necessária uma familiarização com coleções etnográficas. Trançados podem ser feitos através de talas, palhas, fibras de folhas, gramíneas, taquara, entrecasca de árvores e caniços (O’Neale, 1986O’Neale, L. (1986). Cestaria. In B. G. Ribeiro (Ed. & Coord.), Suma etnológica brasileira: tecnologia indígena (Vol. 2, pp. 323-349). Petrópolis: Vozes.; B. Ribeiro, 1985Ribeiro, B. G. (1985). A arte do trançado dos índios do Brasil: um estudo taxonômico. Belém: Museu Parense Emílio Goeldi.). No caso ameríndio, as técnicas estruturais de produção foram distinguidas em: xadrezado, arqueado, sarjado, costurado, hexagonal, enlaçado, torcido e marchetado, além das variantes dessas técnicas, totalizando 25 tipos; 11 técnicas de partida; dez variações técnicas no arremate (B. Ribeiro, B., 1985Ribeiro, B. G. (1985). A arte do trançado dos índios do Brasil: um estudo taxonômico. Belém: Museu Parense Emílio Goeldi., p. 59 e 74). Outra característica é a variedade formal e funcional, podendo ser manufaturados cestos, caixas, mochilas, cintos, peneiras, bandejas, espremedores, chapéus, barcos, esteiras, abanos, armadilhas, descanso para recipientes, objetos vesicatórios, entre outros (O’Neale, 1986O’Neale, L. (1986). Cestaria. In B. G. Ribeiro (Ed. & Coord.), Suma etnológica brasileira: tecnologia indígena (Vol. 2, pp. 323-349). Petrópolis: Vozes.), implicando a presença de trançados em diversas esferas da vida ameríndia.

Trançados ainda apresentam uma peculiaridade que ressalta seu potencial para análises tecnológicas. Diferentemente de outras categorias de objetos, como a cerâmica e o lítico, todas as ações técnicas executadas durante a manufatura, desde a partida até o arremate, ficam registradas e visíveis no produto final (Jolie & McBrinn, 2010Jolie, E. A., & McBrinn, M. E. (2010). Retrieving the perishable past: experimentation in fiber artifact studies. In J. R. Ferguson (Ed.), Designing experimental research in archaeology: examining technology through production and use (pp. 153-193). Boulder, CO: University Press of Colorado.). Isso contribui de forma única para as referidas discussões sobre os níveis de visibilidade, os estilos tecnológicos e as identidades técnicas. Outrossim, essas ‘ações técnicas congeladas’ permitem observar claramente a técnica estrutural, facilitando a análise das coleções de forma presencial e virtual. As possibilidades e os limites da análise virtual dependem do que se quer extrair das coleções, bem como da disponibilidade de boas fotos, entre outras informações, mas permitem, minimamente, a identificação de diferentes tipos de peças, sua morfologia e informações gerais sobre as principais técnicas. Por fim, a reunião de fotografias de peças musealizadas pode auxiliar na construção do diálogo na pesquisa com os povos indígenas, como feito por alguns autores (Taveira, 1982Taveira, E. L. M. (1982). Etnografia da cesta Karajá. Goiânia: UFG.; Castro, 1994Castro, E. (1994). O cesto kaipó dos Krahó: uma abordagem visual (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.; Pryor & Carr, 1995Pryor, J., & Carr, C. (1995). Basketry of Northern California Indians: interpreting style hierarchies. In C. Carr & J. E. Neitzel (Eds.), Style, society, and person: Archaeological and Ethnological perspectives (pp. 259-296). New York: Plenum Press.).

Este é o caso da pesquisa etnoarqueológica entre os povos do rio Mapuera, noroeste do estado do Pará, conhecidos genericamente como Waiwai. Até o momento, foram analisados, presencialmente e virtualmente, 330 objetos em seis instituições, internacionais e nacionais">e na amplitude de atributos diagnósticos. Há poucas classes de artefatos que apresentam tantas variáveis capazes de tratar questões culturais e idiossincráticas ao ponto de se argumentar que, independente da técnica, “parece ser um fato estabelecido que não existem duas populações que fabricaram cestarias precisamente da mesma maneira” (Adovasio & Gunn, 1977Adovasio, J. M., & Gunn, J. (1977). Style, basketry and basketmakers. In J. N. Hill & J. Gunn (Eds.), The individual in prehistory: studies of variability in style in prehistoric technologies (pp. 137-153). New York: Academic Press., p. 138). Ao acrescentar o ponto de vista indígena, delinda-se o quão significativo eles podem ser no pensamento desses povos. Para os Wayana, a cestaria está mais próxima das tecnologias demiúrgicas, já que é caracterizada pela simultaneidade na ação de sua produção, isto é, ao trançar com ambas as mãos, se obtém concomitantemente objeto e padrão gráfico, o que não ocorre na cerâmica (Velthem, 2009Velthem, L. H. (2009). Mulheres de cera, argila e arumã: princípios criativos e fabricação material entre os Wayana. Mana, 15(1), 213-236. doi: 10.1590/S0104-93132009000100008
https://doi.org/10.1590/S0104-9313200900...
, p. 226).

Para compreender a imensa variedade de matérias-primas, técnicas e objetos trançados existentes, é necessária uma familiarização com coleções etnográficas. Trançados podem ser feitos através de talas, palhas, fibras de folhas, gramíneas, taquara, entrecasca de árvores e caniços (O’Neale, 1986O’Neale, L. (1986). Cestaria. In B. G. Ribeiro (Ed. & Coord.), Suma etnológica brasileira: tecnologia indígena (Vol. 2, pp. 323-349). Petrópolis: Vozes.; B. Ribeiro, 1985Ribeiro, B. G. (1985). A arte do trançado dos índios do Brasil: um estudo taxonômico. Belém: Museu Parense Emílio Goeldi.). No caso ameríndio, as técnicas estruturais de produção foram distinguidas em: xadrezado, arqueado, sarjado, costurado, hexagonal, enlaçado, torcido e marchetado, além das variantes dessas técnicas, totalizando 25 tipos; 11 técnicas de partida; dez variações técnicas no arremate (B. Ribeiro, B., 1985Ribeiro, B. G. (1985). A arte do trançado dos índios do Brasil: um estudo taxonômico. Belém: Museu Parense Emílio Goeldi., p. 59 e 74). Outra característica é a variedade formal e funcional, podendo ser manufaturados cestos, caixas, mochilas, cintos, peneiras, bandejas, espremedores, chapéus, barcos, esteiras, abanos, armadilhas, descanso para recipientes, objetos vesicatórios, entre outros (O’Neale, 1986O’Neale, L. (1986). Cestaria. In B. G. Ribeiro (Ed. & Coord.), Suma etnológica brasileira: tecnologia indígena (Vol. 2, pp. 323-349). Petrópolis: Vozes.), implicando a presença de trançados em diversas esferas da vida ameríndia.

Trançados ainda apresentam uma peculiaridade que ressalta seu potencial para análises tecnológicas. Diferentemente de outras categorias de objetos, como a cerâmica e o lítico, todas as ações técnicas executadas durante a manufatura, desde a partida até o arremate, ficam registradas e visíveis no produto final (Jolie & McBrinn, 2010Jolie, E. A., & McBrinn, M. E. (2010). Retrieving the perishable past: experimentation in fiber artifact studies. In J. R. Ferguson (Ed.), Designing experimental research in archaeology: examining technology through production and use (pp. 153-193). Boulder, CO: University Press of Colorado.). Isso contribui de forma única para as referidas discussões sobre os níveis de visibilidade, os estilos tecnológicos e as identidades técnicas. Outrossim, essas ‘ações técnicas congeladas’ permitem observar claramente a técnica estrutural, facilitando a análise das coleções de forma presencial e virtual. As possibilidades e os limites da análise virtual dependem do que se quer extrair das coleções, bem como da disponibilidade de boas fotos, entre outras informações, mas permitem, minimamente, a identificação de diferentes tipos de peças, sua morfologia e informações gerais sobre as principais técnicas. Por fim, a reunião de fotografias de peças musealizadas pode auxiliar na construção do diálogo na pesquisa com os povos indígenas, como feito por alguns autores (Taveira, 1982Taveira, E. L. M. (1982). Etnografia da cesta Karajá. Goiânia: UFG.; Castro, 1994Castro, E. (1994). O cesto kaipó dos Krahó: uma abordagem visual (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.; Pryor & Carr, 1995Pryor, J., & Carr, C. (1995). Basketry of Northern California Indians: interpreting style hierarchies. In C. Carr & J. E. Neitzel (Eds.), Style, society, and person: Archaeological and Ethnological perspectives (pp. 259-296). New York: Plenum Press.).

Este é o caso da pesquisa etnoarqueológica entre os povos do rio Mapuera, noroeste do estado do Pará, conhecidos genericamente como Waiwai. Até o momento, foram analisados, presencialmente e virtualmente, 330 objetos em seis instituições, internacionais e nacionais6 6 Peabody Museum of Archaeology and Ethnology at Harvard University; National Museums of World Culture; National Museum of Denmark; Horniman Museum & Gardens; Museu do Índio; e Museu Paraense Emílio Goeldi. Estas instituições estão situadas, respectivamente, nos Estados Unidos da América, na Suécia, na Dinamarca, na Inglaterra e no Brasil. , abrangendo um período entre 1910 e 2010. As peças são provenientes de aldeias localizadas na Guiana, em Roraima e no Pará. O uso de fotografias de peças no diálogo com as pessoas permitiu aprender seus nomes gerais e específicos, suas matérias-primas e funções, além de verificar quais delas ainda são produzidas. Iniciou-se uma etnoclassificação que resultou, até o momento, em 24 classes de objetos, distinguidas invariavelmente pela função. As subclassificações, estabelecidas pelos nomes específicos, evidenciaram o uso de critérios ora morfológicos, nos quais o artefato evoca a forma de um ser ou outro artefato, ora apoiados em pormenores técnicos/gráficos.

Essa subclassificação por atributo técnico/gráfico corrobora a ideia de que trançar e fazer grafismos correspondem ao mesmo ato sobre a matéria (Reichel-Dolmatoff, 1981Reichel-Dolmatoff, G. (1981). Basketry as metaphor: arts and crafts of the Desana Indians of the Nortwest Amazon (Occasional Papers of the Museum of Cultural History, No. 5). Los Angeles, CA: Museum of Cultural History.; Velthem, 1998Velthem, L. H. (1998). A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi.). Disso decorre que qualquer disposição das tramas de um trançado precisa ser compreendida para além da regra de se trançar, independentemente se o resultado final se apresenta ou não em cores diferentes. Como observado no Mapuera, o arremate descrito na bibliografia como “enlaçado na figura-de-8” (B. Ribeiro, 1985Ribeiro, B. G. (1985). A arte do trançado dos índios do Brasil: um estudo taxonômico. Belém: Museu Parense Emílio Goeldi., pp. 72-73) é, para as pessoas, as escamas do peixe tamoatá (Hoplosternum littorale), indicando uma faceta do potencial de análise tecnológica de objetos etnográficos para discutir aspectos estéticos, cosmológicos e ontológicos, que também interessam à Arqueologia.

Entre as coleções de peças atribuídas aos Waiwai, existe grande potencial para abordar escolhas individuais, especialmente entre os estojiformes, classe numericamente expressiva. A análise de pormenores técnicos em objetos etnográficos tem sido usada para ver a individualidade nos objetos em pesquisas etnográficas (Newton, 1981Newton, D. (1981). The individual in ethnographic collections. Annals of the New York academy of sciences, 376(1), 267-287. doi: 10.1111/j.1749-6632.1981.tb28172.x
https://doi.org/10.1111/j.1749-6632.1981...
; Castro, 1994Castro, E. (1994). O cesto kaipó dos Krahó: uma abordagem visual (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.) e arqueológicas (Adovasio & Gunn, 1977Adovasio, J. M., & Gunn, J. (1977). Style, basketry and basketmakers. In J. N. Hill & J. Gunn (Eds.), The individual in prehistory: studies of variability in style in prehistoric technologies (pp. 137-153). New York: Academic Press.). Isso, por sua vez, possibilita pensar os trançados nas redes de relações que fazem parte dos aprendizados e das histórias pessoais (Pryor & Carr, 1995Pryor, J., & Carr, C. (1995). Basketry of Northern California Indians: interpreting style hierarchies. In C. Carr & J. E. Neitzel (Eds.), Style, society, and person: Archaeological and Ethnological perspectives (pp. 259-296). New York: Plenum Press.; Silvestre, 2000Silvestre, R. E. J. (2000). The Ethnoarchaeology of Kalinga basketry: when men weave baskets and women make pots (Tese de doutorado). University of Arizona, Tucson, EUA.; F. Silva, 2000Silva, F. A. (2000). As tecnologias e seus significados: um estudo da cerâmica dos Asuriní do Xingu e da cestaria dos Kayapó-Xikrin sob uma perspectiva etnoarqueológica (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil., 2009b; Wendrich, 2012Wendrich, W. (2012). The world according to basketry: an ethno-archaeological interpretation of basketry production in Egypt. Los Angeles: Cotsen Institute Press.).

Conforme pontuou B. Ribeiro (1985, p. 22), referindo-se a certas “tecnicalidades” propostas por Adovasio (1977)Adovasio, J. M., & Gunn, J. (1977). Style, basketry and basketmakers. In J. N. Hill & J. Gunn (Eds.), The individual in prehistory: studies of variability in style in prehistoric technologies (pp. 137-153). New York: Academic Press., existem detalhes que podem ser “desnecessários nos estudos etnográficos”. Todavia, a busca pelo máximo de informações extraídas das coleções etnográficas de trançados pode estimular novas ideias para lidar com as singularidades dos materiais arqueológicos. O caso dos abanos Waiwai é um pequeno exemplo.

Feitos com a técnica em diagonal, ou sarjado (B. Ribeiro, 1985Ribeiro, B. G. (1985). A arte do trançado dos índios do Brasil: um estudo taxonômico. Belém: Museu Parense Emílio Goeldi.), os abanos apresentam grafismos que ainda não foram vistos em demais objetos trançados. Sendo bidimensionais, poderiam perfeitamente ser usados como suporte na produção de potes. Considerando-se a particularidade técnica-gráfica dos abanos, eles hipoteticamente poderiam ser identificados, de forma indireta, em um fragmento cerâmico com impressões correspondentes às suas peculiaridades. Isso permitiria inferir não só a pretérita existência dos trançados, mas a de um artefato específico.

Caso essa suposta identificação ocorra, isso não necessariamente significaria que tal existência arqueológica é, de fato, um abano Waiwai, ou de outro PFK. Para isso, dever-se-ia partir do pressuposto de que os Waiwai e demais PFK são os únicos a produzirem um abano com essas características, o que não pode ser afirmado com segurança. Não obstante, dada a imensa variabilidade dos trançados, os resultados comparativos de análises destes artefatos feitos por PFK podem contribuir para refletir sobre as possibilidades e impossibilidades dessa correlação. Com base nas análises de coleções etnográficas e peças semelhantes disponíveis na bibliografia, breves comparações foram feitas sobre peneiras com pedestal e abanos produzidos pelos Waiwai (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark., p. 41, fig. 11, p. 255, fig. 100-103), Katxuyana (Detering, 1962Detering, D. (1962). Flechtwerke und flechttechniken der kaschuyana indianer nordost-brasiliens. Baessler-Archiv, (1), 63-104., p. 79, fig. 24, p. 99-100, fig. 57-58), Tiriyó (Frikel, 1973Frikel, P. (1973). Os Tiriyó: seu sistema adaptativo (Völkerkundliche Abhandlungen, Vol. 5). Hannover: Münstermann Verlag., p. 271, fig. ‘e’ e ‘a’; De Goeje, 1906De Goeje, C. H. (1906). Bijdrage tot de ethnoghaphie der surinaamsche indianen (Internationales Archiv Für Ethnographie, Suppl.). Leiden: Boekhandel & Drukkerij., prancha VIII, fig. 9) e Wayana (De Goeje, 1906De Goeje, C. H. (1906). Bijdrage tot de ethnoghaphie der surinaamsche indianen (Internationales Archiv Für Ethnographie, Suppl.). Leiden: Boekhandel & Drukkerij., prancha VIII, fig. 4-5; Velthem, 1998Velthem, L. H. (1998). A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi., p. 202-203).

Existem semelhanças e diferenças entre as morfologias e as técnicas estruturais">, abrangendo um período entre 1910 e 2010. As peças são provenientes de aldeias localizadas na Guiana, em Roraima e no Pará. O uso de fotografias de peças no diálogo com as pessoas permitiu aprender seus nomes gerais e específicos, suas matérias-primas e funções, além de verificar quais delas ainda são produzidas. Iniciou-se uma etnoclassificação que resultou, até o momento, em 24 classes de objetos, distinguidas invariavelmente pela função. As subclassificações, estabelecidas pelos nomes específicos, evidenciaram o uso de critérios ora morfológicos, nos quais o artefato evoca a forma de um ser ou outro artefato, ora apoiados em pormenores técnicos/gráficos.

Essa subclassificação por atributo técnico/gráfico corrobora a ideia de que trançar e fazer grafismos correspondem ao mesmo ato sobre a matéria (Reichel-Dolmatoff, 1981Reichel-Dolmatoff, G. (1981). Basketry as metaphor: arts and crafts of the Desana Indians of the Nortwest Amazon (Occasional Papers of the Museum of Cultural History, No. 5). Los Angeles, CA: Museum of Cultural History.; Velthem, 1998Velthem, L. H. (1998). A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi.). Disso decorre que qualquer disposição das tramas de um trançado precisa ser compreendida para além da regra de se trançar, independentemente se o resultado final se apresenta ou não em cores diferentes. Como observado no Mapuera, o arremate descrito na bibliografia como “enlaçado na figura-de-8” (B. Ribeiro, 1985Ribeiro, B. G. (1985). A arte do trançado dos índios do Brasil: um estudo taxonômico. Belém: Museu Parense Emílio Goeldi., pp. 72-73) é, para as pessoas, as escamas do peixe tamoatá (Hoplosternum littorale), indicando uma faceta do potencial de análise tecnológica de objetos etnográficos para discutir aspectos estéticos, cosmológicos e ontológicos, que também interessam à Arqueologia.

Entre as coleções de peças atribuídas aos Waiwai, existe grande potencial para abordar escolhas individuais, especialmente entre os estojiformes, classe numericamente expressiva. A análise de pormenores técnicos em objetos etnográficos tem sido usada para ver a individualidade nos objetos em pesquisas etnográficas (Newton, 1981Newton, D. (1981). The individual in ethnographic collections. Annals of the New York academy of sciences, 376(1), 267-287. doi: 10.1111/j.1749-6632.1981.tb28172.x
https://doi.org/10.1111/j.1749-6632.1981...
; Castro, 1994Castro, E. (1994). O cesto kaipó dos Krahó: uma abordagem visual (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.) e arqueológicas (Adovasio & Gunn, 1977Adovasio, J. M., & Gunn, J. (1977). Style, basketry and basketmakers. In J. N. Hill & J. Gunn (Eds.), The individual in prehistory: studies of variability in style in prehistoric technologies (pp. 137-153). New York: Academic Press.). Isso, por sua vez, possibilita pensar os trançados nas redes de relações que fazem parte dos aprendizados e das histórias pessoais (Pryor & Carr, 1995Pryor, J., & Carr, C. (1995). Basketry of Northern California Indians: interpreting style hierarchies. In C. Carr & J. E. Neitzel (Eds.), Style, society, and person: Archaeological and Ethnological perspectives (pp. 259-296). New York: Plenum Press.; Silvestre, 2000Silvestre, R. E. J. (2000). The Ethnoarchaeology of Kalinga basketry: when men weave baskets and women make pots (Tese de doutorado). University of Arizona, Tucson, EUA.; F. Silva, 2000Silva, F. A. (2000). As tecnologias e seus significados: um estudo da cerâmica dos Asuriní do Xingu e da cestaria dos Kayapó-Xikrin sob uma perspectiva etnoarqueológica (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil., 2009b; Wendrich, 2012Wendrich, W. (2012). The world according to basketry: an ethno-archaeological interpretation of basketry production in Egypt. Los Angeles: Cotsen Institute Press.).

Conforme pontuou B. Ribeiro (1985, p. 22)Ribeiro, B. G. (1985). A arte do trançado dos índios do Brasil: um estudo taxonômico. Belém: Museu Parense Emílio Goeldi., referindo-se a certas “tecnicalidades” propostas por Adovasio (1977)Adovasio, J. M. (1977). Basketry technology: a guide to identification and analysis. Chicago: Aldine Publishing Company., existem detalhes que podem ser “desnecessários nos estudos etnográficos”. Todavia, a busca pelo máximo de informações extraídas das coleções etnográficas de trançados pode estimular novas ideias para lidar com as singularidades dos materiais arqueológicos. O caso dos abanos Waiwai é um pequeno exemplo.

Feitos com a técnica em diagonal, ou sarjado (B. Ribeiro, 1985Ribeiro, B. G. (1985). A arte do trançado dos índios do Brasil: um estudo taxonômico. Belém: Museu Parense Emílio Goeldi.), os abanos apresentam grafismos que ainda não foram vistos em demais objetos trançados. Sendo bidimensionais, poderiam perfeitamente ser usados como suporte na produção de potes. Considerando-se a particularidade técnica-gráfica dos abanos, eles hipoteticamente poderiam ser identificados, de forma indireta, em um fragmento cerâmico com impressões correspondentes às suas peculiaridades. Isso permitiria inferir não só a pretérita existência dos trançados, mas a de um artefato específico.

Caso essa suposta identificação ocorra, isso não necessariamente significaria que tal existência arqueológica é, de fato, um abano Waiwai, ou de outro PFK. Para isso, dever-se-ia partir do pressuposto de que os Waiwai e demais PFK são os únicos a produzirem um abano com essas características, o que não pode ser afirmado com segurança. Não obstante, dada a imensa variabilidade dos trançados, os resultados comparativos de análises destes artefatos feitos por PFK podem contribuir para refletir sobre as possibilidades e impossibilidades dessa correlação. Com base nas análises de coleções etnográficas e peças semelhantes disponíveis na bibliografia, breves comparações foram feitas sobre peneiras com pedestal e abanos produzidos pelos Waiwai (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark., p. 41, fig. 11, p. 255, fig. 100-103), Katxuyana (Detering, 1962Detering, D. (1962). Flechtwerke und flechttechniken der kaschuyana indianer nordost-brasiliens. Baessler-Archiv, (1), 63-104., p. 79, fig. 24, p. 99-100, fig. 57-58), Tiriyó (Frikel, 1973Frikel, P. (1973). Os Tiriyó: seu sistema adaptativo (Völkerkundliche Abhandlungen, Vol. 5). Hannover: Münstermann Verlag., p. 271, fig. ‘e’ e ‘a’; De Goeje, 1906De Goeje, C. H. (1906). Bijdrage tot de ethnoghaphie der surinaamsche indianen (Internationales Archiv Für Ethnographie, Suppl.). Leiden: Boekhandel & Drukkerij., prancha VIII, fig. 9) e Wayana (De Goeje, 1906De Goeje, C. H. (1906). Bijdrage tot de ethnoghaphie der surinaamsche indianen (Internationales Archiv Für Ethnographie, Suppl.). Leiden: Boekhandel & Drukkerij., prancha VIII, fig. 4-5; Velthem, 1998Velthem, L. H. (1998). A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi., p. 202-203).

Existem semelhanças e diferenças entre as morfologias e as técnicas estruturais7 7 A terminologia usada a seguir utiliza a proposta elaborada por B. Ribeiro (1985, 1988). das peneiras com pedestal desses povos, possibilitando identificar proximidades e distâncias entre os respectivos estilos tecnológicos. O modelo ‘tradicional’ Waiwai, observado desde 1910 até o presente, difere dos demais, seja pela ausência de bordas verticais na parte superior seja por apresentar uma técnica de trançado única no pedestal – variante do trançado enlaçado com grade. Entre os Tiriyó, há tipos semelhantes ao estilo Wayana – morfologia arredondada da peneira e técnicas usadas no trançado do pedestal, com alternação entre trançado enlaçado com grade e arqueado – e tipos semelhantes ao estilo Katxuyana – morfologia quadrada da peneira e técnica hexagonal do pedestal. Portanto, a peneira Waiwai está mais distante das demais; a Katxuyana não se parece em nada com a Wayana e cada uma delas se parece com um tipo específico dos Tiriyó. Ainda, menciona-se que, atualmente, os Waiwai fazem tanto o estilo ‘tradicional’ da peneira com pedestal quanto outro mais semelhante com o Katxuyana/Tiriyó, diferindo basicamente na técnica do pedestal que não é hexagonal. Comparando os abanos, em linhas gerais, observa-se que o modelo Waiwai, Katxuyana e Tiriyó são equivalentes na morfologia e na técnica estrutural, diferindo bem do estilo Wayana.

Este breve exercício comparativo ilustra o quão complexa é a relação das produções artefatuais quando se quer pensar em fronteiras e interseções. Com base apenas nas duas classes de trançados exemplificadas, não é possível ver um conjunto de trançados característico de qualquer um desses quatro povos. O estilo de abano feito pelos Waiwai não é único deste povo, mas também não é feito por todos os PFK aqui comparados. Há um emaranhado de ligações entre os estilos tecnológicos de peneiras com suportes e abanos que precisam ser melhor compreendidos.

Nem mesmo a existência de peneiras com pedestal pode ser considerada algo comum entre os PFK das Guianas, já que esta estrutura não ocorre nas peneiras de outros povos, como os Ye’kuana (Guss, 1989Guss, D. M. (1989). To weave and sing: art, symbol, and narrative in the South American rainforest. Berkeley, CA: University of California Press.) e Panare (Henley & Mattéi-Muller, 1978Henley, P., & Mattéi-Muller, M.-C. (1978). Panare Basketry: means of commercial exchange and artistic expression. Antropológica, 49, 29-130.). Futuras comparações precisam ser feitas, ampliando as classes de trançados, o que provavelmente tornará o panorama ainda mais complexo. Imersões etnográficas entre os moradores do Mapuera também poderão auxiliar no sentido de entender as relações entre os produtores. O que foi observado até então corrobora as proposições teóricas discutidas, especialmente no tocante às histórias de vida das pessoas e suas redes de aprendizado, destacando-se que no, caso Waiwai do Mapuera, os homens saem para morar em outras aldeias, até mesmo dos Tiriyó e Katxuyana, interagindo, assim, com outras comunidades de prática.

Com o tempo, ocorrem mudanças, como o estilo novo de peneira entre os Waiwai, que não está em nenhuma coleção consultada com datas entre 1910 e 1990. Verificou-se também o desaparecimento de algumas categorias, como os trançados usados para colocar formigas, outrora utilizados na iniciação de homens e mulheres (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark.), bem como o cesto ‘cobre rosto’, usado na primeira menstruação de uma mulher. Ambas as classes não estão em coleções posteriores à década de 50 e o abandono de sua produção e de seu uso vincula-se às mudanças decorrentes do processo de relação dos Waiwai com a evangelização">das peneiras com pedestal desses povos, possibilitando identificar proximidades e distâncias entre os respectivos estilos tecnológicos. O modelo ‘tradicional’ Waiwai, observado desde 1910 até o presente, difere dos demais, seja pela ausência de bordas verticais na parte superior seja por apresentar uma técnica de trançado única no pedestal – variante do trançado enlaçado com grade. Entre os Tiriyó, há tipos semelhantes ao estilo Wayana – morfologia arredondada da peneira e técnicas usadas no trançado do pedestal, com alternação entre trançado enlaçado com grade e arqueado – e tipos semelhantes ao estilo Katxuyana – morfologia quadrada da peneira e técnica hexagonal do pedestal. Portanto, a peneira Waiwai está mais distante das demais; a Katxuyana não se parece em nada com a Wayana e cada uma delas se parece com um tipo específico dos Tiriyó. Ainda, menciona-se que, atualmente, os Waiwai fazem tanto o estilo ‘tradicional’ da peneira com pedestal quanto outro mais semelhante com o Katxuyana/Tiriyó, diferindo basicamente na técnica do pedestal que não é hexagonal. Comparando os abanos, em linhas gerais, observa-se que o modelo Waiwai, Katxuyana e Tiriyó são equivalentes na morfologia e na técnica estrutural, diferindo bem do estilo Wayana.

Este breve exercício comparativo ilustra o quão complexa é a relação das produções artefatuais quando se quer pensar em fronteiras e interseções. Com base apenas nas duas classes de trançados exemplificadas, não é possível ver um conjunto de trançados característico de qualquer um desses quatro povos. O estilo de abano feito pelos Waiwai não é único deste povo, mas também não é feito por todos os PFK aqui comparados. Há um emaranhado de ligações entre os estilos tecnológicos de peneiras com suportes e abanos que precisam ser melhor compreendidos.

Nem mesmo a existência de peneiras com pedestal pode ser considerada algo comum entre os PFK das Guianas, já que esta estrutura não ocorre nas peneiras de outros povos, como os Ye’kuana (Guss, 1989Guss, D. M. (1989). To weave and sing: art, symbol, and narrative in the South American rainforest. Berkeley, CA: University of California Press.) e Panare (Henley & Mattéi-Muller, 1978Henley, P., & Mattéi-Muller, M.-C. (1978). Panare Basketry: means of commercial exchange and artistic expression. Antropológica, 49, 29-130.). Futuras comparações precisam ser feitas, ampliando as classes de trançados, o que provavelmente tornará o panorama ainda mais complexo. Imersões etnográficas entre os moradores do Mapuera também poderão auxiliar no sentido de entender as relações entre os produtores. O que foi observado até então corrobora as proposições teóricas discutidas, especialmente no tocante às histórias de vida das pessoas e suas redes de aprendizado, destacando-se que no, caso Waiwai do Mapuera, os homens saem para morar em outras aldeias, até mesmo dos Tiriyó e Katxuyana, interagindo, assim, com outras comunidades de prática.

Com o tempo, ocorrem mudanças, como o estilo novo de peneira entre os Waiwai, que não está em nenhuma coleção consultada com datas entre 1910 e 1990. Verificou-se também o desaparecimento de algumas categorias, como os trançados usados para colocar formigas, outrora utilizados na iniciação de homens e mulheres (Yde, 1965Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái. Copenhagen: National Museum of Denmark.), bem como o cesto ‘cobre rosto’, usado na primeira menstruação de uma mulher. Ambas as classes não estão em coleções posteriores à década de 50 e o abandono de sua produção e de seu uso vincula-se às mudanças decorrentes do processo de relação dos Waiwai com a evangelização8 8 Para maiores informações, ver Caixeta de Queiroz (2008). . Há também classes que só aparecem em coleções a partir de 1970, como as ‘esteiras’, uma inovação possivelmente ligada à venda de objetos para a sociedade envolvente.

Isto posto, fica evidente que trançados podem ser fontes valiosas para tratar a relação entre humanos e materialidade na compreensão de fronteiras expressas na cultura material. Para que isso possa ser mais explorado, é necessário que as pessoas dedicadas à Arqueologia no Brasil ao menos se deem conta de sua existência, pois são raros os trabalhos que abordam os trançados através de perspectivas etnoarqueológicas e arqueológicas (F. Silva, 2000Silva, F. A. (2000). As tecnologias e seus significados: um estudo da cerâmica dos Asuriní do Xingu e da cestaria dos Kayapó-Xikrin sob uma perspectiva etnoarqueológica (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil., 2009bSilva, F. A. (2009b). A variabilidade dos trançados dos Asurini do Xingu: uma reflexão etnoarqueológica sobre função, estilo e frequência dos artefatos. Revista de Arqueologia, 22(2), 17-34. doi: 10.24885/sab.v22i2.272
https://doi.org/10.24885/sab.v22i2.272...
; Taveira, 2005Taveira, E. L. M. (2005). Análise do material de fibras e palhas vegetais trabalhadas. In A. V. Vialou (Org.), Pré-história do Mato Grosso: Santa Elina (Vol. 1, pp. 215-239). São Paulo: Edusp.; Costa & Lima, 2016Costa, R. L., & Lima, T. A. (2016). A arte e a técnica de trançar na Pré-história de Pernambuco: a cestaria dos sítios Alcobaça e Furna do Estrago. Clio Arqueológica, 32(2), 102-152. doi: 10.20891/clio.v31i2p102-152
https://doi.org/10.20891/clio.v31i2p102-...
; Costa, 2016Costa, R. L. (2016). Palha e tala: estudo da tecnologia do trançado entre grupos pré-históricos brasileiros (Tese de doutorado). Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.; Dutra & Okumura, 2018Dutra, L., & Okumura, M. (2018). Cestos enterrados no vale do Peruaçu: classificação e utilização dos artefatos têxteis e trançados dos sítios sob abrigo do norte de Minas Gerais. Revista de Arqueologia, 31(1), 131-50. doi: 10.24885/sab.v31i1.538
https://doi.org/10.24885/sab.v31i1.538...
).

Se, por um lado, há limites indiscutíveis quanto à sobrevivência física desses objetos no registro arqueológico">. Há também classes que só aparecem em coleções a partir de 1970, como as ‘esteiras’, uma inovação possivelmente ligada à venda de objetos para a sociedade envolvente.

Isto posto, fica evidente que trançados podem ser fontes valiosas para tratar a relação entre humanos e materialidade na compreensão de fronteiras expressas na cultura material. Para que isso possa ser mais explorado, é necessário que as pessoas dedicadas à Arqueologia no Brasil ao menos se deem conta de sua existência, pois são raros os trabalhos que abordam os trançados através de perspectivas etnoarqueológicas e arqueológicas (F. Silva, 2000Silva, F. A. (2000). As tecnologias e seus significados: um estudo da cerâmica dos Asuriní do Xingu e da cestaria dos Kayapó-Xikrin sob uma perspectiva etnoarqueológica (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil., 2009b; Taveira, 2005Taveira, E. L. M. (2005). Análise do material de fibras e palhas vegetais trabalhadas. In A. V. Vialou (Org.), Pré-história do Mato Grosso: Santa Elina (Vol. 1, pp. 215-239). São Paulo: Edusp.; Costa & Lima, 2016Costa, R. L., & Lima, T. A. (2016). A arte e a técnica de trançar na Pré-história de Pernambuco: a cestaria dos sítios Alcobaça e Furna do Estrago. Clio Arqueológica, 32(2), 102-152. doi: 10.20891/clio.v31i2p102-152
https://doi.org/10.20891/clio.v31i2p102-...
; Costa, 2016Costa, R. L., & Lima, T. A. (2016). A arte e a técnica de trançar na Pré-história de Pernambuco: a cestaria dos sítios Alcobaça e Furna do Estrago. Clio Arqueológica, 32(2), 102-152. doi: 10.20891/clio.v31i2p102-152
https://doi.org/10.20891/clio.v31i2p102-...
; Dutra & Okumura, 2018Dutra, L., & Okumura, M. (2018). Cestos enterrados no vale do Peruaçu: classificação e utilização dos artefatos têxteis e trançados dos sítios sob abrigo do norte de Minas Gerais. Revista de Arqueologia, 31(1), 131-50. doi: 10.24885/sab.v31i1.538
https://doi.org/10.24885/sab.v31i1.538...
).

Se, por um lado, há limites indiscutíveis quanto à sobrevivência física desses objetos no registro arqueológico9 9 Cabe lembrar que, enquanto os itens mais duráveis e abundantes neste registro estão sendo paulatinamente substituídos por itens industriais na vida dos ameríndios, diversos trançados ainda se fazem presentes. , por outra perspectiva, tais objetos são mais duráveis. Se as cerâmicas resistem aos intemperismos, sendo mais valorizadas do que os trançados pela Arqueologia, paradoxalmente, em seu uso cotidiano, as primeiras são tidas como frágeis e manuseadas com cautela, ao passo que trançados não dispensam os mesmos cuidados. Segundo S. Silva (2003)Silva, S. (2003). A vez dos cestos. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia., é justamente essa diferença de manuseio que faz com que se tenha mais consciência da presença da cerâmica, e não dos cestos, que, por isso, acabam sendo invisibilizados.

CONCLUSÕES

Como argumentado por Velthem (2012, p. 63)Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
https://doi.org/10.1590/S1981-8122201200...
, é necessária a redescoberta das coleções etnográficas com novos olhares. No entanto, no âmbito da Arqueologia feita no Brasil, pode-se dizer que é necessária, primeiramente, a descoberta delas (ou ao menos maior divulgação dos poucos trabalhos arqueológicos que investem nesses objetos). O presente trabalho representa um passo nesse sentido, exemplificando como a abordagem tecnológica, para o estudo comparativo de mais de uma categoria artefatual, pode revelar diferentes modos de produção e de se relacionar com a materialidade.

Nesse sentido, no caso dos PFK, cerâmicas e trançados podem colocar em diálogo as materializações realizadas nas esferas feminina e masculina, visto que, geralmente entre esses povos, as cerâmicas são feitas por mulheres e os trançados por homens. Enquanto a comparação inicial entre os trançados Waiwai, Katxuyana, Tiriyó e Wayana aponta para maior fluidez entre seus estilos tecnológicos, as cerâmicas Kari’na (com suas variações regionais), Waiwai e Wayana e Aparai aparentam ter estilos tecnológicos mais restritos a cada povo. Isso poderia indicar que as diferentes comunidades de práticas dos trançados são mais interligadas do que as das cerâmicas, ainda que estudos mais aprofundados sejam necessários.

Outro ponto a ser explorado são as relações de ensino e aprendizagem e de visibilidade de atributos, que podem ser distintas nestes objetos. Nas cerâmicas, os atributos de menor visibilidade podem estar mais conectados a identidades mais profundas e ser mais resistentes a mudanças, como no caso da etapa de manufatura. Nos trançados, como é possível observar nas técnicas de manufatura no produto final, essa relação pode se manifestar de formas diferentes. Conforme Newton (1981)Newton, D. (1981). The individual in ethnographic collections. Annals of the New York academy of sciences, 376(1), 267-287. doi: 10.1111/j.1749-6632.1981.tb28172.x
https://doi.org/10.1111/j.1749-6632.1981...
, o início da confecção de um cesto estaria mais imbricado com o processo de aprendizagem. Isso poderia estar relacionado com a noção de identidade técnica. Assim, abordar esses dois universos tecnológicos é um primeiro passo para lidar com as interseções e os limites da materialidade entre os povos em questão, já que é possível considerar aspectos de sua organização social, fundamentais para a compreensão das escolhas tecnológicas (Lemonnier, 1992Lemonnier, P. (1992). Elements for an Anthropology of Technology (Anthropological Papers, 88). Michigan: Museum of Anthropology.).

Alguns aspectos que não foram levados em conta nas análises apresentadas devem ser destacados. O universo amostral de cerâmica e cestaria aqui apresentado corresponde somente a objetos destinados ao processamento de alimentos. Quando da inclusão e comparação de objetos com outros usos, poderão ser obtidos resultados diferentes. Ademais, o estudo comparativo dos grafismos utilizados por cada povo é também necessário para compreender em que medida seu repertório é compartilhado pelos PFK e em que medida eles são diferentes para cada tipo de suporte. Enquanto trançar e fazer grafismos pode derivar da mesma ação, fazendo com que motivos estejam associados a técnicas de construção, nas cerâmicas os motivos podem ser reproduzidos a partir de diferentes técnicas (como pintura ou incisão) após a manufatura do objeto, separando essas ações.

A Arqueologia possui um olhar privilegiado para compreender a história de longa duração dos povos indígenas e pode contribuir para fortalecer os laços históricos dos povos atuais com os de outrora. Para isso, é fundamental compreender como se dão as relações entre materialidade e identidades sociais, étnicas e linguísticas no presente e no passado recente, para entender melhor como pode ter sido esse quadro no passado. Isso não quer dizer que modelos interpretativos possam ser projetados no passado de forma direta e essencializada, apenas que o estudo de coleções etnográficas pode auxiliar a complexificar os entendimentos das relações entre cultura material e fronteiras sociais. Como exposto, uma das vantagens para tratar essas questões através de objetos etnográficos é que se pode saber o povo que os produziu, como é o caso das cerâmicas e trançados feitos por PFK, aqui apresentados.

Uma aproximação dessas perspectivas com os próprios povos indígenas não é somente necessária, como é um passo fundamental para que esse conhecimento possa ser realmente significativo. Acervos etnográficos não são somente testemunhos tradicionais destes povos, mas atuam na afirmação de sua identidade perante a sociedade nacional e na divulgação e conscientização da diversidade de saberes culturais. Disponibilizar informações sobre os objetos e em que museus se encontram – seja por meio de fotografias, visitas às reservas técnicas e catálogos online – é uma contribuição nesse sentido (Engelstad, 2010Engelstad, B. D. (2010). Curators, collections, and Inuit communities: case studies from the Arctic. In L. Broekhoven, C. Buijs & P. Hovens (Eds.), Sharing knowledge & cultural heritage: first nations of the Americas (pp. 39-52). Leiden: Sidestone Press.; F. Silva & Gordon, 2013Silva, F. A., & Gordon, C. (2013). Anthropology in the museum: reflections on the curatorship of the Xikrin Collection. Vibrant-Virtual Brazilian Anthropology, 10(1). Recuperado de http://www.vibrant.org.br/issues/v10n1/fabiola-a-silva-cesar-gordon-anthropology-in-the-museum/
http://www.vibrant.org.br/issues/v10n1/f...
; Powell, 2016Powell, T. B. (2016). Digital knowledge sharing: forging partnerships between scholars, archives, and indigenous communities. Museum Anthropology Review, 10(2), 66-90. doi: 10.14434/mar.v10i2.20268
https://doi.org/10.14434/mar.v10i2.20268...
; Velthem et al., 2017Velthem, L. H., Kukawka, K., & Joanny, L. (2017). Museus, coleções etnográficas e a busca do diálogo intercultural. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 13(3), 735-748. doi: 10.1590/1981.81222017000300004
https://doi.org/10.1590/1981.81222017000...
). Discutir o conhecimento produzido sobre continuidades e mudanças tecnológicas e, se possível, debater e repensar esse conhecimento junto às comunidades, no âmbito das chamadas ‘arqueologias indígenas’ (F. Silva, 2012Silva, F. A. (2012). O plural e o singular das arqueologias indígenas. Revista de Arqueologia, 25(2), 24-42. doi: 10.24885/sab.v25i2.353
https://doi.org/10.24885/sab.v25i2.353...
; Silliman, 2015Silliman, S. W. (2015). Comparative colonialism and indigenous archaeology: exploring the intersections. In C. N. Cipolla & K. H. Hayes (Eds.), Rethinking colonialism: comparative archaeological approaches (pp. 213-233). Gainesville: University Press of Florida.), é uma forma de dialogar diretamente com esses povos e fazer com que as pesquisas ultrapassem o universo acadêmico.

AGRADECIMENTOS

Aos museus visitados que disponibilizaram seus acervos e documentos, aos pareceristas anônimos pela contribuição no refinamento dos argumentos apresentados, à Fabíola Silva pelas leituras, conselhos e orientação. Meliama gradece o financiamento recebido do Conselho Nacional de Pesquisa - CNPq (Processo n. 142157/2015-5) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES (Processo n. 88881.131614/2016-01). Igor agradece o financiamento recebido da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (Processo n. 2017/13343-4).

  • 1
    Segundo as próprias palavras de B. Ribeiro (1988, p. 14)Ribeiro, B. G. (1988). Dicionário do artesanato indígena. Belo Horizonte: Itatiaia.: “Estudos e glossários dessa natureza representarão uma contribuição inestimável também para a pesquisa arqueológica. Não só os arqueólogos desenvolveram técnicas sofisticadas para a classificação tipológica de seus materiais, . . ., como buscam avidamente informações etnográficas que clarifiquem suas análises”.
  • 2
    Essas perspectivas são utilizadas tanto para objetos ditos tradicionais, ou arqueológicos, quanto para objetos industriais contemporâneos.
  • 3
    Foram consideradas para análise somente as vasilhas cerâmicas, de uso diário ou ritual, mas não outros objetos, como figuras, bancos ou instrumentos musicais.
  • 4
    Por questões de acesso às coleções, os povos na Venezuela não estão incluídos nesta análise.
  • 5
    No que se refere às Américas, existe um provável fragmento de trançado datado diretamente em 19.600 ± 2.400 AP, além de outros trançados encontrados em camadas datadas entre 12.800 ± 870 BP e 11.300 ± 700 AP (Adovasio et al., 2014Adovasio, J. M., Soffer, O., Illingworth, J. S., & Hyland, D. C. (2014). Perishable fiber artifacts and paleoindians: new implications. North American Archaeologist, 35(4), 331-352. doi: 10.2190/NA.35.4.d
    https://doi.org/10.2190/NA.35.4.d...
    , p. 336). Portanto, estão presentes desde o povoamento inicial das Américas.
  • 6
    Peabody Museum of Archaeology and Ethnology at Harvard University; National Museums of World Culture; National Museum of Denmark; Horniman Museum & Gardens; Museu do Índio; e Museu Paraense Emílio Goeldi. Estas instituições estão situadas, respectivamente, nos Estados Unidos da América, na Suécia, na Dinamarca, na Inglaterra e no Brasil.
  • 7
    A terminologia usada a seguir utiliza a proposta elaborada por B. Ribeiro (1985Ribeiro, B. G. (1985). A arte do trançado dos índios do Brasil: um estudo taxonômico. Belém: Museu Parense Emílio Goeldi., 1988)Ribeiro, B. G. (1988). Dicionário do artesanato indígena. Belo Horizonte: Itatiaia..
  • 8
    Para maiores informações, ver Caixeta de Queiroz (2008)Caixeta de Queiroz, R. (2008). Trombetas-Mapuera: território indígena. Brasília: FUNAI..
  • 9
    Cabe lembrar que, enquanto os itens mais duráveis e abundantes neste registro estão sendo paulatinamente substituídos por itens industriais na vida dos ameríndios, diversos trançados ainda se fazem presentes.
  • Gaspar, M. V., & Rodrigues, I. M. M. (2020). Coleções etnográficas e Arqueologia: uma relação pouco explorada. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 15(1), e20190018. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2019-0018

REFERÊNCIAS

  • Abreu, R. (2005). Museus etnográficos e práticas de colecionamento: antropofagia dos sentidos. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, (31), 101-125.
  • Adovasio, J. M. (1977). Basketry technology: a guide to identification and analysis Chicago: Aldine Publishing Company.
  • Adovasio, J. M., & Gunn, J. (1977). Style, basketry and basketmakers. In J. N. Hill & J. Gunn (Eds.), The individual in prehistory: studies of variability in style in prehistoric technologies (pp. 137-153). New York: Academic Press.
  • Adovasio, J. M., Soffer, O., Illingworth, J. S., & Hyland, D. C. (2014). Perishable fiber artifacts and paleoindians: new implications. North American Archaeologist, 35(4), 331-352. doi: 10.2190/NA.35.4.d
    » https://doi.org/10.2190/NA.35.4.d
  • Barreto, C. (2010). As culturas são feitas para dialogar? In A. Borges & C. Barreto (Orgs.), Pavilhão das culturas brasileiras: puras misturas (pp. 208-236). São Paulo: Terceiro Nome.
  • Barreto, C., & Machado, J. S. (2001). Exploring the Amazon, explaining the unknown: views from the past. In C. McEwan, C. Barreto & E. G. Neves (Eds.), Unknown Amazon: studies in visual and material culture (pp. 232-251). London: The British Museum Press.
  • Bueno, L. M. R. (2003). Estilo, forma e função: das flechas Xikrin aos artefatos líticos. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (13), 211-226.
  • Caixeta de Queiroz, R. (2008). Trombetas-Mapuera: território indígena Brasília: FUNAI.
  • Castro, E. (1994). O cesto kaipó dos Krahó: uma abordagem visual (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
  • Clifford, J. (1994). Colecionando arte e cultura. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, (23), 69-89.
  • Colwell-Chanthaphonh, C. (2009). The archaeologist as a world citizen: on the morals of heritage preservation and destruction. In L. Meskell (Ed.), Cosmopolitan Archaeologies (pp. 140-165). Durham: Duke University Press.
  • Corrêa, Â. A. (2014). Pindorama de mboî e îakaré: continuidade e mudança na trajetória das populaões Tupi (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
  • Costa, R. L. (2016). Palha e tala: estudo da tecnologia do trançado entre grupos pré-históricos brasileiros (Tese de doutorado). Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
  • Costa, R. L., & Lima, T. A. (2016). A arte e a técnica de trançar na Pré-história de Pernambuco: a cestaria dos sítios Alcobaça e Furna do Estrago. Clio Arqueológica, 32(2), 102-152. doi: 10.20891/clio.v31i2p102-152
    » https://doi.org/10.20891/clio.v31i2p102-152
  • Coutet, C. (2009). Archéologie du littoral de Guyane Française: une approche ethnoarchéologique des techniques céramiques amérindiennes (Tese de doutorado). Université Paris I Panthéon-Sorbonne, Paris, França.
  • David, N., & Kramer, C. (2001). Ethnoarchaeology in action (Cambridge World Archaeology). Cambridge: Cambridge University Press.
  • De Goeje, C. H. (1906). Bijdrage tot de ethnoghaphie der surinaamsche indianen (Internationales Archiv Für Ethnographie, Suppl.). Leiden: Boekhandel & Drukkerij.
  • Detering, D. (1962). Flechtwerke und flechttechniken der kaschuyana indianer nordost-brasiliens. Baessler-Archiv, (1), 63-104.
  • D’Evreux, Y. (1874). Viagem ao norte do Brasil: entre os anos de 1613 a 1614 Maranhão: Typ. do Frias.
  • Duin, R. S. (2000-2001). A Wayana potter in the tropical rain forest of Surinam/French Guyana. Newsletter Department of Pottery Technology, 18/19, 45-58.
  • Dutra, L., & Okumura, M. (2018). Cestos enterrados no vale do Peruaçu: classificação e utilização dos artefatos têxteis e trançados dos sítios sob abrigo do norte de Minas Gerais. Revista de Arqueologia, 31(1), 131-50. doi: 10.24885/sab.v31i1.538
    » https://doi.org/10.24885/sab.v31i1.538
  • Edgeworth, M. (Ed.). (2006). Ethnographies of Archaeological practices: cultural encounters, material transformations Lanham: Altamira Press.
  • Engelstad, B. D. (2010). Curators, collections, and Inuit communities: case studies from the Arctic. In L. Broekhoven, C. Buijs & P. Hovens (Eds.), Sharing knowledge & cultural heritage: first nations of the Americas (pp. 39-52). Leiden: Sidestone Press.
  • Fabian, J. (2004). On recognizing things: the “ethnic artefact” and the “ethnographic object”. L’Homme, (170), 47-60.
  • Fabian, J. (2010). Colecionando pensamentos: sobre os atos de colecionar. Mana, 16(1), 59-73. doi: 10.1590/S0104-93132010000100003
    » https://doi.org/10.1590/S0104-93132010000100003
  • Frikel, P. (1970). Os Kaxúyana: notas etno-históricas (Publicações avulsas, No. 14). Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi.
  • Frikel, P. (1973). Os Tiriyó: seu sistema adaptativo (Völkerkundliche Abhandlungen, Vol. 5). Hannover: Münstermann Verlag.
  • Gnecco, C., & Rocabado, P. A. (2010). ¿Qué hacer? Elementos para una discusión. In C. Gnecco & P. A. Rocabado (Comps.), Pueblos indígenas y arqueología en América Latina (pp. 23-47). Bogotá: Universidad de Los Andes.
  • Gosselain, O. P. (2000). Materializing identities: an African perspective. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 187-217. doi: 10.1177/1359183511424835
    » https://doi.org/10.1177/1359183511424835
  • Gosselain, O. P. (2018). Pottery chaînes opératoires as historical documents. Oxford Research Encyclopedia of African History Publicação online. doi: 10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
    » https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190277734.013.208
  • Grupioni, L. D. B. (1998). Coleções e expedições vigiadas: os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil São Paulo: HUCITEC.
  • Guss, D. M. (1989). To weave and sing: art, symbol, and narrative in the South American rainforest Berkeley, CA: University of California Press.
  • Hardin, M. A., & Mills, B. J. (2000). The social and historical context of short-term stylistic replacement: a Zuni case study. Journal of Archaeological Method and Theory, 7(3), 139-163. doi: 10.1023/A:1026554403077
    » https://doi.org/10.1023/A:1026554403077
  • Heckenberger, M. J. (2001). Estrutura, história e transformação: a cultura xinguana na longue durée, 1000-2000 d.C. In B. Franchetto & M. J. Heckenberger (Orgs.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura (pp. 21-62). Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
  • Hegmon, M. (1998). Technology, style and social practices: archaeological approaches. In M. T. Stark (Ed.), The Archaeology of social boundaries (pp. 264-279). Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press.
  • Henley, P., & Mattéi-Muller, M.-C. (1978). Panare Basketry: means of commercial exchange and artistic expression. Antropológica, 49, 29-130.
  • Insoll, T. (Ed.). (2007). The archaeology of identities: a reader London: Routledge.
  • James, G. W. (1902). Indian Basketry 2 ed. New York: Dove Publications.
  • Jolie, E. A., & McBrinn, M. E. (2010). Retrieving the perishable past: experimentation in fiber artifact studies. In J. R. Ferguson (Ed.), Designing experimental research in archaeology: examining technology through production and use (pp. 153-193). Boulder, CO: University Press of Colorado.
  • Lathrap, D. W. (1970). O alto Amazonas Lisboa: Verbo.
  • Lechtman, H. (1977). Style in technology - some early thoughts. In H. Lechtman & R. S. Merrill (Eds.), Material culture: styles, organization, and dynamics of technology (pp. 3-20). St Paul: West Publishing.
  • Lemonnier, P. (1992). Elements for an Anthropology of Technology (Anthropological Papers, 88). Michigan: Museum of Anthropology.
  • Leroi-Gourhan, A. (1965). O gesto e a palavra: II - memória e ritmos Lisboa: Edições 70.
  • Leroi-Gourhan, A. (1971). Evolução e técnicas: I - o homem e a matéria Lisboa: Edições 70.
  • Lightfoot, K. G. (1995). Culture contact studies: redefining the relationship between prehistoric and historical archaeology. American Antiquity, 60(2), 199-217. doi: 10.2307/282137
    » https://doi.org/10.2307/282137
  • Linke, I. L. V., & Velthem, L. H. (2017). O livro da argila: Ëliwë Pampila: Orino Papeh São Paulo: IEPÉ.
  • Meggers, B. J., & Evans, C. (1970). Como interpretar a linguagem da cerâmica: manual para arqueólogos Washington, D.C.: Smithsonian Institution.
  • Melo, J. H. T. L. (2010). Kàjré: a vida social de uma machadinha krahô (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.
  • Micou, C. B. P., Campeny, S. M. L., & Costa, R. L. (2014). Basketry of South America. In H. Selin (Ed.), Encyclopaedia of the History of Science, Technology, and Medicine in Non-Western Cultures (2 ed., Vol. 1, pp. 1-22). Netherlands: Springer.
  • Museum für Völkerkunde Dresden. (2019). Catálogo online Recuperado de https://skd-online-collection.skd.museum/Details/Index/1655271
    » https://skd-online-collection.skd.museum/Details/Index/1655271
  • Neves, E. G. (2011). Archaeological cultures and past identities in the Pre-colonial Central Amazon. In A. Hornborg & J. Hill (Eds.), Ethnicity in ancient amazonia: reconstructing past identities from archaeology, linguistics, and ethnohistory (pp. 31-56). Boulder, CO: University Press of Colorado.
  • Nationalmuseet 2. (1959). Ekspedition til British Guyana og Brasilien 1958-1959 Catálogo do acervo.
  • Newton, D. (1981). The individual in ethnographic collections. Annals of the New York academy of sciences, 376(1), 267-287. doi: 10.1111/j.1749-6632.1981.tb28172.x
    » https://doi.org/10.1111/j.1749-6632.1981.tb28172.x
  • Noelli, F. S., Brochado, J. P., & Corrêa, Â. A. (2018). A linguagem da cerâmica Guarani: sobre a persistência das práticas e materialidade (parte 1). Revista Brasileira de Linguística Antropológica, 10(2), 167-200. doi: 10.26512/rbla.v10i2.20935
    » https://doi.org/10.26512/rbla.v10i2.20935
  • Noelli, F. S., & Ferreira, L. M. (2007). A persistência da teoria da degeneração indígena e do colonialismo nos fundamentos da arqueologia brasileira. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 14(4), 1239-1264. doi: 10.1590/S0104-59702007000400008
    » https://doi.org/10.1590/S0104-59702007000400008
  • O’Neale, L. (1986). Cestaria. In B. G. Ribeiro (Ed. & Coord.), Suma etnológica brasileira: tecnologia indígena (Vol. 2, pp. 323-349). Petrópolis: Vozes.
  • Pearce, S. M. (1994). Thinking about things. In S. M. Pearce (Ed.), Interpreting objects and collections (pp. 125-132). London: Routledge.
  • Powell, T. B. (2016). Digital knowledge sharing: forging partnerships between scholars, archives, and indigenous communities. Museum Anthropology Review, 10(2), 66-90. doi: 10.14434/mar.v10i2.20268
    » https://doi.org/10.14434/mar.v10i2.20268
  • Pryor, J., & Carr, C. (1995). Basketry of Northern California Indians: interpreting style hierarchies. In C. Carr & J. E. Neitzel (Eds.), Style, society, and person: Archaeological and Ethnological perspectives (pp. 259-296). New York: Plenum Press.
  • Reichel-Dolmatoff, G. (1981). Basketry as metaphor: arts and crafts of the Desana Indians of the Nortwest Amazon (Occasional Papers of the Museum of Cultural History, No. 5). Los Angeles, CA: Museum of Cultural History.
  • Ribeiro, B. G. (1980). A civilização da palha: a arte do trançado dos índios do Brasil (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
  • Ribeiro, B. G. (1985). A arte do trançado dos índios do Brasil: um estudo taxonômico Belém: Museu Parense Emílio Goeldi.
  • Ribeiro, B. G. (1988). Dicionário do artesanato indígena Belo Horizonte: Itatiaia.
  • Ribeiro, B. G. (1989). Arte indígena, linguagem visual (Coleção Reconquista do Brasil, Série especial, No. 3, Vol. 9). Belo Horizonte: Itatiaia.
  • Ribeiro, B. G., & Velthem, L. H. (1998). Coleções etnográficas: documentos materiais para a história indígena e a etnologia. In M. C. Cunha (Ed.), História dos índios no Brasil (2 ed., pp. 103-112). São Paulo: Companhia das Letras.
  • Ribeiro, L., & Jácome, C. (2014). Tupi ou não Tupi? Predação material, ação coletiva e colonialismo no Espírito Santo, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 9(2), 465-486. doi: 10.1590/1981-81222014000200012
    » https://doi.org/10.1590/1981-81222014000200012
  • Rice, P. M. (1999). On the origins of pottery. Journal of Archaeological Method and Theory, 6(1), 1-54.
  • Roth, W. E. (1924). An introductory study of the arts, craft, and customs of the Guiana indians Washington: United States Government Print Office.
  • Roux, V. (2016). Ceramic manufacture: the chaîne opératoire approach. In A. Hunt (Ed.), The Oxford Handbook of Archaeological Ceramic Analysis (pp. 101-113). doi: 10.1093/oxfordhb/9780199681532.013.8
    » https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780199681532.013.8
  • Roux, V., & Courty, M.-A. (2016). Des céramiques et des hommes Paris: Presses Universitaires de Paris Ouest.
  • Rubertone, P. E. (2000). The historical archaeology of native americans. Annual Review of Anthropology, 29, 425-446. doi: 10.1146/annurev.anthro.29.1.425
    » https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.29.1.425
  • Schiffer, M. B., & Skibo, J. M. (1997). The explanation of artifact variability. American Antiquity, 62(1), 27-50. doi: 10.2307/282378
    » https://doi.org/10.2307/282378
  • Schwarcz, L. M. (2008). O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil São Paulo: Companhia das Letras.
  • Shanks, M. (2008). Postprocessual archaeology and after. In R. A. Bentley, H. D. G. Maschner & C. Chippindale (Eds.), Handbook of Archaeological theories (pp. 133-144). Lanham: AltaMira Press.
  • Shanks, M., & Hodder, I. (1995). Processual, postprocessual and interpretative archaeologies. In I. Hoder et al. (Eds.), Interpreting Archaeology: finding meaning in the past (pp. 3-29). Londres: Routledge.
  • Silliman, S. W. (2015). Comparative colonialism and indigenous archaeology: exploring the intersections. In C. N. Cipolla & K. H. Hayes (Eds.), Rethinking colonialism: comparative archaeological approaches (pp. 213-233). Gainesville: University Press of Florida.
  • Silva, S. (2003). A vez dos cestos Lisboa: Museu Nacional de Etnologia.
  • Silva, F. A. (2000). As tecnologias e seus significados: um estudo da cerâmica dos Asuriní do Xingu e da cestaria dos Kayapó-Xikrin sob uma perspectiva etnoarqueológica (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
  • Silva, F. A. (2009a). A etnoarqueologia na Amazônia: contribuições e perspectivas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 4(1), 27-37. doi: 10.1590/S1981-81222009000100004
    » https://doi.org/10.1590/S1981-81222009000100004
  • Silva, F. A. (2009b). A variabilidade dos trançados dos Asurini do Xingu: uma reflexão etnoarqueológica sobre função, estilo e frequência dos artefatos. Revista de Arqueologia, 22(2), 17-34. doi: 10.24885/sab.v22i2.272
    » https://doi.org/10.24885/sab.v22i2.272
  • Silva, F. A. (2012). O plural e o singular das arqueologias indígenas. Revista de Arqueologia, 25(2), 24-42. doi: 10.24885/sab.v25i2.353
    » https://doi.org/10.24885/sab.v25i2.353
  • Silva, F. A. (2013). Tecnologias em transformação: inovação e (re)produção dos objetos entre os Asurini do Xingu. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 8(3), 729-744. doi: 10.1590/S1981-81222013000300014
    » https://doi.org/10.1590/S1981-81222013000300014
  • Silva, F. A., & Gordon, C. (2013). Anthropology in the museum: reflections on the curatorship of the Xikrin Collection. Vibrant-Virtual Brazilian Anthropology, 10(1). Recuperado de http://www.vibrant.org.br/issues/v10n1/fabiola-a-silva-cesar-gordon-anthropology-in-the-museum/
    » http://www.vibrant.org.br/issues/v10n1/fabiola-a-silva-cesar-gordon-anthropology-in-the-museum/
  • Silva, F. A., & Noelli, F. S. (2017). Arqueologia e linguística: construindo as trajetórias histórico-culturais dos povos Tupí. Revista Crítica e Sociedade, 7(1), 55-87. doi: 10.14393/RCS-v7n1-2017-39256
    » https://doi.org/10.14393/RCS-v7n1-2017-39256
  • Silvestre, R. E. J. (2000). The Ethnoarchaeology of Kalinga basketry: when men weave baskets and women make pots (Tese de doutorado). University of Arizona, Tucson, EUA.
  • Stark, M. T. (1998). Technical choices and social boundaries in material culture patterning: an introduction. In M. T. Stark (Ed.), The Archaeology of social boundaries (pp. 1-11). Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press.
  • Stone, E. A. (2011). The role of ethnographic museum collections in understanding bone tool use. In J. Baron & B. Kufel-Diakowska (Eds.), Written in bones: studies on technological and social contexts of past faunal skeletal remains (pp. 25-37). Wroc?aw: Uniwersytet Wroc?awski.
  • Taveira, E. L. M. (1982). Etnografia da cesta Karajá Goiânia: UFG.
  • Taveira, E. L. M. (2005). Análise do material de fibras e palhas vegetais trabalhadas. In A. V. Vialou (Org.), Pré-história do Mato Grosso: Santa Elina (Vol. 1, pp. 215-239). São Paulo: Edusp.
  • Torrence, R., & Clarke, A. (2013). Creative colonialism: locating indigenous strategies in ethnographic museum collections. In R. Harrison, S. Byrne & A. Clarke (Eds.), Reassembling the collection: ethnographic museums and indigenous agency (pp. 171-198). Santa Fé: School for Advanced Research Press.
  • Velthem, L. H. (1998). A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados Wayana Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi.
  • Velthem, L. H. (2003). O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana Lisboa: Museu Nacional de Etnologia.
  • Velthem, L. H. (2009). Mulheres de cera, argila e arumã: princípios criativos e fabricação material entre os Wayana. Mana, 15(1), 213-236. doi: 10.1590/S0104-93132009000100008
    » https://doi.org/10.1590/S0104-93132009000100008
  • Velthem, L. H. (2012). O objeto etnográfico é irredutível? Pistas sobre novos sentidos e análises. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 51-66. doi: 10.1590/S1981-81222012000100005
    » https://doi.org/10.1590/S1981-81222012000100005
  • Velthem, L. H., Kukawka, K., & Joanny, L. (2017). Museus, coleções etnográficas e a busca do diálogo intercultural. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 13(3), 735-748. doi: 10.1590/1981.81222017000300004
    » https://doi.org/10.1590/1981.81222017000300004
  • Viveiros de Castro, E. (2002). Imagens da natureza e sociedade. In E. Viveiros de Castro. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia (pp. 319-344). São Paulo: CosacNaify.
  • Webster, G. S. (2008). Culture history: a culture-historical approach. In R. A. Bentley, H. D. G. Maschner & C. Chippindale (Eds.), Handbook of Archaeological theories (pp. 11-27). Lanham: AltaMira Press.
  • Wendrich, W. (2012). The world according to basketry: an ethno-archaeological interpretation of basketry production in Egypt Los Angeles: Cotsen Institute Press.
  • Wüst, I. (1999). Etnicidade e tradições ceramistas: algumas reflexões a partir das antigas aldeias Bororo do Mato Grosso [Suppl.]. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (3), 303-317. doi: 10.11606/issn.2594-5939.revmaesupl.1999.113475
    » https://doi.org/10.11606/issn.2594-5939.revmaesupl.1999.113475
  • Yde, J. (1965). Material culture of the Waiwái Copenhagen: National Museum of Denmark.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2019
  • Aceito
    08 Ago 2019
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação, Av. Perimetral. 1901 - Terra Firme, 66077-830 - Belém - PA, Tel.: (55 91) 3075-6186 - Belém - PA - Brazil
E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br