Acessibilidade / Reportar erro

Do ponto de vista das moças: a circulação de afetos na Festa da Moça Nova dos Ticuna

From the girls’ point of view: the circulation of affections in the Ticuna Festa da Moça Nova

Resumo

Este artigo tem como foco a relação das moças que passam pela Festa da Moça Nova, o ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna, com os chamados ‘bichos’ (ngo’o). Em especial, é descrito e analisado o que sentem as moças em relação a alguns ‘bichos’ que aparecem na Festa, na figura de mascarados. Alguns afetos ou emoções destacam-se na análise, como ‘medo’ (mu’ũ), ‘alegria’ ou ‘diversão’ (tchitãẽ, taẽ’ũ), ‘angústia’ ou ‘ansiedade’ (ĩãtchiãẽ), ‘desamparo’ (nhemagü’ü˜), entre outros. Por fim, há um exame do que acontece no ritual como uma espécie de ‘trauma’ que gera as transformações desejadas nos participantes da Festa.

Palavras-chave
Ticuna; Ritual; Afetos; Máscaras

Abstract

This article focuses on the relationship of the girls who participate in the Festa da Moça Nova, the Ticuna female initiation ritual, with “beasts” (bichos in Portuguese, ngo’o in Ticuna). Specifically, we describe and analyze what the girls feel about some of the beasts that appear in this ritual as masked figures. Some affections or emotions stand out in the analysis, such as “fear” (mu’ũ), “joy” or “amusement” (tchitãẽ, taẽ’ũ), “anguish” or “anxiety” (ĩãtchiãẽ), and “helplessness” (nhemagü’ü~). Finally, we examine what happens in the ritual as a kind of “trauma” that generates the desired transformations in the participants.

Keywords
Ticuna; Ritual; Affections; Masks

INTRODUÇÃO

A chamada Festa da Moça Nova, dos índios Ticuna, é um ritual onde circulam diversos afetos e emoções, a depender do momento da Festa1 1 Uso a palavra ‘Festa’ com letra maiúscula para fazer referência a este ritual de iniciação feminina, a Festa da Moça Nova. . Em um de seus pontos altos, pode-se ver as moças segurando nas costas dos mascarados e ‘dançando’ com eles. Em uma dança que mais se parece com uma luta, as neófitas devem evitar ser acertadas pelo pênis de madeira do mascarado To’ü, o macaco caiarara (Cebus albifrons). Este mascarado é um dos muitos tipos de ‘bicho’ (ngo’o) que aparecem na Festa, os seres mais perigosos e temidos do cosmos. Os To’ü atualmente são a grande maioria dos mascarados nas Festas de Moça Nova. Sua presença é tão marcante nos rituais que o conjunto dos mascarados é referido muitas vezes como to’ügü, plural de To’ü, ou to’üzada, de maneira aportuguesada2 2 A diversidade de máscaras ticuna é bastante grande. Algumas das mais citadas na literatura são: ‘pai’ do vento (Õma), ‘mãe’ da mata (Mawü), ‘cobra grande’ (Yewae), ‘onça’ (Torama), ‘boto celeste’ (Tchoreruma), ‘aranha’ (pawü), os seres ctônicos E˜’ẽ, Nutchi’i e Popü, além de diversos seres que podem ser sonhados pelos xamãs. Algumas dessas máscaras podem ser encontradas nas seguintes referências: Nimuendajú (1952), Oliveira Filho (2000), Faulhaber (2007), Goulard (2009, 2011), Schultz (1962), Matarezio Filho (2015a, 2019). Muitas máscaras ticuna podem ser vistas e pesquisadas em museus da Europa e do Brasil, a exemplo do Museu Magüta (Amazonas), Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE/USP, em São Paulo), Museu Paraense Emílio Goeldi (Pará), Weltkulturen Museum (Frankfurt, Alemanha), Museum für Völkerdunde (Berlim, Alemanha), Museu da Ciência da Universidade de Coimbra (Portugal) e Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa (Portugal). .

A frase de Lévi-Strauss em epígrafe é parte de uma pequena análise do mito ticuna sobre “A origem das máscaras de casca de árvore” (Nimuendajú, 1952Nimuendajú, C. (1952). The Tukuna. University of California Publications in American Archeology and Ethnology, 45, 1-209., pp. 80-81; Lévi-Strauss, 2004aLévi-Strauss, C. (2004a). Do mel às cinzas (Coleção Mitológicas, Vol. 2). São Paulo: Cosac & Naify., pp. 365-366). Ao final deste mito, um grupo de Ticuna realiza um ataque de vingança à montanha onde moram alguns ‘demônios’ (ngo’o)3 3 Nimuendajú (1952) traduz a palavra ngo’o como “demônio”. Mantenho a tradução mais corrente que encontrei em campo, ‘bicho’. Todas as traduções de textos em língua estrangeira na bibliografia são minhas. . Após exterminar os ‘demônios’, “os Tukuna nela penetraram e notaram cuidadosamente o aspecto característico das diversas espécies de demônios, que as roupas de casca reproduzem hoje em dia” (Lévi-Strauss, 2004aLévi-Strauss, C. (2004a). Do mel às cinzas (Coleção Mitológicas, Vol. 2). São Paulo: Cosac & Naify., p. 366). Este é um dos relatos míticos que contam a origem das máscaras usadas nos rituais ticuna. O que gostaria de destacar do comentário de Lévi-Strauss é o fato de as máscaras representarem um perigo real. Nas palavras do referido autor, trata-se de “um ritual que, se for levado a sério, expõe os espectadores (e os próprios oficiantes) a um perigo certo” (Lévi-Strauss, 2004aLévi-Strauss, C. (2004a). Do mel às cinzas (Coleção Mitológicas, Vol. 2). São Paulo: Cosac & Naify., p. 367).

As moças atraem ‘bichos’ (ngo’o) e ‘encantados’ (ü’üne) com o cheiro da menstruação4 4 Há várias formas, em língua ticuna, de se referir à menstruação. Pacü é uma palavra que designa tanto a menstruação quanto a ‘moça nova’. Poderia ser traduzida literalmente em espanhol como ‘la olorosa’. Nori pacü seria ‘primeira menstruação’ ou menarca. Ngẽa’arü chi’ewe seria literalmente, em espanhol, ‘moléstia de la hembra’ e ngẽrü tauemacü, ‘lua dela’. O termo mais corrente para se referir à moça, e também consagrado na literatura, é worecü, ‘moça nova’ ou ‘menstruante’. Realizei essas análises destes termos junto com a linguista, Profa. Dra. Maria Emília Montes Rodríguez (Universidad Nacional de Colombia - UNAL). Valenzuela (2010, p. 141, nota, 160), com o auxílio do linguista ticuna A. Santos (comunicação pessoal, 2010), propõe a seguinte análise desse termo: “Wore: coito, kü: tercera persona, mujer madura, que ya puede coitar, y por eso hay que preparar el cuerpo para crear seres, el cuerpo del mundo se prepara para que pueda fecundarse y para que sea fértil”. . Essa atração não é rechaçada pelos Ticuna. Ao contrário, a Festa da Moça Nova é uma maneira de fazer com que essa atração se torne benéfica para a comunidade. Mas há diferenças na atração desses dois tipos de seres distintos, ‘bichos’ e ‘encantados’. A proximidade desses últimos é algo desejado pelas pessoas. Já a atração dos ‘bichos’ deve acontecer de maneira controlada pelo ritual. Caso contrário, pode ocorrer o rapto e a morte da moça.

Este artigo foi escrito com base principalmente em dados de campo de primeira mão. Mantenho contato direto com algumas comunidades ticuna do alto rio Solimões desde 20125 5 Os Ticuna são um povo falante de uma língua de cinco tons, da família Yuri-Ticuna (Carvalho, 2009; Goulard & Rodriguez Montes, 2013). Totalizam mais de 70 mil indivíduos, distribuídos na tríplice fronteira entre o Brasil, a Colômbia e o Peru. No Brasil, é o grupo indígena mais populoso, contando com mais de 53 mil pessoas, de acordo com dados do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI) e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), de 2014. . Desde então, realizei cerca de um ano de trabalho de campo intermitente. Etnografei a Festa da Moça Nova em diversas comunidades ticuna no Brasil. Em Nossa Senhora de Nazaré, no igarapé Camatiã, município de São Paulo de Olivença (Amazonas), foi onde permaneci mais tempo. Neste mesmo município, também participei de festas em Santa Clara, Nova Esperança e Vendaval. Estas comunidades, que não são as únicas do lado brasileiro a realizarem a Festa, formam uma espécie de rede de troca de rituais. Tenho notícias de que este ritual também acontece em Belém do Solimões e em algumas comunidades próximas. A etnografia de Costa (2015)Costa, M. A. M. (2015). “Nós, Ticuna, temos que cuidar da nossa cultura”: um estudo sobre o ritual de iniciação feminina entre os Ticuna de Umariaçú I, Tabatinga, Alto Solimões (AM) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Amazonas, Manaus, AM, Brasil. registra a Festa ainda em Umariaçu I, município de Tabatinga6 6 Para referências sobre a Festa entre os Ticuna do Peru, ver Belaunde et al. (2016); para os Ticuna da Colômbia, ver Valenzuela (2010). Goulard (2009, 2002, 2010) apresenta dados sobre a Festa nos dois países também. .

Trata-se de um ritual bastante complexo, em geral, com três dias de duração7 7 A etnografia detalhada das Festas que pesquisei pode ser conferida em Matarezio Filho (2019). , começa na sexta-feira e termina no domingo. Após a menarca, a moça é colocada em reclusão e se iniciam os preparativos para a realização da Festa. O período de reclusão pode durar de alguns dias a vários meses (Matarezio Filho, 2019Matarezio Filho, E. T. (2019). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo: Editora Humanitas., pp. 328-334). Na maior parte do tempo, as moças ficam reclusas dentro de suas casas. Na sexta-feira, o quarto de reclusão (turi) na casa de Festa, feito de buriti, é construído, e as moças permanecem lá até o final do ritual, que marca a sua saída da reclusão. Na maioria dos casos que presenciei, mais de uma moça é iniciada em uma Festa, além das crianças, de ambos os sexos, que são pintadas de urucum, adornadas com plumas e têm os cabelos cortados.

A música e as primeiras danças começam na sexta-feira, mas os convidados, que vêm de outras comunidades, chegam principalmente no sábado. Estes são recebidos pelos ‘mestres de cerimônia’ ou ‘copeiros’ (üaü̃cü)8 8 Os tios paternos (FB e FZ), que pertencem ao mesmo clã da moça, e seus respectivos cônjuges, são frequentemente incumbidos de serem os copeiros da Festa (Gruber, 1999, p. 11, nota 10). , em geral, um casal, e pelos ‘donos’ da Festa, os pais das moças reclusas. Os convidados são os responsáveis por trazerem as máscaras e os adornos de buriti e de tucum; em contrapartida, receberão bebida fermentada e carne moqueada. Coordenadas pelos ‘mestres de cerimônia’, seguem-se diversas sequências de danças; fabricação de adornos das moças e instrumentos musicais; intervenções nos corpos das moças, como: aconselhamento pelos cantores, benzimento pelo xamã, danças com os mascarados, pintura de jenipapo e urucum, dança de saída do quarto de reclusão, arrancamento dos cabelos e banho no rio. Assim termina o ritual e, exaustas, elas só querem descansar em suas casas.

OS MASCARADOS: MEDO E DIVERTIMENTO

Afetos, emoções e sentimentos não são sinônimos. Os afetos são parte da experiência sensível (Surrallés, 2005Surrallés, A. (2005). Afectividad y epistemología de las Ciencias Humanas. [Número especial]. AIBR: Revista de Antropología Iberoamericana, 1-16.), por isso, muitas vezes, são inexprimíveis em palavras. Ao se inscreverem em um corpo e serem nomeadas por termos precisos de uma língua, podem ser considerados emoções (Surrallés, 2005Surrallés, A. (2005). Afectividad y epistemología de las Ciencias Humanas. [Número especial]. AIBR: Revista de Antropología Iberoamericana, 1-16.). Na acepção que uso aqui, afeto seria mais amplo e poderia englobar as emoções e os sentimentos. As referências aos afetos são muitas atualmente na etnologia sul-ameríndia. Têm origens filosóficas que remontam a Spinoza (2013)Spinoza, B. (2013). Ética. Belo Horizonte: Autêntica. 9 9 Para uma retomada da tradição spinozista nas análises dos afetos dos Guarani, ver Macedo (2017, p. 535, nota 9). , são desenvolvidas principalmente por Deleuze e Guattari (1997)Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). 1730: devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível. In G. Deleuze, & F. Guattari, Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Coleção TRANS, Vol. 4, pp. 11-113). São Paulo: Editora 34. e bem aclimatadas para o caso ameríndio por Viveiros de Castro (2002aViveiros de Castro, E. (2002a). Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In E. Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia (pp. 240-277). São Paulo: Cosac & Naify., 2015)Viveiros de Castro, E. (2015). Metafísicas Canibais. São Paulo: Cosac & Naify., especialmente em sua definição do corpo ameríndio como “feixe de afecções e capacidades” (Viveiros de Castro, 2002aViveiros de Castro, E. (2002a). Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In E. Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia (pp. 240-277). São Paulo: Cosac & Naify., p. 380). Para o presente artigo, é importante destacar que “afetos” são uma potência contagiosa (Deleuze & Guattari, 1997Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). 1730: devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível. In G. Deleuze, & F. Guattari, Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Coleção TRANS, Vol. 4, pp. 11-113). São Paulo: Editora 34., p. 21) e circulam (Safatle, 2015Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac & Naify.). Assim, o ritual em foco é um momento privilegiado para se compreender a dinâmica de circulação dos afetos entre os Ticuna.

A Festa da Moça Nova é pontuada por momentos mais tranquilos e mais agitados. Alguns destes momentos são ansiosamente esperados, como o arrancamento dos cabelos das moças. Nos momentos finais do ritual, quando as moças já estão pintadas, adornadas e sem cabelos, uma nova leva de mascarados entra em cena para dançar com elas. Antes desta performance, muitos mascarados já chegaram à casa de Festas para dançar e receber sua parte em carne moqueada e caldo de pajauaru (bebida fermentada). Alguns deles tentam arrombar as paredes do quarto de reclusão (Figura 1), tentando atacar as moças, pulando como macacos. Estes ataques são coibidos pelos parentes mais próximos das moças, especialmente por suas mães e tias.

Figura 1
Ambiente da Festa com quarto de reclusão (turi) ao fundo, na comunidade de Vendaval.

Perguntei a Lúcia (comunicação pessoal, abril, 2017)10 10 Lúcia, filha de Francisco e Mariazinha, nasceu na comunidade de N. S. de Nazaré, igarapé Camatiã, município de São Paulo de Olivença, no Amazonas. Atualmente (2019), ela está com 18 anos, mora e estuda na cidade. Sua família é de festeiros bastante tradicionais e conhecedores do ritual. o que ela sentiu quando viu os mascarados To’ü de sua Festa. “Eu pensava que eles iam me machucar. Pensava, eu sentia uma sensação estranha”, foi uma primeira resposta. Em seguida, na mesma conversa, Lúcia deixou claro que era só um pensamento que a sua mãe tratou de dissuadir. “O que você pensava que eles iam fazer?”, perguntei a ela. “Me machucar ou me derrubar. Depois a minha mãe me explicou. . . . Ela falou que eles não iam me machucar”. Sua resposta marca uma certa apreensão. O ímpeto dos mascarados dá a impressão de que as moças serão agredidas, há uma ameaça real11 11 “A iniciação não é somente um ‘como se’. Não é só teatro para assustar as crianças e inquietar as mães! A violência é muito real, e a dor sofrida” (Siran, 2002, p. 280). . Se as moças adotarem uma posição passiva, certamente os mascarados farão uma grande zombaria delas. A apreensão diminui à medida em que a ameaça dos mascarados é rebatida com a postura ativa das moças em não se tornarem vítimas deles.

À medida que as moças começam a dominar a situação – ou, ao menos, equilibrar a relação com os mascarados, dançando de um modo que consigam se proteger –, a sensação de medo (mu’ũ) começa a se misturar com a de felicidade, alegria e diversão (tchitãẽ). “Você ficou feliz?”, questionei Lúcia (comunicação pessoal, abril, 2017) com relação à sua dança com o mascarado. “É feliz, foi diversão para mim, tipo uma brincadeira”. O perigo é demonstrar esta ‘diversão’. As moças são interditadas de sorrir. A avó paterna de Lúcia já havia avisado a ela que não poderia sorrir de modo algum. “Porque dá vontade de rir, mas só que eu não ri. Aqueles que estão assistindo, eles estão rindo. Para eles é divertido, todo mundo rindo”. Há uma contraposição, portanto, entre os festeiros que riem e as moças que devem permanecer sérias.

Outra instrução dada pela avó foi sobre a dança com os mascarados. “Ela falava assim, ‘não é para esse lado, é para cá’. . . . Ela me ensinou antes, não tem que soltar, tem que segurar”. A dança se parece também com uma luta, já que a moças devem evitar ser acertadas pelo pênis do mascarado (Figuras 2 e 3). Devem segurar firme na parte de trás da máscara e não soltar, evitando um contato frontal. “Se ele vai para cá, a gente corre para outro lado, mas só que a gente não solta, segura”. Lúcia me relatou, inclusive, que sua avó dançou com ela, como se fosse um mascarado, para que ela se preparasse para a Festa.

Figura 2
A e B) Moça dançando com mascarado na comunidade de Vendaval.
Figura 3
Mascarados To’ü na Festa de Moça Nova, na comunidade de Nova Esperança.

Almira (comunicação pessoal, abril, 2017)12 12 Almira é da comunidade de Santa Clara, às margens do Solimões, município de São Paulo de Olivença, Amazonas. É mãe de Marciley e avó de Ociene e Ocilda, filhas de Marquisete, das quais falarei adiante. Todas vivem atualmente mais na cidade do que na comunidade, em função da vida escolar. disse que aconselhou suas netas sobre a maneira de dançar com os mascarados. Avisou que elas tinham que observar as outras meninas dançando e aguentar, segurar firme e, principalmente, evitar que o pênis de madeira dele acertasse a moça:

[Aprendem] com as outras, olhando primeiro as que já fizeram. Tem que olhar como que é, se já estão falando. A gente fala, "aguenta, tem que aguentar. Puxa ele para cá, puxa ele para cá", assim vai. Ele quer virar para cutucar na menina o pênis dele. Mas tem que aguentar, para poder não acertar na gente, assim que é.

Ociene (comunicação pessoal, abril, 2017), neta de Almira, dançou com os mascarados e me contou que ficou com ‘medo’ (mu’ũ). “Medo de cair e ele pegar assim [risos]. . . . eu fiquei com medo”, disse ela. Apesar dos conselhos que ouviu de suas três tias maternas e de sua irmã, na hora da dança, Ociene me disse que pensou, “nossa, o que que eu vou fazer? [risos]”. Sua tia Marcirley (comunicação pessoal, abril, 2017) [MZ] lhe aconselhara, “‘ele não pode acertar você e você tem que segurar ele com força para ele não acertar você’, ela dizia assim”, me contou Ociene. A moça foi aconselhada antes da Festa e dentro do quarto de reclusão sobre a maneira correta de agir diante do mascarado. Tia Marcirley também ensinou a ela a estratégia de não aceitar muito caldo de pajauaru para beber, assim não ficaria bêbada e conseguiria dançar bem com os mascarados. Há relato de moças que caíram, porque estavam bêbadas e foram alvo de risos.

A reação das crianças mostra bem a ambivalência dos sentimentos com relação aos mascarados To’ü na Festa. Ao mesmo tempo, temidos e extremamente engraçados. As crianças riem, mas correm apavoradas, assim como muitas mulheres. As mais velhas muitas vezes os enfrentam, seguram em seus pênis, em suas roupas, tentam proteger as mais jovens, especialmente as moças que estão sendo iniciadas.

Ocilda, irmã de Ociene, fez questão de me dizer que havia muitos mascarados em sua Festa. Isso é motivo de orgulho para as moças e seus pais, os donos do ritual. Indica que havia muitos convidados e muita fartura de carne moqueada e bebida. Um dono de Festa que tem muito moqueado e bebida fermentada irá convidar um grande número de pessoas responsáveis por trazer máscaras. A notícia de que a Festa tem abundância de caça e peixes moqueados atrai muita gente, não só quem foi convidado. “Tem que brincar com o mascarado. Com o macaco [mascarado To’ü], tem que brincar com ele, pulando com ele”, me contou Ocilda (comunicação pessoal, abril, 2017). Por mais que tenha medo ou receio, há um momento da Festa em que ela terá que dançar com o mascarado, terá que ‘brincar’ (ĩavẽ) com ele. E a dança acontece em um momento de grande exaustão física e mental. As moças já ouviram duros conselhos, enquanto seus cabelos eram arrancados. Passaram a noite em claro e de pé dentro do pequeno espaço do quarto de reclusão. “Ela quase desmaiou [yoãtchi] [risos]”, comentou Almira (comunicação pessoal, abril, 2017), avó de Ocilda, “ela estava cansada, não tomou café, estava com fome. Estava fraca, com falta de água, aí nós demos água para ela e ela tornou de novo [risos]”.

Ocilda estava fraca e ficava se defendendo atrás das outras moças que estavam na Festa. Outras mulheres ajudaram ela a se defender, pois, como ela estava debilitada, sua tia (MZ), Marineide, e outras meninas ajudaram. “Para não chegar perto dela. [Ela] falava [para o mascarado], ‘vai mais para lá, brinca para lá’, ela falou. ‘Tem outras meninas aí’, ela falava assim. Eles querem ela, querem mais moças [risos]”, assim me contou Almira. Mesmo estando fraca, Ocilda (comunicação pessoal, abril, 2017) se sentiu alegre por ‘brincar’ com os mascarados. Assim ela descreve o momento em que dançou com eles:

Alegre, brincando com ele. Depois não tem mais brincadeira não. Não tem que brincar com ele, só na hora. Porque quando a gente não brinca, puxando ele para cá, ele vem com a ‘coisa’ dele [risos] cutucar a gente. Porque para empurrar ele para cá, tem que ter força. Força para se defender. Tem que ter força, porque eles são fortes e homens, não é? [risos]. Esses homens aí, tem que ter força para se defender, para enfrentar ele. Na outra Festa, da minha irmã, eu brinquei com ele. Eu brincava com ele, eu puxava para cá, para cá. Ele nem podia cutucar [risos]. Eu fiquei aí com dois logo. Aqui, outro, eu puxando ele para cá, porque tem que ter força. Eu fiquei no chão e me levantaram rapidinho, aí correram, correram.

A dança dos mascarados To’ü são pulos e giros. Além de tentar acertar o pênis nas moças, eles tentam se soltar delas, que lhes seguram a parte das costas da máscara. “Me acertaram, bem aqui [Ocilda aponta para sua cintura], estava doendo já”, disse. “Dói, porque é pau né [risos]”, completou sua avó. Mas a brincadeira é ‘divertida’ (taẽ’ũ), as moças se alegram de dançar com os mascarados. Ocilda (comunicação pessoal, abril, 2017) não sentiu medo deles em sua Festa, mas sentia quando era criança. “Eu não via eles não, acho que eu corria. [As crianças] têm medo porque é igual ‘bicho’ (ngo’o) mesmo. Os mascarados são compridos. São diferentes dos homens, por isso que as crianças têm medo”, me contou ela.

Sensações aparentemente opostas se misturam no encontro das moças com os mascarados. Ao mesmo tempo que ficou com medo, Ociene (comunicação pessoal, abril, 2017) achou ‘legal’, ‘engraçado’, dançar com o mascarado. “Foi legal até, eu segurei ele, ele brincou comigo um pouquinho, eu fiquei com medo”. Ao ser perguntada se deu risada durante a dança, Ociene disse que sim, mas contou que logo foi lembrada da interdição de esboçar qualquer contentamento. “Você deu risada?”, perguntei. “Um pouco, não era para eu ficar rindo. Quando ele fez uma coisa comigo [ela faz um movimento de corpo indicando o movimento do mascarado], eu estava com vontade de rir, eu fiquei assim [risos] . . . e mamãe disse, ‘não, não’. Eu fiquei séria logo. Então, foi legal”. A provocação é pesada, pois os mascarados são muito cômicos, as moças têm que conter o riso e muitas deixam escapar. Depois do acontecido, chamaram a atenção de Ociene. “A minha tia Marciley disse: ‘por que que tu riu?’. ‘Eu achei engraçado’, eu falei”. Ao ser questionada sobre por que não pode rir, Ociene comentou: “eu não sei, é para ficar séria, uma moça não é para rir”. Sua condição de moça a impede de rir. Ao mesmo tempo, a dança com o mascarado foi considerada cômica por ela. “Eles tentaram me atacar, então eu me defendi. Puxei ele para trás e . . . eu achei engraçado”, assim me explicou quando eu perguntei o que era engraçado nos mascarados. Deve-se levar em conta que dificilmente uma moça diria para mim que achou engraçado o fato de o mascarado ficar agitando o pênis dele e correndo atrás das pessoas. Segundo Ociene, sua irmã, Ocilda, não riu durante a ‘confirmação de sua festa’ (yopaquẽ), porque já havia passado pela Festa uma vez e conhecia o procedimento.

Marciley (comunicação pessoal, abril, 2017)13 13 Presenciei a Festa de Marciley em 2012, em Santa Clara. Foi o primeiro caso que conheci de “moça” casada e com filhos passando pelo ritual. relatou uma mistura de medo com o divertimento, como acontece com outras moças. “É muito difícil, é cansativo, a gente se sente com medo deles, de a gente se machucar também”, disse ela. A dança pode se tornar bem violenta e se assemelhar mais a uma luta. Marciley sentiu medo de se machucar na dança com os mascarados, que me foi descrita da seguinte forma:

A gente teve que ir pulando e eles querendo acertar [o pênis dele] na gente, tinha que segurar e se defender também. Pulava para cá, pulava para lá. Naquele dia, eu acertei minha cabeça na cabeça do cara, do mascarado, eu bati a minha cara no rosto dele. Mesmo assim, aguentando, eu estava segurando. Eu falei, "deus me livre", estava doendo, eu bati, até que eu me afastei dele.

Ela destaca que a dança é uma espécie de jogo em que a moça tem que segurar firme nas costas do mascarado e ‘se defender também’, pois ele vai tentar acertar ela com o pênis. A dança e os movimentos são muito intensos, há o risco de se machucar, e isso é o que mais amedronta as moças. No caso de Marciley, ela se machucou mesmo, mas aguentou e prosseguiu na dança. No mínimo, mesmo que não se machuquem, as moças relatam que é uma dança bem cansativa e que exige muita força. Segurar nas costas do mascarado, que fica pulando, em geral homens14 14 Mulheres, em menor número, também usam máscaras na Festa e dançam com as moças, mas não usam máscaras do macaco To’ü ou qualquer outra que tenha pênis. , é uma tarefa difícil. Mas as que se saem bem nesta prova são reconhecidas pelas mulheres.

Apesar de dizer que não sentiu medo, quando perguntei se, em geral, as moças sentem medo e ‘vergonha’ (ane), Luísa (comunicação pessoal, abril, 2017) respondeu que sim15 15 Luísa, quando passou pela Festa em que estive presente, em julho de 2017, já estava casada e com filhos, assim como Marciley. Mora atualmente na cidade de São Paulo de Olivença, no Amazonas, mas nasceu e foi criada na comunidade de Nova Esperança. . “Ficam com medo, por que ele vai cutucar na bunda da gente, das mulheres, aí fica com medo, fica com vergonha, as pessoas ficam rindo”. Valdineia (comunicação pessoal, abril, 2017), que estava só assistindo a Festa, disse que se afastou um pouco, com medo dos mascarados: “nessa hora eu corri de lá, fiquei lá nos ‘bastidores’, assistindo de longe, com medo dos mascarados . . . correndo atrás das meninas, gritando”.

Segundo me disse Lourdes (comunicação pessoal, abril, 2017)16 16 Da comunidade de N. S. de Nazaré. Em fevereiro de 2019, quando conversei com ela, tinha 14 anos. Ficou reclusa por quase sete meses, até sair em sua Festa em julho de 2018. , ela não ficou com medo de dançar com os mascarados. Foi uma das moças, junto com Ocilda e Luísa, que me falaram que não sentiram medo deles. Ela sentiu bastante ‘cansaço’ (ipa ou ipa’ũ) e dor no pé de dançar com o mascarado. Como havia bebido caldo de pajauaru, estava um pouco embriagada e caiu com o mascarado durante a dança. Na dança com o mascarado, Lourdes não ficou ‘feliz’ (ta’ã’ẽ), não se divertiu. Ficou feliz, sim, por ter saído do quarto de reclusão, por não estar mais ‘presa’. Quando perguntei se ela queria ter dançado com o mascarado, ela respondeu que sim, mas deixou claro que não foi divertido.

Não seria descabido dizer que a dança simula uma possível defesa no caso de uma tentativa de abuso sexual, ainda que esta tentativa venha de um mascarado e seja dissimulada. Há uma espécie de jogo de dissimulação e revelação (Houseman, 2003Houseman, M. (2003). O vermelho e o negro: um experimento para pensar o ritual. Mana, 9(2), 79-107. doi: 10.1590/S0104-93132003000200003
https://doi.org/10.1590/S0104-9313200300...
) nessa dança/luta com os mascarados. A luta para se livrar da ameaça é bem real. As moças empregam uma energia enorme para os segurarem e não serem acertadas por seus pênis. Ao final deste artigo, apresento a hipótese de que a relação das moças com os mascarados To’ü na Festa talvez seja uma espécie de ‘trauma psíquico’ deliberadamente produzido pelo ritual.

PROVOCAÇÕES E PROIBIÇÃO DO RISO

Há uma exposição moral das moças durante a Festa, especialmente no momento em que os cabelos são arrancados. As pessoas já beberam bastante e costumam fazer piadas, tentado fazer as moças rirem. Em geral, as piadas afetam os demais festeiros, que gargalham com as ‘brincadeiras’ (inhawẽ) de alguém. Inhawẽ me foi traduzido como ‘bagunçar’ também. Os festeiros bagunçam entre eles e alguns bagunçam com as moças, fazem piadas para elas rirem17 17 Cumanainhawẽgü = ‘estão bagunçando com você’. . Perguntei a Lúcia o que falaram para provocar riso nela, ela me disse que “falavam de uma menina que na Festa dela ela falou besteira para um homem, na hora em que eles estavam arrancando os cabelos dela”. “O que ela falou?”, perguntei. “Ela falou assim . . . eles estavam arrancando o cabelo, como eles estavam rindo bastante, ela ficou com raiva e falou bem assim, ‘se tu arrancar teu pentelho não vai doer, ela falou bem assim’ [risos]”, me disse Lúcia (comunicação pessoal, abril, 2017).

A pessoa que mais a aconselhou antes da Festa, como vimos, foi sua avó paterna. Alícia é uma cantora de bastante prestígio no circuito de comunidades ticuna que trocam rituais. Uma explicação que ela deu a Lúcia (comunicação pessoal, abril, 2017) para a interdição das moças rirem durante a Festa, disse a menina, “é que, se a gente der uma risada, a gente está cancelando a passagem dos peixes, dos animais, tudo e outras coisas”. Devemos lembrar que a Festa da Moça Nova é também um ritual propiciador de caça e pesca abundantes (Matarezio Filho, 2019, pp. 367-372). Em determinados momentos da Festa, o xamã constrói um ‘caminho’ () ou ‘fio’, ‘linha’ ()18 18 Tü também pode querer dizer “los cursos de agua (na:-tü)” (Montes Rodríguez, 2014, p. 46). que atrai peixes e caças para perto da comunidade. Não dar risada durante a Festa garante que o caminho será estabelecido com sucesso. Isto confirma que a moça é uma espécie de atrativo para os seres que se deseja trazer para perto. Em contrapartida, diversos ‘bichos’ (ngo’o) também se aproximam. Os caminhos/linhas partem ou chegam de/em seus corpos.

Quando perguntei a Lúcia qual seria o principal conselho que ela daria à sua irmã mais nova antes da Festa dela, ela me disse:

não tem que chorar, nem dar uma risada. Porque, na hora de passar o jenipapo, os que vão passar no nosso corpo eles estão falando as palavras engraçadas para a gente poder rir. Eu falei, "nessa parte a gente não ri, aguenta o riso, fica calada, não fala nenhuma palavra", eu já falei para ela.

(Lúcia, comunicação pessoal, abril, 2017).

A mãe de Luísa também a instruiu a não rir enquanto estivesse dançando com os mascarados. “A minha mãe falou, ‘na hora que tu segurar atrás do To’ü, minha filha, não ri, fica séria’. Só que eu ainda ri numa parte [risos], por que dá graça”, disse Luísa (comunicação pessoal, abril, 2017). Ao ver a dança com os mascarados, na edição de sua Festa que eu filmei, Luísa comentou sobre o tabu da risada neste momento da Festa: “Sabe porque dá graça? Por que ele quer acertar na bunda da gente”. Os mascarados são mesmo muito cômicos, e as moças confessam que têm que se segurar para não rir.

Com relação aos sentidos das moças quando elas estão na Festa, há uma intensificação de alguns e uma tentativa de anular outros. A visão é bloqueada pelo cocar. Em contrapartida, o tato está bastante aguçado pelas manipulações corporais. Os dedos e as unhas ficam doendo depois da dança, por causa dos trancos que os mascarados dão para se desvencilharem das moças. É vedado a elas emitirem qualquer som, principalmente rir ou chorar, e devem estar sempre atentas aos sons, principalmente os aconselhamentos.

As consequências são severas para as moças que riem no ritual. “Quando a moça ri na festa é porque a mãe dela vai morrer bem cedo. Ela tem que ficar séria. Porque um montão de gente lá dentro vai falar besteira”, assim contou Marciley (comunicação pessoal, abril, 2017). Percebe-se que as moças são provocadas para rirem em certas partes da Festa, principalmente quando estão expostas ao público. Marciley comenta que os que fazem as provocações para as moças rirem são homens que já beberam demais. “As mulheres não, agora os homens são muito gaiatos”. Mas estas provocações são sempre recebidas com gargalhadas por parte de todos, especialmente das mulheres mais velhas. “É para a gente rir, eles falam entre eles, ‘será que a moça está virgem? Será que ela já ficou com alguém?’. São muito feias algumas palavras que eles falam”, disse Marciley, encabulada, com vergonha de me dizer que palavras eram essas.

Além das especulações sobre a vida sexual das moças, esses ‘homens gaiatos’ falam ‘palavras feias’ também, insultam as moças. Vendo uma filmagem de uma Festa na casa de Ondino19 19 Ver documentário biográfico desse canto, “Caminho de Mutum” (Matarezio Filho & Senlle, 2018). , reconhecido cantor de Festa, na comunidade de N. S. de Nazaré, começou uma cena em que as moças estão todas sentadas no centro da casa de Festa. Um homem, já meio bêbado, chega perto delas para ‘aconselhá-las’, mas o que diz são um monte de besteiras, insultos. Em um certo momento, todos que estavam assistindo ao vídeo na casa de Ondino começam a rir das palavras do homem. Perguntei o que ele estava dizendo e Ondino falou que ele estava dizendo que as moças tinham cara de vagina. Esse tipo de comentário é feito para provocar o riso nas moças e nos festeiros.

Outro tipo de comentário comum é de que o homem quer a moça para ele. O arrancamento ou o corte de cabelo das moças deve ser feito por alguém da mesma metade exogâmica que elas (Matarezio Filho, 2019, pp. 404-416, 426-435)20 20 A organização social ticuna divide as pessoas em clãs que se agrupam em duas metades exogâmicas não nominadas, mas que costumam ser glosadas como ‘com penas’ (clãs de pássaros) e ‘sem penas’ (animais e plantas). . Com isso, facilmente um homem pode saber se a moça é ou não de sua metade, o que dá ensejo aos comentários. Marciley (comunicação pessoal, abril, 2017) me contou:

Tem muita gente falando besteira. Do tipo, “poxa, eu vou ficar com essa menina, porque ela serve para mim”. Porque não era da nação [clã] dele, era diferente da nação. “Eu vou ficar com ela, ela já é minha”, eles começam a falar essas coisas, só para a gente rir.

Marciley, com vergonha do antropólogo, relata provocações bem sutis. Em geral, os homens fazem comentários mais pesados. Lourdes (comunicação pessoal, abril, 2017) contou que disseram que era para o mascarado “meter tudo nela”. Esse comentário foi seguido de muita risada de Marijane, que me ajudava com a tradução do que Lourdes dizia. Marijane comentou que quem faz esses comentários já está muito bêbado. “Esses homens bêbados ficam provocando as moças para que deem risada quando estão fora do quarto de reclusão” (Marijane, comunicação pessoal, abril, 2017), disse. Pelo que eu entendi, um dos perigos de a moça dar risada quando está dançando com os mascarados é ser levada por algum ‘bicho’ (ngo’o), especialmente um tipo de veado (cowü tchinawe)21 21 Cowü é o termo usado para ‘veado’. Já em relação a tchinawe, o Dicionário do SIL (D. Anderson & L. Anderson, 2016, p. 224) traduz como ‘escorpião’. .

MEDO, DESEJO E ‘ABERTURAS’

O medo que os Ticuna sentem dos ‘bichos’ (ngo’o) é algo que se aprende desde a mais tenra idade. As canções de ninar ticuna tematizam os ‘bichos’ que se aproximam para pegarem o neném (Matarezio Filho, 2015aMatarezio Filho, E. T. (2015a). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Recuperado de https://goo.gl/zO0NI8
https://goo.gl/zO0NI8...
, pp. 289-292). Neste pequeno trecho, por exemplo:

Taũirüau˜ü “Não chore” Numaü ˜ ya ngo’o pa mĩ “Aqui está o bicho, neném” Cuaugu ya cucainanha “Se você chorar, ele vem de lá para você”

Os seres que aparecem no tempo mítico como perigosos predadores são seduzidos, atraídos para o ritual. “No ritual, estes mesmos seres são ‘alegrados’ e seduzidos”, diz Lagrou (2006, p. 56)Lagrou, E. (2006). Rir do poder e o poder do riso nas narrativas e performances Kaxinawa. Revista de Antropologia, 49(1), 55-90. doi: 10.1590/S0034-77012006000100003
https://doi.org/10.1590/S0034-7701200600...
sobre as performances rituais dos Kaxinawa. Acredito que a Festa da Moça Nova pode ser pensada nessa mesma chave que o ritual dos Kaxinawa. As potências desses seres perigosos são predadas no ritual para a produção de pessoas, um tema já bastante corrente na etnologia americanista.

Podemos pensar no mito ticuna do Tchürüne, em que os ‘bichos’ (ngo’o) que moravam no interior de uma montanha são mortos e deles são copiados as máscaras, os instrumentos musicais, as danças e os cantos (Nimuendajú, 1952Nimuendajú, C. (1952). The Tukuna. University of California Publications in American Archeology and Ethnology, 45, 1-209., pp. 80-81; Gruber, 1999Gruber, J. G. (1999). Instrumentos Musicais Ticunas, apostila manuscrita. [Publicado também em Bispo, A. A. (Org.). (1996-1997). Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens - II. Roma: Consociatio lntemationalis Musicae Sacrae]., p. 23; Bueno, 2014Bueno, M. I. C. S. (2014). Sobre encantamento e terror: imagens das relações entre humanos e sobrenaturais numa comunidade Ticuna (Alto Solimões, Amazonas, Brasil) (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil., pp. 88-92; Matarezio Filho, 2019Matarezio Filho, E. T. (2019). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo: Editora Humanitas., pp. 159-163). Mas o mais importante aqui é ‘alegrar’ e seduzir os ‘bichos’ (ngo’ogü)22 22 A partícula _gü indica plural, ‘bichos’, portanto, são referidos como ngo’ogü, plural de ngo’o. . Trata-se, na verdade, de uma inversão da sedução ou contrassedução. No cotidiano, as moças são seduzidas por ‘bichos’ disfarçados de belos rapazes. A mitologia e o cotidiano ticuna estão repletos de histórias de sedução e rapto de moças púberes, próximas da época de suas Festas. No ritual, estes ‘bichos’ são atraídos pelo cheiro e pela jovialidade das moças, entram na Festa, recebem bebida e carne moqueada. As capacidades predatórias destes seres nocivos, portanto, são convertidas em capacidades que se extraem dos corpos das moças23 23 “[C]omo retirar do corpo aquilo do que ele é capaz. Os ritos constroem maneiras de entender quais são essas capacidades” (Strathern, 2006, p. 165). .

Em seu clássico artigo “De que riem os índios?”, Clastres (2003, p. 148)Clastres, P. (2003). De que riem os índios? In P. Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política (pp. 127-148). São Paulo: Cosac & Naify. destaca a capacidade que os índios possuem de “caçoar de seus próprios temores”. E isso se passa com relação aos momentos de narrativa mítica, ou seja, momentos em que os mitos são performatizados. Estas performances, muitas vezes, aproximam duas noções que são opostas diametralmente no pensamento estruturalista lévi-straussiano, mito e ritual (Lévi-Strauss, 2011Lévi-Strauss, C. (2011). O homem nu (Coleção Mitológicas, Vol. 4). São Paulo: Cosac & Naify., pp. 650-651). Para os momentos de narrativa mítica dos Chulupi, que vivem ao sul do Chaco paraguaio, descritos por Clastres (2003, p. 148)Clastres, P. (2003). De que riem os índios? In P. Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política (pp. 127-148). São Paulo: Cosac & Naify., a eficácia das narrativas está também em garantir aos ouvintes uma explosão de risos, “francas gargalhadas que acabam transformando-se em uivos de alegria”.

E, afinal, qual a resposta para Clastres (2003, p. 159)Clastres, P. (2003). De que riem os índios? In P. Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política (pp. 127-148). São Paulo: Cosac & Naify. à sua pergunta presente no título do artigo? Ri-se de “seres perigosos, capazes de inspirar o medo, o respeito, o ódio, mas nunca a vontade de rir”. Isto é, ri-se do que se teme. “Ri-se do próprio medo”, afirma Lagrou (2006, p. 61)Lagrou, E. (2006). Rir do poder e o poder do riso nas narrativas e performances Kaxinawa. Revista de Antropologia, 49(1), 55-90. doi: 10.1590/S0034-77012006000100003
https://doi.org/10.1590/S0034-7701200600...
, comentando Clastres. O ritual ticuna da Moça Nova, assim como as narrativas cômicas dos Chulupi, também possui uma “função catártica” (Clastres, 2003Clastres, P. (2003). De que riem os índios? In P. Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política (pp. 127-148). São Paulo: Cosac & Naify., p. 162). Durante a performance cômica dos To’ü, na Festa, libera-se “uma paixão dos índios, a obsessão secreta de rir daquilo que se teme” (Clastres, 2003Clastres, P. (2003). De que riem os índios? In P. Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política (pp. 127-148). São Paulo: Cosac & Naify., p. 162). Essa catarse de risos e gargalhadas contribui para que muitas moças e festeiros percam ou riam do próprio medo que possuem dos ‘bichos’, como vimos no caso de Marciley.

Viveiros de Castro (2011, p. 885)Viveiros de Castro, E. (2011). O medo dos outros. Revista de Antropologia, 54(2), 885-917. Recuperado de http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/39650
http://www.revistas.usp.br/ra/article/vi...
vai interpretar a conclusão de Clastres (2003)Clastres, P. (2003). De que riem os índios? In P. Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política (pp. 127-148). São Paulo: Cosac & Naify. como: os índios têm medo de “seres definidos por sua radical alteridade”. E não se trata de um medo que recusa ou afasta o Outro que é temido. Pelo contrário, o que é temido é ao mesmo tempo desejado. Uma Festa sem mascarados não tem muita graça e não é prestigiosa para os ‘donos’ da Festa. Viveiros de Castro (2011, p. 889)Viveiros de Castro, E. (2011). O medo dos outros. Revista de Antropologia, 54(2), 885-917. Recuperado de http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/39650
http://www.revistas.usp.br/ra/article/vi...
comenta esse medo desejoso dos ameríndios:

E eles têm medo porque a alteridade é objeto de um desejo igualmente radical por parte do Eu. Esta é uma forma de medo que, muito longe de exigir a exclusão ou a desaparição do outro para que se recobre a paz da autoidentidade, implica necessariamente a inclusão ou a incorporação, ‘do’ outro ou ‘pelo’ outro (‘pelo’ também no sentido de ‘por intermédio do’), como forma de perpetuação do devir-outro que é o processo do desejo nas socialidades amazônicas. Sem o influxo perigoso das forças e das formas que povoam o exterior do socius, este fatalmente falece, por carência de diferença.

O socius e a pessoa ameríndios necessitam do diferente, da mistura, para serem recriados (Overing, 2002Overing, J. (2002). Estruturas elementares de reciprocidade: notas comparativas sobre a Guiana, o Noroeste Amazônico e o Brasil Central. Cadernos de Campo, (10), 121-138.; Viveiros de Castro, 2002aViveiros de Castro, E. (2002a). Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In E. Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia (pp. 240-277). São Paulo: Cosac & Naify.; Matarezio Filho, 2014aMatarezio Filho, E. T. (2014a). Ritual e pessoa entre os Waimiri-Atroari (M. Teixeira-Pinto, Pref., & S. G. Baines, Posf.). São Paulo: Annablume.; Perrone-Moisés, 2015Perrone-Moisés, B. (2015). Festa e Guerra (Tese de livre docência). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.). Essa diferença pode vir da comunidade vizinha que é convidada para a festa e até dos seres mais distantes e perigosos do cosmos. Nesse sentido, deseja-se o perigo da presença dos mascarados na Festa. Os mascarados são temidos e desejados, como vimos, ao mesmo tempo. Mas há todo um protocolo ritual para lidar com a presença deles na Festa. Vejamos como o ritual lida com o possível excesso de ‘abertura’ das moças e os riscos de excesso de ‘abertura’ ao Outro (Lévi-Strauss, 1993Lévi-Strauss, C. (1993). História de lince. São Paulo: Companhia das Letras.)24 24 A referência pioneira de Lévi-Strauss (1993) em destacar a “abertura ao outro” como característica dos povos ameríndios é bem conhecida. Faço aqui apenas uma menção a Perrone-Moisés (2015, p. 77, nota 61) sobre a relação dessa “abertura” com as festas desses povos: “viver em festa: não ‘entre si’, justamente, porque festa não se faz ‘em família’, mas supõe a ‘abertura ao outro’”. .

Uma ‘canção de aconselhamento’ (worecütchiga) das moças, entoada na Festa da Moça Nova, se inicia da seguinte maneira:

Nori-tama-wae bo tü-na-cua-ẽ yiẽ-gü primero-RESTR25-MOD? florecer.abrir 3.AF-O.INT-saber-PL.V CÓP.3.FEM-PL “No começo, quando ela se abriu/floresceu, ela sentiu no pensamento dela.”
Ba tü-na-cua-ẽ yiĩ-gü-ená Abrir? 3.AF-O.INT-saber-PL.V CÓP.3.FEM-PL-MOD(conjectura) “Ela já estava aberta e sentiu no pensamento dela.”

O uso do verbo bo (abrir, florescer) faz referência aqui ao corpo da moça que acabou de menstruar pela primeira vez, como uma flor se abrindo26 26 kui-bô-chaku, ‘floreciste’, em cantos de Roberto Fonseca (Montes Rodríguez, 1991). . ‘Abrir-se’ é uma forma de dizer que ocorreu a menstruação pela primeira vez. O ponto que quero frisar aqui é a possível relação entre a abertura corporal, causada pela menstruação, presente na maneira como os Ticuna pensam a menarca, e o riso na Festa. Como vimos, todos riem dos mascarados na Festa, mas as moças são proibidas de rirem em qualquer momento do ritual. Sabemos, desde Lévi-Strauss (2004b)Lévi-Strauss, C. (2004b). O cru e o cozido (Coleção Mitológicas, Vol. 1). São Paulo: Cosac & Naify., em “O cru e o cozido”, que a gargalhada é um ato excessivo ou incontido de abertura oral. Como nos recorda Lagrou (2006, p. 61)Lagrou, E. (2006). Rir do poder e o poder do riso nas narrativas e performances Kaxinawa. Revista de Antropologia, 49(1), 55-90. doi: 10.1590/S0034-77012006000100003
https://doi.org/10.1590/S0034-7701200600...
, para Lévi-Strauss (2004b)Lévi-Strauss, C. (2004b). O cru e o cozido (Coleção Mitológicas, Vol. 1). São Paulo: Cosac & Naify., “a gargalhada é associada ao excesso de abertura, que pode ser perigoso para a pessoa que ri. A abertura de um dos orifícios do corpo pode corresponder estruturalmente a de outros”. Para os Ticuna, portanto, a ‘abertura’ da moça na menarca implica um ‘fechamento’ (manter-se séria) do riso no ritual27 27 Um exemplo dessa equivalência entre ‘aberturas’ e ‘fechamentos’ de orifícios corpóreos e o controle social dos seus excessos é dado por Overing (2000, p. 71) para os Piaroa. Um tipo de ‘loucura’, chamada k’iraeui, para este povo, “pode manifestar-se como riso excessivo, diarreia ou promiscuidade”. . Evita-se, dessa maneira, uma abertura excessiva, já que as moças estão ‘abertas’ (menstruadas), como diz a canção ticuna.

Examinemos mais de perto o tipo de humor em que os mascarados ticuna estão envolvidos. Tudo indica que estamos tratando de um ‘corpo grotesco’ quando lidamos com os mascarados. “[S]ubstâncias que entram e saem do corpo (sêmen, cuspe, urina, sangue) . . . . O humor grotesco lida com a mesma matéria-prima” (Lagrou, 2006Lagrou, E. (2006). Rir do poder e o poder do riso nas narrativas e performances Kaxinawa. Revista de Antropologia, 49(1), 55-90. doi: 10.1590/S0034-77012006000100003
https://doi.org/10.1590/S0034-7701200600...
, p. 62). Este trecho do autor me evocou uma cena de um ritual que presenciei em que um mascarado esfregava a mão em seu enorme pênis de madeira e passava na boca de uma mulher ticuna de meia idade. A mulher se debatia e tentava brincar com o mascarado, mas este último não parava de repetir o gesto, provocando uma hilaridade geral. A mulher que estava sendo ‘atacada’ pelo mascarado encarou a brincadeira com muito bom humor. Diferentemente das crianças e das jovens, muitas mulheres mais velhas não fogem correndo dos mascarados, muitas os enfrentam, seguram em seus pênis, empurram e defendem as moças.

Schultz (1962, p. 24)Schultz, H. (1962). Hombu: indian life in the brazilian jungle. New York: The Macmillan Company., que esteve entre os Ticuna nos anos 50 e presenciou algumas Festas de Moça Nova, sintetiza bem esta mescla de repulsa e hilaridade provocada pelos To’ü:

Mas as mais alegres e as mais impudentes são as máscaras de macacos. . . . Os macacos ficam loucos na casa. Eles agarram a cabana em que a jovem ainda é mantida em reclusão, os parentes e convidados brincavam com o ataque de pantomima das máscaras. Os macacos assobiantes, por causa de seus hábitos repulsivos, são antipáticos. O riso de centenas de convidados acompanha as brincadeiras turbulentas das máscaras de macacos daqueles que imitam os animais que eles representam. . . . Todo mundo gosta das brincadeiras geralmente imprudentes das pessoas mascaradas. Eles simbolizam os espíritos alegóricos que no passado prejudicaram as virgens, porque parentes e pais não realizaram o ritual de iniciação no tempo e da maneira apropriados.

Outra característica importante do humor grotesco seria as proporções das partes do corpo:

O corpo grotesco, como uma forma do gigantesco, é um corpo de partes. Esses órgãos produtivos e reprodutivos que são seu foco vêm para viver uma vida independente própria. O paradigma do grotesco é frequentemente o isolamento e a exibição da parte exagerada.

(Stewart, 1993Stewart, S. (1993). On longing: narratives of the miniature, the gigantic, the souvenir, the collection. Durham: Duke University Press. citado em Lagrou, 2006Lagrou, E. (2006). Rir do poder e o poder do riso nas narrativas e performances Kaxinawa. Revista de Antropologia, 49(1), 55-90. doi: 10.1590/S0034-77012006000100003
https://doi.org/10.1590/S0034-7701200600...
, p. 63).

Lembro-me de Francisco (comunicação pessoal, abril, 2017)28 28 Francisco e sua família são exímios conhecedores da Festa da Moça Nova. Moradores da comunidade de N. S. de Nazaré, município de São Paulo de Olivença, no Amazonas, pude presenciar eles construindo máscaras e trompetes. Ele pode ser visto construindo um trompete Iburi no filme “IBURI Trompete dos Ticuna” (Matarezio Filho, 2014b). dizendo: “o queixo do Õma não pode ser pequeno, tem que ser bem grande, tem que bater aqui”, e apontava para seu ventre. Um apelido recorrente para o mascarado Õma (pai do vento) é ‘cabeçudo’, o que ressalta o tamanho de sua cabeça. As partes do corpo exageradas dos mascarados são muitas: orelhas, nariz, bocas, olhos, pênis etc. Notemos que, em geral, são partes associadas aos sentidos (visão, audição, paladar, olfato) e ao sexo do mascarado. Deleuze e Guattari (2010, p. 189)Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (L. B. L. Orlandi, Trad.). Rio de Janeiro: Editora 34. chamariam isso de “investimento coletivo dos órgãos”, um procedimento típico da “máquina territorial primitiva”:

. . . o procedimento da máquina territorial primitiva é o investimento coletivo dos órgãos; porque a codificação dos fluxos só se faz na medida em que os órgãos capazes, respectivamente, de produzi-los e cortá-los encontram-se cercados, instituídos como objetos parciais, distribuídos e fixados no socius. Uma máscara, portanto, é uma tal instituição de órgãos. Sociedades de iniciação compõem os pedaços de um corpo: ao mesmo tempo, órgãos dos sentidos, peças anatômicas e junturas.

Uma das funções da Festa da Moça Nova – de muitos rituais pubertários de iniciação à vida adulta – seria a codificação dos fluxos do desejo (Deleuze & Guattari, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (L. B. L. Orlandi, Trad.). Rio de Janeiro: Editora 34., p. 185) ou “liquefazer” a “angústia dos fluxos descodificados” (Deleuze & Guattari, 2010Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (L. B. L. Orlandi, Trad.). Rio de Janeiro: Editora 34., p. 185)29 29 Essa análise da Festa da Moça Nova, baseada no “Anti-Édipo”, de Deleuze e Guattari (2010), é melhor detalhada no texto “O Anti-Édipo Ticuna” (Matarezio Filho, 2015b). Neste mesmo texto, há a referência a Siran (2002, p. 285) para desenvolver para a Festa da Moça Nova ticuna a noção de que o ritual de iniciação envolve angústias ‘reais’, a experiência nos neófitos de que algo se “liquefaz”. . Para que tais fluxos sejam codificados, pressupõe-se o investimento coletivo e prévio dos órgãos. Instituindo ou investindo coletivamente os órgãos do mascarado30 30 Exemplo usado por Deleuze e Guattari (2010, p. 189) também, assim como as “sociedades de iniciação”. , tem-se, em contrapartida, investidos coletivamente os órgãos das moças e dos festeiros. Isto seria, em minúcias, o que a etnologia ameríndia tem chamado de fabricação ritual dos corpos e da consanguinidade (Seeger et al., 1979Seeger, A., Da Matta, R., & Viveiros de Castro, E. (1979). A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional, Nova Série, Antropologia, (32), 2-19.; Viveiros de Castro, 2002aViveiros de Castro, E. (2002a). Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In E. Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia (pp. 240-277). São Paulo: Cosac & Naify., 2002b; Coelho de Souza, 2002Coelho de Souza, M. (2002). O traço e o círculo: o conceito de parentesco entre os Jê e seus antropólogos (Tese de doutorado). Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.). “A consanguinidade, intencionalmente fabricada, ‘contra-inventa’ (contra-efetua) a afinidade” (Viveiros de Castro, 2007Viveiros de Castro, E. (2007). Filiação intensiva e aliança demoníaca. Novos Estudos CEBRAP, (77), 91-126. doi: 10.1590/S0101-33002007000100006
https://doi.org/10.1590/S0101-3300200700...
, p. 105; ver também Viveiros de Castro, 2002bViveiros de Castro, E. (2002b). Atualização e contra efetuação do virtual: o processo do parentesco. In E. Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia (pp. 403-455). São Paulo: Cosac & Naify.). A Festa da Moça Nova tem como uma de suas intenções garantir que jovens e crianças, especialmente as moças, permaneçam como ‘gente de verdade’ (du-ü˜güuü˜chi; Goulard, 2009Goulard, J.-P. (2009). Entre mortales e inmortales: el Ser según los Ticuna de la Amazonía. CAAAP: Lima, Peru.). Não deixar as moças “no silêncio” (Matarezio Filho, 2019Matarezio Filho, E. T. (2019). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo: Editora Humanitas., pp. 46-49), como dizem os Ticuna, garante que elas não serão seduzidas ou iniciada pelos ‘bichos’, os quais também não atacarão a comunidade como um todo.

Mas a questão que fica é a seguinte: o que se contrainventa quando se investe intencionalmente os órgãos dos mascarados, essa espécie de ‘afim cosmológico’ dos Ticuna? Afinal, nesse caso, temos um ‘afim’ que é ‘intencionalmente fabricado’. O ritual é capaz de causar estes curtos-circuitos, como opera o veneno na mitologia, causando um curto-circuito entre natureza e cultura31 31 “Entre a natureza e a cultura, o veneno opera uma espécie de curto-circuito. . . . uma intrusão da natureza na cultura” (Lévi-Strauss, 2004b, p. 317). . Muito provavelmente temos aqui um exemplo de um paradoxo dos povos amazônicos: a transformação das forças perigosas, venenosas e exteriores ao socius em força criadora, fertilidade, vida, internas ao grupo humano (Overing 1991Overing, J. (1991). A estética da produção: o senso de comunidade entre os Cubeo e os Piaroa. Revista de Antropologia, 34, 7-33.; Overing & Passes, 2000Overing, J., & Passes, A. (2000). Introduction: conviviality and the opening up of Amazonian anthropology. In J. Overing & A. Passes (Eds.), The Anthropology of love and anger: the aesthetics of conviviality in Native Amazonia (pp. 1-30). London: Routledge., p. 6). Muitos rituais ameríndios causam um curto-circuito ou uma ‘condensação ritual’ entre convidado e inimigo32 32 Para a identificação entre convidados rituais e inimigos, ver Matarezio Filho (2014a) a respeito dos povos de língua Caribe, de modo geral, e dos Waimiri-Atroari, em específico. A tese de Perrone-Moisés (2015) desenvolve esse tema de maneira magistral para todos os ameríndios. Uso aqui ‘condensação ritual’ no sentido atribuído por Houseman (2003, p. 80), “a atuação simultânea de modos de relação formalmente contrários: afirmações de identidade são ao mesmo tempo testemunhos de diferença . . .”. . No ritual ticuna, essa condensação acontece entre ‘bicho’ (ngo’o) e ‘gente’ (du’ũ), ‘mortal’ (yunatü) e ‘imortal’ (ü’üne), masculino e feminino etc.33 33 As “condensações rituais” entre mortais e imortais, masculino e feminino, na Festa da Moça Nova, estão descritas em Matarezio Filho (2015a, pp. 483-493, 2019, pp. 435-447).

ANGÚSTIA E DESAMPARO

Começamos a compreender como se dá esta relação entre os afetos do medo, desejo e angústia para os Ticuna e como a circulação desses afetos na Festa da Moça Nova, entre outros, opera a ‘codificação dos fluxos do desejo’. Esse ritual ticuna, e talvez isso opere em outros rituais ameríndios também, parece uma ‘máquina’ de transformar angústia em medo. Os “estados de ansiedade” são destacados por Lévi-Strauss (2011, p. 646)Lévi-Strauss, C. (2011). O homem nu (Coleção Mitológicas, Vol. 4). São Paulo: Cosac & Naify. como motivadores do ritual de modo geral34 34 Lévi-Strauss (2011, pp. 634-635) alterna as palavras “angústia” e “ansiedade”, em oposição ao riso, para se referir aos ‘sentimentos motivadores’ dos rituais. . Os rituais, portanto, podem ser motivados por estados de angústia/ansiedade. A situação liminar do neófito que passa pela iniciação é angustiante na medida em que ele ainda não restituiu o equilíbrio necessário à sua vida. A síntese entre os “campos operatórios ou semânticos”, restauradora do “equilíbrio de um sistema de vida”, é operada pelo ritual (Lévi-Strauss, 2011Lévi-Strauss, C. (2011). O homem nu (Coleção Mitológicas, Vol. 4). São Paulo: Cosac & Naify., pp. 634-635). Vejamos esta hipótese mais detidamente. Para tanto, cumpre deixar clara a distinção entre medo e angústia:

Freud tem, por exemplo, uma distinção clássica a respeito da diferença entre medo e angústia: “A angústia tem uma inconfundível relação com a ‘expectativa’: é angústia ‘diante de’ algo. Nela há uma característica de ‘indeterminação’ e ‘ausência de objeto’; a linguagem correta chega a mudar-lhe o nome, quando ela encontra um objeto e o substitui por ‘medo’ [Furcht]”. Ou seja, podemos dizer que o medo é essa forma de angústia que encontrou um objeto, no sentido de reação ao perigo produzido por um objeto possível de ser representado.

(Safatle, 2015Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac & Naify., p. 32).

Este comentário de Safatle (2015)Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac & Naify. sobre a concepção freudiana da angústia nos ajuda a pensarmos esta transformação da angústia em medo operada pelo ritual ticuna. As moças expressam explicitamente que se sentem ‘angustiadas’ (?ãtchiã?) na reclusão, ansiosas para que aquilo acabe logo.

Uma possível análise morfológica da palavra ĩãtchiãẽ (‘angústia’) seria:

Ĩ - ãtchi - ãẽ Ser pequeno – INCOATIVO - “alma-pensamento” “Alma que se empequenece.”35

O incoativo ãtchi marca que se trata de uma fase inicial de um processo. Então, trata-se do início da diminuição (ĩ) da ‘alma-pensamento’ (ãẽ)). Essa seria uma hipótese de sentido literal dessa palavra. Um termo que as moças ticuna usam para traduzir ĩãtchiãẽ para o português é ‘agonia’. Mas as explicações indicam que ela seria melhor traduzida como ‘ansiedade’ ou ‘angústia’. Marijane (comunicação pessoal, abril, 2017) me explicou o sentido desse termo com o seguinte exemplo: “Quando você está para ir a um show de um cantor, mas ainda não está na hora do show. Então você fica esperando e com ĩãtchiãẽ”. Trata-se claramente de uma expressão de ansiedade para que o show comece logo, para ver o cantor sem demora. As moças sentem o mesmo quando estão lhes arrancando os cabelos ao final do ritual, querem que aquele sofrimento acabe logo. Este acúmulo de angústia na moça se transforma em medo ao deparar-se com os mascarados. Finalmente, a angústia encontra um objeto e pode tornar-se medo. Um medo que ela já carregava desde bem pequena, mas que agora é intensificado pela ansiedade para que termine logo a reclusão.

A situação liminar – de não estar nem lá nem cá (Turner, 1974Turner, V. W. (1974). Liminaridade e “Communitas”. In V. W. Turner, O processo ritual: estrutura e anti-estrutura (pp. 116-159). Petrópolis: Vozes., p. 117) – em que se encontram as moças ticuna neste ritual de passagem é amedrontadora. “[A] fronteira é, de várias maneiras, o lugar do perigo e do medo por excelência” (Viveiros de Castro, 2011Viveiros de Castro, E. (2011). O medo dos outros. Revista de Antropologia, 54(2), 885-917. Recuperado de http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/39650
http://www.revistas.usp.br/ra/article/vi...
, p. 887). Elas estão privadas do sentido da visão, praticamente imóveis, exaustas, com sono, o que as torna vulneráveis, passíveis de serem protegidas, em uma condição de ‘desamparo’ (nhemagü’ü˜). Este desamparo é cantado em forma de conselho na Festa da Moça Nova, por exemplo, no trecho:

na-tánü´-gù ye cù-na-nhemagü’ü˜ curü gú-ne-gü 3-grupo-LOC36 aí 2-O.INT-PRIV-caminho? 2.gen chegar-?-PL (convidados) “Você está desesperada/desamparada no meio dos seus convidados.”

A palavra nhemagü’ü˜ me foi traduzida em um primeiro momento como ‘desesperada’ ou estar com uma ‘sensação de pequenez’, ‘sentir-se pequena’37 37 Sou grato à professora ticuna Luscita Bibiano Ezequiel, da comunidade de Campo Alegre, que me explicou muito pacientemente o significado desta palavra enquanto traduzíamos uma canção da Festa da Moça Nova. Tenho como hipótese que a palavra nhemagü’ü˜ poderia ser traduzida literalmente como ‘sem caminho’. Ver no trecho em destaque a análise morfológica da palavra. . Consegui depois mais definições para essa sensação das moças na Festa que os cantores narram. “Quando está sozinho, não tem ninguém para ajudar a gente. Quando tem um filho ou filha que não quer ajudar a gente e precisa da ajuda de alguém”, assim me explicaram38 38 Estes sentidos ressoam o significado da palavra em alemão usada por Freud para se referir ao ‘desamparo’, Hilflosigkeit, “estar em uma ‘condição sem ajuda’ possível” (Safatle, 2015, p. 33). . Entendi que uma das possibilidades de tradução desta palavra seria ‘desamparo’, estar sozinho sem a ajuda de ninguém, com uma sensação de pequenez39 39 Gow (2000, p. 47), em seu artigo sobre o ‘desamparo’ entre os Piro, também mostra que as possibilidades de tradução da palavra wamonuwata são múltiplas: “chorar, ficar triste, sofrer, ser fofo, ser fofinho”. No entanto, seria possível traduzir wamonuwata como ‘desamparo’ ou elaborar uma definição do tipo “estar fora da atenção mútua generalizada do ‘bem viver’” (Gow, 2000, p. 52). .

Os afetos que estão presentes neste ritual de iniciação não são fortuitos. De um ponto de vista freudiano, o desamparo apareceria aqui para reforçar novos vínculos sociais, “um pressuposto freudiano central, a saber, ‘o afeto que nos abre para os vínculos sociais é o desamparo’” (Safatle, 2015Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac & Naify., p. 28). O desamparo ticuna aparece aqui, acredito, não apenas por uma demanda de cuidados ou amparo por parte da moça que está reclusa. Vejamos como o mesmo referido autor amplia a noção mais comum do que é o desamparo:

[O] desamparo cria vínculos não apenas através da transformação de toda abertura ao outro em demandas de amparo. Ele também cria vínculos por despossessão e por absorção de contingências. Estar desamparado é deixar-se abrir a um afeto que me despossui dos predicados que me identificam.

(Safatle, 2015Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac & Naify., p. 12).

Estar-se despossuída dos predicados que a identificam pode ser próprio do estado liminar da moça. Enquanto está reclusa, ela já não é mais uma criança, tampouco é uma mulher adulta. É considerada ‘mortal’ (yunatü) e ‘imortal’ (ü’üne) ao mesmo tempo, seu estado corporal é perigoso, coloca em risco toda a comunidade40 40 Para uma análise dessa “condensação ritual” (Houseman & Severi, 1998; Houseman, 2003) entre mortalidade e imortalidade no corpo das moças que estão sendo iniciadas, ver Matarezio Filho (2019, pp. 435-445). , na medida em que o cheiro da menstruação atrai os ‘bichos’ para perto. O ritual, portanto, a purifica e protege a todos dos ataques dos ‘bichos’ (ngo’o).

Mas, como vimos, há uma estreita relação entre medo e desejo na maneira como os ameríndios em geral lidam com a alteridade radical (Viveiros de Castro, 2011Viveiros de Castro, E. (2011). O medo dos outros. Revista de Antropologia, 54(2), 885-917. Recuperado de http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/39650
http://www.revistas.usp.br/ra/article/vi...
, p. 889). Para os Ticuna parece não ser diferente. As moças são cobradas para que não riam na Festa e principalmente ‘dos’ e ‘para’ os mascarados, apesar de todo o apelo cômico. Uma possível explicação para esta interdição, que não aparece na fala das moças sobre o assunto, provavelmente está relacionada com o perigo de sedução pelos ‘bichos’ (ngo’o) que estão na Festa, invisíveis ou na figura de alguns mascarados. “Entre los pueblos amazónicos, ‘reírse’ es un eufemismo para ‘tener relaciones sexuales’. Cuando una muchacha se derrite de risa con un hombre, está invitándolo a hacer el amor” (Belaunde, 2005Belaunde, L. E. (2005). El recuerdo de Luna: gênero, sangre y memoria entre los pueblos amazónicos (1 ed.). Lima, Peru: Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales., p. 305). A referência usada pela autora para formular esta afirmação é uma passagem do livro de Chávez (1996, p. 102)Chávez, H. H. (1996). Mbaisik en la penumbra del atardecer: literatura oral Harakmbut. Lima, Peru: CAAAP. 41 41 A passagem seria a seguinte: “‘Reírse’ es um eufemismo por ‘tener una relación sexual’” (Chávez, 1996, p. 102). A consideração do riso aqui refere-se ao povo Harakmut, habitante da Amazônia peruana, etnografado por Heinrich Chávez. . Apesar da generalização a partir de um único caso etnográfico, tudo leva a crer que mais e mais exemplos deste ‘eufemismo’ surgirão das etnografias. Para os Ticuna, isso fica claro em um dos episódios da sequência de mitos protagonizados pelos gêmeos Yoi e Ipi. O mito é conhecido como a história da “Filha do umari” ou a “garota do umari” (të’tchi-arü-ngui; Nimuendajú, 1952Nimuendajú, C. (1952). The Tukuna. University of California Publications in American Archeology and Ethnology, 45, 1-209., pp. 127-28; Oliveira Filho, 1988Oliveira Filho, J. P. (1988). “O nosso governo”: os Ticuna e o regime tutelar. São Paulo: Marco Zero.; Goulard, 2009Goulard, J.-P. (2009). Entre mortales e inmortales: el Ser según los Ticuna de la Amazonía. CAAAP: Lima, Peru., p. 402), em que Ipi ouve seu irmão Yoi ‘rindo’ com alguém em sua rede. Ao ser questionado sobre com quem estaria ‘rindo’, Yoi sempre respondia que estava com algum objeto (vassoura, quiricá etc.), mas estava ‘rindo’ escondido com a “garota do umari”. Sempre que saía de casa, Yoi escondia a moça em sua flauta. Ipi descobre o esconderijo de sua cunhada, fazendo com que ela ria alto, ao ouvir Ipi cantar e balançar o pênis42 42 Não haveria espaço aqui para resumir a demonstração que realizei em Matarezio Filho (2015a, pp. 111-126, 2019, pp. 106-127) de que a “garota do umari” é uma variação estrutural de To’oena, a primeira moça nova da mitologia. Isso conecta as moças que são iniciadas atualmente com a ‘reclusão’ da “garota do umari”. . Após ouvir a gargalhada da cunhada, que explode em risos e denuncia seu esconderijo, imediatamente ele tem relações sexuais com ela.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O etnopsicanalista Tobie Nathan se debruça sobre a categoria etiológica de frayeur, que podemos traduzir como ‘susto’, ‘medo intenso’ ou ‘pavor’. Este é o termo em francês usado por Nathan (1994, p. 198)Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob., mas ele examina o que seria esse frayeur em diversas culturas pelo mundo. Para os Bambara, do oeste africano, o encontro com um ser sobrenatural pode resultar em diabatigé, um ‘grande medo’. A etimologia dessa palavra remeteria a uma ‘alma separada’ ou que ‘fugiu do corpo do sujeito’. Por extensão, este mesmo termo designa “os transtornos psíquicos desencadeados pelo medo e, especialmente, pelas crises de agitação ou pelos arroubos delirantes”. Uma definição semelhante é dada para o ‘susto’ ou ‘medo’ dos Wolof, povo do Senegal e Gâmbia. “‘[E]u estou com medo’ – se traduziria palavra por palavra como ‘minha alma [ou princípio vital] escapou do meu corpo’” (Nathan, 1994Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob., p. 198).

Segundo esse teórico da etnopsicanálise, em todas as línguas, a palavra para ‘susto’ (frayeur) alternaria “entre dois conjuntos de significados etiológicos”, (1) intrusão e (2) extração: 1) um encontro do sujeito com um universo radicalmente diferente do seu habitual, envolvendo efeitos de surpresa, choque ou invasão; 2) “a extração do sujeito, ou melhor, do ‘núcleo’ do sujeito. . . . de seu envelope, sua membrana protetora” (Nathan, 1994Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob., p. 199)43 43 “[O] envelope de um fato psíquico é a organização lógica pela qual esse fato psíquico adquire um significado” (Nathan, 1994, p. 272). . Estas seriam duas causas do ‘susto’ (frayeur) patológico, presente em diversos “arsenais etiológicos” pelo mundo (Nathan, 1994Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob., p. 199). O que varia são as manifestações patológicas. Nathan (1994, p. 199) nos apresenta um exemplo conhecido dos etnólogos americanistas: “Se na África, são patologias bastante barulhentas que se referem a encontros aterrorizantes, no continente ameríndio, é pelo contrário os estados depressivos”44 44 As etnografias dos povos ameríndios estão repletas de exemplos de ‘maus encontros’ que geram ‘estados depressivos’. Destaco aqui dois comentários sobre o tema que descrevem sintomas semelhantes ao que aponta Nathan. “O mau encontro no mato, o acidente que separa o sujeito de sua alma. Ele volta para casa sem alma. Então definha. E se um xamã não trouxer a alma de volta, o sujeito morre. Com a alma levada por um outro sujeito, ou melhor, por um sujeito outro, o sujeito acaba virando outro que si mesmo. Vira onça, vira morto, vira seja lá o que for que ele encontrou. Descrições dessas situações de crise psico-ontológica são recorrentes nas etnografias sobre os índios, sobre os povos siberianos, e tantos outros” (Viveiros de Castro, 2008, p. 233). Nesse mesmo sentido, afirma Almeida (2013, p. 16), “[r]elatos muito comuns narram eventos em que caçadores experientes perdem-se na floresta, e voltam para casa depois de horas, com o corpo e as roupas rasgados por espinhos, com marcas de açoite, tomados de medo – o assombro”. .

Avançando em sua etiologia do ‘susto’ ou ‘medo’ (frayeur), Nathan (1994, p. 210)Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob. questiona a centralidade da angústia em detrimento do medo para a teoria psicanalítica de Freud. Admitir o medo como um afeto tão central quanto a angústia no funcionamento psíquico nos força a pensar o Outro nos “invadindo, influenciando, modificando, às vezes até nos transfigurando. . . . Pois o medo essencial consiste nisso: a verdade do que percebo, o que sinto, o que penso, reside em outro” (Nathan, 1994Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob., p. 215). Esta necessidade amedrontadora do Outro para certificar minha percepção, sentidos, pensamento, nos ressoa a clássica ‘abertura ao Outro’ já referida como a necessidade do diferente, do Outro, da mistura para a conformação do socius e das pessoas.

Para Nathan (1994, p. 229)Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob., os rituais de iniciação organizam deliberadamente

traumas psicológicos associados a desordens da pele (cicatrizes, tatuagens, mutilações sexuais), a fim de obter o idêntico, ou seja, ‘iniciados’. Além disso, para atingir esse objetivo, os rituais de iniciação recorrem sistematicamente ao uso do medo, que é especificamente o trauma produzindo o mimetismo.

Sofrer um trauma – como o arrancamento público dos cabelos, acompanhado de insultos presentes nos aconselhamentos cantados45 45 As moças são cobradas para que permaneçam impassíveis durante o arrancamento dos cabelos. Em outro texto, elaborei a hipótese de que a retirada dos cabelos ‘mortais’ (yunatü) complementam a troca de ‘pele’ (_tchamu) das moças, iniciada com a menarca (Matarezio Filho, 2019, p. 280). A cabeça sem cabelos poderia ser interpretada como uma “castração simbólica” das moças, que, apesar de estarem “maduras” para o casamento (Matarezio Filho, 2017), não lhes é recomendado que tenham relações sexuais tão logo (Matarezio Filho, 2019, pp. 426-435). – desencadeia a tendência a uma “identificação mimética”46 46 “Após um susto [frayeur], os membros dessas populações tendem a reagir por comportamentos de mimetismo (ecopraxias, ecolalias). . . . ao recorrer ao mimetismo, a cultura parece induzir o sujeito a uma espécie de ressocialização: uno-me ao outro imitando-o . . .” (Nathan, 1994, pp. 202-203). (Nathan, 1994Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob., p. 229). Assim, apesar de muitas neófitas, como vimos nos relatos anteriores, estarem apavoradas, com medo dos mascarados, não há uma paralisia diante do mascarado. A moça reage imitando as outras ou como foi aconselhada, segurando firme e se defendendo do mascarado. O ritual provoca deliberadamente um “trauma psíquico” que “ordena o caos afetivo” (Nathan, 1994Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob., p. 269) próprio do período imaturo das jovens47 47 Ver Matarezio Filho (2017), para uma consideração sobre a concepção ticuna de maturidade do corpo. . O que Nathan (1994, p. 270)Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob. chama de “técnica traumática”, e que em muitas passagens de seu livro é comparado aos rituais de iniciação, tem essa particularidade de provocar “transformações radicais” nos sujeitos, verdadeiras metamorfoses.

Poderíamos pensar o ritual como uma espécie de atribuição de um “novo significado aos fatos psíquicos existentes” (Nathan, 1994Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob., p. 272). Um fato psíquico traumático – o encontro, a sedução ou o rapto por um ‘bicho’ (ngo’o), vivido pela moça ou do qual ela certamente ouviu falar – é reelaborado por um novo significado, coconstruído na Festa. Está em jogo um conjunto relacional para esta coconstrução, entre moças, festeiros, mestres de cerimônia (üaü˜cü), cantores etc. O ápice desta reelaboração de significado é – ao contrário da relação predatória com os ‘bichos’ no cotidiano – as moças ‘vencerem’ os ‘bichos’ em suas ‘danças’ e os despacharem para a floresta. Estes já não podem mais lhes causar mal.

A iniciação à vida adulta é um caminho sem volta. “Em outras palavras, ninguém muda de bom grado, mas porque ele é forçado a fazê-lo. É precisamente isso que confere à lógica traumática sua força e seu caráter de inelutável” (Nathan, 1994Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob., p. 274). Por esse motivo, os rituais iniciáticos recorrem à lógica traumática. Como vimos, na Festa da Moça Nova não é diferente. Trata-se de um momento onde afetos e emoções opostos se misturam, contribuindo para potencializar esse ‘trauma’ e gerar as transformações desejadas nos participantes do ritual.

  • 1
    Uso a palavra ‘Festa’ com letra maiúscula para fazer referência a este ritual de iniciação feminina, a Festa da Moça Nova.
  • 2
    A diversidade de máscaras ticuna é bastante grande. Algumas das mais citadas na literatura são: ‘pai’ do vento (Õma), ‘mãe’ da mata (Mawü), ‘cobra grande’ (Yewae), ‘onça’ (Torama), ‘boto celeste’ (Tchoreruma), ‘aranha’ (pawü), os seres ctônicos E˜’ẽ, Nutchi’i e Popü, além de diversos seres que podem ser sonhados pelos xamãs. Algumas dessas máscaras podem ser encontradas nas seguintes referências: Nimuendajú (1952)Nimuendajú, C. (1952). The Tukuna. University of California Publications in American Archeology and Ethnology, 45, 1-209., Oliveira Filho (2000)Oliveira Filho, J. P. (2000). Máscaras: objetos étnicos ou recriação cultural? In J. P. Brito (Org.), Os Índios, nós (1 ed., pp. 210-215). Lisboa: Museu Nacional de Etnologia., Faulhaber (2007)Faulhaber, P. (2007). O ritual e seus duplos: fronteira, ritual e papel das máscaras na festa da moça nova ticuna. Boletín de Antropología Universidad de Antioquia, 21(38), 86-103., Goulard (2009Goulard, J.-P. (2009). Entre mortales e inmortales: el Ser según los Ticuna de la Amazonía. CAAAP: Lima, Peru., 2011)Goulard, J.-P. (2011). La sur-face du masque: perpétuation et métamorphose chez les Tikuna. In J.-P. Goulard & D. Karadimas (Eds.), Masques des hommes visages des Dieux: regards d’ Amazonie (pp. 129-153). Paris: CNRS Editions., Schultz (1962)Schultz, H. (1962). Hombu: indian life in the brazilian jungle. New York: The Macmillan Company., Matarezio Filho (2015aMatarezio Filho, E. T. (2015a). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Recuperado de https://goo.gl/zO0NI8
    https://goo.gl/zO0NI8...
    , 2019)Matarezio Filho, E. T. (2019). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo: Editora Humanitas.. Muitas máscaras ticuna podem ser vistas e pesquisadas em museus da Europa e do Brasil, a exemplo do Museu Magüta (Amazonas), Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE/USP, em São Paulo), Museu Paraense Emílio Goeldi (Pará), Weltkulturen Museum (Frankfurt, Alemanha), Museum für Völkerdunde (Berlim, Alemanha), Museu da Ciência da Universidade de Coimbra (Portugal) e Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa (Portugal).
  • 3
    Nimuendajú (1952)Nimuendajú, C. (1952). The Tukuna. University of California Publications in American Archeology and Ethnology, 45, 1-209. traduz a palavra ngo’o como “demônio”. Mantenho a tradução mais corrente que encontrei em campo, ‘bicho’. Todas as traduções de textos em língua estrangeira na bibliografia são minhas.
  • 4
    Há várias formas, em língua ticuna, de se referir à menstruação. Pacü é uma palavra que designa tanto a menstruação quanto a ‘moça nova’. Poderia ser traduzida literalmente em espanhol como ‘la olorosa’. Nori pacü seria ‘primeira menstruação’ ou menarca. Ngẽa’arü chi’ewe seria literalmente, em espanhol, ‘moléstia de la hembra’ e ngẽrü tauemacü, ‘lua dela’. O termo mais corrente para se referir à moça, e também consagrado na literatura, é worecü, ‘moça nova’ ou ‘menstruante’. Realizei essas análises destes termos junto com a linguista, Profa. Dra. Maria Emília Montes Rodríguez (Universidad Nacional de Colombia - UNAL). Valenzuela (2010, p. 141, nota, 160), com o auxílio do linguista ticuna A. Santos (comunicação pessoal, 2010), propõe a seguinte análise desse termo: “Wore: coito, kü: tercera persona, mujer madura, que ya puede coitar, y por eso hay que preparar el cuerpo para crear seres, el cuerpo del mundo se prepara para que pueda fecundarse y para que sea fértil”.
  • 5
    Os Ticuna são um povo falante de uma língua de cinco tons, da família Yuri-Ticuna (Carvalho, 2009Carvalho, F. O. (2009). On the genetic kinship of the languages Tikúna and Yurí. Revista Brasileira de Linguística Antropológica, 1(2), 247-268.; Goulard & Rodriguez Montes, 2013Goulard, J.-P., & Rodríguez Montes, M. E. (2013). Los Yurí / Juri-Tikuna, en el complejo socio-lingüistico del noroeste amazónico. LIAMES: Línguas Indígenas Americanas, 13(1), 7-65. doi: 10.20396/liames.v0i13.1531
    https://doi.org/10.20396/liames.v0i13.15...
    ). Totalizam mais de 70 mil indivíduos, distribuídos na tríplice fronteira entre o Brasil, a Colômbia e o Peru. No Brasil, é o grupo indígena mais populoso, contando com mais de 53 mil pessoas, de acordo com dados do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI) e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), de 2014.
  • 6
    Para referências sobre a Festa entre os Ticuna do Peru, ver Belaunde et al. (2016)Belaunde, L. E., Letts, P., & Sullon, K. (2016). Woxrexcüchiga: el ritual de la pubertad en el pueblo Ticuna. Lima, Peru: Ministerio de Cultura.; para os Ticuna da Colômbia, ver Valenzuela (2010)Valenzuela, H. A. R. (2010). El ritual Tikuna de la pelazón en la Comunidad de Arara, sur del trapecio amazónico: una experiencia etnográfica (Dissertação de mestrado). Universidad Nacional de Colombia, Sede Amazonía, Leticia, Amazonas, Colombia.. Goulard (2009Goulard, J.-P. (2009). Entre mortales e inmortales: el Ser según los Ticuna de la Amazonía. CAAAP: Lima, Peru., 2002Goulard, J.-P. (2002). Le temps du passage: exister pour vivre: l’entre-deux chez les Ticuna d’Amazonie. L’Autre: cliniques, cultures et sociétés: Revue Transculturelle, 3(1), 109-123., 2010)Goulard, J.-P. (2010). Le sens du poil chez les Tikuna (Amazonie). Cahier D’Anthropologie Sociale, (6), 117-130. apresenta dados sobre a Festa nos dois países também.
  • 7
    A etnografia detalhada das Festas que pesquisei pode ser conferida em Matarezio Filho (2019)Matarezio Filho, E. T. (2019). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo: Editora Humanitas..
  • 8
    Os tios paternos (FB e FZ), que pertencem ao mesmo clã da moça, e seus respectivos cônjuges, são frequentemente incumbidos de serem os copeiros da Festa (Gruber, 1999Gruber, J. G. (1999). Instrumentos Musicais Ticunas, apostila manuscrita. [Publicado também em Bispo, A. A. (Org.). (1996-1997). Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens - II. Roma: Consociatio lntemationalis Musicae Sacrae]., p. 11, nota 10).
  • 9
    Para uma retomada da tradição spinozista nas análises dos afetos dos Guarani, ver Macedo (2017, p. 535, nota 9)Macedo, V. (2017). Misturar e circular em modulações guarani: uma etiologia das (in)disposições. Mana, 23(3), 511-543. doi: 10.1590/1678-49442017v23n3p511
    https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23...
    .
  • 10
    Lúcia, filha de Francisco e Mariazinha, nasceu na comunidade de N. S. de Nazaré, igarapé Camatiã, município de São Paulo de Olivença, no Amazonas. Atualmente (2019), ela está com 18 anos, mora e estuda na cidade. Sua família é de festeiros bastante tradicionais e conhecedores do ritual.
  • 11
    “A iniciação não é somente um ‘como se’. Não é só teatro para assustar as crianças e inquietar as mães! A violência é muito real, e a dor sofrida” (Siran, 2002Siran, J.-L. (2002). Initiation: pourquoi la violence? L’Homme, (162), 279-290., p. 280).
  • 12
    Almira é da comunidade de Santa Clara, às margens do Solimões, município de São Paulo de Olivença, Amazonas. É mãe de Marciley e avó de Ociene e Ocilda, filhas de Marquisete, das quais falarei adiante. Todas vivem atualmente mais na cidade do que na comunidade, em função da vida escolar.
  • 13
    Presenciei a Festa de Marciley em 2012, em Santa Clara. Foi o primeiro caso que conheci de “moça” casada e com filhos passando pelo ritual.
  • 14
    Mulheres, em menor número, também usam máscaras na Festa e dançam com as moças, mas não usam máscaras do macaco To’ü ou qualquer outra que tenha pênis.
  • 15
    Luísa, quando passou pela Festa em que estive presente, em julho de 2017, já estava casada e com filhos, assim como Marciley. Mora atualmente na cidade de São Paulo de Olivença, no Amazonas, mas nasceu e foi criada na comunidade de Nova Esperança.
  • 16
    Da comunidade de N. S. de Nazaré. Em fevereiro de 2019, quando conversei com ela, tinha 14 anos. Ficou reclusa por quase sete meses, até sair em sua Festa em julho de 2018.
  • 17
    Cumanainhawẽgü = ‘estão bagunçando com você’.
  • 18
    também pode querer dizer “los cursos de agua (na:-tü)” (Montes Rodríguez, 2014Montes Rodríguez, M. E. (2014). Género, clasificación y nombres ligados en Tikuna (Amazonia colombiana). Revista Brasileira de Linguística Antropológica, 6(1), 37- 62. doi: 10.26512/rbla.v6i1.21058
    https://doi.org/10.26512/rbla.v6i1.21058...
    , p. 46).
  • 19
    Ver documentário biográfico desse canto, “Caminho de Mutum” (Matarezio Filho & Senlle, 2018Matarezio Filho, E. T. (Produtor & Diretor), & Senlle, M. (Diretora). (2018). Caminho de Mutum [Filme]. São Paulo: LISA/USP. Recuperado de https://vimeo.com/lisausp/caminhodemutum
    https://vimeo.com/lisausp/caminhodemutum...
    ).
  • 20
    A organização social ticuna divide as pessoas em clãs que se agrupam em duas metades exogâmicas não nominadas, mas que costumam ser glosadas como ‘com penas’ (clãs de pássaros) e ‘sem penas’ (animais e plantas).
  • 21
    Cowü é o termo usado para ‘veado’. Já em relação a tchinawe, o Dicionário do SIL (D. Anderson & L. Anderson, 2016Anderson, D., & Anderson, L. (2016). Diccionario ticuna – castellano (Serie Lingüística Peruana, No. 57). Instituto Lingüístico de Verano: Lima, Peru., p. 224) traduz como ‘escorpião’.
  • 22
    A partícula _gü indica plural, ‘bichos’, portanto, são referidos como ngo’ogü, plural de ngo’o.
  • 23
    “[C]omo retirar do corpo aquilo do que ele é capaz. Os ritos constroem maneiras de entender quais são essas capacidades” (Strathern, 2006Strathern, M. (2006). O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade em Melanésia. Campinas (SP): Editora Unicamp., p. 165).
  • 24
    A referência pioneira de Lévi-Strauss (1993)Lévi-Strauss, C. (1993). História de lince. São Paulo: Companhia das Letras. em destacar a “abertura ao outro” como característica dos povos ameríndios é bem conhecida. Faço aqui apenas uma menção a Perrone-Moisés (2015, p. 77, nota 61)Perrone-Moisés, B. (2015). Festa e Guerra (Tese de livre docência). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. sobre a relação dessa “abertura” com as festas desses povos: “viver em festa: não ‘entre si’, justamente, porque festa não se faz ‘em família’, mas supõe a ‘abertura ao outro’”.
  • 25
    As siglas presentes neste trecho significam: restr = restritivo, mod = modalizador, af = afetivo, o.int = objeto interno, pl = plural, pl.v = plural verbal, cóp = cópula, fem = feminino. Sobre a caracterização do pronome , Montes Rodríguez (2004, p. 89, nota 17)Montes Rodríguez, M. E. (2004). Morfosintaxis de la lengua tikuna. Bogotá: Universidad de Los Andes. descreve esse pronome da seguinte maneira, "[e]s una forma generíca de 3a p, masc, fem o pl. Indica respeto y afecto".
  • 26
    kui-bô-chaku, ‘floreciste’, em cantos de Roberto Fonseca (Montes Rodríguez, 1991Montes Rodríguez, M. E. (1991). Los cantos tradicionales entre los Ticuna (Amazonas). Ensayo de caracterización. Textos de la música vocal en torno al ritual de iniciación femenina (Informe final, 4). Becas Francisco de Paula Santandes, Icetex Colcultura, Bogotá. Recuperado de https://www.researchgate.net/publication/326815899
    https://www.researchgate.net/publication...
    ).
  • 27
    Um exemplo dessa equivalência entre ‘aberturas’ e ‘fechamentos’ de orifícios corpóreos e o controle social dos seus excessos é dado por Overing (2000, p. 71)Overing, J. (2000). The efficacy of laughter: the ludic side of magic within Amazonian sociality. In J. Overing & A. Passes (Eds.), The Anthropology of love and anger: the aesthetics of conviviality in native Amazonia (pp. 64-81). London: Routledge. para os Piaroa. Um tipo de ‘loucura’, chamada k’iraeui, para este povo, “pode manifestar-se como riso excessivo, diarreia ou promiscuidade”.
  • 28
    Francisco e sua família são exímios conhecedores da Festa da Moça Nova. Moradores da comunidade de N. S. de Nazaré, município de São Paulo de Olivença, no Amazonas, pude presenciar eles construindo máscaras e trompetes. Ele pode ser visto construindo um trompete Iburi no filme “IBURI Trompete dos Ticuna” (Matarezio Filho, 2014bMatarezio Filho, E. T. (Produtor & Diretor). (2014b). IBURI Trompete dos Ticuna [Documentário]. São Paulo: LISA/USP. Recuperado de www.vimeo.com/lisausp/iburi
    www.vimeo.com/lisausp/iburi...
    ).
  • 29
    Essa análise da Festa da Moça Nova, baseada no “Anti-Édipo”, de Deleuze e Guattari (2010)Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (L. B. L. Orlandi, Trad.). Rio de Janeiro: Editora 34., é melhor detalhada no texto “O Anti-Édipo Ticuna” (Matarezio Filho, 2015bMatarezio Filho, E. T. (2015b, dezembro). O Anti-Édipo Ticuna. In XI Reunión de Antropología del MERCOSUR (XI RAM). Montevidéu.). Neste mesmo texto, há a referência a Siran (2002, p. 285) para desenvolver para a Festa da Moça Nova ticuna a noção de que o ritual de iniciação envolve angústias ‘reais’, a experiência nos neófitos de que algo se “liquefaz”.
  • 30
    Exemplo usado por Deleuze e Guattari (2010, p. 189)Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (L. B. L. Orlandi, Trad.). Rio de Janeiro: Editora 34. também, assim como as “sociedades de iniciação”.
  • 31
    “Entre a natureza e a cultura, o veneno opera uma espécie de curto-circuito. . . . uma intrusão da natureza na cultura” (Lévi-Strauss, 2004bLévi-Strauss, C. (2004b). O cru e o cozido (Coleção Mitológicas, Vol. 1). São Paulo: Cosac & Naify., p. 317).
  • 32
    Para a identificação entre convidados rituais e inimigos, ver Matarezio Filho (2014a)Matarezio Filho, E. T. (2014a). Ritual e pessoa entre os Waimiri-Atroari (M. Teixeira-Pinto, Pref., & S. G. Baines, Posf.). São Paulo: Annablume. a respeito dos povos de língua Caribe, de modo geral, e dos Waimiri-Atroari, em específico. A tese de Perrone-Moisés (2015)Perrone-Moisés, B. (2015). Festa e Guerra (Tese de livre docência). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. desenvolve esse tema de maneira magistral para todos os ameríndios. Uso aqui ‘condensação ritual’ no sentido atribuído por Houseman (2003, p. 80)Houseman, M. (2003). O vermelho e o negro: um experimento para pensar o ritual. Mana, 9(2), 79-107. doi: 10.1590/S0104-93132003000200003
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313200300...
    , “a atuação simultânea de modos de relação formalmente contrários: afirmações de identidade são ao mesmo tempo testemunhos de diferença . . .”.
  • 33
    As “condensações rituais” entre mortais e imortais, masculino e feminino, na Festa da Moça Nova, estão descritas em Matarezio Filho (2015aMatarezio Filho, E. T. (2015a). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Recuperado de https://goo.gl/zO0NI8
    https://goo.gl/zO0NI8...
    , pp. 483-493, 2019Matarezio Filho, E. T. (2019). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo: Editora Humanitas., pp. 435-447).
  • 34
    Lévi-Strauss (2011, pp. 634-635)Lévi-Strauss, C. (2011). O homem nu (Coleção Mitológicas, Vol. 4). São Paulo: Cosac & Naify. alterna as palavras “angústia” e “ansiedade”, em oposição ao riso, para se referir aos ‘sentimentos motivadores’ dos rituais.
  • 35
    Análise realizada em parceria com a linguista Profa. Dra. Maria Emilia Montes Rodríguez (UNAL).
  • 36
    Os significados das siglas utilizadas nesse trecho são: LOC = locativo, O.INT = objeto interno, PRIV = privativo, GEN = genitivo, PL = plural.
  • 37
    Sou grato à professora ticuna Luscita Bibiano Ezequiel, da comunidade de Campo Alegre, que me explicou muito pacientemente o significado desta palavra enquanto traduzíamos uma canção da Festa da Moça Nova. Tenho como hipótese que a palavra nhemagü’ü˜ poderia ser traduzida literalmente como ‘sem caminho’. Ver no trecho em destaque a análise morfológica da palavra.
  • 38
    Estes sentidos ressoam o significado da palavra em alemão usada por Freud para se referir ao ‘desamparo’, Hilflosigkeit, “estar em uma ‘condição sem ajuda’ possível” (Safatle, 2015Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac & Naify., p. 33).
  • 39
    Gow (2000, p. 47)Gow, P. (2000). Helpless: the affective preconditions of Piro social life. In J. Overing & A. Passes (Eds.), The Anthropology of love and anger: the aesthetics of conviviality in native Amazonia (pp. 43-63). London: Routledge., em seu artigo sobre o ‘desamparo’ entre os Piro, também mostra que as possibilidades de tradução da palavra wamonuwata são múltiplas: “chorar, ficar triste, sofrer, ser fofo, ser fofinho”. No entanto, seria possível traduzir wamonuwata como ‘desamparo’ ou elaborar uma definição do tipo “estar fora da atenção mútua generalizada do ‘bem viver’” (Gow, 2000Gow, P. (2000). Helpless: the affective preconditions of Piro social life. In J. Overing & A. Passes (Eds.), The Anthropology of love and anger: the aesthetics of conviviality in native Amazonia (pp. 43-63). London: Routledge., p. 52).
  • 40
    Para uma análise dessa “condensação ritual” (Houseman & Severi, 1998Houseman, M., & Severi, C. (1998). Naven or the other self: a relational approach to ritual action. Leiden: Brill.; Houseman, 2003Houseman, M. (2003). O vermelho e o negro: um experimento para pensar o ritual. Mana, 9(2), 79-107. doi: 10.1590/S0104-93132003000200003
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313200300...
    ) entre mortalidade e imortalidade no corpo das moças que estão sendo iniciadas, ver Matarezio Filho (2019, pp. 435-445)Matarezio Filho, E. T. (2019). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo: Editora Humanitas..
  • 41
    A passagem seria a seguinte: “‘Reírse’ es um eufemismo por ‘tener una relación sexual’” (Chávez, 1996Chávez, H. H. (1996). Mbaisik en la penumbra del atardecer: literatura oral Harakmbut. Lima, Peru: CAAAP., p. 102). A consideração do riso aqui refere-se ao povo Harakmut, habitante da Amazônia peruana, etnografado por Heinrich Chávez.
  • 42
    Não haveria espaço aqui para resumir a demonstração que realizei em Matarezio Filho (2015aMatarezio Filho, E. T. (2015a). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Recuperado de https://goo.gl/zO0NI8
    https://goo.gl/zO0NI8...
    , pp. 111-126, 2019Matarezio Filho, E. T. (2019). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo: Editora Humanitas., pp. 106-127) de que a “garota do umari” é uma variação estrutural de To’oena, a primeira moça nova da mitologia. Isso conecta as moças que são iniciadas atualmente com a ‘reclusão’ da “garota do umari”.
  • 43
    “[O] envelope de um fato psíquico é a organização lógica pela qual esse fato psíquico adquire um significado” (Nathan, 1994Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob., p. 272).
  • 44
    As etnografias dos povos ameríndios estão repletas de exemplos de ‘maus encontros’ que geram ‘estados depressivos’. Destaco aqui dois comentários sobre o tema que descrevem sintomas semelhantes ao que aponta Nathan. “O mau encontro no mato, o acidente que separa o sujeito de sua alma. Ele volta para casa sem alma. Então definha. E se um xamã não trouxer a alma de volta, o sujeito morre. Com a alma levada por um outro sujeito, ou melhor, por um sujeito outro, o sujeito acaba virando outro que si mesmo. Vira onça, vira morto, vira seja lá o que for que ele encontrou. Descrições dessas situações de crise psico-ontológica são recorrentes nas etnografias sobre os índios, sobre os povos siberianos, e tantos outros” (Viveiros de Castro, 2008Viveiros de Castro, E. (2008). Uma boa política é aquela que multiplica os possíveis (entrevista a Renato Sztutman e Stelio Marras). In R. Sztutman (Org.), Eduardo Viveiros de Castro: entrevistas (Coleção Encontros, pp. 226-259). Rio de Janeiro: Azougue Editorial., p. 233). Nesse mesmo sentido, afirma Almeida (2013, p. 16)Almeida, M. W. B. (2013). Caipora e outros conflitos ontológicos. R@u: Revista de Antropologia da UFSCar, 5(1), 7-28., “[r]elatos muito comuns narram eventos em que caçadores experientes perdem-se na floresta, e voltam para casa depois de horas, com o corpo e as roupas rasgados por espinhos, com marcas de açoite, tomados de medo – o assombro”.
  • 45
    As moças são cobradas para que permaneçam impassíveis durante o arrancamento dos cabelos. Em outro texto, elaborei a hipótese de que a retirada dos cabelos ‘mortais’ (yunatü) complementam a troca de ‘pele’ (_tchamu) das moças, iniciada com a menarca (Matarezio Filho, 2019Matarezio Filho, E. T. (2019). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna. São Paulo: Editora Humanitas., p. 280). A cabeça sem cabelos poderia ser interpretada como uma “castração simbólica” das moças, que, apesar de estarem “maduras” para o casamento (Matarezio Filho, 2017Matarezio Filho, E. T. (2017). O amadurecimento dos corpos e do cosmos - mito, ritual e pessoa ticuna. Revista de Antropologia, 60(1), 193-215. doi: 10.11606/2179-0892.ra.2017.132073
    https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
    ), não lhes é recomendado que tenham relações sexuais tão logo (Matarezio Filho, 2019, pp. 426-435).
  • 46
    “Após um susto [frayeur], os membros dessas populações tendem a reagir por comportamentos de mimetismo (ecopraxias, ecolalias). . . . ao recorrer ao mimetismo, a cultura parece induzir o sujeito a uma espécie de ressocialização: uno-me ao outro imitando-o . . .” (Nathan, 1994Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit. Paris: Odile Jacob., pp. 202-203).
  • 47
    Ver Matarezio Filho (2017)Matarezio Filho, E. T. (2017). O amadurecimento dos corpos e do cosmos - mito, ritual e pessoa ticuna. Revista de Antropologia, 60(1), 193-215. doi: 10.11606/2179-0892.ra.2017.132073
    https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
    , para uma consideração sobre a concepção ticuna de maturidade do corpo.
  • Matarezio Filho, E. T. (2020). Do ponto de vista das moças: a circulação de afetos na Festa da Moça Nova dos Ticuna. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 15(1), e20190065. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2019-0065

REFERÊNCIAS

  • Almeida, M. W. B. (2013). Caipora e outros conflitos ontológicos. R@u: Revista de Antropologia da UFSCar, 5(1), 7-28.
  • Anderson, D., & Anderson, L. (2016). Diccionario ticuna – castellano (Serie Lingüística Peruana, No. 57). Instituto Lingüístico de Verano: Lima, Peru.
  • Belaunde, L. E. (2005). El recuerdo de Luna: gênero, sangre y memoria entre los pueblos amazónicos (1 ed.). Lima, Peru: Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales.
  • Belaunde, L. E., Letts, P., & Sullon, K. (2016). Woxrexcüchiga: el ritual de la pubertad en el pueblo Ticuna Lima, Peru: Ministerio de Cultura.
  • Bueno, M. I. C. S. (2014). Sobre encantamento e terror: imagens das relações entre humanos e sobrenaturais numa comunidade Ticuna (Alto Solimões, Amazonas, Brasil) (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
  • Carvalho, F. O. (2009). On the genetic kinship of the languages Tikúna and Yurí. Revista Brasileira de Linguística Antropológica, 1(2), 247-268.
  • Chávez, H. H. (1996). Mbaisik en la penumbra del atardecer: literatura oral Harakmbut Lima, Peru: CAAAP.
  • Clastres, P. (2003). De que riem os índios? In P. Clastres, A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política (pp. 127-148). São Paulo: Cosac & Naify.
  • Coelho de Souza, M. (2002). O traço e o círculo: o conceito de parentesco entre os Jê e seus antropólogos (Tese de doutorado). Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
  • Costa, M. A. M. (2015). “Nós, Ticuna, temos que cuidar da nossa cultura”: um estudo sobre o ritual de iniciação feminina entre os Ticuna de Umariaçú I, Tabatinga, Alto Solimões (AM) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Amazonas, Manaus, AM, Brasil.
  • Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). 1730: devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível. In G. Deleuze, & F. Guattari, Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Coleção TRANS, Vol. 4, pp. 11-113). São Paulo: Editora 34.
  • Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (L. B. L. Orlandi, Trad.). Rio de Janeiro: Editora 34.
  • Faulhaber, P. (2007). O ritual e seus duplos: fronteira, ritual e papel das máscaras na festa da moça nova ticuna. Boletín de Antropología Universidad de Antioquia, 21(38), 86-103.
  • Goulard, J.-P. (2002). Le temps du passage: exister pour vivre: l’entre-deux chez les Ticuna d’Amazonie. L’Autre: cliniques, cultures et sociétés: Revue Transculturelle, 3(1), 109-123.
  • Goulard, J.-P. (2009). Entre mortales e inmortales: el Ser según los Ticuna de la Amazonía CAAAP: Lima, Peru.
  • Goulard, J.-P. (2010). Le sens du poil chez les Tikuna (Amazonie). Cahier D’Anthropologie Sociale, (6), 117-130.
  • Goulard, J.-P. (2011). La sur-face du masque: perpétuation et métamorphose chez les Tikuna. In J.-P. Goulard & D. Karadimas (Eds.), Masques des hommes visages des Dieux: regards d’ Amazonie (pp. 129-153). Paris: CNRS Editions.
  • Goulard, J.-P., & Rodríguez Montes, M. E. (2013). Los Yurí / Juri-Tikuna, en el complejo socio-lingüistico del noroeste amazónico. LIAMES: Línguas Indígenas Americanas, 13(1), 7-65. doi: 10.20396/liames.v0i13.1531
    » https://doi.org/10.20396/liames.v0i13.1531
  • Gow, P. (2000). Helpless: the affective preconditions of Piro social life. In J. Overing & A. Passes (Eds.), The Anthropology of love and anger: the aesthetics of conviviality in native Amazonia (pp. 43-63). London: Routledge.
  • Gruber, J. G. (1999). Instrumentos Musicais Ticunas, apostila manuscrita [Publicado também em Bispo, A. A. (Org.). (1996-1997). Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens - II Roma: Consociatio lntemationalis Musicae Sacrae].
  • Houseman, M. (2003). O vermelho e o negro: um experimento para pensar o ritual. Mana, 9(2), 79-107. doi: 10.1590/S0104-93132003000200003
    » https://doi.org/10.1590/S0104-93132003000200003
  • Houseman, M., & Severi, C. (1998). Naven or the other self: a relational approach to ritual action Leiden: Brill.
  • Lagrou, E. (2006). Rir do poder e o poder do riso nas narrativas e performances Kaxinawa. Revista de Antropologia, 49(1), 55-90. doi: 10.1590/S0034-77012006000100003
    » https://doi.org/10.1590/S0034-77012006000100003
  • Lévi-Strauss, C. (1993). História de lince São Paulo: Companhia das Letras.
  • Lévi-Strauss, C. (2004a). Do mel às cinzas (Coleção Mitológicas, Vol. 2). São Paulo: Cosac & Naify.
  • Lévi-Strauss, C. (2004b). O cru e o cozido (Coleção Mitológicas, Vol. 1). São Paulo: Cosac & Naify.
  • Lévi-Strauss, C. (2011). O homem nu (Coleção Mitológicas, Vol. 4). São Paulo: Cosac & Naify.
  • Macedo, V. (2017). Misturar e circular em modulações guarani: uma etiologia das (in)disposições. Mana, 23(3), 511-543. doi: 10.1590/1678-49442017v23n3p511
    » https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23n3p511
  • Matarezio Filho, E. T. (2014a). Ritual e pessoa entre os Waimiri-Atroari (M. Teixeira-Pinto, Pref., & S. G. Baines, Posf.). São Paulo: Annablume.
  • Matarezio Filho, E. T. (Produtor & Diretor). (2014b). IBURI Trompete dos Ticuna [Documentário]. São Paulo: LISA/USP. Recuperado de www.vimeo.com/lisausp/iburi
    » www.vimeo.com/lisausp/iburi
  • Matarezio Filho, E. T. (2015a). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Recuperado de https://goo.gl/zO0NI8
    » https://goo.gl/zO0NI8
  • Matarezio Filho, E. T. (2015b, dezembro). O Anti-Édipo Ticuna. In XI Reunión de Antropología del MERCOSUR (XI RAM) Montevidéu.
  • Matarezio Filho, E. T. (2017). O amadurecimento dos corpos e do cosmos - mito, ritual e pessoa ticuna. Revista de Antropologia, 60(1), 193-215. doi: 10.11606/2179-0892.ra.2017.132073
    » https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2017.132073
  • Matarezio Filho, E. T. (2019). A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna São Paulo: Editora Humanitas.
  • Matarezio Filho, E. T. (Produtor & Diretor), & Senlle, M. (Diretora). (2018). Caminho de Mutum [Filme]. São Paulo: LISA/USP. Recuperado de https://vimeo.com/lisausp/caminhodemutum
    » https://vimeo.com/lisausp/caminhodemutum
  • Montes Rodríguez, M. E. (1991). Los cantos tradicionales entre los Ticuna (Amazonas). Ensayo de caracterización. Textos de la música vocal en torno al ritual de iniciación femenina (Informe final, 4). Becas Francisco de Paula Santandes, Icetex Colcultura, Bogotá. Recuperado de https://www.researchgate.net/publication/326815899
    » https://www.researchgate.net/publication/326815899
  • Montes Rodríguez, M. E. (2004). Morfosintaxis de la lengua tikuna Bogotá: Universidad de Los Andes.
  • Montes Rodríguez, M. E. (2014). Género, clasificación y nombres ligados en Tikuna (Amazonia colombiana). Revista Brasileira de Linguística Antropológica, 6(1), 37- 62. doi: 10.26512/rbla.v6i1.21058
    » https://doi.org/10.26512/rbla.v6i1.21058
  • Nathan, T. (1994). L’Influence qui guérit Paris: Odile Jacob.
  • Nimuendajú, C. (1952). The Tukuna. University of California Publications in American Archeology and Ethnology, 45, 1-209.
  • Oliveira Filho, J. P. (1988). “O nosso governo”: os Ticuna e o regime tutelar. São Paulo: Marco Zero.
  • Oliveira Filho, J. P. (2000). Máscaras: objetos étnicos ou recriação cultural? In J. P. Brito (Org.), Os Índios, nós (1 ed., pp. 210-215). Lisboa: Museu Nacional de Etnologia.
  • Overing, J. (1991). A estética da produção: o senso de comunidade entre os Cubeo e os Piaroa. Revista de Antropologia, 34, 7-33.
  • Overing, J. (2000). The efficacy of laughter: the ludic side of magic within Amazonian sociality. In J. Overing & A. Passes (Eds.), The Anthropology of love and anger: the aesthetics of conviviality in native Amazonia (pp. 64-81). London: Routledge.
  • Overing, J. (2002). Estruturas elementares de reciprocidade: notas comparativas sobre a Guiana, o Noroeste Amazônico e o Brasil Central. Cadernos de Campo, (10), 121-138.
  • Overing, J., & Passes, A. (2000). Introduction: conviviality and the opening up of Amazonian anthropology. In J. Overing & A. Passes (Eds.), The Anthropology of love and anger: the aesthetics of conviviality in Native Amazonia (pp. 1-30). London: Routledge.
  • Perrone-Moisés, B. (2015). Festa e Guerra (Tese de livre docência). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
  • Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo São Paulo: Cosac & Naify.
  • Schultz, H. (1962). Hombu: indian life in the brazilian jungle New York: The Macmillan Company.
  • Seeger, A., Da Matta, R., & Viveiros de Castro, E. (1979). A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional, Nova Série, Antropologia, (32), 2-19.
  • Siran, J.-L. (2002). Initiation: pourquoi la violence? L’Homme, (162), 279-290.
  • Spinoza, B. (2013). Ética Belo Horizonte: Autêntica.
  • Surrallés, A. (2005). Afectividad y epistemología de las Ciencias Humanas. [Número especial]. AIBR: Revista de Antropología Iberoamericana, 1-16.
  • Stewart, S. (1993). On longing: narratives of the miniature, the gigantic, the souvenir, the collection Durham: Duke University Press.
  • Strathern, M. (2006). O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade em Melanésia Campinas (SP): Editora Unicamp.
  • Turner, V. W. (1974). Liminaridade e “Communitas”. In V. W. Turner, O processo ritual: estrutura e anti-estrutura (pp. 116-159). Petrópolis: Vozes.
  • Valenzuela, H. A. R. (2010). El ritual Tikuna de la pelazón en la Comunidad de Arara, sur del trapecio amazónico: una experiencia etnográfica (Dissertação de mestrado). Universidad Nacional de Colombia, Sede Amazonía, Leticia, Amazonas, Colombia.
  • Viveiros de Castro, E. (2002a). Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In E. Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia (pp. 240-277). São Paulo: Cosac & Naify.
  • Viveiros de Castro, E. (2002b). Atualização e contra efetuação do virtual: o processo do parentesco. In E. Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia (pp. 403-455). São Paulo: Cosac & Naify.
  • Viveiros de Castro, E. (2007). Filiação intensiva e aliança demoníaca. Novos Estudos CEBRAP, (77), 91-126. doi: 10.1590/S0101-33002007000100006
    » https://doi.org/10.1590/S0101-33002007000100006
  • Viveiros de Castro, E. (2008). Uma boa política é aquela que multiplica os possíveis (entrevista a Renato Sztutman e Stelio Marras). In R. Sztutman (Org.), Eduardo Viveiros de Castro: entrevistas (Coleção Encontros, pp. 226-259). Rio de Janeiro: Azougue Editorial.
  • Viveiros de Castro, E. (2011). O medo dos outros. Revista de Antropologia, 54(2), 885-917. Recuperado de http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/39650
    » http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/39650
  • Viveiros de Castro, E. (2015). Metafísicas Canibais São Paulo: Cosac & Naify.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2019
  • Aceito
    21 Nov 2019
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação, Av. Perimetral. 1901 - Terra Firme, 66077-830 - Belém - PA, Tel.: (55 91) 3075-6186 - Belém - PA - Brazil
E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br